ARTIGOS
Recepção: 09 Janeiro 2016
Aprovação: 11 Agosto 2016
Resumo: As políticas públicas educacionais adotadas a partir das premissas do neoliberalismo econômico por países da América Latina na década de 1990 afetaram e transformaram as medidas educacionais dos mesmos. No Brasil, as mudanças acarretam, dentre outras iniciativas, no movimento para descentralização da educação também conhecido por municipalização do ensino, o qual foi intensivo no estado de São Paulo. (PROPONHO) No Brasil, dentre as reformas educacionais, ocorreu o movimento pela descentralização da educação ou municipalização do ensino, o qual foi intensivo no estado de São Paulo. Aproximadamente quinze anos após as reformas é importante conhecer o impacto causado por esta política pública educacional nos sistemas de ensino municipais bem como suas implicações no currículo e, consequentemente, na aprendizagem do ensino de ciências, identificando aspectos positivos e suas limitações. Para tanto, este artigo apresenta os resultados obtidos, inicialmente, por meio de uma pesquisa qualitativa com grupos focais e entrevista semi estruturada com professores do munícipio de Cesário Lange/SP a fim de analisar o movimento de descentralização nesse contexto educacional.
Palavras-chave: Políticas Públicas, Currículo, Ensino de Ciências.
Abstract: The education public politics adopt as from the reason the economic neoliberalism for countries the Latina America in the decade the 1990 affect and transform the education measures yourselves. In Brazil, the change to bring on, among other initiative, in the movement for education decentralize or municipalization the teaching, whereon was intensive in the State São Paulo. Approximately fifteen years after this alterations is important to know the impact to be caused by this education public politics in the teaching municipal systems and your implication in the course and, consequently, in the science learning, diagnosing positive aspects and your limitations. Therefore, was to make a quality research with focals groups and interview no structure with teachers the Cesário Lange/SP city for analyze the results this education public politics in that education context.
Keywords: Public politics, Curriculum , science teaching.
Introdução
A década de noventa ficou marcada pela reestruturação do país após o fim da ditadura militar e a elaboração da Constituição de 1988 que garantia direitos nunca vistos anteriormente. Da mesma forma, o sistema educacional brasileiro necessitava se reorganizar a fim de direcionar suas intencionalidades enquanto pós período ditatorial. Krasilchik (1987) relata que os processos educacionais sofrem grandes mudanças impulsionadas pelas transformações políticas, econômicas e sociais, levando a orientação de reformas educacionais.
No âmbito internacional, o endividamento dos países da América Latina com o Banco Mundial e o FMI, levou estes órgãos de financiamento a emergirem com propostas de renegociação e garantia de pagamento das dívidas pelos países latinos, dentre estes o Brasil. Com a finalidade de liberação do comércio de bens e serviços, o Banco Mundial e o FMI lançam propostas de financiamento e refinanciamento das dívidas dos países desde que juntamente com o pacote fiscal exigido estivesse também a concordância das diretrizes do seu projeto educacional, as quais seriam financiadas pelo Banco Mundial (HADDAD, 2008).
A orientação presente nos projetos do Banco Mundial para as reformas na educação em países da América Latina era de uma educação que priorizasse alguns elementos considerados centrais para o órgão de financiamento, como, prioridade na educação primária, melhoria na eficácia da educação, ênfase nos aspectos administrativos, descentralização e autonomia das instituições de ensino com consequente transferência de responsabilidade de gestão e análise econômica como critério dominante na definição de estratégias para educação. É nesse contexto que as reformas educacionais brasileiras da década de noventa começam a ser organizadas, dentre elas, as políticas de descentralização do ensino (HADDAD, 2008).
Com o artigo 211 da Constituição de 1988 e dos acordos firmados pelo governo brasileiro com os órgãos de fomento internacionais de financiamentos da dívida do país se inicia o movimento para a descentralização da educação ou os processos de municipalização do ensino básico como ficou também conhecido o movimento (SOUZA; FARIA, 2004).
O processo de descentralização da educação foi amplamente divulgado no estado de São Paulo, no entanto, as autoridades gestacionais não tinham clareza das vantagens e desvantagens desse processo, tendo a maioria dos municípios do estado de São Paulo focado inicialmente no ciclo I do ensino fundamental, sendo uma minoria de municípios que aderiram à municipalização no ciclo I e II do ensino fundamental. Ao mesmo tempo em que o projeto visava maior autonomia das instituições educacionais ele trazia questionamentos à gestão municipal em relação à administração e o financiamento da educação bem como a responsabilidade de planejamento educacional (GIUBILEI, 2001).
Na maioria dos municípios do estado de São Paulo, o processo de descentralização do ensino se deu sob forte desconfiança e pressão dos professores, pois este não esclarecia completamente, ao menos inicialmente, como ficaria a situação funcional desses profissionais pós municipalização. No livro organizado por Giubilei (2001), a partir dos relatos de prefeitos, secretários e representantes de conselho de classe existia a sensação de maior poder e decisão nas questões da educação sobre responsabilidade municipal e também, ao menos no discurso, a intenção de tornar as decisões na área da educação mais democrática nesses municípios. Será que esta intenção se confirmou? Os mesmos relatos mostram que uma maior democratização nas tomadas de decisões perante a educação após a descentralização é dependente da concepção de educação do gestor municipal. Portanto, a política pública de descentralização por si só não é capaz de garantir um movimento democrático.
Contrariando o desejo dos sujeitos envolvidos nos processos de municipalização analisados no livro de Sonia Giubilei (2001), enquanto política pública educacional, a descentralização do ensino é vista como uma abstenção da responsabilidade do Estado para com o direito à educação, colocando nas mãos dos municípios a obrigação da organização financeira, logística, pessoal e pedagógica da educação no ensino fundamental.
Nos municípios que realizaram o processo de municipalização do ensino básico outros impactos foram sofridos, como em nível de planejamento escolar. Agora cabia ao município construir ou buscar uma estrutura curricular que tivesse características próprias do ensino básico municipal. Existia ainda documentos nacionais (os Parâmetros Curriculares Nacionais - PCN, por exemplo) que embasavam teoricamente o currículo, mas este poderia se apresentar de forma muito aberta e generalista para a gestão municipal, assim cabia ao município a escolha do currículo ao assumi-lo para a educação municipal.
Com esse desafio colocado para a gestão municipal da educação, os municípios ou se estruturaram na construção de currículos próprios, sendo estes uma minoria a buscar tal atitude, ou buscaram parcerias com empresas que ao fornecer o material didático, compreendido como necessário, também concediam apoio curricular aos municípios. Garcia (2004), ao teorizar acerca do currículo escolar, diz que falta neste documento, no caso brasileiro, identidade cultural que o aproxime das suas raízes e, por isso, os educandos não se sentem contemplados na escola, pois esta fala de um único universo que exclui a grande maioria das diferenças de um povo multicultural. A descentralização do ensino pode ter contribuído para distanciar ainda mais o povo da sua cultura nas cidades que optaram pela terceirização de currículos escolares.
Muitos teóricos do currículo, como Apple, Giroux[1], nacionalmente Moreira, Tadeu e Macedo, e, na especificidade das ciências Krasilchik, discutem a questão do currículo e as influências sofridas nesse instrumento. O currículo é o documento que vai além de descrever e prescrever os conteúdos a serem trabalhados com os educandos, é o documento que reflete as intenções e as influências da sociedade na formação dos cidadãos. Em um mundo capitalista e com as teorias neoliberais assumidas na década de 1990, o currículo em via de regra intenciona a formação de um sujeito apto ao trabalho mercantil. Ou seja, o currículo é influenciado por diversos fatores políticos, econômicos e sociais, na maioria das vezes o político e econômico se sobressaindo ao social.
A descentralização do ensino é uma medida neoliberal que veio interconectar ainda mais a economia e a educação, se a primeira vai bem, a segunda também está bem e em franca expansão, mas caso contrário pode gerar inúmeras mazelas já que contribui mais com a lógica de mercado do que com o desenvolvimento humano.
Sendo assim, com as teorias neoliberais imperando nas políticas educacionais, ocorre a defesa de currículos mínimos que garantam formação mínima ao cidadão, na esperança que o mercado de trabalho finalize a formação do cidadão, e assim tem sido. Com isso, Macedo (1997, p. 48) diz que “a escola corre o risco de se transformar em um mercado lucrativo e o professor em um executor de programas fabricados por especialistas”.
Esses fatores relacionados ao currículo e a iniciativa neoliberal das políticas públicas educacionais levaram ao movimento que elenca a padronização curricular como necessária e com a falsa justificativa de igualar os conhecimentos ao trabalhar um mesmo conteúdo independente do contexto social em que esteja inserido o currículo. No entanto, a pesquisa acadêmica contradiz tal justificativa da padronização quando alerta que esta leva ao empobrecimento cultural, à falta de significado no estudo para o educando, processos que geram mais exclusão do que inclusão por tentar sempre a busca pela normalidade moral ao invés de trabalhar a multiculturalidade, pluralismo e o pensamento ético (MACEDO, 1997).
Todas essas mudanças que alteraram o padrão educacional brasileiro da década de 1990 foram acompanhadas também por transformações curriculares no ensino de ciências que analisava constantemente suas intencionalidades e visava à formação de sujeitos capazes de análise crítica sobre a vida em sociedade. Krasilchik (1987) diz que o ensino de ciências sofre inúmeros problemas que vão desde a má formação profissional dos professores habilitados para lecionar ciências até obstáculos criados pela administração das escolas aos professores dificultando o ensino das ciências, indicando a necessidade de transformação do ensino de ciências no mesmo momento histórico que ocorreu o incentivo à descentralização no caso brasileiro.
A fim de identificar e compreender os impactos gerados na aprendizagem dos educandos devido às alterações curriculares do ensino de ciências do ciclo I do ensino fundamental pelas políticas públicas educacionais de descentralização, este estudo, em nível de mestrado, busca conhecer como ocorreu tal processo e as consequências dessa abordagem na educação a partir da prática educativa de um munícipio do interior do Estado de São Paulo.
A Rede Municipal de Ensino de Cesário Lange possui cinco escolas de Ensino Fundamental que abrangem desde o Ciclo I até o final do Ciclo II, assim, o educando permanece na Rede Municipal de Ensino por nove anos. Cada uma das cinco escolas possui as nove séries escolares, permitindo um longo período de vivência do educando na escola e o estabelecimento de intensa relação entre educando-educador e, estes com as políticas públicas municipais específicas do currículo escolar.
A partir do processo de descentralização de ensino ocorrido no país e, prontamente, aderido neste município para o Ensino Fundamental Ciclo I e II, foi necessária a busca por bases curriculares que fundamentassem a proposta de ensino no município. Após seu processo de municipalização, a opção escolhida foi o contrato de empresas que comercializam materiais didáticos e, consequentemente, estariam atrelados a uma base curricular própria. Atualmente, o material utilizado como base curricular no munícipio é estabelecido e comercializado pelo sistema SESI. O material SESI estabelece que o conteúdo deve ser distribuído em forma de ‘espiral’, forma está justificada para que os educandos tenham contato com conteúdo de modo contínuo, por exemplo, se o educando aprenderá o conceito de cadeia alimentar na terceira série do Ciclo I do Ensino Fundamental, este conteúdo servirá de base para aprofundamento na sétima série do Ensino Fundamental, resultando assim, em uma melhor aprendizagem do educando, objetivo este almejado pelo Sistema de Ensino SESI (SESI, 2003).
Por compreender que a política pública estabelecida influencia na forma de organização curricular adotada e está diretamente relacionada ao processo de ensino aprendizagem dos educandos, este trabalho tem como questões norteadoras:
a) Como a atual organização curricular do Munícipio de Cesário Lange, adotada a partir da inciativa nacional de descentralização da educação, influencia o processo de aprendizagem no Ensino de Ciências no Ensino Fundamental Ciclo I?
b) Como superar as possíveis lacunas deixadas por essa estrutura curricular?
Por meio deste artigo apresentamos os resultados obtidos, inicialmente, tendo em vista uma abordagem de pesquisa qualitativa utilizando grupos focais e entrevista semi estruturada com professores do munícipio de Cesário Lange/SP a fim de analisar o movimento de descentralização nesse contexto educacional.
Metodologia da Pesquisa
A pesquisa qualitativa, ao romper com o modelo positivista, valoriza a relação que se apresenta entre sujeito e objeto. Para compreender os aspectos significativos construídos historicamente pelo homem em suas relações e construções com o mundo e, pelas características intrínsecas a esta metodologia, a pesquisa qualitativa visa buscar os significados do real entre sujeito e objeto e sua representatividade nas relações humanas (SEVERINO, 2007).
André e Lüdke (2014), versando também acerca da metodologia qualitativa afirma que “o interesse do pesquisador ao estudar determinado problema é verificar como ele se manifesta nas atividades, nos procedimentos e nas interações cotidianas”.
Aprofundar-se na realidade do universo de pesquisa é via indispensável quando se trabalha com a metodologia qualitativa em Ciências Sociais e Educação visto que não se consegue estabelecer relações entre sujeitos e objetos em observações rápidas e meramente superficiais. Tal premissa é claramente expressa por ANDRE & LÜDKE apud BOGDAN E BIKLEN (2014), “A pesquisa qualitativa supõe contato direto e prolongado do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada (...) pelo trabalho intensivo de campo”.
Por convergir com os objetivos desta pesquisa, admite-se neste artigo os pressupostos da pesquisa qualitativa por buscar imergir no contexto estudado para conhece-lo integralmente e seu viés cultural e histórico. Este estudo objetiva conhecer e estabelecer as interações entre políticas educacionais de descentralização, currículo e processo de aprendizagem de ciências no ciclo I do Ensino Fundamental de uma escola pública de um munícipio do interior do Estado de São Paulo. Desta forma, a metodologia descrita será dividida em quatro etapas: análise documental, entrevista semiestruturada, grupo focal inicial e grupo focal de avaliação.
A pesquisa documental é necessária quando se deseja conhecer os documentos que estabelecem um paralelo importante dentro de uma pesquisa, visando conhecer o que já tenha sido construído sobre o objeto de pesquisa (MARCONI; LAKATOS, 2007). Para este projeto, é primário e necessário conhecer e compreender as intenções inseridas nos documentos curriculares que regem o ensino de ciências da escola investigada, buscando entender como se relacionam o conhecimento em ciências e o processo de aprendizagem.
A entrevista é um instrumento de coleta de dados que permite ao pesquisador se aproximar do objeto de estudo a fim de compreendê-lo. Suas características são (MARCONI; LAKATOS, 2007, p. 197):
O entrevistador tem liberdade para desenvolver cada situação em qualquer direção que considere adequada. É uma forma de poder explorar mais amplamente uma questão. Em geral, as perguntas são abertas e podem ser respondidas dentro de uma conversação informal.
Para compreender o contexto no qual se deu o processo de descentralização do ensino e a intencionalidade do munícipio, foco desta pesquisa ao inserir esta política pública educacional nesta localidade, será realizada uma entrevista não estruturada com um professor da rede de ensino que atuava durante o período no qual ocorreu toda transição de ensino centralizado para a descentralização do ensino municipal, visando identificar a intenção da mudança na política pública municipal e suas consequências.
Com o objetivo de completar a imersão no currículo da escola na pesquisa elencou o grupo focal como método de coleta de dados, tal escolha ocorreu por este possibilitar uma dinâmica interativa entre os participantes assim confrontando ideias do conteúdo intencionalmente problematizado e permitindo a livre interação dos componentes do grupo. Grupo focal é uma técnica na qual os sujeitos discutem acerca de um tema a fim de conhecer as representações desses sujeitos inseridos em um determinado contexto social (MORGAN, 1996).
Gatti (2012) converge com Morgan (1996) a respeito da função de aprofundamento e capacidade de captar a multiplicidade de visões a respeito de um tema pelo grupo focal quando diz que:
O grupo focal permite fazer emergir uma multiplicidade de pontos de vista e processos emocionais, pelo próprio contexto de interação criado, permitindo a captação de significados que, com outros meios, poderiam ser difíceis de se manifestar (GATTI, 2012, p. 9).
A fim de conhecer o currículo da unidade de ensino e obter a análise dos docentes acerca de como se encontra o ensino de ciências na estrutura curricular da escola, optouse pela realização de grupo focal com cinco professores dos cinco primeiros anos do ciclo I do ensino fundamental da escola que participará da pesquisa.
Gatti (2012) diz também ser desejável que os participantes de grupo focal tenham alguma vivência com o tema a ser discutido, no que tange a pesquisa almejada, quem teria maior autoridade para discutir o tema currículo se não os próprios docentes da escola em questão? Aqueles que convivem diariamente com o currículo e a realidade social dos educandos. Diante desta constatação, serão realizados dois grupos focais com os docentes da unidade de ensino pesquisada. O primeiro a fim de discutir a visão desses professores em relação à função desse currículo, que educando se pretende formar nesse currículo, como o componente curricular de ciências vem sendo contemplado neste documento e, consequentemente, sua relação com a aprendizagem dos educandos, assim como, fazer apontamentos sobre possíveis dificuldades no trabalho com o currículo e a forma com a qual ela está organizado, ou seja, uma análise curricular sob a visão dos professores desta escola. O segundo grupo focal será realizado com os mesmos sujeitos (os cinco professores do ciclo I do Ensino Fundamental) do grupo focal inicial para avaliar as propostas didáticas pedagógicas construídas a partir dos apontamentos realizados pelos docentes no grupo focal inicial de modo a contribuir com o processo de aprendizagem em ciências desta escola.
Resultados Parciais
O trabalho se encontra em andamento, mas o que foi aferido até o momento reflete alguns dados obtidos com a análise realizada diante do levantamento bibliográfico, documental e da entrevista semi-estruturada.
No livro organizado por Sônia Giubilei (2001) é possível verificar pesquisas que retratam os processos de descentralização ocorridos no interior de São Paulo na região de Campinas. Tais estudos apontam para a compreensão de que os efeitos da descentralização são diversos e dependentes da concepção de gestão dos secretários, prefeitos e vereadores que participaram desse processo, pois em alguns municípios a mudança foi positiva já em outros se configurou em troca de poder do Estado para as prefeituras.
Dessa forma, podemos afirmar que as políticas públicas em educação, a partir dos anos de 1990, não são as responsáveis pelo eventual bom desempenho de algumas cidades. Ao mesmo tempo não pode as tomar como isentas de suas responsabilidades em localidades que não tiveram bons resultados, pois assim como se espera que em todo processo educativo haja direcionamento conjugado a partir de um planejamento desejável a qualidade cidadã de uma sociedade também é esperado que ao optar por um modelo educativo tais reflexões e intenções fossem realizadas.
Assim sendo, as políticas neoliberais foram interpretadas e executadas a partir da concepção de seus gestores e, estes, quando eventualmente saíram do governo municipal devido ao término de mandato, ou tiveram seu projeto rejeitado pela cultura da oposição de desmantelar todo projeto do governo antecessor ou conseguiram eleger um candidato que daria continuidade ao projeto.
Na entrevista com o professor do município investigado que na época do processo de descentralização ocupava a cadeira de prefeito da cidade e pleiteou a ideia do projeto de descentralização, pode constatar que houve a tentativa de estruturar a rede escolar sob bases ideologicamente democráticas que visavam o desenvolvimento de um projeto curricular apropriado à localidade, livre de currículos prontos e determinados sem consideração do contexto, como é possível identificar na fala do professor Celso[2] que diz:
Vi na descentralização do ensino a possibilidade de iniciar um projeto no qual o professor seria construtor de suas práticas educativas se libertando da visão de mundo viciada dos livros didáticos que sempre reforçavam preconceitos (...).
Inicialmente, os professores não entenderam a proposta motivo pelo qual acredito ter sofrido a derrota nas urnas. Mas começamos os trabalhos de motivar e ajudar os professores em suas dificuldades com o propósito de superar as limitações. Estávamos no início quando ocorreram as eleições, na qual fui derrotado e meu sucessor não assumiu o projeto iniciado por mim decidindo terceirizar o material didático comprando apostilas e acabou com tudo.
É possível perceber que a motivação do professor Celso, então prefeito do munícipio, era realizar uma proposição educativa inovadora que superasse as limitações atreladas a uma visão tradicional de educação padronizada como a defendida por políticas neoliberais. No entanto, sua vontade o impediu de perceber que adoção dessa política pública abria brechas para inúmeras possibilidades para os governantes sucessores que poderiam ou não continuar o processo iniciado em seu governo.
A busca pela padronização neoliberal suprime a realidade local com objetivo de impor o que é aceitavelmente compreendido como de qualidade para todos. Ao analisar o material curricular terceirizado e, atualmente utilizado pelo município, é possível identificar que embora o discurso de quem os comercializa diz ser este adaptável às diversas realidades, ele está longe do padrão social encontrado na localidade. O material SESI/SP foi elaborado para uma realidade urbana, industrial e em franco desenvolvimento, situação está não vivenciada no munícipio investigado nesta pesquisa. A seguir segue o trecho retirado do referencial curricular do SESI/SP que justifica a análise (SESI/SP, p. 11 e 12, 2003):
O primeiro projeto educacional no sistema escolar SESI-SP foi implementado em 1947 e objetivava atender jovens e adultos no sentido de desenvolver-lhes habilidades necessárias para desempenhar uma atividade profissional (...).
As ações educativas fundamentavam-se em princípios que pretendiam a formação de cidadãos preparados para o trabalho industrial e para a nova dinâmica dos centros urbanos.
Retratada a incompatibilidade de contextos social, o intencionado pelo material e o contexto local configurado predominantemente rural com poucas indústrias, fica evidente a dificuldade encontrada na terceirização de currículo. O currículo atualmente utilizado não foi ao menos avaliado para que tivesse realidades semelhantes, ao contrário, elas se contrapõem, mostrando o abismo existente entre políticas públicas educacionais e a realidade encontrada nas instituições de ensino. A consequência da terceirização do currículo é a constante adaptação do material para situação cotidianas apresentadas no contexto vivenciado, dificultando, tomando tempo do professor e gerando insatisfação com material trabalhado.
Os documentos curriculares do sistema de ensino SESI/SP disponibilizados pela gestão escolar foram: Introdução ao fazer pedagógico da rede escolar SESI/SP; Referenciais curriculares da rede SESI/SP; Fazer pedagógico e Movimento do Aprender. Os dois últimos documentos são subdivididos por ano de alfabetização, totalizando 5 apostilas de cada título.
Os documentos Introdução ao fazer pedagógico da rede escolar SESI/SP e os Referenciais curriculares da rede SESI/SP são documentos que tratam das noções que norteiam a proposta curricular do SESI/SP. No entanto, a gestão da escola informou que esses referenciais curriculares teóricos não são trabalhados com os professores, ficando somente a disposição da gestão e da secretaria de educação municipal. O Fazer pedagógico é o livro pedagógico direcionado ao professor com as proposições do como fazer. E, por fim, o Movimento do Aprender é a apostila de fato que fica com os alunos durante todo ano.
A de se destacar a forma organizacional do Movimento do Aprender que consiste no material didático que é disponibilizado para o aluno bem como a estrutura das atividades valorizada nesta apostila. Os alunos recebem uma apostila para cada disciplina escolar. Na mesma, não há nenhum conteúdo teórico que embase o aluno acerca das atividades, no entanto, é constituída, basicamente, de uma lista de temas que dão a ideia do que o professor deve desenvolver, como, por exemplo, “A presença dos seres vivos” e as atividades que devem ser realizadas pelos alunos no decorrer das aulas. Em sua grande maioria, as atividades são centradas em proposições descritivas raramente reflexivas que provoquem o aluno a pensar sobre questões de relevância social. Abaixo está um exemplo de atividade que encontramos nas apostilas utilizadas no munícipio em questão.
No Movimento do Aprender predominam as perguntas nas quais o aluno precisa escrever suas observações e também questões, mesmo que em um padrão de pergunta dissertativa, prioriza a verificação do conhecimento apreendido pelo aluno, não faz reflexão crítica acerca do tema trabalhado e sua influência na sociedade. Devido a isso, inúmeras páginas da apostila são destinadas a configuração de linhas e espaços em branco, como pode observar na atividade abaixo da apostila Movimento do Aprender do primeiro ano do Ensino Fundamental.
As figuras são também escassas do material, limitando-se a poucas imagens que mostram algum ser vivo, do ciclo de vida de algum ser vivo e fotos demonstrativas de seres vivos ou da atividade destes. As imagens não possuem escalas distorcendo sua contribuição no material, não existem representações predominando as ilustrações e os gráficos aparecem de modo escasso nas apostilas do ciclo I do Ensino Fundamental.
Ao analisar o Fazer pedagógico do SESI/SP que é o material destinado a nortear a prática docente, verifica-se que este é centrado em procedimentos metodológicos que consistem na descrição do que os professores devem fazer para que os alunos aprendam os conteúdos almejados, estes são exaustivamente trabalhados pela equipe de treinamento do SESI no munícipio. Podemos conferir os procedimentos metodológicos na tabela 2.
A escola informa que os professores somente têm contato com os procedimentos metodológicos, pois os referenciais curriculares é um documento que fica a serviço da gestão da escola. Conforme exposto na tabela 2, pode perceber que os procedimentos metodológicos são divididos em seis partes: mobilização, identificação dos conhecimentos prévios, análise dos conhecimentos prévios e tomada de decisão, problematização, sistematização e avaliação. Estes orientam quanto aos procedimentos pedagógicos que o professor deve utilizar em sala de aula, dessa forma anulando toda e qualquer ação criativa e construtiva do professor.
Os procedimentos metodológicos realçam a perspectiva do professor como reprodutor de um material elaborado por especialistas, fato este converge com as políticas neoliberais de educação, as quais identificam o processo educativo como mercadoria desprestigiando o trabalho do professor reduzindo-o a questão técnica e supervalorizando o material didático. Devido a isto, coloca o professor como o único responsável pelo resultado escolar satisfatório ou não. Para o material, o professor é o grande “ator”[3] no processo de aprendizagem, pois caso este siga os passos metodológicos isto garantirá o diálogo problematizador em sua prática, como podemos verificar na introdução do fazer pedagógico do sistema SESI/SP (p. 16, 2003):
É favorecer a colocação de perguntas que são de diferentes desafios, devendo levar em conta o que o aluno sabe, pois é no diálogo entre o conhecimento deste aluno e o saber escolar que o professor constrói procedimentos problematizadores.
Dessa forma, responsabiliza unicamente o professor pelo sucesso ou fracasso escolar desconfigurando qualquer tipo de influência do material utilizado, das condições de trabalho chegando até mesmo as políticas públicas educacionais adotadas pelo gestor. Assim, culpabiliza o sujeito mediador do processo educativo e beneficia a tomada de decisões antidemocráticas da maioria dos gestores.
Considerações finais
Nesta pequena análise é possível perceber um grande problema trazido por consequência da descentralização do ensino que é a terceirização do material didático nos municípios que o entenderam como necessários e vistos como facilitadores do processo de aprendizagem. Na maioria das vezes pauta-se em contextos divergentes dos contextos reais e locais de inserção das instituições escolares e secundarizam o papel do professor, deixando-o meramente como executor de um projeto de ensino que nem ele e nem os alunos reconhecessem.
Os dados apontados neste breve escrito nos levam a refletir a problemática acerca da distância entre teoria e prática tão debatida academicamente, pois como podemos estabelecer um projeto educacional que consiga mobilizar conhecimentos para superar as contradições locais se as políticas públicas seguem o caminho contrário, priorizando um projeto educacional que claramente não condiz com a realidade social do município? Dessa forma, não existe projeto intencionado. O que permanecesse é uma sucessão de decisões tomadas dentro dos gabinetes que não respeitam as especificidades locais.
Estas indagações também nos fazem levantar novas questões: será que as políticas públicas educacionais não estão somente cumprindo seu papel, o de exclusão social? Com esse questionamento continuo meu percurso para compreender o impacto da descentralização no ensino e na aprendizagem da área de conhecimento de Ciências no contexto municipal de Cesário Lange.
REFERÊNCIAS
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Notas
Ligação alternative
https://revistapos.cruzeirodosul.edu.br/index.php/rencima/article/view/1170/831 (pdf)