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Recepção: 03 Julho 2023
Aprovação: 04 Agosto 2023
Palavras chave: Che Guevara, Revolução Cultural Mundial de 1968, Cuba, História, Movimento Cubano de 68
"Na experiência cubana [...], inteligência, arte, felicidade e revolução foram combinadas: em Havana, era maio de 68 todos os dias".
Jean Daniel, jornalista francês, 1971.[1]
Os múltiplos "68's" da Revolução Cultural Mundial de 1968
Meio século depois da saudável e múltipla irrupção dos diferentes movimentos sociais simbolizados no emblemático ano de 1968, há uma crescente consciência de que, vistos em seu conjunto, esses movimentos de 1968 compõem o que podemos claramente caracterizar como, em primeiro lugar, uma verdadeira revolução mundial ou planetária. E, em segundo lugar, como uma revolução cultural profunda e estrutural, que acabou transformando radical e completamente todo o conjunto de estruturas que, nas sociedades contemporâneas de todo o mundo, produzem e reproduzem, precisamente, a cultura que caracteriza essas mesmas sociedades hoje.
A Revolução Cultural Mundial de 1968 estava presente nos países capitalistas mais desenvolvidos do mundo, ou nos então chamados países "socialistas", bem como na grande maioria do então chamado "terceiro mundo", onde, naquela época, a China, voluntariamente, e com grande prazer e convicção, se incluía. Uma profunda revolução cultural que, em alguns países, durou apenas alguns meses e, em outros, mais de uma década inteira, irrompeu nos diferentes palcos nacionais, às vezes antes, e às vezes depois do ano cronológico de 1968, mas sempre repetindo dois contornos gerais, que, com suas respectivas variantes e modalidades nacionais, estão claramente presentes em todo o mundo. Por um lado, teve-se o papel principal e central, em todos esses movimentos, do setor da juventude, em geral, e do setor estudantil, em particular, um setor que agiu, às vezes, sozinho, e, às vezes, em aliança com a classe trabalhadora e/ou com os setores populares. Por outro lado, teve-se o fato de que, entre suas demandas fundamentais, sempre havia uma das seguintes: tanto a crítica radical e a denúncia da "velha" cultura (ora descrita como consumista e vazia, ora como pró-capitalista, tradicional e conservadora, ora como uma cultura profundamente autoritária e antidemocrática), quanto a demanda pela construção e afirmação de uma cultura radicalmente "nova", radicalmente difrente e alternativa às diferentes variantes mencionadas, acima da respectiva cultura "antiga" contestada.[2]
Dessa forma, e projetando-se de múltiplas e variadas maneiras, de acordo com os diferentes contextos nacionais e locais de sua irrupção planetária e salutar, a revolução cultural de 1968 deu origem, por exemplo, à profunda e radicalmente anticapitalista Grande Revolução Cultural Chinesa, que se desenvolveu na imensa República Popular da China, entre 1966 e 1976, questionando tanto a divisão entre trabalho manual e intelectual quanto as possíveis maneiras pelas quais o status e o caráter de classe podem ou não influenciar os processos de criação artística ou atividade científica e, portanto, as obras de arte ou produtos científicos. Mas essa revolução mundial também estava presente no brilhante e criativo movimento de 1968 em Paris, que, com duração de apenas algumas semanas, conseguiu expor o arcaísmo e o viés ideológico perverso de toda a velha escola capitalista, desde o nível primário até o universitário, ao mesmo tempo em que mobilizou dez milhões de trabalhadores franceses em uma greve geral, delineando, assim, a aliança operário-estudantil em toda a França, ao mesmo tempo em que criou boa parte dos slogans e do imaginário rebelde que serão compartilhados por muitos dos movimentos de 1968 em todo o mundo ocidental.[3]
E, da mesma forma, foi essa revolução planetária, de 1968, que se materializou no "Longo 1968 italiano", que durou de 1968 a 1977, e que, além de conseguir uma verdadeira aliança entre o movimento estudantil e o movimento operário, provocou a crise definitiva e o colapso da velha esquerda partidária italiana, ao popularizar as demandas de autogestão e democracia direta, e os métodos de ação direta, simbolizados em seu famoso slogan "Queremos tudo e queremos imediatamente". O mesmo que no trágico 1968 mexicano, que desencadeou uma profunda e progressiva politização maciça e generalizada de toda a sociedade mexicana, que, mais tarde, se manifestaria com força, primeiro em 1988, e, depois, em 1994, e que não parou, apesar do trágico fim do movimento, provocado pelo massacre traiçoeiro do governo de 2 de outubro de 1968[4]. Há vários exemplos possíveis da vasta irradiação planetária da Revolução Cultural Mundial de 1968, aos quais também poderíamos acrescentar os casos do "68" argentino, cujo ponto culminante é o movimento “Cordobazo” de 1969, ou o "68" japonês, ou o "68" berlinense, ou o "68" estadunidense, juntamente com os casos menos conhecidos dos "68" espanhol, brasileiro ou português, os três últimos desenvolvidos apesar das ferozes ditaduras militares de Franco, na Espanha, de Da Costa e Silva, no Brasil, e de Salazar, em Portugal.
Existem múltiplas e diversas manifestações nacionais da revolução global de 1968 que, além de suas singularidades e especificidades derivadas dos contextos muito diferentes em que se desenvolveram, ainda assim repetem, e sob essas características particulares, processos muito semelhantes de mutação profunda e radical dos três espaços sociais nos quais toda a cultura, de todas as sociedades contemporâneas, é gerada e reproduzida, ou seja: os espaços da família, da escola e da mídia de massa. Três espaços fundamentais para a reprodução cultural das sociedades humanas atuais, cujas histórias concretas sempre têm um antes e um depois, marcados, precisamente, pela data simbólica de 1968. Esta explica, mais uma vez, em escala planetária, a irreversível crise generalizada da família monogâmica, patriarcal e machista, e a concomitante ascensão mundial dos movimentos feministas, muito diferentes e heterogêneos, juntamente com o colapso generalizado da antiga educação tradicional baseada no magister dixit. E, a partir desse colapso, a busca incessante por novas pedagogias e novas formas de transmitir e gerar conhecimento, mas também o novo e muito recente papel da mídia de massa (e agora das redes sociais), como mecanismos para manipular informações e também para moldar e deformar a opinião pública e o consenso ideológico geral.
Os processos profundos que modificaram totalmente a cultura humana, no último meio século, sempre começaram, nas diferentes sociedades nacionais, com seu respectivo movimento de 1968, que, além de sua duração particular ou do momento específico de seu surgimento, regularmente coloca em movimento esses mesmos processos de mudança cultural radical já mencionados.
Portanto, a partir desse contexto geral dos múltiplos "68’s", que compõem as peças do quebra-cabeça da Revolução Cultural Mundial de 1968, queremos nos concentrar, em particular, no movimento cubano de 68, ou seja, na maneira singular como essa revolução mundial se tornou presente na ilha rebelde e insurrecional do Caribe, que, em 1º de janeiro de 1959, derrotou e derrubou o governo de Fulgencio Batista e lançou um projeto de transformação radicalmente anticapitalista de toda a sociedade cubana como um todo. Neste breve ensaio, queremos analisar também, e especialmente, o papel desempenhado pela importante figura de Ernesto Che Guevara nesse singular e específico 1968 cubano, que, em termos mais gerais, não foi apenas o principal teórico do processo global fundamental que foi a Revolução Cubana durante seu estágio inicial[5], mas também um promotor ativo e uma força motriz, bem como um intérprete muito sensível e receptivo, das profundas mudanças que a revolução cultural de 1968 exigiu e implicou na ilha de Cuba, mas também em geral. Vejamos isso em mais detalhes.
Regularidades e originalidades do "68" cubano
Como todos os "68’s" do mundo, o 68 cubano também repete os principais traços que caracterizam, em sua essência mais profunda, a revolução cultural mundial dos anos sessenta do século XX[6]. Por essa razão, e sendo uma parte ou dimensão particular do processo global da Revolução Cubana, o 68 cubano, assim como essa revolução como um todo, é levado a cabo em um papel de liderança pelo ator social da juventude cubana e, dentro dela, também por seu setor estudantil. É sabido que uma parte importante dos guerrilheiros da Sierra Maestra foi forjada como líderes e militantes dentro dos movimentos estudantis cubanos, começando pelo próprio Fidel Castro, mas também que esse movimento estudantil apoiou, constantemente, as ações dos combatentes da Sierra nas cidades, ao mesmo tempo em que alimentou, frequentemente, com novos quadros, as diferentes colunas dos guerrilheiros rurais. E tão importante e ativo foi esse movimento urbano de apoio aos guerrilheiros camponeses, um movimento citadino formado, em grande parte, por estudantes e jovens, que dos vinte mil cubanos mortos pelo governo Batista, durante a Revolução Cubana, mil eram membros dos guerrilheiros da Sierra, e dezenove mil desse movimento urbano de jovens e estudantes.
E também é um fato bem conhecido que, após o triunfo de 1º de janeiro de 1959, os responsáveis pela reconstrução de todo o país, pela formação do novo Estado, pela organização das novas instituições e pela coordenação e administração da nova economia, da nova sociedade e da nova cultura serão, em sua maioria, jovens cubanos. É por isso que, quando Jean-Paul Sartre visitou Cuba, em 1960, ele caracterizou a Revolução Cubana como "a revolução da juventude", ao afirmar que "o maior escândalo da Revolução Cubana não é ter expropriado fazendas e terras, mas ter levado os jovens ao poder", acrescentando algumas linhas depois, em um tom ao mesmo tempo jocoso e irônico, que parece que o slogan dos barbudos cubanos, a partir de 1957, foi: "Tirem os velhos do poder! Não vi um único entre os líderes...", para terminar seu argumento afirmando que "como uma revolução era necessária, as circunstâncias designaram os jovens para fazê-la".[7]
O protagonismo evidente e esmagador da juventude cubana e dos atores estudantis replica uma das características gerais de todos os 68’s em todo o mundo. E que também é acompanhado por outra semelhança ou regularidade de todos esses múltiplos 68’s: a ênfase, igualmente fundamental que dará, ao conjunto global e integral de toda a dimensão cultural, abrangendo tanto a educação quanto o cinema, a literatura ou os costumes cotidianos, a imprensa, o rádio e a televisão, bem como as tradições herdadas, assim como o teatro, a dança, as universidades, as escolas, os laboratórios e os centros de pesquisa, bem como as ideologias, o senso comum, a consciência comum ou a mais elaborada Weltanschauung, ou concepções de mundo. Uma revolução total e onipresente de todas as linhas da esfera da cultura humana, que, quando apoiada e complementada pelo processo mais global da Revolução Cubana em geral, alcançará uma profundidade muito maior e um anticapitalismo radical do que a grande maioria dos outros 68’s em todo o planeta, como desenvolveremos mais detalhadamente mais adiante.
Uma transformação integral, profunda e radical de absolutamente toda a cultura cubana existente até então, que, como os outros 68’s em todo o mundo, também modificará as raízes dos três espaços geradores da cultura contemporânea: as instituições da família, da escola e dos meios de comunicação de massa. Assim, e de acordo com os efeitos dos outros 1968’s, a família monogâmica, patriarcal e machista será despedaçada para abrir espaço para a verdadeira emancipação das mulheres cubanas, que, tendo se juntado à luta revolucionária a partir de 1957, tanto nas cidades quanto nas montanhas e na Serra, também se juntarão a ela após o triunfo da revolução. Após o triunfo de 1959, elas também se juntaram às fábricas, oficinas e campos, às milícias do exército rebelde, às escolas, às organizações revolucionárias e políticas, aos ministérios e aos mais diversos cargos do aparato governamental cubano. Dessa forma, e unindo-se tanto ao trabalho produtivo quanto a todas as áreas da vida social em geral, as mulheres cubanas conquistaram não apenas sua autossuficiência e independência material e econômica, mas também sua autonomia social geral. Isso, é claro, revolucionou completamente a antiga família pré-revolucionária, criando condições de igualdade relativa muito maiores entre homens e mulheres dentro da célula familiar, e também na sociedade cubana em geral.
Nesta mesma lógica, e ao repetir, mais uma vez, um traço universal dos múltiplos 68's da Revolução Cultural Mundial de 1968, a escola cubana também sofrerá uma modificação total. E isso, para citar apenas um exemplo entre tantos possíveis, desde a ousada e imaginativa campanha de alfabetização de toda a população cubana lançada em 1961, campanha que permitirá a Cuba ser o primeiro país, de todo o planeta, a se declarar, no final de 1961, como um território livre de analfabetismo. Alfabetização de todos os cubanos alcançada em apenas um ano, a partir de uma proposta muito criativa, que consistiu no fato de que não é o Estado, nem a instituição escolar, nem nenhuma organização ou movimento específico que irá alfabetizar o povo cubano, mas será o próprio povo cubano que se alfabetizará. Ou seja, todos os cubanos que já sabem ler e escrever, sem exceção e de acordo com suas condições e possibilidades particulares, irão, durante aquele ano de 1961, ensinar essas habilidades de leitura e escrita para todos os cubanos que ainda não dominam essas artes.
Fantástica e inventiva iniciativa cubana, que não só nos lembra a sábia frase de Marx, de que "a emancipação da classe trabalhadora (ou de qualquer classe, grupo ou setor subalterno, acrescentamos) só pode ser obra da própria classe trabalhadora" (ou do respectivo grupo subalterno, setor ou classe). Mas, também nos sugere que se "as revoluções são o partido dos oprimidos", como dizia Lênin, elas são, também, e simultaneamente, uma formidável e poderosa escola dos oprimidos, que não apenas desperta e incita, em toda a população que ainda não domina estas competências, a necessidade e o desejo de saber ler e escrever, como também, em geral, a vontade de cultivar mais e desenvolver a sua consciência crítica. Para além disso, ainda pode proporcionar algumas das condições para essa mesma população ser educada e “autoeducada” por meio de vários mecanismos, como a excepcionalmente criativa campanha cubana pela alfabetização universal em 1961.[8]
Além disso, e assim como em Cuba e no resto do mundo, os meios de comunicação de massa sofreram uma profunda mutação na década de 1960, deixando de ser itens de consumo para pequenas elites, como revistas, jornais ou livros, ou simples meios de diversão e entretenimento, como o rádio ou a recém-inventada televisão, para se tornarem, a partir dos múltiplos 68’s, importantes mecanismos de disseminação e deformação de informações, bem como instrumentos de formação e manipulação da opinião pública; ou seja, novos e poderosos meios de gerar e manipular a opinião pública. A partir dos múltiplos anos 68, tornaram-se importantes mecanismos de difusão e deformação da informação, bem como instrumentos de formação e manipulação da opinião pública; ou seja, novos e poderosos meios de gerar e reproduzir valores, concepções e visões culturais dos mais diversos tipos. No caso da Revolução Cubana, que, então, tentava contrariar a lógica capitalista de utilização dos meios de comunicação de massa, isso colocava o desafio de assumir os meios de comunicação como ferramentas de verdadeira contrainformação - verídica e alternativa à nada inocente distorção capitalista dos fatos - e como alavanca para a criação de uma opinião pública crítica e bem informada, capaz de analisar, por si mesma, de forma objetiva e racional, os problemas, eventos e situações divulgados pelos meios de comunicação de massa.
Uma lógica alternativa e anticapitalista de criação e uso dos meios de comunicação de massa que, por exemplo, está na base do projeto inteligente de criação da Agência Prensa Latina, um projeto no qual Che Guevara desempenha um papel central, mas também nos documentários informativos ou testemunhais do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, em certas revistas criadas ou profundamente renovadas pela Revolução Cubana, ou nos novos perfis da rádio e da televisão cubanas desenvolvidos desde 1959[9].
Embora repita as características gerais da Revolução Cultural Mundial de 1968 - a centralidade dos atores jovens e estudantes, a ênfase em toda a esfera cultural e a profunda transformação das instituições da família, da escola e da mídia de massa -, o 68 cubano também apresenta todo um conjunto de características singulares e originais que o distinguem dos outros 68’s e o caracterizam com seus perfis particulares, únicos e irrepetíveis. Por exemplo, o fato de que o 1968 cubano é a única revolução cultural em todo o mundo que será sustentada, apoiada, alimentada e impulsionada por uma revolução social global, pela própria Revolução Cubana, que, ao se projetar também no campo da cultura, iluminará e fortalecerá essa mesma revolução cultural de 1968 em Cuba.
Pois, ao contrário da Grande Revolução Cultural Proletária na China, que será organizada como um esforço titânico para colocar a Revolução Chinesa de 1949 de volta aos trilhos anticapitalistas radicais, longe da "estrada capitalista", ou ao contrário da "Primavera de Praga", que tentará reformar completamente a revolução da Tchecoslováquia para criar um "socialismo com rosto humano", a revolução cultural cubana dependerá, inteiramente, da revolução social que, nesses mesmos anos, se desenrolou em Cuba, para se reforçar, se retroalimentar e se fortalecer mutuamente.
Total apoio e retroalimentação mútua entre a revolução social global e a revolução cultural, ambas cubanas, o que permite com que o 68 cubano, em consonância com a década inicial da Revolução Cubana, seja uma revolução cultural extraordinariamente profunda, claramente anticapitalista e radical, que, além de abarcar toda a cultura da ilha, também projetará seu impacto penetrante em todos os diferentes âmbitos da vida social de todos os cubanos. E é também essa complementaridade e acompanhamento da revolução social global com a revolução cultural em Cuba que permite, a esta última, ser a verdadeira "exceção à regra" do destino complexo e contraditório que, em geral, tiveram todas as revoluções e movimentos de 1968 no mundo, destino assinalado lapidarmente por Fernand Braudel, quando afirmou que todos os 68’s foram, em geral, derrotados em termos políticos, mas que todos triunfaram em termos culturais[10].
Porque está claro que todos os movimentos e revoluções de 1968 ou foram politicamente reprimidos - como no massacre de Tlatelolco, em 2 de outubro de 1968, no México, ou na Primavera de Praga, esmagada pelos tanques soviéticos, ou no Cordobazo argentino de 1969, reprimido pelo exército da ditadura de Onganía, ou na Universidade de Columbia, de 1968, em Nova York, cancelada pela entrada da polícia na universidade -, ou, em outro caso, se não foram diretamente reprimidos, foram politicamente derrotados - como no "Maio francês", extinto pela manifestação de massa em apoio a Charles De Gaulle, ou na Grande Revolução Cultural Proletária Chinesa, desmantelada por Teng Siao Ping, após a morte de Mao Tse-Tung. Mas, em todos os casos, foram anulados como movimentos políticos, como forças políticas organizadas, e atuaram em seus respectivos cenários políticos, por outras forças ou fatores internos a esses mesmos cenários.
Por outro lado, a revolução cultural em Cuba, o 68 cubano, sucumbirá aos efeitos da virada geopolítica que a própria Revolução Cubana sofrerá na década de 1970, quando, confrontada com o enorme e ameaçador poder dos Estados Unidos, e após o fracasso do projeto guevariano de desencadear uma revolução continental em toda a América Latina, será forçada a depender, em geral, da União Soviética e dos países socialistas do CAME. Isto, entre muitas outras coisas, implicará na total "sovietização" da cultura cubana a partir de 1971, o que significou, dentre outros, a total "sovietização" da cultura cubana a partir de 1971. Com ela, constituiu-se a morte do luminoso 68 cubano e o início de vários "quinquênios cinzentos" dessa mesma cultura na maior das ilhas do Caribe. Assim, se todos os 68’s no mundo foram derrotados em termos políticos e triunfaram em termos culturais, o 68 cubano, ao contrário de todos eles, foi interrompido e marginalizado em termos políticos e expulso da esfera da cultura oficial. Mas, apesar de tudo, também triunfou de forma subterrânea e profunda em termos culturais, além dessa esfera limitada da cultura oficial e institucional.
Uma segunda originalidade do 1968 cubano é seu caráter pioneiro e inaugural em nível mundial. Isto porque esse 1968 caribenho é, na verdade, a primeira revolução cultural de 1968, não apenas na América Latina, mas também em todo o planeta. Pois se, como já dissemos, 1968 é uma data simbólica e não cronológica, então o 1968 cubano, que começou em 1959 e continuou até 1971, é apresentado como o verdadeiro início em escala planetária da vasta e diversificada série de expressões locais e nacionais da Revolução Cultural Mundial de 1968. Ao preceder, em vários anos, o 1968 alemão, que começou em 1964, ou o 1968 chinês, que começou em 1966, o 1968 cubano inaugura, em escala global, aquela década também histórica e não cronológica dos anos 1960 rebeldes, uma década que, claramente, divide em dois o "longo século XX", que começou em 1848/1870 e ainda não terminou. Uma década histórica excepcional que, entre muitas outras coisas, também traz, consigo, as invenções revolucionárias da música rock and roll, a pílula anticoncepcional ou o nascimento do novo ator social da juventude e dos estudantes, assim como também o início do declínio hegemônico dos Estados Unidos, o início do colapso do liberalismo como ideologia dominante do capitalismo mundial e a entrada desse mesmo sistema capitalista planetário em seu estágio final e terminal de crise[11].
Um terceiro perfil exclusivo do movimento cubano de 68 é sua duração considerável, em comparação com muitos outros movimentos de 68 em todo o mundo. Pois se a grande maioria dos movimentos de 68 durou apenas algumas semanas ou alguns meses e, em alguns casos, alguns anos, o 68 cubano durou treze anos contínuos, superando, assim, o longo 68 italiano, que durou onze anos, e o também longo 68 chinês, que durou mais de uma década, até o desaparecimento físico de Mao Tsé-Tung. Assim, o 1968 cubano não é apenas o primeiro 68 da história da humanidade, mas também o mais duradouro e persistente de todos, o que, juntamente com o fato de que será apoiado durante toda a sua longa existência pelo processo mais geral da Revolução Cubana como um todo, nos permite entender o fato de que várias de suas principais criações desempenharam, durante diferentes períodos de tempo, o papel de instituições ou iniciativas culturais líderes em seus respectivos campos. Liderança geralmente implantada em escala latino-americana, mas também, às vezes, com impacto e significado verdadeiramente globais. Por exemplo, o caso do Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica (ICAIC), que, nos anos 1960, funcionou como uma instituição verdadeiramente líder no âmbito de todo o cinema latino-americano, sendo o berço de um cinema novo, revolucionário e de alto nível artístico, que transformou aquela década do século passado, ou seja, o 1968 cubano, no verdadeiro "cinema do mundo", o "cinema cubano dos anos 1960". Além disso, em 1960, ele criou a ainda importante revista Cine Cubano, com uma clara projeção latino-americana e, mais tarde, em 1986, a Escola Internacional de Cinema e Televisão de San Antonio de Los Baños, que, hoje, é uma das mais importantes instituições de treinamento audiovisual do mundo[12].
Ou o caso do Instituto Cubano do Livro, que, em 1959, era a Tipografia Nacional de Cuba, e, depois, em 1962, a Editora Nacional, e que desde seu início começou a publicar 100 mil exemplares de Dom Quixote, editado em quatro volumes com ilustrações de Gustave Doré e Pablo Picasso. Ou seja, 400 mil exemplares que inauguraram a "Biblioteca do Povo", com esse extraordinário clássico de Cervantes, que também era um dos livros favoritos de Che Guevara[13]. Seguiram-se edições maciças de Dom Quixote e grandes edições de obras de César Vallejo, Rubén Darío, Pablo Neruda e Nicolás Guillén, além de milhões de cartilhas e manuais para apoiar a campanha de alfabetização de 1961. Isso continuou nas décadas de 1970 e 1980, com o fato de que quase todos os livros publicados em Cuba, naqueles anos, eram publicados em tiragens de 20.000, 30.000 ou 50.000 exemplares. Tais tiragens, naquela época e também hoje, são inéditas e incríveis em qualquer país da América Latina e até mesmo na maior parte do mundo (com a única exceção, talvez, da China).
As tiragens maciças e excepcionais de livros de todos os gêneros, muito superiores aos padrões médios latino-americanos e mundiais, que, apesar de terem sido interrompidas e diminuídas notavelmente desde que Cuba entrou em seu período especial, levaram ao fato extraordinário de que Cuba atingiu, em 2017, a cifra de 1.000.000.000.000 de livros publicados entre 1959 e 2017. Livros estes que, muitas vezes, foram distribuídos gratuitamente e, em outras, foram vendidos por 50 centavos, em média, e que são um dos vários fatores importantes para o nível cultural médio muito alto que todos os cubanos, em geral, mantêm hoje[14].
E também o caso da revista cubana Pensamiento Crítico, uma revista que foi distribuída em toda Cuba, mas também em toda a América Latina, com uma surpreendente periodicidade mensal e uma extraordinária tiragem de 15.000 exemplares por edição. Uma revista excepcional, que é um dos frutos notáveis do 68 cubano, que, além de reunir e divulgar em suas páginas os principais autores e os debates intelectuais mais importantes da esquerda verdadeiramente anticapitalista daquela época, também recuperava regularmente textos, documentos, análises e avaliações dos principais movimentos revolucionários do mundo e, especialmente, da América Latina como um todo. Uma revista crítica de ciências sociais, muito avançada e excepcional; foi publicada apenas entre 1967 e 1971, mas com o impulso e a força do poderoso 68 cubano, tornou-se, durante sua breve existência, a revista de ciências sociais mais importante da América Latina, comparável apenas à revista mexicana Cuadernos Políticos, alguns anos depois. Resultado direto do 1968 cubano, Pensamiento Crítico tentou ser um estímulo permanente que, a partir da frente cultural e intelectual, tentou impulsionar a Revolução Cubana, fortalecendo-a em um sentido cada vez mais radical e anticapitalista, ou seja, de forma revolucionária. É por isso que seu único diretor, Fernando Martínez Heredia, ao falar sobre o espírito geral e o significado da criação da Pensamiento Crítico, afirmou, quatro décadas depois de sua existência, que "Como tornar o pensamento cubano adequado para impulsionar a Revolução, para forçá-la a se revisar, a se autocriticar, a se renovar, a se modificar, a ser superior? (...) Dessas necessidades e desafios nasceu a Pensamiento Crítico"[15].
Por fim, um quarto perfil do 1968 cubano, apoiado pelos três perfis anteriores, de uma revolução cultural acompanhada e sustentada por uma revolução social, e também de ter sido o primeiro 68 do mundo e o mais duradouro de todos, é o fato de que essa revolução cultural cubana foi uma das mais profundas e penetrantes dentro da sociedade específica em que ocorreu, impregnando profundamente todo o povo cubano com uma consciência, sentimento, percepção e atitude radicalmente anticapitalista e antissistêmica, que ainda hoje são perceptíveis. Pois, além do fato de que hoje o povo cubano é plenamente alfabetizado e é, sem dúvida, o povo mais instruído de toda a América Latina, é também um povo com uma politização geral muito alta e uma consciência crítica aguda das realidades de Cuba, da América Latina, dos Estados Unidos e do mundo. E de tudo isso, é um povo que, apesar das vicissitudes e mudanças da passagem do brilhante 68 para a sovietização, e depois para o período especial e as reformas atuais, continua sendo um povo culto, alerta e profundamente rebelde, esperando o momento de irromper novamente no proscênio do teatro onde se definem seus destinos gerais, tal como aconteceu durante o período inicial da Revolução Cubana, entre 1959-1971, que, não por acaso, são os mesmos anos do luminoso e extraordinário 1968 cubano.
E se o 68 cubano conseguiu penetrar tão profunda e duradouramente em todo o povo cubano, isso se deveu, em parte, ao fato de que aqui a revolução cultural de 1968 foi apoiada e fortemente promovida pela própria Revolução Cubana em geral, o que levou, por exemplo, ao fato de que, em Cuba, após o 68 cubano, as fronteiras rígidas entre a chamada "alta cultura" das elites dominantes e a chamada "baixa cultura" dos vários setores subalternos da sociedade ficaram quase completamente borradas. Como lembrou Fernand Braudel, comparando a revolução mundial de 1968 com a Renascença e a Reforma europeia, se a Renascença foi a revolução cultural das elites europeias, e a Reforma religiosa subsequente foi a revolução cultural das massas populares, então o 1968 moderno do século XX foi, simultaneamente, uma revolução cultural das elites e das classes populares, que, entre muitas outras coisas, claramente questionou essa fronteira rígida e cada vez mais obsoleta entre as supostas "alta" e "baixa" culturas.[16]
No caso de Cuba, em 1968, apoiada pela profunda e radical Revolução Cubana, esse desafio e essa crítica da fronteira entre as duas culturas foram levados ao máximo, com um esforço muito explícito e consciente para romper, na prática, a fronteira entre a cultura das elites e a cultura das classes subordinadas. É por isso que a Revolução Cubana teve o mesmo impacto, sobre escritores e pintores, que teve sobre os processos de alfabetização e educação de massa entre os cubanos, e o mesmo efeito sobre cineastas, intelectuais, fotógrafos e dançarinos, que teve sobre as universidades, os meios de comunicação de massa e as revistas culturais destinadas ao público em geral. Porque, em uma clara vocação para destruir e eliminar essa distinção hierárquica e discriminatória entre a chamada "alta cultura" e a "baixa cultura", a Revolução Cubana tentará vincular ambas as esferas ou dimensões da vida cultural, ao levar as artes, a cultura, a leitura e a educação ao povo, ao abrir e devolver a ele os museus, os cinemas, as exposições de pintura, as salas de concerto e as universidades, exposições de pintura, salas de concertos e universidades, ao mesmo tempo em que abrirá aos artistas, intelectuais, jornalistas e criadores cubanos um público de massa sem precedentes e até então desconhecido, ávido por conhecer seus produtos, formado justamente pela grande maioria dos setores populares e subalternos de toda Cuba.
Assim, rompendo o monopólio da cultura que as classes dominantes de todo o mundo sempre tentam manter e reproduzir, a Revolução Cubana levou a cabo um amplo processo de verdadeira e profunda revolução cultural, o seu 68 cubano. Este, seguindo sua vocação e lógica radicalmente anticapitalista, se desdobrou, aqui, de forma muito clara como um processo que foi realizado de baixo para cima, e não o contrário, afetando, assim, toda a população cubana e, em seguida, atingindo todo o grupo de suas elites intelectuais e artísticas.
Tendo definido os perfis das regularidades e singularidades do 1968 cubano, em comparação com os outros 68’s do planeta, vejamos agora como Che Guevara se posicionou e se inseriu, de forma ativa e central, nessa revolução cultural de 1968 em Cuba.
Che Guevara, promotor e produto do luminoso 68 cubano
"E vocês me permitem dizer isso? [...] o que está aqui [a Revolução Cubana] é algo novo e digno de estudo"[17].
Ernesto Che Guevara, Discurso no Primeiro Congresso Latino-Americano da Juventude, 28 de julho de 1960.
Mais de meio século após o assassinato covarde de Che Guevara, e apesar das dezenas de biografias dedicadas a ele e das centenas, e talvez até milhares, de estudos dedicados a diferentes aspectos de sua vida e obra, nenhum desses trabalhos abordou o importante papel que Che desempenhou como força motriz, promotora e geradora do importante 1968 cubano; e, por sua vez, em que medida essa profunda e impactante revolução cultural cubana de 1968 influenciou a definição dos perfis intelectuais e dos esforços teóricos do próprio Ernesto Che Guevara. Pois está claro que Guevara é, ao mesmo tempo, um dos progenitores da revolução cubana de 1968 e também um de seus vários descendentes, tendo desempenhado um papel central e de liderança, por exemplo, no projeto de alfabetização em massa de 1961, ou na promoção da exigência de escolaridade "mínima" para todos os trabalhadores do Ministério da Indústria, mas também na fundação da importante Agência de Prensa Latina, ou das revistas Verde Olivo, Nuestra Industria ouNuestra Industria Tecnológica.
Ao mesmo tempo, e imerso nesse singular e pioneiro 1968 cubano, Guevara foi levado a definir suas próprias posições pessoais sobre os debates então acalorados sobre o novo papel das mulheres cubanas na revolução, ou sobre a função e os perfis da nova universidade, ou sobre o significado do realismo socialista, ou sobre o papel da consciência na revolução, ou sobre o caráter da velha e da nova família, dentro das mudanças radicais então em curso. Em outras palavras, Guevara também tem uma clara influência, em graus variados, sobre as transformações que a Revolução Cubana está provocando na família, na escola e na mídia de massa, ao mesmo tempo em que é seriamente influenciado e transformado por essas mesmas mudanças que ele gerou parcialmente.
Como, então, Che aborda a questão da clara centralidade do novo ator social que emerge das várias revoluções de 68, o ator social jovem, em geral, e o ator social estudantil, em particular? Para abordar esse problema e confrontar a questão de qual deve ser o papel dos estudantes e da universidade no processo geral da Revolução Cubana em andamento, Che parte, como um bom marxista crítico, de uma análise de classe da questão, ao apontar que a origem e a posição de classe dos estudantes serão fundamentais para determinar sua posição em relação à revolução. E como os estudantes são, em sua maioria, membros da classe média ou da pequena burguesia, é possível que sua posição em relação ao processo revolucionário seja, às vezes, ambivalente ou até mesmo abertamente contrária. Por essa razão, e para tentar modificar essa situação em um sentido positivo para a revolução, Che exigirá que a nova universidade "...seja pintada de preto, que seja pintada de mulato, não apenas entre os estudantes, mas também entre os professores; que seja pintada de operária e camponesa, que seja pintada como um povo..."[18]. Assim, ao modificar a base de classe social dos estudantes e professores, e ao incorporar, maciçamente, trabalhadores, camponeses e setores populares, tanto a ambivalência mencionada acima quanto a possível oposição desse setor de estudantes e professores universitários à revolução, poderiam ser anuladas.
Mas, embora a situação de classe do corpo estudantil seja um ponto de partida e um ponto de referência essencial para sua possível atitude em relação à Revolução Cubana, ela não é, no entanto, nem o único fator fundamental nem um elemento mecanicamente determinante, o que Che Guevara percebe com muita clareza. Pois é preciso lembrar que, desse ponto de partida correto, também se pode derivar, de uma posição de marxismo dogmático e simplista, a conclusão inicialmente defendida por todos os Partidos Comunistas do mundo contra os movimentos de 1968, os quais foram desprezados e desqualificados, por tais partidos, como meras birras de crianças contra seus pais, afirmando que os estudantes jamais poderiam ser revolucionários e que, como não eram produtores diretos de mais-valia, seus protestos eram totalmente indiferentes ao sistema capitalista. Isso não impediu que esses movimentos de 68 começassem a se mostrar como verdadeiros movimentos de massa e a conquistar a grande simpatia e o apoio prático dos setores subalternos de suas respectivas sociedades, forjando, às vezes, a aliança operário-estudantil e, outras vezes, a aliança estudantil-popular, e realmente colocando seus respectivos governos em xeque. Então, todos esses partidos comunistas, com seu oportunismo tradicional, tentaram se infiltrar nesses movimentos de 1968, tentando cooptá-los, direcioná-los ou canalizá-los para seus próprios fins reformistas, sempre funcionais à reprodução do sistema.
Por outro lado, Che, como bom marxista antidogmático e antimecânico que é, assume que, embora todos os estudantes sejam jovens, nem todos os jovens são estudantes, pois há jovens operários, camponeses, setores populares etc., o que significa que os termos “condição estudantil” e “condição juvenil” não são idênticos e nem diretamente intercambiáveis. Isso levanta o problema de qual é a relação entre o fator "juventude" e o fator "condição estudantil", em geral, e também no caso particular de Cuba, a fim de tornar mais complexa sua posição em relação ao corpo estudantil cubano, com base nessa condição dupla e simultânea de jovens e estudantes. Isso leva Guevara a afirmar que, no caso desses membros do setor estudantil, "...há algo mais importante do que a classe social à qual o indivíduo pertence: a juventude, o frescor dos ideais, a cultura que, assim que se sai da adolescência, é colocada a serviço dos mais puros ideais". Ele concluiu, algumas linhas depois, que "...o corpo estudantil é revolucionário em sua grande maioria [...]; o corpo estudantil é, naturalmente, revolucionário, porque pertence à camada de jovens que estão abertos à vida e que estão adquirindo novos conhecimentos todos os dias. Em nosso país, tem sido assim...”[19] Dessa forma, e reconhecendo o profundo potencial rebelde e subversivo que sempre acompanha a condição etária da juventude e, portanto, dos estudantes em geral, Che Guevara também assume e reivindica o primeiro traço universal dos múltiplos 68’s em todo o planeta, que é o do novo protagonismo do também novo e emergente ator social juvenil e estudantil. Assim, referindo-se à revolução argelina, ele afirma que ela, "...como a nossa, é caracterizada pela grande participação da juventude em todas as principais ações dos últimos anos e, especialmente, durante a guerra de libertação", acrescentando, algumas linhas depois, que "[em Cuba], todo o nosso governo e a maioria dos nossos quadros são muito jovens, e o mesmo fenômeno ocorre na Argélia e, em geral, em quase todas as revoluções".[20]
Uma clara assunção do potencial revolucionário do agente social da juventude, e também dos estudantes, que, no entanto, não impede que Che, olhando muito mais adiante, ressitue essas reflexões dentro de um horizonte muito mais amplo. Horizonte este que aponta para o fundamento muito geral sobre o qual repousa a existência desse setor social de estudantes e professores, ao constituir a base principal de seu status de privilégio social em relação a outros setores e classes sociais: o da existência e reprodução constante da divisão do trabalho manual e intelectual. Pois é essa divisão que torna possível a própria existência das universidades e, ao lado delas, desses setores dedicados exclusivamente à atividade de ensinar e aprender.
Diante disso, e em uma notável coincidência com as propostas feitas alguns anos depois pela revolução cultural chinesa de 1966 e, além disso, em clara harmonia com as posições que Marx defendeu em suas obras sobre esse mesmo problema, Che Guevara também exigiu, radicalmente, a necessária supressão e superação dessa divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual. Porque, se todos os seres humanos têm os mesmos braços, pernas e corpo, assim como cérebro, ideias e boca, não há razão legítima para continuar mantendo, em uma sociedade livre e emancipada, o fato injusto e até agora subsistente de que alguns poucos vivem apenas do exercício e do uso de seus pensamentos e palavras, enquanto a imensa maioria está confinada e obrigada a viver apenas de seu esforço físico e de suas habilidades corporais. Isso leva Ernesto Guevara a afirmar que "temos de garantir que a diferença entre o trabalho intelectual e o trabalho manual se torne mais tênue, menor, no menor tempo possível", ao acrescentar, em outro momento, que grande parte de seus esforços visa a alcançar "... o apagamento das diferenças no trabalho, o apagamento das diferenças entre o trabalho manual e o intelectual, o apagamento das diferenças de classe, o apagamento das diferenças entre a cidade e o campo".[21]
Declarações radicais e profundamente anticapitalistas de Che Guevara, que não apenas recuperam o espírito mais profundo das lições de Marx, mas também nos dão várias das chaves essenciais para todos os movimentos de 1968 como um todo: primeiro, a crítica radical da separação e da autonomização do trabalho manual e intelectual, mas também a denúncia do monopólio de classe do usufruto da cultura e da educação, juntamente com a diferença injusta no desenvolvimento cultural e social entre o campo e a cidade.
E, juntamente com essa suposição da nova centralidade da juventude e dos estudantes, o Che também assume todas as consequências da nova ênfase social na cultura humana, uma ênfase que foi provocada e afirmada pelos múltiplos 68’s em todo o mundo. Isso se baseia no fato bem conhecido de que Guevara sempre teve uma preocupação especial com a educação cultural de todas as pessoas que conviveram ou colaboraram com ele, seja nos vários grupos guerrilheiros dos quais participou ou nos vários cargos públicos que ocupou no governo cubano. Assim, seja na Sierra Maestra, no Exército Rebelde Cubano, no Ministério da Indústria ou nas guerrilhas congolesas ou bolivianas, Che sempre promoveu a organização de cursos, escolas e iniciativas diversas que contribuíssem para o maior desenvolvimento e fortalecimento da formação cultural de todos os que participaram com ele nesses diferentes espaços.[22]
É por isso que, em 1959, Che se tornou chefe da Diretoria de Cultura do Exército Rebelde, promovendo, a partir desse cargo, a criação da revista Verde Olivo e, com ela, o início de um novo jornalismo revolucionário, e também uma campanha de alfabetização para todos os soldados do Exército Rebelde, que Camilo Cienfuegos descreveu como "o povo de uniforme", 80% dos quais eram analfabetos no triunfo da revolução. A campanha de alfabetização do Exército do Povo Cubano, que foi o antecedente direto da subsequente Campanha Nacional de Alfabetização de 1961, à qual já aludimos, e que, além de alfabetizar toda a população de Cuba, aumentou explicitamente sua conscientização e a politizou, ao ensinar e transmitir a história do povo cubano e suas lutas, ou o significado da Reforma Agrária, ou a função social e política das cooperativas, ou os primeiros esforços de industrialização na ilha, entre outros temas semelhantes.
Além disso, essa campanha de alfabetização não apenas educou politicamente todos os cubanos, mas também abriu as portas de acesso ao vasto mundo da cultura, ao incutir neles o gosto pela boa literatura, pelo novo cinema crítico, pelo teatro, pela dança e pelo balé, bem como pela boa pintura universal e pela boa música. A Direção de Cultura também contava com uma seção de cinema, onde Tomás Gutiérrez Alea trabalhou na filmagem de seu documentário Esta tierra nuestra, e onde se originou o Instituto Cubano de Arte e Indústria Cinematográfica, cuja relevância geral, em Cuba, em 1968, já foi mencionada.[23]
E se, como já dissemos, o 1968 cubano tentou explicitamente romper as fronteiras entre as chamadas "alta" e "baixa" culturas, essa tentativa coincide totalmente com as posições gerais de Che Guevara, que, nessa direção, também criticou radicalmente essa divisão, ao afirmar a ideia de que existe "... algo que não pode ser monopolizado, porque é patrimônio de todo o povo, como a cultura". E, em outro momento, propôs que uma nova universidade, que funcionasse com uma lógica não egoísta nem egocêntrica, mas de verdadeiro serviço à sociedade, poderia ser um dos mecanismos importantes para avançar na superação da rígida divisão entre cultura de elite e cultura popular. A esse respeito, Che declarou, em um discurso proferido nos famosos degraus da entrada da Universidade de Havana, que os estudantes mártires, de 1871, lutaram "para dignificar esta e todas as universidades de Cuba, e precisamente para tornar possível abrir suas portas a todos, abrir suas portas, como elas se abrem hoje, ao camponês e ao trabalhador, ao branco e ao negro, sem discriminação, a qualquer um que queira estudar para se aperfeiçoar, e que queira se aperfeiçoar não para prosperar com seu novo conhecimento, mas para colocá-lo a serviço da nação, para colocá-lo a serviço da sociedade, para saldar essa pequena dívida que cada um de nós tem com a sociedade que nos cria, que nos veste e que nos educa”[24].
Dessa forma, Che refletiu de várias maneiras essa ênfase particular na esfera da cultura humana, que também foi projetada em sua concepção particular da maneira pela qual a ilha rebelde do Caribe deveria abordar o complexo processo global de construção do socialismo em Cuba. Uma concepção que, em oposição aberta ao modelo soviético de construção socialista, aplicado tanto na URSS quanto na maioria dos países do Leste Europeu, insistirá na tese de que o socialismo não é apenas um projeto puramente econômico, e nem mesmo um projeto predominantemente econômico, mas também e indispensavelmente uma profunda revolução da consciência, que implica uma transformação integral total e absoluta dos seres humanos e, portanto, também e fundamentalmente de toda a sua cultura, com o objetivo de criar o verdadeiro homem novo.
Trata-se de uma ousada e radical tese anticapitalista sobre a construção do socialismo, baseada na observação de Che Guevara sobre o capitalismo selvagem e desenfreado do século XX, que aguçou ao extremo suas piores características, ao reduzir o homem ao limite de sua única e exclusiva condição de "homo economicus", exacerbar, ao extremo, o produtivismo capitalista, que exalta, acima de tudo e de todos, o desenvolvimento tecnológico ilimitado, o crescimento econômico acelerado e a busca incessante pela produção de mais e mais bens materiais. A partir daí, Che detectará que, na União Soviética e nos países europeus do bloco socialista dos anos 1960, do século XX, alguns dos quais chegam a falar que estão se preparando para passar do socialismo ao comunismo, também se reproduziu a mesma redução do complexo e amplo projeto socialista e comunista postulado por Marx às suas limitadas dimensões econômicas, ao copiar e reproduzir, dentro de uma parte do chamado "mundo socialista", o mesmo produtivismo capitalista e a mesma redução do homem ao seu ser como .homo economicus", juntamente com um fetichismo que cultua o progresso técnico em si mesmo, o crescimento econômico e o aumento da riqueza material como objetivos legítimos, únicos e fundamentais do referido projeto socialista.
Diante disso, Ernesto Guevara, embora reconheça que o socialismo também é, sem dúvida, um fenômeno econômico, e que o progresso técnico não é apenas útil, mas também necessário e muito bem-vindo, no entanto, e ao mesmo tempo, o verdadeiro objetivo central da luta pelo socialismo e pelo comunismo não é outro senão a conquista da felicidade do povo; felicidade baseada, em primeiro lugar, no fim da alienação humana e, em segundo lugar, na clara criação de um novo homem. É por isso que ele diz que "... o socialismo é, sim, um fenômeno econômico, mas também um fenômeno social; que lutamos pelo socialismo para fazer as pessoas felizes...", acrescentando, mais tarde, em uma entrevista, que "o socialismo econômico, sem a moral comunista, não me interessa. Nós lutamos contra a miséria; mas, ao mesmo tempo, lutamos contra a alienação", e em outro ensaio, ele resumiu lapidarmente que, "para construir o comunismo, simultaneamente com a base material, é necessário fazer o novo homem", um novo homem desfiliado e guiado, precisamente, em seu comportamento geral, por essa nova moralidade comunista[25].
Ao enfatizar o problema da desalienação, a busca pela felicidade humana e a criação do novo homem, Che se conecta diretamente com a tese aguda de Marx desenvolvida em O Capital, que explica que um dos traços singulares e característicos do modo de produção capitalista e da sociedade burguesa que lhe corresponde é a derrubada da centralidade do sujeito humano dentro da esfera produtiva, para substituí-lo por um novo sujeito emergente, que é o valor que é valorizado. O que a sociedade burguesa faz é derrubar . centralidade do sujeito humano dentro da esfera produtiva, para substituí-la por um novo sujeito emergente, que é o valor que é valorizado, transformando, assim, a lógica milenar e antiga de todas as sociedades pré-capitalistas, em que a produção existe para o homem, para, em vez disso, estabelecer a lógica capitalista em que a produção existe para a própria produção, e o homem existe para a produzir. Isso dá sentido à sua posição profundamente anticapitalista, que, distanciando-se do socialismo soviético - que na realidade, em nossa opinião, mais do que socialismo é um poderoso capitalismo de Estado, como o próprio Lênin propôs na época -, propõe um modelo global ousado e inovador para a construção do socialismo cubano, centrado, precisamente, na criação do homem novo, ou seja: na derrubada, agora, do valor e da lógica produtivista capitalista de sua função de sujeitos emergentes do processo, e na restituição, em seu lugar, mais uma vez, daqueles seres humanos que serão os novos homens e mulheres da sociedade comunista. Isso porque "...às vezes, na etapa de transição para o socialismo, se esquece de que o homem é o fator fundamental"[26].
Ao assumir, então, dessas diferentes maneiras, a nova ênfase na dimensão cultural que acompanha os múltiplos 68’s do mundo, Che também se posiciona sobre as profundas transformações pelas quais, naquela década de 1960, do século XX, vão passar as três instituições que, em todas as sociedades contemporâneas, produzem e reproduzem a cultura atual: as instituições da família, da escola e da mídia de massa.
E, como o 68 cubano é o primeiro 68 da história da humanidade, Cuba será um dos primeiros lugares do planeta onde começarão a se desenvolver todas as profundas transformações da família daqueles tempos, incluindo a denúncia e a crítica maciça e generalizada e, em seguida, o desmantelamento progressivo do machismo e do patriarcado. O começo deu-se com a revolução completa da célula familiar, provocada pelo fato de que, a partir de 1959, as mulheres cubanas serão amplamente incorporadas ao trabalho produtivo, bem como aos cargos públicos de responsabilidade, ao trabalho político diário e a todos os tipos de tarefas diferentes de participação geral na sociedade.
Um processo que não apenas estabeleceu rapidamente sua "igualdade civil, social e política", como proclamou a Primeira Declaração de Havana, em 1960, mas também as retirou, radicalmente, do espaço doméstico limitado e empobrecido, de modo que fosse "cada vez menos, a parte do casamento que é responsável pela criação dos filhos". Assim, ao criar círculos infantis, ou creches, e certos tipos de internatos para crianças em áreas rurais ou montanhosas, a Revolução Cubana permite, ao mesmo tempo, libertar as mulheres da tradicional e milenar escravidão doméstica e, ao mesmo tempo, socializar e ampliar os horizontes da formação e educação das crianças, ao revolucionar, duplamente, essa estrutura de geração de cultura que é a família capitalista monogâmica. Isso levou o Che a declarar que "a família continua seu processo (...) [e] vai se adaptar às grandes mudanças que estão ocorrendo em Cuba, que são mudanças fundamentalmente determinantes...”.[27]
Assim, ao modificar, na prática, as ocupações e os papéis sociais das mulheres, ao incorporá-las organicamente à economia, à política, à sociedade e à cultura, e ao dar-lhes sua real independência material e econômica, que as liberta da secular sujeição ao gênero masculino, a Revolução Cubana modifica totalmente a própria imagem da mulher na família e na sociedade, ao educar as novas gerações de homens e mulheres para que sejam capazes de construir relações mais igualitárias, respeitosas, dialógicas e equilibradas, do que as velhas formas patriarcais, hierárquicas, autoritárias e unilaterais da família capitalista tradicional. Isso, por sua vez, cria um espaço mais propício para o desenvolvimento de uma cultura e consciência individual muito mais crítica, aberta, tolerante e igualmente dialógica. Isto ainda é perceptível nas famílias cubanas de hoje, que, do ponto de vista do desenvolvimento dos direitos das mulheres e da igualdade de tratamento entre homens e mulheres, são muito mais avançadas do que as famílias capitalistas do restante dos países latino-americanos, e até mesmo de muitos outros países do mundo.[28]
Situado no início dos anos 1960, do século passado, Che se apresenta como um verdadeiro feminista avant la lettre, ou seja, como alguém que, de forma pioneira e muito avançada para a sua época, e marchando contra a maré dos pontos de vista então dominantes, defende, muito claramente, os direitos das mulheres e a luta pela igualdade de tratamento das mesmas, ao aceitar, por exemplo, que, nas guerrilhas, as mulheres também possam participar como combatentes. Ao mesmo tempo, em sua própria família, ele trata sua esposa, Aleida, como uma verdadeira companheira, ao prever a possibilidade de ela dirigir a agência Prensa Latina, apoiando sua participação ativa e suas viagens ao exterior na Federação das Mulheres Cubanas, e ao deixar, em aberto, a possibilidade de que ela se junte a ele, em um eventual segundo estágio, para lutar ao seu lado no Congo e, mais tarde, na Bolívia. O Che afirmou, claramente, que "as mulheres devem ser incorporadas em todos os aspectos do trabalho e devem receber o mesmo pagamento por esse trabalho que os homens", antecipando, com essa abordagem, o slogan posterior de "salário igual para trabalho igual", que, várias décadas depois, e até hoje, ainda é uma das principais demandas dos movimentos feministas em todo o mundo.
Assim, e com seu instinto anticapitalista aguçado característico, Che defende uma posição radicalmente feminista e, além disso, um feminismo inteligente e verdadeiramente subversivo, muito distante do feminismo light do suposto "empoderamento" das mulheres sobre os homens, e muito próximo, não por coincidência, do feminismo sábio das mulheres neozapatistas de hoje. Um feminismo que não vê homens e mulheres como inimigos, mas sim como aliados na luta anticapitalista e antissistêmica contra o patriarcado e o machismo, o que também permite que Che diga, em março de 1963, que "A libertação das mulheres não está completa. E uma das tarefas do nosso Partido deve ser conseguir sua liberdade total, sua liberdade interna...”[29] A liberdade total para as mulheres, que se hoje é uma demanda amplamente difundida e compartilhada por todos os movimentos verdadeiramente antissistêmicos do planeta, não o era, de forma alguma, nos primeiros anos da Revolução Cubana, quando o feminismo, antes da Revolução Cultural Mundial de 1968, era um movimento bastante marginal e pequeno, que só mudaria, progressivamente, após essa Revolução Cultural Mundial do final dos anos sessenta do século XX. Isso ilustra claramente e nos mostra o caráter pioneiro e antecipatório das posições do Che acima mencionadas, radicalmente feministas e, além disso, de um feminismo verdadeiramente antissistêmico e inteligente, que precede e prefigura o feminismo que seria forjado no calor dos outros 68’s em todo o mundo.
Feminismo inteligente e antecipatório, baseado na circunstância real de que, de fato, a Revolução Cubana desmantelou radicalmente as bases materiais da família capitalista monogâmica e patriarcal de uma só vez, incorporando as mulheres cubanas a todas as atividades da vida social em geral. Com isso, Cuba antecipou um traço que tem sido apontado como característico de todos os 68's do planeta, que é o da irrupção forçada da diversidade: Porque depois de 1968 não há mais um único tipo de família válido, mas muitos, e é por isso que os cubanos podem começar a eliminar em poucos meses a antiga família monogâmica e machista, e transformar as antigas "donas de casa" em trabalhadoras, líderes políticos, intelectuais, ativistas sindicais ou artistas, assim como os hippies criam comunas familiares, onde a monogamia não é mais respeitada ou exigida, e onde todas as crianças da comuna são educadas de forma coletiva, livre e horizontal. E assim, a partir de 1968, reconhece-se que a Europa não é a única civilização, mas um caminho civilizatório possível entre muitos outros, e que a razão europeia é apenas uma entre muitas formas possíveis de apreender o mundo, juntamente com o fato de que a raça branca europeia não é o paradigma nem o modelo universal de beleza, inteligência ou de alguma superioridade misteriosa, e que a heterossexualidade é apenas uma dentre as muitas formas possíveis de expressão do amor humano e da sexualidade em geral.[30]
Uma irrupção múltipla da diversidade, que rompe os velhos modelos unicêntricos em todos os níveis do tecido social, que também se expressa na crítica frontal dessa herança que o capitalismo herda e refuncionaliza a seu favor, e que é a velha estrutura do racismo. Diante disso, e mais uma vez a partir de posições bastante avançadas e pioneiras para seu próprio tempo, Che também critica radicalmente esse mesmo racismo, a discriminação obsoleta e atrasada contra os negros, que, no caso de Cuba, e em virtude de sua genealogia histórica e demográfica única como nação moderna, é bastante evidente e acentuada. Racismo que, além disso, é usado e instrumentalizado pelo capitalismo em seu próprio benefício. Por exemplo, e entre muitas outras formas, utilizando-o como fator de divisão das classes trabalhadoras, fomentando preconceitos e estereótipos absurdos que estigmatizam as populações negras subalternas, para separá-las e opô-las aos setores brancos de trabalhadores, igualmente subalternos e igualmente explorados e subjugados pelo mesmo e único capitalismo.
Por isso, Che denuncia e critica que "há quem diga que o negro não pode ir a certos lugares, que o negro não tem habilidade, que o negro é baixo, que o negro bebe [...] porque a escravidão não terminou em Cuba até 1º de janeiro de 1959". Uma situação absurda que será completamente subvertida pela Revolução Cubana, que Che Guevara reivindicará explicitamente ao declarar que "as transformações socialistas na vida social encontraram sua expressão mais clara na eliminação da discriminação racial que anteriormente dividia o povo e que colocava os negros, em todos os aspectos, em uma situação inferior. Hoje, lhes é garantida a plena igualdade de direitos, o acesso a qualquer emprego, aos clubes operários [...], às praias, às escolas."[31]
E, embora esteja claro que a superação total do patriarcado e do machismo, por um lado, e do racismo, por outro, são tarefas sociais de tal magnitude que não podem ser realizadas em alguns meses ou anos, mas apenas ao longo de um período de tempo que abrange várias gerações de seres humanos, não deixa de ser muito significativo que, a partir de 1959, a Revolução Cubana tenha enfrentado, de forma muito central, essas duas formas retrógradas de discriminação racial e de gênero, demonstrando, assim, sua vocação não apenas anticapitalista, mas até mesmo antissistêmica, sendo assim pioneira nas mudanças salutares que toda a humanidade experimentou, nessas áreas, no meio século desde a Revolução Cultural Mundial de 1968. E também não é coincidência que, nessas duas áreas fundamentais, Ernesto Che Guevara se pronuncie claramente no mesmo sentido crítico, anticapitalista e antissistêmico, o que implica, necessariamente, sua verdadeira superação e eliminação histórica definitiva.
E, assim como na família, o 1968 cubano também teve um impacto profundo na instituição escolar, mas também, e além disso, em todo o campo da educação, este último no sentido mais amplo possível. Porque depois de 1959, a ilha caribenha experimentou uma profunda revolução educacional que, como já mencionamos, afetou tanto a grande maioria da população cubana quanto todas as suas elites intelectuais, criando, assim, a base para a transformação estrutural de toda a cultura cubana. Isso, como também mencionamos acima, começou com a audaciosa e bem-sucedida campanha de alfabetização para todos os cubanos, que, tendo sido promovida energicamente por Che Guevara, conseguirá erradicar para sempre e "totalmente esse flagelo social que nos tempos modernos é o analfabetismo"[32].
Mas, embora alfabetizar todo o povo cubano, fazendo de Cuba o primeiro país do mundo a se tornar um "território livre do analfabetismo", tenha sido um feito excepcional do próprio povo insurrecional da ilha, isso não elimina o fato, do qual Che está bem ciente, de que, com essa alfabetização integral de toda a população, foi conquistada apenas uma "primeira cultura", ainda frágil e elementar, e que é necessário e urgente continuar aprofundando, enriquecendo e sofisticando cada vez mais[33]. Por essa razão, e dentro do Ministério da Indústria que dirige, Guevara vai promover o estabelecimento do chamado "mínimo técnico", ou seja, a obrigação de que absolutamente todos os trabalhadores que atuam em qualquer indústria já tenham obtido ou obtenham, no menor tempo possível, um certificado de conhecimento equivalente a pelo menos seis anos de escolaridade, o que, em outros países, é chamado de educação primária completa. E isso, apenas como um primeiro passo em um processo contínuo e muito mais longo, no qual esse "mínimo técnico" deve aumentar pouco a pouco, e depois subir para o equivalente a oito anos de escolaridade, e depois para nove, depois dez, etc., até que todos os trabalhadores cubanos tenham estudos universitários ou estudos técnicos avançados, e até mais.
Além disso, e junto com o estabelecimento desse "mínimo técnico" obrigatório e universal, o Che também promoveu uma "Campanha para elevar a capacidade cultural" de todos os trabalhadores, embora nesse caso como uma campanha voluntária realizada por meio da televisão e do rádio. Isso permite que Ernesto Guevara insista que "todas as tarefas culturais devem ser assumidas com grande empenho", para afirmar com satisfação, algumas linhas depois, que "o mínimo técnico, em vários ministérios, está sendo feito, e as tarefas de elevação cultural também estão sendo feitas, de tal forma que já são tarefas nacionais..."[34] Isso nos mostra que o desejo de Che de promover a formação cultural de todas as pessoas de seu ambiente imediato que colaboraram com ele ao longo de sua vida, que mencionamos anteriormente, era uma preocupação que, no caso de Cuba, ele conseguiu projetar em uma escala verdadeiramente nacional, por meio dessas duas estratégias do "mínimo técnico" e da campanha para elevar a capacidade cultural.
Dessa forma, tanto o Che como o luminoso 68 cubano, promoveram energicamente, a educação e o desenvolvimento cultural de todo o povo de Cuba; primeiro, ao alfabetizá-lo totalmente; e, depois, ao elevar sua escolaridade e sua capacidade e formação cultural, por meio dos mecanismos e estratégias mencionados. À luz da situação atual, e apesar da posterior sovietização da cultura oficial e das grandes complicações do período especial, podemos considerar que esse foi um esforço muito bem-sucedido. Isso porque, ainda hoje, neste difícil ano de 2022, ainda marcado pela pandemia mundial da COVID-19, é fato que toda a educação em Cuba, desde os níveis mais elementares até o mais complexo nível universitário, é totalmente gratuita e, além disso, diretamente acessível a absolutamente toda a população.
Uma revolução educacional e cultural bem-sucedida que, como já mencionamos, abrangeu todos os setores subalternos, bem como toda a elite intelectual e artística de Cuba, e que também gerou, para esta última, uma ampla e excepcional liberdade de criação e experimentação, que se refletiu nas novas ciências e nas novas artes que foram o fruto da revolução de 1968 na ilha. Uma liberdade que permaneceria em vigor durante toda a década cronológica dos anos 1960 e até 1971, e que, na época, foi bem percebida e também explicitamente reivindicada por Che. É por isso que ele ressalta que, mesmo quando "não concordamos com tudo o que nossos profissionais ou artistas defendem", ainda assim, "nunca nos esquivamos do confronto ou da discussão. Sempre estivemos abertos para discutir todas as ideias...", e é por isso que "nossa revolução tem se caracterizado por ser muito ampla. Os grandes problemas que outros países no [processo de] construção do socialismo tiveram com os profissionais e suas discussões sobre arte, nós não tivemos. Fomos muito amplos."[35]
A grande abertura dialógica de Che nos lembra o slogan maoista de que devemos deixar "cem flores desabrocharem e cem escolas competirem", ou seja, promover a mais ampla e profunda liberdade de criação e expressão na arte e na ciência, para que, a partir dessas liberdades, esses ramos artísticos e científicos da dimensão social da cultura possam florescer, se consolidar e se fortalecer.[36] Muita liberdade e expansão dessas criações culturais, o que, obviamente, não impede que diferentes indivíduos tomem partido claramente com relação a esta ou aquela corrente ou forma de expressão artística, passada ou presente. Por exemplo, com relação ao realismo socialista, desenvolvido na União Soviética, após a morte de Lênin, e convertido em uma espécie de arte oficial, praticamente obrigatória, para todos os diferentes artistas soviéticos.
O realismo socialista será criticado, frontalmente, por Che Guevara, quando ele aponta, com veemência, que esse realismo socialista nasce "com base na arte do século passado", ou seja, com base no realismo burguês do século XIX; e, então, nos adverte: "Mas, a arte realista do século XIX também é de classe, [e] talvez mais puramente capitalista do que essa arte decadente do século XX". E, então, ele pergunta: "Por que fingir olhar para as formas congeladas do realismo socialista como a única receita válida?” Uma postura crítica e distanciada em relação ao realismo socialista, que nos lembra o brilhante argumento de Walter Benjamin contra esse mesmo realismo socialista, quando ele apontou que o que essa tendência havia feito era simplesmente mudar os personagens do drama artístico, implantado na literatura ou no teatro, etc., e colocar trabalhadores, camponeses e membros das classes populares no lugar de aristocratas ricos e burgueses, mas sem modificar, em nada, a lógica geral de construção do enredo desse drama ou os próprios códigos da criação artística em questão[37].
Por fim, Che Guevara também desempenharia um papel importante e ativo no processo de mutação dos meios de comunicação de massa, que, a partir de 1968, deixaram de ser meros meios de entretenimento, ou itens de consumo exclusivos das elites, para se tornarem poderosas alavancas de manipulação de informações, mas também de formação da opinião pública, da consciência popular e da cultura em geral. Isso foi algo que Guevara percebeu muito bem e que o levou a promover vários projetos nesse campo da mídia; por exemplo, a publicação da revista El Cubano Libre, que seria publicada pelo Movimento 26 de Julho, na própria Sierra Maestra; e, mais tarde, a partir dos vários cargos que ocuparia no governo cubano, a publicação das revistas Verde Olivo, Nuestra Industria e Nuestra Industria Tecnológica.
E tudo isso, junto com o projeto muito mais ambicioso e abrangente, com uma dimensão verdadeiramente internacional, de fundar a agência de notícias Prensa Latina, cujo trabalho seria divulgado, principalmente, na América Latina, mas também em todo o mundo, e à frente da qual ele colocaria seu amigo Jorge Ricardo Masetti. Uma nova agência jornalística que, desde o seu projeto de fundação, estabeleceu o ambicioso objetivo de se estabelecer como uma clara alternativa contra-informativa às grandes redes de notícias dos Estados Unidos, ao fornecer uma versão crítica, fundamentada e inteligente das principais notícias do planeta, possibilitando desmontar os vieses ideológicos, mentiras, omissões e distorções que os grandes meios de comunicação de massa imperialistas fazem dessas mesmas notícias[38].
Assim, não apenas a Revolução Cubana pode romper o verdadeiro "cerco midiático" que os Estados Unidos tentaram criar em torno dela, mas também fornecer ao Che uma fonte confiável de informações sobre a situação política e social nos diferentes países latino-americanos, e sobre o papel e a força dos diferentes movimentos revolucionários em toda a América Latina. Tais informações são vitais para ele organizar seu projeto global de promover uma verdadeira revolução continental nessa mesma América Latina.[39]
Além disso, e graças ao fato de que a Revolução Cubana rapidamente expropriou todos os meios de comunicação social de massa na ilha, incluindo a televisão, o rádio e a imprensa, Che também conseguiu se inserir, de forma muito ativa e proeminente, nesses meios, a fim de fortalecer e promover, energicamente, sua nova tarefa essencial como instrumentos estratégicos da transformação social global de toda a sociedade cubana. O papel de Che Guevara como uma importante alavanca na educação política e na conscientização geral do povo cubano, o levou a participar regular e permanentemente da atividade geral de todos esses meios de comunicação de massa; por exemplo, ao fazer várias aparições em diferentes programas de televisão, como "Ante la Prensa", "Universidad Popular", "Comentarios Económicos", "Telemundo Pregunta", "Cuba Avanza" e "Información Pública", enquanto muitos de seus discursos são resumidos ou publicados na íntegra nos jornais Revolución, Hoy ou El Mundo. Além de toda essa importante atividade, Che escrevia, frequentemente, artigos para várias revistas; entre outras, para Cuba Socialista e Trabajo, além de ter fundado, diretamente, três revistas, como mencionamos anteriormente: as revistas Verde Olivo, Nuestra Industria Económica e Nuestra Industria Tecnológica, com as quais também colaborou, várias vezes, como autor.[40]
E isso sem contar os artigos e entrevistas, publicados por Che, nas revistas mexicanas Humanismo e Siempre, na brasileira O Cruzeiro, na uruguaia Marcha, nas revistas russas Tiempos Nuevos, ou Economía Mundial y Relaciones Internacionales, na francesa L'Express, ou no programa de televisão "Ante la Nación", da CBS, nos Estados Unidos, entre outras. Isso nos mostra como Che está muito consciente da função pedagógica de massa e do novo papel de formadores de opinião pública, às vezes em escala nacional e às vezes em escala verdadeiramente planetária, que a mídia de massa começará a desempenhar a partir da época dos múltiplos 1968’s em todo o mundo. Uma clara consciência dessas novas funções e papéis da comunicação de massa, que levará o Che a se envolver ativa e energicamente em seus principais meios de comunicação, aproveitando esses novos espaços para difundir, dentro de Cuba, a nova cultura anticapitalista e antissistêmica, e, fora dela, as principais lições e ensinamentos da Revolução Cubana, para as lutas radicais de libertação, então em curso, em toda a extensão do planeta Terra.
Essas são, em um breve resumo, as maneiras pelas quais o movimento de 1968, em Cuba, e as ações e reflexões de Ernesto Che Guevara, estão vinculados.
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Para concluir, vale a pena lembrar o fato de que, graças ao luminoso 1968 cubano e também à inserção ativa e enérgica do excepcional Che Guevara, Cuba se tornou, ao longo da década de 1960, o centro cultural mais avançado e importante da América Latina, ao atrair, para a ilha, toda a intelectualidade progressista latino-americana e, até mesmo, parcialmente a europeia, juntamente com os principais artistas e escritores de todo o semicontinente. Isso levou Che a comentar, com entusiasmo, que "As grandes multidões estão se desenvolvendo, as novas ideias estão ganhando impulso no coração da sociedade, as possibilidades materiais para o desenvolvimento integral de absolutamente todos os seus membros tornam o trabalho muito mais frutífero. O presente é uma luta, o futuro é nosso."[41]
Dessa forma, com o desenvolvimento de uma verdadeira "primavera cultural excepcional", de riqueza, diversidade e alcance reconhecidos em todo o mundo, entre 1959 e 1971, Cuba desenvolveu toda uma série de interessantes e complexas contribuições de alto nível nos campos da nova literatura, nova música, dança, pintura, escultura, novo cinema e novo teatro. Ao mesmo tempo, foram publicadas, em Cuba, revistas que estavam no mais alto nível do debate internacional da época, como a revista Pensamiento Crítico, e personalidades do porte de Jean-Paul Sartre, José Revueltas e Julio Cortázar, entre muitos outros, visitaram a rebelde ilha caribenha, curiosos e admirados, para dialogar e trocar opiniões com seus artistas, intelectuais e, às vezes, até com seus líderes políticos. Como no caso da célebre entrevista de Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir com Che Guevara, que levou Sartre a declarar que Che era "uma das inteligências mais lúcidas da Revolução", além de ser "considerado um homem de grande cultura, e isso é evidente: não é preciso muito tempo para compreender que, por trás de cada frase sua, há um estoque de ouro".[42]
Notas
Ligação alternative
https://www.periodicos.unimontes.br/index.php/caminhosdahistoria/article/view/8157/7765 (pdf)