RESENHAS

A matemática do ensino de frações: do século XIX à BNCC

Antonio Mauricio Medeiros Alves
Universidade Federal de Pelotas (UFPel)., Brasil

Revista de História da Educação Matemática

Sociedade Brasileira de História da Matemática, Brasil

ISSN-e: 2447-6447

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 7, 2021

revista.histemat.sbhmat@gmail.com

Recepção: 04 Maio 2021

Aprovação: 27 Maio 2021



No ano de 2021 a coleção “História da Matemática para Professores” comemora 20 anos de seu lançamento, o qual ocorreu por ocasião do IV Seminário Nacional de História da Matemática (SNHM), em Natal, no ano de 2001, quando foram publicados os primeiros números da coleção. Para demarcar essa data significativa da coleção, foram selecionados 10 títulos contemplando temáticas de grande contribuição para formação de professores da Educação Básica e do Ensino Superior, lançados no XIV SNHM, que ocorreu em março de 2021, Universidade Federal do Triângulo Mineiro (UFTM).

Essa série em 10 volumes, publicada pela Editora da Física, apresenta os temas dos minicursos realizados em 2021 pela Sociedade Brasileira de História da Matemática (SBHMat), no XIV SNHM.

O quarto volume desse conjunto de 10 títulos, intitulado “A matemática do ensino de frações: do século XIX à BNCC”, de autoria de Rosilda dos Santos Morais, Luciane de Fatima Bertini e Wagner Rodrigues Valente, é o objeto da presente resenha. A obra, nas palavras dos próprios autores nas Considerações Iniciais, foi elaborada na intenção de atingir dois objetivos, sendo o primeiro deles de “divulgar a sistematização de resultados de pesquisas que vêm sendo realizadas pelo GHEMAT Brasil[2]” e o segundo “diz respeito à contribuição que a narrativa do livro pretende trazer à formação de professores, em termos de suas práticas pedagógicas nas aulas de aritmética, tendo em vista o desenvolvimento histórico seguido pelas frações nos primeiros anos escolares” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 9).

O livro inicia pelas Considerações Iniciais e apresenta seis capítulos, seguidos das Considerações Finais, Referências e apresentação dos autores. Os capítulos tem suas escritas orientadas pela seguinte questão:

Que processos e dinâmicas de constituição estão presentes na elaboração da matemática do ensino de frações? Ou de modo mais preciso, e indo ao encontro dos objetivos deste livro: como, ao longo do tempo, vem sendo caracterizada a matemática do ensino de frações? (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 10).

Assim, guiados pela questão apresentada, os autores apresentam, a partir de resultados das pesquisas históricas desenvolvidas pelo GHEMAT Brasil, uma importante discussão sobre o ensino de frações, um tema polêmico nos debates entre os professores, tanto da Educação Básica quanto do Ensino Superior, significando, para muitos estudantes, um desafio dentre os conteúdos da Matemática escolar.

Essa polêmica em torno do tema é abordada no primeiro capítulo da obra, Frações: um tema polêmico, no qual os autores dialogam com o texto de Paula Resende Adelino (Adelino, 2014), ao discutir sobre a presença do ensino de frações desde os anos iniciais do Ensino Fundamental. Para essa autora, não há consenso entre qual conteúdo matemático deve ser primeiro apresentado na escola, os números decimais ou as frações, explicitando a existência de um grupo mais radical que defende que as frações não devem ser ensinadas na escola, somente os números decimais. Partindo dessa discussão, os autores refletem sobre a mais radical das propostas: a retirada das frações do ensino.

Inicialmente apresentam a justificativa defendida por um dos autores presentes no texto de Adelino (2014) a qual defende que a presença das frações nos currículos escolares não se dá a partir de uma base racional, científica, histórica ou filosófica, mas pela inércia, medo, ignorância ou desconhecimento da racionalidade, que habitam as escolas (Vianna apud Adelino, 2014). Em seguida, em outra perspectiva, afirmam que a escola não pode ser vista “do lado de fora” como parece ser o caso da proposta de excluir as frações dos currículos.

Morais, Bertini e Valente (2021) entendem que a escola precisa ser analisada internamente, o que leva em conta a existência de uma cultura escolar (Julia, 2001), importante conceito da História Cultural, perspectiva que baliza os estudos desenvolvidos pelos autores.

Na perspectiva da cultura escolar, segundo os autores, é papel do pesquisador “estudar a matemática do ensino de frações, em lugar de tratar do ensino matemático das frações” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 13), anunciando o que é levado a efeito na obra, explicitando, também, seu lugar de fala, o da produção da História da educação matemática, que considera a escola como instituição produtora de saberes para o ensino e para a formação.

No capítulo seguinte, Ensino de Matemática e Matemática do ensino, partindo do campo da História das Disciplinas Escolares os autores afirmam que a discussão acerca do caráter criativo da escola, no que se refere à produção de saberes, não é algo recente. Conforme demonstrou o historiador André Chervel, em seus estudos, a escola foi, ao longo do tempo, constituindo-se como lócus de criação de saberes, em forma de disciplinas escolares. Chervel (1990) questiona a escola como lugar da “inércia, medo, ignorância ou desconhecimento da racionalidade”, analisando o papel da escola para além de um lugar de “transmissão de saberes elaborados alhures” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 16).

Reiteram os autores que não se debruçarão sobre o ensino de Matemática, mas sobre a Matemática do ensino, mais especificamente a partir da questão de “como, ao longo do tempo, vem sendo caracterizada a matemática do ensino de frações?”, questão que norteia a obra em questão e que será respondida sobretudo, com o uso de livros didáticos e manuais pedagógicos, evidenciando as principais fontes que balizam o livro. Nesse mesmo capítulo os autores destacam considerar diferentes elementos na construção dos saberes no âmbito escolar, os quais tem se constituído como categorias de análise, utilizadas nos estudos do GHEMAT Brasil: sequência, significado, graduação, exercícios e problemas.

Por sequência os autores entendem o “lugar” que as frações ocupam no conjunto de temas da aritmética. Já o significado dado às frações nos textos escolares refere-se à questão de “como” são definidas as frações. A graduação, por sua vez, indica para a estruturação dada a determinada rubrica escolar, em seus diferentes temas para o ensino, está relacionada a uma dada concepção de ensino e aprendizagem. A última, mas não menos importante categoria, refere-se a análise de exercícios e problemas, e remete às respostas que os professores esperam ao ensinar frações os alunos. Dessa forma, “sequência, significado e graduação articulam-se nas escolhas que faz o professor para obter respostas de seus alunos aos exercícios e problemas que são propostos após a realização do ensino” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p.19).

Nos quatro capítulos seguintes os autores usam uma referência à metáfora da criação: no princípio era o verbo... Em cada um desses capítulos são contemplados períodos distintos da Educação Matemática no Brasil: a matemática tradicional, a matemática nova, a Matemática Moderna e, finalmente, a matemática da Educação Matemática.

No capítulo intitulado No princípio era o verbo: a matemática tradicional do ensino de frações, Morais, Bertini e Valente (2021) apresentam uma análise da matemática no ensino de frações caracterizando a cultura escolar da segunda metade do século XIX, em relação à matemática, pelo binômio verbo-utilidade, no qual

a matemática do ensino de frações tem por finalidade, na antiga escola de primeiras letras, justificar um ensino que seja útil fora da escola, que aquilo que o mestre ensina possa ter relação com as demandas da vida cotidiana: o verbo primeiro, na escola; depois, a ação, fora dela (p. 21).

Essa análise é recorrente, principalmente, de duas obras didáticas do período: o livro “Pequeno curso de Arithmetica para uso das escolas primárias” de Ascanio Ferraz da Motta, edição de 1859, e “Primeira Arithmetica para meninos” de José Theodoro de Souza Lobo, de 1874. Na obra de Motta (1859) observa-se, em relação a sequência, o ensino de frações ordinárias, logo após as operações fundamentais e antecedendo o ensino dos decimais, o que se alinha às recomendações de manuais pedagógicos da época, que orientavam o trabalho dos professores.

Os autores destacam que no livro de Souza Lobo (1874) observa-se a inversão dessa sequência, o que se deve a adoção, a partir de 1862, do sistema métrico decimal, o que levou os autores da época a se mobilizarem “para adiantar o estudo dos números decimais e suas operações, de modo a garantir, em sequência, o estudo do sistema métrico decimal” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 24). Já o significado tem estreita relação com a sequência:

Considerando-se a sequência “operações-frações-decimais”, as frações significam operadores que dividem coisas da vida cotidiana em partes iguais, das quais se deseja tomar algumas delas. Já para a sequência operações-decimais-frações, as frações constituem razões entre dois números para uso em problemas de mudanças de sistemas de medidas (p. 24).

Da mesma forma, a graduação se encontra relacionada à sequência, variando de uma obra para outra. O mesmo se repete em relação a análise dos exercícios e problemas presentes nas obras desse período, que revelam que, quando a sequência é frações-decimais, “espera-se que os alunos saibam resolver cálculos de partição, considerando sempre o valor de uma parte, já que todas devem ser iguais”, já no caso da sequência decimais-frações, “há necessidade de cálculos entre os sistemas antigos e o sistema decimal, além de cálculos no interior do próprio sistema decimal” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 25-26).

O capítulo seguinte, No princípio era a ação: a matemática nova do ensino de frações, os autores analisam a matemática no ensino de frações no período marcado pelo método intuitivo e a Escola Nova, tomando para isso os livros didáticos presentes em outros dois estudos: “os livros didáticos identificados por Oliveira (2017), como representativos de uma Aritmética intuitiva, e por Pinheiro (2017), como representativos de uma Aritmética sob medida, e que abordassem o tema frações”, além de obras de referência, no período analisado, para formação de professores (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 28).

Os resultados da análise das obras indicam que a sequência se apresentava de modo distinto dependendo de qual proposta representavam os livros:

a sequência proposta em tempos de uma Aritmética intuitiva estava organizada com o ensino das frações ordinárias após, ou em alguns casos concomitantemente, ao ensino das operações fundamentais e antes do ensino das frações decimais. Sequência essa alterada nas proposições de uma Aritmética sob medida, na qual o ensino das frações ordinárias sucede o ensino das operações e das frações decimais (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 30-31).

Já no que se refere ao significado das frações, o mesmo não se altera na análise das obras representativas da “Aritmética intuitiva” e de uma “Aritmética sob medida”, sendo o mesmo identificado como parte de um inteiro ou de um número, sendo que apenas uma obra faz referência ao sentido das frações como divisão entre numerador e denominador.

Em relação à graduação do ensino, as “‘frações que vêm de um inteiro’ são apresentadas pelos autores [dos livros analisados] no início do ensino das frações ordinárias a partir de ‘inteiros’ representados por objetos como laranjas, pães, folha ou bolo” (p. 32), a partir de ilustrações nos livros didáticos, que, no entanto não são recorrentes no caso das “frações que vem de um número” (p. 33), pois nesse caso refere-se ao cálculo da fração de quantidades do sistema monetário, de medidas de comprimento, de massa ou de capacidade, conforme afirmam Morais, Bertini e Valente (2021). Os autores ilustram todas essas considerações com o uso de diferentes imagens dos livros didáticos analisados.

Finalmente a análise desse período é encerrada com as considerações dos autores acerca dos exercícios e problemas das obras analisadas. Naquelas que foram identificadas como representativas de uma “Aritmética intuitiva” os exercícios restringem-se à ideia de frações que vem de um número, identificando-se uma apropriação do método intuitivo na proposição dos exercícios. Nos exemplares representativos da “Aritmética sob medida”:

os exercícios e problemas como os descritos anteriormente, aparecem apenas ao final do trabalho com as frações ordinárias. Antes são propostos às crianças exercícios e problemas que envolvem o significado de “fração que vem de um inteiro”. As crianças são convidadas a representar pictoricamente a divisão do “inteiro” em determinada quantidade de partes e a escrever a representação na forma de fração a partir de sua representação pictórica (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 34).

Em síntese, o ensino de frações, no período analisado nesse capítulo, contemplava a circulação de propostas do método intuitivo e da Escola Nova, a partir da aproximação dos saberes aritméticos à vida ordinária.

Nos dois últimos capítulos da obra, quinto e sexto, respectivamente, intitulados por No princípio era a matemática: a matemática moderna do ensino de frações e No princípio eram as competências: a matemática da educação matemática do ensino de frações, Morais, Bertini e Valente (2021) irão tratar sobre a matemática no ensino de frações em dois momentos históricos diversos.

O quinto capítulo abarca o período que ficou conhecido pelo Movimento da Matemática Moderna (MMM), dos anos de 1960 a meados da década de 1980, enquanto o sexto, mais contemporâneo, considera as recentes contribuições do campo da Educação Matemática para o ensino, até os dias atuais, discutindo o lançamento da Base Nacional Comum Curricular, em 2017.

No quinto capítulo os autores tomam como objeto de estudo as obras de significativa circulação nos tempos do MMM, enquanto a análise do sexto capítulo se debruça sobre os documentos curriculares oficiais. Em ambos casos, são evidenciados os achados a partir das categorias de análise utilizadas nos capítulos anteriores: sequência, significado, graduação, exercícios e problemas.

Os autores, nas Considerações Finais da obra, retomam a questão que os conduziu na escrita dos capítulos que compõem o livro: Como, ao longo do tempo, vem sendo caracterizada a matemática do ensino de frações?

Iniciam esse capítulo reiterando que tanto os processos que envolvem a produção da matemática escolar quanto os relacionados à formação de professores que ensinam matemática, são processos históricos. Apresentam breves reflexões sobre cada um dos períodos que serviu de recorte temporal para os seis capítulos que compõem a obra, evidenciando a matemática do ensino de frações, presente em cada um deles.

Como resposta à questão reiteradamente apresentada ao longo da obra, condutora da escrita, concluem os autores que a análise empreendida ao longo do livro permite verificar, em escala macro, que a matemática do ensino constitui-se, historicamente, pela relação entre a matemática a ensinar e a matemática para ensinar, sendo a primeira “uma matemática que deverá estar presente no ensino” e, a segunda, a “ferramenta do trabalho docente, [que] expressa o saber que o professor precisa ter para ensinar” (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 75).

Mais especificamente, em relação a temática da obra, a matemática do ensino de frações, essas relações entre a matemática a ensinar e a matemática para ensinar, vão variando com o passar do tempo, caracterizando-se de diferentes formas, dependendo do período analisado.

Por fim, conclui-se essa resenha podendo-se afirmar a importância da obra, tanto para professores da educação básica, bem como para os formadores de professores e demais interessados na matemática para o ensino de frações, tema complexo e que foi se modificando ao longo dos anos, o que fica evidente na bela obra que os autores nos apresentam, em comemoração aos 20 anos da coleção “História da Matemática para Professores”.

REFERÊNCIAS

ADELINO, P.R. (2014). O que ensinar primeiro: frações ou números decimais? In: Anais da Anped Sudeste. Recuperado de: https://anpedsudeste2014.files.wordpress.com/2015/04/paularesende-adelino.pdf

CHERVEL, A. (1990). História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. Teoria & Educação, 2, p. 77-229.

JULIA, D. (2001). A Cultura Escolar como objeto histórico. Trad. Gizele de Souza. Revista Brasileira de História da Educação, n. 1, jan./jun.

Morais, R.S., Bertini, F. & Valente, W. R. (2021). A matemática do ensino de frações: do século XIX à BNCC. São Paulo: Livraria da Física.

MOTTA, A. F. (1859). Pequeno Curso de Arithmetica para uso das escolas primárias. Rio de Janeiro: Garnier Editor. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/100350

OLIVEIRA, M. A. (2017) A aritmética escolar e o método intuitivo: um novo saber para o curso primário (1870 – 1920). (Tese Doutorado em Ciências). Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/178956

PINHEIRO, N.V.L. (2017). A aritmética sob medida a matemática em tempos da pedagogia científica. (Tese Doutorado em Ciências). Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/xmlui/handle/123456789/179942

SOUZA LOBO, J.T. (1930). Primeira Arithmetica para Meninos. Porto Alegre: Edições da Livraria O Globo, 39ª. ed. Recuperado de: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/100100

Notas

[1] Doutor em Educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel). Professor Adjunto na Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas-RS, Brasil. Rua Coronel Alberto Rosa, 154 – Centro, Pelotas - CEP 96010-770, RS-Brasil. E-mail: alvesl.antoniomauricio@gmail.com.
[2] GHEMAT Brasil – Grupo Associado de Estudos e Pesquisas em História da Educação Matemática, associação sem fins lucrativos, que congrega mais de vinte estados brasileiros, por meio de grupos de pesquisas alocados em diferentes programas de pós-graduação de diversas instituições de ensino superior. Sítio: (Morais, Bertini e Valente, 2021, p. 9).
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