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ENTREVISTA COM MÃE LIA DE OXUM
Caminhos da História, vol. 29, núm. 2, pp. 154-170, 2024
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 29, núm. 2, 2024

Recepção: 27 Maio 2024

Aprovação: 26 Junho 2024


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial 4.0 Internacional.

A seguir, apresentamos integralmente uma entrevista inédita realizada com a Mãe de Santo Maria dos Anjos da Silva, mais conhecida como Mãe Lia de Oxum. A entrevista, realizada em 2013, foi fruto da pesquisa “Práticas Populares de Cura: memória, tradição e identidade social no Vale do Jequitinhonha”, orientada pela professora Keila Carvalho e desenvolvida por Ramon Souza. Dentre os objetivos, estavam a realização do mapeamento das práticas de cura utilizadas pelos habitantes do Vale do Jequitinhonha, que guardam uma relação de continuidade com os antepassados, e a investigação sobre a possível relação entre a permanência dessas práticas e a visão que entende a região sob o viés da pobreza, doença e atraso.

A entrevista com Mãe Lia teve a duração de 34 minutos e 57 segundos, e pode-se considerar que se tratou de uma experiência além de um mero registro oral, foi uma verdadeira imersão em um contexto de transmissão de conhecimento. A ialorixá nos aguardava em seu terreiro, sentada ao lado de uma mesa repleta de ramos, folhas e sementes, que ela nos apresentou um a um. Demonstrando seu refinado conhecimento sobre a flora da Serra do Espinhaço, a partir da experiência concreta de Mãe Lia de Oxum, fomos apresentados a uma infinidade de receitas para cura dos males do corpo e da alma. Além disso, ela também descreveu formas de fazer o mal, de atrair o amor e a importância dos banhos, apontando como um dos mais elaborados e complexos, o chamado “banho de sacudimento para limpeza espiritual”.


Imagem 1
Registro da Entrevista com Mãe Linha de Oxum
Acervo dos autores.

O testemunho oral de Mãe Lia, como toda memória, é fruto de uma elaboração complexa, uma vez que as memorias são construídas e reconstruídas como parte de uma consciência contemporânea (SCHWARZSTEI, 2001, 75). Em suas palavras, foram os caminhos ela percorreu foram diversos, passando por Minas Gerais e Bahia, até o terreiro de Mãe Menininha do Gantois, onde Mãe Lia foi iniciada no candomblé. Nascida no Rio Vermelho, em Minas Gerais, se estabeleceu em Diamantina, aonde por mais de 30 anos Mãe Lia foi uma referência no candomblé da cidade. Segundo ela, também esteve vinculada ao cristianismo, pois antes de se tornar mãe de um terreiro de candomblé teria sido evangélica.

Durante a entrevista, nossos interesses eram outros, particularmente, relacionados as artes de curar. Mas, a narrativa de Mãe Lia foi além, já que revelou seus conhecimentos e saberes sobre uma região de Minas Gerais marcada por várias doenças endêmicas, mas que também pouco tempo depois dessa entrevista, em 2015, seria eleita reserva da Biosfera pela Unesco, graças a sua biodiversidade. Tendo sido uma das primeiras regiões do estado a ser ocupada, devido a mineração, a região tem suas espécies nativas ameadas há séculos pela ação humana. Palco do contato entre nativos indígenas, europeus e africanos, o registro de Mãe Lia ajuda a acessar dimensões do passado, presente e futuro, sobretudo, na medida que traz aspectos sobre a relação intrínseca entre ser humano, seus males e anseios, e o meio biofísico.

O registro oral aqui presente compõe as memórias dessa mãe de Santo que, como intepretação do passado, é fruto de uma seleção, o que indica que contém silêncios, esquecimentos, contradições etc., tal como toda memória (SCHWARZSTEI, 2001). A seguir traremos a entrevista transcrita em sua integridade. O objetivo é que o “nosso discurso, como historiadores não se prevaleça sobre o depoente”, por isso mantivemos as palavras e pronúncias de Mãe Lia (JANOTTI, 2010, p.19). Importante limites dados pelo “aprisionamento” do oral no escrito, pelo qual gestos, silêncios, cheiros, cores e sentimentos sutis são praticamente eliminados. Nesse sentido, a perspectiva é que essa entrevista, cuja a fonte é naturalmente a memória, possa ser analisada, comparada, relacionada com outros registros e contextos para assim enriquecer a narrativa e debate histórico.

O título que dá nome à entrevista, “Uai, quem quiser copiar, copia, né?”, foi a expressão usada pela Mãe de Santo, revelando seu desejo de que mais pessoas aprendam suas receitas, que incluíam chás, banhos e rezas. O registro com a mãe de santo nos apresenta vestígios sobre o passado ancestral de resistência sob o qual esses saberes se perpetuaram – diante o moralismo religioso da tradição católica, por exemplo. Ao mesmo tempo, seus ensinamentos nos informam sobre o futuro quando objetivamente a mãe de santo trata sobre às dificuldades, como a falta de interesse em perpetuar tais conhecimentos. Como ela mesma afirmou: “Eles têm que pensar que eu não vou ficar aqui a vida toda, né? Não era hora deles aprender?”.

- (Keila C.) (Inaudível) Estamos fazendo um trabalho, um projeto, em algumas cidades do Vale do Jequitinhonha, para falar sobre as coisas que chamamos de práticas de cura, algumas pessoas falam medicina alternativa, porque não é aquela medicina lá do médico formado, que vai no posto de saúde ao hospital...

- (Mãe Lia) É exatamente! Eu sei como é que é, é, a medicina em casa.

- (Keila C.) É uma medicina em casa! É uma forma de tratar em casa.

- (Mãe Lia) É tem as folha!

- (Keila C.) Então, procuramos por pessoas que fazem esses tipo de tratamento, e nos informaram sobre a senhora, então a gente queria conversar um pouquinho sobre isso.

- (Mãe Lia) É “uai”, muita gente acredita muito “ne” chá, essas coisas. Agora eu não sou muito de tomar chá, não gosto de remédio de jeito nenhum.

- (Keila C.) Ah, a senhora não gosta de remédio?

- (Mãe Lia) Remédio nenhum!

- (Keila C.) Bom vamos começar pelo básico: o nome da senhora?

- (Mãe Lia) Eles me tratam de Lia “né”? Mãe Lia, mas eu sou Maria Dos Anjos da Silva.

- (Keila C.) A senhora é daqui mesmo?

- (Mãe Lia) Nasci no rio vermelho, mas criei aqui.

- (Keila C.) A senhora faz é “benzeção”?

- (Mãe Lia) Faz “bezo” também! Faz a sessão, hoje mesmo tem a noite à sessão.

- (Keila C.) E desde quando?

- (Mãe Lia) Só aqui tem trinta “ano”.

- (Keila C.) E a senhora começou por uma herança familiar, alguém da família?

- (Mãe Lia) Só eu que sou raspada do santo, eu e meu filho, mas ele morreu. Aí eu fiquei “né”.

- (Keila C.) Como é que foi esse processo?

- (Mãe Lia) Uai “dirigido” as coisas que acontecia “né”? Aí eu procurei a mãe de santo pra ver o que “tava” acontecendo, aí ela falou que eu era médium e tinha que raspar. Aí eu continuei frequentando, aí raspei o santo. Tem “quais” quarenta anos que eu raspei, raspei com a filha da menininha do “cantua” então minha herança é do “cantua”, da “mininha”.

- (Keila C.) Ah, tá! E a partir desse momento// (...)?

- (Mãe Lia) É desse momento é que gente foi aperfeiçoando! Aí depois de sete “ano” de obrigação, “cê” tem direito de abrir seu terreiro.

- (Keila C.) Obrigação quer dizer que a senhora tem que fazer o quê?

- (Mãe Lia) É cuidar dos orixás! É um recolhimento espiritual “né”? Que a gente faz – um estudo, “né”?! Aí depois de sete “ano”//só que eu não tinha vontade de abrir terreiro, sei lá foi envolvendo, evolvendo quando eu assustei já tinha abrido. (sic.) Parece que quando eles quer não adianta não, mas eu não tinha intenção de abrir terreiro. Por sinal dá muito trabalho, até “né”? Muito demais, mas as “coisa” vai acontecendo, “ce” vai envolvendo quando assusta “ce” já tá ali dentro.

- (Keila C.) E aí as pessoas procuram à senhora para as curar, para tratar?

- (Mãe Lia) É Pra benzer, pra fazer descarrego, às vezes vem muito carregado.

- (Keila C.) Quais são as enfermidades que geralmente são mais procurados?

- (Mãe Lia) Procura muito aqui é caso de amor, esse aí eu não gosto de mexer, não.

- (Keila C.) Caso de amor? e porque que a senhora não gosta?

(Mãe Lia) É muito complicado! Às vezes eles nem espera nem a vela acabar de queimar e já quer um resultado. E eu não acho certo você tirar de uma pessoa pra dar pra outra “né”? Às vezes a pessoa chega: ahh, eu quero fulano! Mas fulano tá casado com a outra, como é que você vai tirar e dá pra aquela? Então não sou a favor disso não, mas vem muito caso de doença, muita coisa assim.

- (Keila C.) A senhora lembra de alguma doença?

- (Mãe Lia) Tem muito tipo de doença, com encosto e a gente tem que cuidar, “né”?

- (Ramon S.) As pessoas vem procurar a senhora pra benzer com quais problemas?

- (Mãe Lia) Vem benzer com problema de doença que às vezes “vai” no médico e não tem recurso no médico, não acha solução. Aí vem “né”? Ai quando vai olhar a pessoa tá com encosto, alguma coisa assim aí a gente cuida, “né”? Tem a sessão a noite também.

- (Keila C.) E as ervas? A senhora até começou a falar podia fazer o favor de repetir (risos)?

- (Mãe Lia) Aí exatamente! Tem as ervas que vai entrar em função, pra fazer os banhos de descarrego, pra descarregar.

- (Keila C.) E como são usadas as ervas? Pode nos dar algum exemplo?

- (Mãe Lia) A Mamona, por exemplo, “cê” cozinha e faz o banho. A Mamona a gente não toma o chá, “né”? E só faz o banho, e toma do pescoço pra baixo, que é pra descarregar. Agora “quais” todos aqui você pode tomar o chá! Esse aqui, por exemplo, é Quebra Pedra que é banho Oxóssi, “ce” faz o chá que é pros rins, dor nos rins. Essa aqui é a Mãe Gerona que muita gente dá pra criança, “né”?//pequena, serve pra dar banho e fazer chá também.

- (Keila C.) E serve para que a Mãe Gerona (manjerona)?

- (Mãe Lia) Mãe Gerona, serve pra tudo, pra calmante! Tem o Manjericão que é muito procurado tanto banho, como pro chá. Aliás, nem cozinha ele, “cê” esfrega ele, tira o sumo e faz o banho, põe água e toma o banho.

- (Keila C.) E é bom para quê?

- (Mãe Lia) Esse aqui também é pra descarrego, abertura de caminho também, faz o banho, põe uma colher de açúcar.

- (Keila C.) Aí é mais para cura espiritual, quando a senhora fala assim banho descarrego, é mais cura espiritual?

- (Mãe Lia) É banho de descarrego na parte espiritual, e serve também pra fazer chá (inaudível). A Giné, que é muito, muito procurado (inaudível).

- (Keila C.) Ahh, Guiné?

- (Mãe Lia) Serve pra banho também! [-E Guiné é pra quê?] É pra fortalecer a áurea da pessoa. A Goiaba, também é Oxóssi, serve pra banho e serve pra dar chá, pra “minino”, com esses “brotinho” “cê” faz chá quando a criança tá com diarreia que não para. Esse aqui é o Incenso, você usa pra banho e pra usa também pra perfumar quando tá seco.

- (Keila C.) Ah tá, incenso?

- (Mãe Lia) Incenso, “cheroso” ele! Esse aqui é a Pitanga, todo mundo conhece “né”? Que serve pra banho, pra chá e serve pra comer fruta.

- (Keila C.) O chá de Pitanga é bom para quê?

- (Mãe Lia) Também pra abrir caminho, serve pro banho, abrir caminho e o chá também serve pra pressão.

- (Keila C.) Pressão?

- (Mãe Lia) Pressão Alta.

- (Mãe Lia) Essa aqui é a Salvia também serve pra chá, pra dor. Esse aqui também a Erva Cidreira, conhecida como Macassá, serve pra chá de gripe e serve pra banho também – “quais” todos aqui servem pra banho! Esse aqui é o Jaborandi, muito famoso também pra banho, serve pra chá, essas bananinhas quando tá madura a pessoa come, é docinha!

- (Keila C.) Jaborandi?

- (Mãe Lia) Jaborandi! Conhecido também como Tapa Buraco.

- (Keila C.) É o chá dele é para quê?

- (Mãe Lia) O chá dele também serve pra gripe. Esse aqui é “o” Hortelã, que é antibiótico serve pra muita coisa, serve pra verme, serve pra pôr em comida, serve banho e serve pra chá. Aqui já é o Capim Cidreira “né”? Tem a folha e o capim! Eu mostrei a folha, aqui é o capim que serve pra fazer chá também.

- (Keila C.) O chá de Cidreira é para?

- (Mãe Lia) É calmamente, tenho o banho também. Aqui é o Capim de São José que chama. Esse não toma o chá é só o banho.

- (Keila C.) É só o banho?

(Mãe Lia) É Só banho!

- (Keila C.) E o banho dele é para quê?

(Mãe Lia) É Abre caminho também! Essa aqui é a Favaca de Oxóssi, Favacona, fedorenta ela! [-Essa é bom pra quê?] Essa também abre caminho. Essa é a Espada de São Jorge essa aqui, também é muito procurada pra abrir caminho e pra bater nos “zoto”.

- (risos)

- (sic)

- (sic)

- (Mãe Lia) Aqui é a Caninha do Brejo, que serve pros rins!

- (Keila C.) Ahh, o rim?

- (Mãe Lia) É fazer o chá! Aqui é Saião, que é muito procurado também, serve pra chá, serve pra tomar sumo pra dor no estômago, serve pra dor de ouvido, soca ele tira o sumo, é a “Fóia” da Fortuna que eles “fala”. Essa aqui é a Lágrima de Nossa Senhora, que dá umas “sementinha” que eles faz terço – “quais” que nem tá tendo isso mais aqui, eles tão cortando tudo!

- (Keila C.) Que eles chamam de Ponta de Lágrima?

- (Mãe Lia) Isso mesmo! Serve pra banho também, serve pra chá. Aqui é o Café, a vida muito embaraçada, “cê” faz o banho com nove “folha” de Café, se quiser também pode tomar chá.

- (sic)

- (Mãe Lia) Ahh esse aqui eu esqueci o nome, isso aqui a flor dele serve pra asma. Dá uma flor assim, parecida com flor de quiabo, esqueci o nome.

- (sic)

- (Mãe Lia) E aqui é a Romã, que todo mundo conhece, “né”?

- (Keila C.) Ahh, Romã?

- (Mãe Lia) Que além do banho caso de amor, fazer muita coisa com a fruta. E também a casca serve pra desinflamar garganta quando tá inflamada e o banho também serve pra caso de amor e dinheiro.

- (sic)

-(sic)

- (Mãe Lia) Aqui é o Alecrim, da horta, Alecrim quando a pessoa tá passando muito mal assim fadigada é só por na água e tomar, e fazer o banho também, defumação também. Aqui é o Alevante, também muito boa essa planta, às vezes a pessoa muito baixo astral e toma o banho de Alevante que o nome já indica alevanta (risos).

-(sic)

- (Keila C.) Mãe Lia todas essas ervas a senhora tem na horta?

- (Mãe Lia) Eu tenho um “muncado”! A menina trouxe também da casa dela.

(Keila C.) E aí, as pessoas quando vêm procurar a senhora, já ganham a planta para utilizar?

- (Mãe Lia) É Exatamente! Aí de acordo com o orixá “cê” já tem o banho pra pessoa tomar.

- (Keila C.) Ou então o chá?

- (Mãe Lia) Ou o chá!

- (Keila C.) Isso! No caso aí a senhora mesmo indica?

- (Mãe Lia) Indico o chá pra tomar, outra hora eles vem pra consultar. Pergunta os pretos velhos e eles indica o banho pra pessoa tomar, o chá.

- (Keila C.) Aí a senhora mesmo fornece, às vezes, as ervas?

- (Mãe Lia) Às vezes ele mesmo leva “panha” aí e faz.

- (Keila C.) E é recorrente, toda semana vem gente benzer?

- (Mãe Lia) Quase todo dia tem gente pra benzer, pra olhar as coisas.

- (Keila C.) É? E essas pessoas que vem benzer aqui elas falam para senhora que procurararam médico, ou não?

- (Mãe Lia) Ou as vezes já foi, mas não consegue “né”? Resolver o problema. Outra vez até os médicos mesmo manda pra cá.

- (Keila C.) Ahh, os médicos mandam para cá?

- (Mãe Lia) Estes dia a dona aí ruim, eu falei pra ela procurar o médico ela falou assim: ahh, Dona Lia, to vindo de lá! Ele mesmo mandou eu vim pra cá. É porque o caso não é de médico “né”? Igual quando a gente não tem condição de resolver, “cê” manda pro médico resolver.

- (Keila C.) E a senhora faz isso quando?

- (Mãe Lia) É “uai”! Se a gente vê que o caso não espiritual, manda procurar médico. Pouco tempo mesmo chegou um moço da padaria, a “fia” dele trabalhava aí, menina nova, noiva e tudo. Pra “mim” olhar, eu olhei pra ele e disse que sua menina tem nada, mas ela tá quase morrendo, não “ce” procura o médico, levou a menina, internou o colesterol “tava” oitocentos, entrou em coma e morreu “uê”. Então vêm muitos esses casos que “cê” tem que olhar primeiro “né”? (sic.) Fazer se caso não é pra mim “né”? Eu não vou fazer, por exemplo, um sacudimento! Eu vou fazer, ele “num” vai resolver. Então o médico é a mesma coisa, ele não é bobo, ele sabe que já tem uma coisa aí por de trás (risos).

- (Keila C.) Mas quando não é questão espiritual, igual a senhora tem um monte de ervas aqui, que às vezes serve pra um calmante para criança, para dor no estômago, [Mãe Lia: Meus “produto” “né”?] as pessoas vem aqui e a senhora faz o quê?

- (Mãe Lia) Manda tomar, manda dá o banho e tomar o chá. Que “quas” todos aqui quase todos serve pra chá, igual a espada de São Jorge Comigo Ninguém Pode, então a maior parte aqui dá.

- (Keila C.) Mãe Lia, e à senhora tem alguém para quem possa passar esses ensinamentos?

- (Mãe Lia) Não, só quando a pessoa procura mesmo, aí a gente passa. (sic.) Aqui quase todo mundo conhece de folhas “né”? De erva “né”// esses trem! Muita gente conhece!

- (sic)

- (Keila C.) A senhora acha que as pessoas usam menos?

- (Mãe Lia) Ah eu acho que usam mais, o povo aqui é fã de um chá. [-Risos] Esses dias mesmo que eu “tava” com uma dor na perna, o que chegou de “fóia” aqui pra “mim” fazer chá e banhar minhas pernas, às vezes eu até faço pra não fazer desfeita. (sic) Detesto remédio! [(...)-De nenhuma espécie? Nem o natural que é o chá e nem (...)] (sic). Oh eu prefiro que me dá injeção, porque ali eu sinto a dor de uma vez só, num “guento” tomar esses trem não, nunca gostei de remédio desde de pequeno.

- (Keila C.) E a senhora mora aqui, nesses trinta anos ...

- (Mãe Lia) Moro aqui nessa casa, uns trinta “ano”, já fez em fevereiro.

- (Keila C.) Então a senhora é muito conhecida aqui?

- (Mãe Lia) Muita gente não sabe que tem o candomblé, aqui. Tinha propaganda na rádio aí eu tirei.

- (Keila C.) Porque a senhora tirou?

- (Mãe Lia) Ahh, “num” gosto de aparecer não! (...) Hoje mesmo, dia da sessão, vem muita gente. “Costuma” ter umas oitenta pessoas nesses bancos.

- (Keila C.) Oitenta?

- (Mãe Lia) É tanto que quarta passada “num” deu pra tocar, (...) tinha muita gente, e eu tinha que servir uma tal de uma farofa aí pra baiano. (...) Na quaresma “to” querendo tocar não, to querendo deixar pra estudar com os médios, fazer um ensaio melhor com eles. Muita coisa que tá precisando pôr no lugar!

- (Keila C.) Nesses estudos que vocês fazem utilizam orientação?

- (Mãe Lia) (...) Entra muito médium novo e eles não sabem, aí fica tudo perdido. Aí, então a gente faz o ensino, que é pra eles aprender, porque assim na sessão fica difícil. É muito barulho, muita gente. Muitas vezes a pessoa nem escuta direito o que “ta” cantando. Então tem que ensinar em particular pra eles. Quando eles “vem” fica sabendo por que os “pé” de dança é difícil.

- (Keila C.) Muita criança vem aqui?

- (Mãe Lia) Vem! Ahh, aqui vem criança até recém-nascido! Vem sempre aí na sessão, é quarta passada tinha criancinha ai de seis meses. (...)

- (Keila C.) Fora da sessão as crianças vem para benzer?

- (Mãe Lia) Vem! Durante o dia, vem, por isso que a minha Arruda não nasce (risos). (...) Porque quando começa a brotar chega aquela “reca” de menino pra benzer, eu vou lá e “panho”!

- (Keila C.) E Arruda benze o que?

- (Mãe Lia) Arruda tira quebrando, mau olhado (...). Mas é engraçado “de vera”, “cê” olha aqui não tem Arruda, não tem Guiné, porque não tem condição deles pegar não, quando começa a pegar vai lá e “panha”.

- (Ramon S.) E o Arruda além do quebrando assim, tem alguma uma dor específica?

- (Mãe Lia) Exatamente, muita gente toma chá de Arruda –deve ser horrível! Nossa Senhora!

[-Mas pra alguma dor?] É pra gripe “né”? Diz que é muito bom! “Cê” faz o chá de Arruda, “ponhe” um “pouquim” de sal. (sic) Diz que é muito bom pra tirar resfriado do corpo!

- (Keila C.) Ahh ok então dona Lia, muito obrigado à senhora!

(Mãe Lia) Aí com essas “fóia” aqui, “cê” junta todas essas folhas e faz o banho de abô que chama. [-Ah com todas juntas?] Com todas elas que tá aqui, aí tem a reza do banho. Durante o tempo que “ce” ta amassando - porque não cozinha não “cê” vai esfregando ela “né”? Aí “cê” vai rezando a reza do banho.

- (Keila C.) É porque tem essa questão, quando a senhora vai benzer, além das folhas tem a reza?

- (Mãe Lia) Tem as reza! Tem a reza de quebrando, espinhela caída, cortar cobreiro.

- (Keila C.) Ahh cada uma tem uma reza específica?

- (Mãe Lia) Tem a reza!

- (Ramon S.) Cobreiro é tipo aquela alergia “não é”?!

- (Mãe Lia) É (sic) aí eles vão coçando e pegando em outro lugar. Aí “cê” tem a reza pra cortar aquilo ali. Isso aí é o que mais dá aqui, corta cobreiro. Eu não entendo como é que esse povo pega tanto cobreiro! (sic)

- (Ramon S.) E tem algum chá, além do banho, para tirar esse cobreiro?

- (Mãe Lia) (sic) Faz o banho com o Pinhão Roxo - “fóia” do Pinhão Roxo.

- (Keila C.) Essas rezas à senhora aprendeu como?

- (Mãe Lia) (sic) “Cê” tem sete “ano” pra você aprender, muita coisa! Eu tenho seis filhos raspado aqui. Uns aprende! Essa que entrou aqui tem trinta “ano” que tá no terreiro. O outro tem trinta e dois. “né”? (sic)

- (Keila C.) Ah tá, mas aí todos os que estão juntos com a senhora começam a aprender aqui (sic)?

- (Mãe Lia) Exatamente! (sic)Vem assistência, só os médium pra explicar pra eles, ensinar pra eles. Eles levar escrito, porque senão eles não grava e tem que levar escrito.

- (Keila C.) E para a senhora tem uma alguma preparação especial, por exemplo vem alguém aqui e precisa cortar um cobreiro... [-A gente corta, “uai”!] Então, mas aí, além da oração a senhora precisa ter um momento específico, ou não, qualquer hora?

- (Mãe Lia) Qualquer hora que chegar a gente faz! (Risos) Às vezes eu “tô” até fazendo almoço e tá chegando gente pra corta cobreiro (sic).

- (Keila C.) E a senhora pode falar qual é a oração ou não?

(Mãe Lia) Pode uai! Pega a faca e faz a oração: O que que eu corto; cobreiro verde, sapo, sapão, aranha, aranhão, lagarto, lagartão e todos os bichos de (inaudível). Para que não se renda mais eu tiro o rabo, a cabeça e os “lado”. E vai fazendo a cruz ali com a faca e “cê” tá cortando! Outros corta com tesoura, qualquer coisa que corta, “né”? Então pra cada coisa tem uma oração. Agora pra fazer o banho à oração é em “africano”. Quando “cê” tá amassando o banho “cê” tá rezando em africano.

- (Keila C.) Então é uma linguagem que às vezes a pessoa não entende?

- (Mãe Lia) É que as vezes a pessoa não entende!

- (Keila C.) Mais aí (...) essa linguagem a senhora aprende?

- (Mãe Lia) (sic) Então “cê” reza, mas a pessoa não entende o que “cê” tá falando, “né”?

- (Keila C.) Mas a senhora entende?

- (Mãe Lia) Eu entendo, mas a pessoa não entende. (sic) Por exemplo, eu “vo” fazer um sacudimento eu “to” rezando tudo em africano e a pessoa não sabe (sic). Agora quem entende sabe o que eu “to” falando.

- (Keila C.) E o quebranto como é senhora benze?

- (Mãe Lia) O quebranto também tem diversas “oração” pra quebranto! Tem umas grande demais então eu não gasto tempo com essas muito grandes não. O quebranto tem as orações menor e tem maior. [- Uma menor?] É umas menorzinha: com dois eu posso, com três eu tiro em nome do Pai, Filho e Espírito Santo e vai passando o raminho “aí”. Tem muita oração boa, outros chegam desesperados pra benzer::, “cê” passa o terço “aí” já reza. (+) Tem muitas coisas pequenas não precisa ser aquelas grandes pra tomar tempo não. A espinhela caída dá muito isso aqui, “aí” “cê” benze a pessoa//Tem dois modo de benzer espinhela caída, são palavrinhas pequenas, tem uma que fala: barquinho de Noel navega pelo mar, navega pra essa espinha chegar no lugar e vai fazendo a cruz “aí” a pessoa levanta três vezes e já costuma sair bom ou então é superstição, “né”?

- (Keila C.) Mas a espinhela caída é só para criança ou não?

- (Mãe Lia) Não pra adulto, a maior parte é pra adulto! Agora a espinhela caída em criança é o vento virado, “aí” bate no pezinho, põe de cabeça pra baixo. Agora pra adulto “cê” já manda levantar na porta. É um ossinho que a gente tem aqui oh, caí e desloca, conforme “cê” pega peso. [-Como que é? Qual que é o sintoma? O que a pessoa sente?] A pessoa sente dor no estômago, na costa, dá um mal-estar. É ruim mesmo eu já tive isso! Aí levanta na porta assim ela chega no lugar, mas conforme o peso que “cê” pegar ela torna cair. (sic)

- (Keila C.) Aí é para as pessoas que a senhora dá por escrito essas as orações?

- (Mãe Lia) “Uai” quem quiser copiar, copia, “né”? Por “cê” vê eu mexo com isso esses ano todo. Eu tenho uma filha que tem três “neto”, se eu morrer ela não vai saber benzer um menino. Não procura saber “uê”. [Mas ela traz os filho dela pra senhora benzer?] Trás, só que eles têm que pensar que eu não vou ficar aqui a vida toda, “né”? Não era hora deles aprender?

- (Ramon S.) A senhora acha que a procura pra aprender a benzer é grande ou pequena, não só por parte da família da senhora, mas por outras pessoas?

- (Mãe Lia) Ah é grande! (sic) E acho que deve aprender, por exemplo, (sic) ela precisa de uma “benzeção” ela vai procurar alguém que vai benzer pra ela. Aí o que os “zoto” vai falar com ela : “uai” mas sua mãe era mãe de santo a vida toda e “ocê” não aprende nada? “Uai” não aprendeu porque não quis! Agora esse meu neto, que eu moro com ele copiou muitas orações, que ele tem três menino também, na hora do aperto ele já vai se livrar (...). (sic) A outra não quer aprender quando precisa vem (...). Ela tem que pensar que eu não vou tá aqui a vida toda, um dia ela mesma pode precisar e pode pagar um bom dinheiro se precisar (...).

- (Keila C.) E a senhora cobra?

- (Mãe Lia) Pra benzer não, não! Só cobro o sacudimento que gasta muita coisa, não cobro sessão, não cobro pra benzer. Muitas vezes leva banho e “num” paga, as vezes a pessoa nem tem dinheiro, “né”? [-É? As pessoas que vem procurar a senhora geralmente?] Geralmente nem tem! Agora o sacudimento não tem jeito do “cê” não cobrar porque gasta muito trem, não é só de um tipo, “né”? Mas o resto tudo é graça. [-E a senhora gosta de fazer?] “Uai” fazer o que, “né”? Não tem jeito! [-A senhora tá com uma missão?] É uma missão, cada um com sua missão. Só pro “cê” vê fui crente batizado, cada um tem uma missão (...)

- (Keila C.) A senhora me falou sobre que benze e passa o terço. A senhora usa o terço para benzer?

- (Mãe Lia) Tem gente que usa, muitos pretos velhos também tudo usa terço pra benzer as pessoas. Agora eu gosto de benzer mais é com folha, com o ramo. Que ali não pega nada “nocê” tudo o que tiver vai ficar no ramo ali, “né”? Agora a maioria dos preto velho aqui tudo usa o terço!

- (Keila C.) Ah tá, porque é como se o mal passasse para as plantas?

- (Mãe Lia) Passasse pras pranta, tem umas que já sai murcha! (...) (sic) Agora isso é verdade tem gente que benze e as folhas ficam “muchinhas”, outra hora a pessoa vai embora bom e “ocê” fica ruim dentro de casa. (...) (sic) Cemitério mesmo, eu odeio ir no cemitério(...)(sic). Tem muita gente que não liga, leva criança, aquilo é errado! (sic) Tem que preparar, tem que descarregar antes de chegar em casa, (sic) porque vem mesmo acompanhando,(sic) ainda mais se a pessoa que foi lá tem um “grauzinho” de mediunidade. Por isso que a casa pega carrego, igual a gente! (...) (sic) Dia de finado mesmo é bom deixar uma bacia com água atrás da porta, (...) (sic) “num” custa bater umas folhas na parede, fazer uma defumação, isso tudo ajuda, (...) ficar um ambiente leve. E vai limpando o ambiente, igual limpa o corpo da pessoa (...) (sic). E no fim os prejudicado são eles mesmo, não dorme direito (...) e não limpa o ambiente. (...) (sic).

- (Keila C.) Muito obrigado, Mãe Lia!

- (Mãe Lia) Se precisar “tamos” as ordens

Referências bibliográficas

SCHWARZSTEIN, Dora. História oral, memória e histórias traumáticas. História oral, v. 4, 2001.

JANOTTI, Maria de Lourdes Monaco. A incorporação do testemunho oral na escrita historiográfica: empecilhos e debates. História Oral, v. 13, n. 1, 2010.

Autor notes

i Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Graduação em História pela Universidade Federal de Viçosa (UFV) e mestrado em História pela Universidade Federal de Juíz de Fora (UFJF). Professora Adjunta da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Professora do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP. Professora Adjunta de História do Brasil Republicano e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). E-mail: keilaacarvalho@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7607-4557.
ii Doutor e mestre em História das Ciências e da Saúde pela FIOCRUZ. Graduado em História pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM). Professor Substituto do curso de História da UFVJM. E-mail: ramon.feliphe@live.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0001-7566-6323.

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