Resenha
Recepção: 29 Março 2024
Aprovação: 30 Abril 2024
SOUTO Bárbara Figueiredo. Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos Feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires.. 2022. Belo Horizonte. Editora Luas. 330pp. |
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Têm alguma noção de quantos são escritos por homens? [...] Homens sem qualificação aparente, salvo o fato de não serem mulheres. (WOOLF, 1985, p. 34-35)
Partindo das palavras de Virginia Woolf, quanto são os homens que escrevem, publicam, circulam, governam? Homens, apenas. Sem que nenhuma qualidade a mais lhe seja cobrada. Não precisam ser excelentes. Basta apenas e exclusivamente o fato de que sejam homens e não mulheres. E isso acontece por quê?
O livro Mulheres e Imprensa no século XIX: Projetos Feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires é resultado da tese de doutorado de Bárbara Figueiredo Souto, defendida em 2019 na Universidade Federal de Minas Gerais. Nele, a autora retrata o difícil caminho trilhado por mulheres letradas para construir uma imprensa feminista no Brasil e na Argentina. Caminho difícil porque esse espaço foi historicamente negado às mulheres e, ao transpor os limites impostos, essas mulheres encontraram obstáculos financeiros e sociais para manter um periódico com teor feminista nos dois países. Assim, diferentemente dos homens sem qualificação citados por Woolf, as mulheres batalhas para conquistar o direito à educação, à escrita, à fala. Essas mulheres persistentes precisaram provar sua competência em dirigir um impresso e, mais ainda, precisaram conquistar um público leitor não acostumado com “senhoras” à testa de uma redação (parafraseando a personagem central desta obra).
A obra, dividida em três capítulos, mergulha no contexto histórico, político e social dos anos 1850, nas capitais carioca e portenha, a fim de compreender a conjuntura na qual emerge os periódicos feministas. A partir desse enquadramento, desenvolve uma análise comparativa de três periódicos, sendo eles: Jornal das Senhoras (RJ), La Camelia e Album de Señoritas (Buenos Aires, ambos). Em sua abordagem coube uma profunda reflexão sobre o papel de Juana/Joanna Manso caracterizada como uma intelectual mediadora feminista transnacional responsável por elaborar um projeto de luta pelos direitos femininos, tais como educação e profissionalização.
O contexto social dos países em questão dirá muito sobre o cenário no qual essas mulheres plantaram as primeiras sementes de uma imprensa produzida por e para mulheres. No Brasil, a primeira metade do século XIX representou o fim da condição colonial e, a partir do Primeiro Reinado, o processo de modernização urbana, crescimento comercial e organização industrial. É, justamente nesse contexto de modernização e crescimento, que a imprensa ganha papel fundamental para a divulgação de ideias, circulação de literatura e entretenimento, consolidando-se como um espaço de expressão intelectual oitocentista (MARTINS, 2008, p. 47 apud SOUTO, 2022, p. 30). Na Argentina, os anos 1850 foram de intensas transformações. O período marcou o fim do governo autoritário de Juan Manoel de Rosas e dando lugar ao regime republicano, a federalização do governo e a institucionalização dos três poderes (SOUTO, 2022, p. 30).
Foi, no contexto de transformações acima mencionado, que o surgimento da imprensa feminista ganhou força e impulso. Isso se deve, também, ao lento e gradual processo de ampliação da educação das mulheres. Ao analisar o caso brasileiro, Mônica Yumi Jinzenji (2010) investigou a cultura impressa e a educação feminina na Vila São João del-Rei, em Minas Gerais, no século XIX. Conforme salienta, o crescimento de uma imprensa voltada para as mulheres, seja para sua educação ou entretenimento, tem relação com a inserção feminina na educação pública, da qual foram excluídas até 1814 (Jinzenji, 2010, p. 23). Assim como no Brasil, o crescimento de instituições educacionais voltadas para mulheres na Argentina teve maior impulso em meados do século XIX. Embora permitido, o acesso feminino à educação não se deu de maneira igual àquela formação destinada aos homens. O objetivo dos conteúdos apresentado às mulheres era formar boas esposas e mães capazes de realizar o trabalho doméstico do lar e da criação dos filhos, longe dos espaços públicos e da profissionalização.
Não obstante, o letramento dessa parcela da população proporcionou um público promissor para os periódicos. Para além de público leitor, as mulheres letradas lutaram por espaço na imprensa, seja como redatoras ou colaboradoras esporádicas das publicações.
A análise da imprensa feminista carioca e portenha realizada por Bárbara Souto buscou elencar periódicos fundados e dirigidos por mulheres em ambos os países, priorizando três impressos, sendo eles: Jornal das Senhoras (RJ) que circulou de 1852 a 1855 e Album de Señoritas (Buenos Aires) de breve circulação no ano de 1854, sendo estes dois o foco principal da autora. A escolha por tais impressos encontrava na figura de sua criadora e principal redatora o elo de explicação. Além destes, o jornal buenairense La Camelia que circulou de abril a junho de 1852 também foi alvo da exploração histórica.
O fato do primeiro jornal feminista brasileiro ter sido fundado por uma argentina chamou atenção da investigadora e, acrescentando um detalhe, a criação logo em sequência de um projeto semelhante no solo pátrio. Juana (Joanna, no Brasil) Paula Manso de Noronha, fundadora e redatora do Jornal das Senhoras e Album de Señoritas, nasceu em Buenos Aires. Devido ao contexto político do governo autoritário de Juan Manuel de Rosas, se exilou com a família no Uruguai, partindo para o Rio de Janeiro em 1845, onde viria a conhecer seu futuro esposo. Sua família pertencia a uma elite letrada e desde cedo participou dos principais grupos intelectuais da Argentina e do Brasil. Juana Manso recebeu boa educação e já na juventude estava incluída no que foi chamado de “geração de intelectuais românticos argentinos” que viveram no Brasil entre 1830 e 1870 durante o reinado de D. Pedro II (JOSIOWICZ, 2018, p. 4).
Em sua investigação, Bárbara Souto comparou a atuação intelectual de Juana Manso no Brasil e Argentina a partir de dois aspectos: como uma intelectual mediadora e transnacional. Mediadora porque era capaz de conectar uma tarefa similar a dos professores tradicionais, de “traduzir” ideias e conhecimentos à capacidade de selecionar e propagar aspectos culturais condizentes com seu posicionamento crítico, além de agregar à sua vivência intelectual em distintos ambientes (SOUTO, 2022, p. 53). Assim, Juana/Joanna Manso concatenou três importantes características que a destacam como uma intelectual mediadora no exercício de um projeto feminista. Transnacional porque sua trajetória foi marcada pelo movimento, pelas viagens, por realidades distintas que marcaram profundamente sua existência e produção. Desde a Argentina, passando pelo Uruguai, Brasil, Estados Unidos e retornando a Argentina, a intelectual mediadora acumulou experiências que se traduziram em sua escrita para os periódicos, assim como em sua postura política. Tais conceitos foram fundamentais para compreender a relevância da atividade intelectual, política e social dessa mulher letrada em meados do século XIX.
O Jornal das Senhoras, fundado em janeiro de 1852 por Joanna Manso, se manteve ativo por quatro anos e teve, além da própria fundadora, mais duas redatoras: Violante Ataliba e Gervázia Nunezia. Embora o estudo de Souto demonstre a importância de Joanna Manso na fundação e condução do impresso, além do projeto feminista inovador desenvolvido pelo periódico, nem sempre tal aspecto foi ressaltado nas investigações que narram uma história da imprensa brasileira. Em seu clássico “Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira”, Dulcília Buitoni (2009) reservou um espaço ínfimo e cheio de incertezas para a descrição do jornal. A autora informa com dúvidas o nome da responsável pela fundação do jornal, citando a baiana Violante Ataliba como possível fundadora, e a existência de Joanna Manso aparece apenas como redatora citada pelos Anais da Biblioteca Nacional de 1965 (BUITONI, 2009, p. 40).
Os vazios e silenciamentos sobre a imprensa feminista no Brasil, assim como na Argentina é questionado por Souto. A autora problematiza a memória construída, pela própria historiografia, que privilegia as origens, os grandes homens e feitos heroicos para a história da imprensa nos dois países (SOUTO, 2022, p. 64). Assim, a imprensa feminina e feminista foi estrategicamente esquecida e invisibilizada na memória da imprensa nacional por selecionar cânones – sempre masculinos – e excluir as mulheres de tal condição (IDEM, p. 164).
O Album de Señoritas foi fundado em 1854 quando Joanna Manso retornou a Buenos Aires já separada de seu marido, com duas filhas e carregando a experiência e expertise acumulada a partir do periódico brasileiro. Lá, em um novo contexto político, acreditou que teria sucesso na empreitada. No entanto, a falta de apoio seja de colegas redatores ou do público leitor impossibilitou a continuidade do jornal. Assim, o Album desapareceu após poucos números publicados.
O investimento na fundação e manutenção de periódicos no século XIX por mulheres representava uma estratégia de agência e aspirava a criação de uma comunidade de mulheres leitoras e participativas. Seria, portanto, o projeto conduzido por Joanna Manso um projeto feminista? Poderia se classificar a trajetória e ações dessa mulher oitocentista como feministas? A compreensão do feminismo enquanto movimento político organizado e descrito em ondas irradiadas do mundo dito desenvolvido, civilizado e colonizador apagou, durante muito tempo, a agência de mulheres de outras regiões e desmereceu suas ações enquanto luta pela conquista de direitos e redução da opressão feminina. Eis, deste modo, a importância de evidenciar estudos como o desenvolvido por Bárbara Souto que investiga e lança luz sobre trajetórias pouco conhecidas e subalternizadas dentro de uma ideia geral em que existe centros irradiadores de ideias e regiões que apenas assistem e consomem sua produção.
A autora questiona a concepção engessada do feminismo branco produzido no Norte Global e propõe novas perspectivas de análise. Defende ela, “o afastamento da concepção de que as ideias feministas teriam surgido apenas com a consolidação dos movimentos feministas, organizados na primeira metade do século XX [...]” (SOUTO, 2022, p. 73). Assim, compreende os periódicos feministas como aqueles que além de se dirigirem ao público feminino, defendem causas. Souto distinguiu as especificidades que caracterizavam os três periódicos analisados como imprensa feminista, sendo elas:
1. todos eram de propriedade de uma mulher;
2. todos eram dirigidos por mulheres;
3. tinha como meta principal a defesa da melhoria de vida e a conquista de direitos para e pelas mulheres;
4. a total ou a maioria das colaborações nas suas páginas eram de mulheres;
5. lançaram críticas ao modo como a sociedade compreendia e determinava os papeis e espaços segundo o sexo;
6. elaboraram projetos de mudanças políticas e sociais que envolviam a participação efetiva das mulheres nas questões públicas e privadas. (SOUTO, 2022, P. 73-74)
Nesse sentido, embora anterior a conceitualização do termo feminismo e longe do centro irradiador de tais pensamentos, a agência de Joanna Manso enquanto intelectual mediadora feminista transnacional a frente de dois periódicos propõe transformações que questionam o papel da mulher na sociedade e seu afastamento das questões políticas e sociais. É importante frisar a inovação destas atitudes para o período oitocentista, como a própria fundadora e redatora ressaltou no primeiro editorial do Jornal das Senhoras, “ora pois, uma Senhora à testa da redação de um jornal! Que bicho de sete cabeças será? [...]” (SOUTO, 2022, p. 75). A própria fundadora reconhece como a ideia de um jornal dirigido por mulheres causava espanto e críticas na sociedade brasileira do período. Considerando seu pioneirismo na matéria e o difícil acesso das mulheres à educação, assim como o restrito espaço nas questões públicas, não é de se estranhar que o trabalho de mulheres na imprensa fosse considerado absurdo e enfrentasse diversos obstáculos para garantir sua continuidade e a construção de um público leitor apoiador (também no requisito financeiro) e participativo.
Ao observar as temáticas veiculadas nos periódicos analisados, é válido diferenciar imprensa feminina de imprensa feminista para compreender o conteúdo e o objetivo das publicações. Conforme Tania Regina de Luca,
A imprensa feminina particulariza-se por dirigir-se para o público feminino, ainda que nem sempre tenha sido produzida por mulheres. [...] a imprensa feminina orbita em torno dos temas mais perenes, não submetidos à premência do tempo curto do acontecimento”. (LUCA, 2012, p. 448)
Assim, as matérias apresentadas são voltadas para a moda, beleza, culinária ou cuidado com os filhos. No caso da imprensa feminista, como já mencionado por Bárbara Souto, as principais características incluem o posicionamento crítico e as pautas de transformação social para inclusão das mulheres no espaço público. Retomando Luca,
Tem-se a imprensa feminista, cujas origens remontam o século XIX, momento em que surgiram folhas comprometidas com a luta em prol do direito à educação, ao exercício profissional e ao voto, já sobre a batuta de mulheres, caso do pioneiro Jornal das Senhoras [...]. (LUCA, 2012, p. 451)
Percebemos a partir dos exemplos acima citados que a imprensa direcionada a mulheres e a imprensa produzida por mulheres para mulheres tem pontos divergentes. Portanto, o projeto emancipador e feminista de Joanna Manso e os periódicos apresentados se encaixava no segundo modelo, visto que defendia a reformulação/remodelação da sociedade com base na educação das mulheres. Tal preocupação foi percebida no último número do Album de Señoritas, onde a fundadora, redatora e professora “insistiu que as mudanças na vida das mulheres e, consequentemente, na sociedade, só ocorreriam se elas tivessem acesso a uma educação moral e esmerada” (SOUTO, 2022, p. 159). Eis que a educação das mulheres não findaria em si mesma. Seria passo importante e fundamental para o progresso da sociedade, fosse ela brasileira ou argentina.
É central lembrar que a própria postura e produção de Joanna Manso se modificou a partir de suas experiências. Sua vivência transnacional impactou em seu modo de ler o mundo e se posicionar. Essas mudanças foram analisadas por Souto que observa uma necessidade de adaptação da intelectual à realidade vivida no momento. Assim, os textos publicados no Jornal das Senhoras e posteriormente no Album de Señoritas tiveram linguagem e teor diferentes, embora defendam as mesmas causas. A autora arremata,
O trânsito de lugares e experimentações da intelectual mediadora oportunizou a reorganização das próprias ideias. A análise das publicações [...] me permitiu encontrar pautas que sofreram modificações ao longo do tempo, o que permite refletir sobre a utilização de estratégias discursivas, mas também sobre o amadurecimento intelectual propiciado pela bagagem cultural e por influências diversas (SOUTO, 2022, p. 208).
A experiência da intelectual mediadora transnacional abriu espaço para que novos projetos feministas fossem levados a frente no Brasil e na Argentina. Embora o persistente “esquecimento” da agência feminina em diversos aspectos da nossa sociedade tenha apagado estes nomes da história por um longo período, as investigações históricas mais recentes tendem a trazer à tona personagens e projetos silenciados. A obra de Bárbara Figueiredo Souto é rica em sua investigação e análise de fontes, assim como no profícuo diálogo que exerce com as referências e os conceitos que maneja. É exemplar para o exercício do fazer historiográfico e no comprometimento de uma escrita engajada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BUITONI, Dulcília Schroeder. Mulher de papel: a representação da mulher pela imprensa feminina brasileira. São Paulo: Summus, 2009.
JINZENJI, Mônica Yumi. Cultura impressa e educação da mulher no século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.
JOSIOWICZ, Alejandra Judith. Juana Manso no Brasil: cidadania, educação e cosmopolitismo. Revista Brasileira de História da Educação,18. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v18.2018.e010. Acesso em: 03 de março de 2024.
LUCA, Tania Regina de. Imprensa feminina. In: PINSKY, Carla Bassanezi. PEDRO, Joana Maria (orgs.). Nova História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
SOUTO, Bárbara Figueiredo. Mulheres e imprensa no século XIX: Projetos Feministas no Rio de Janeiro e em Buenos Aires. Belo Horizonte: Editora Luas, 2022.
WOOLF, Virginia. Um teto todo seu. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
Autor notes
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