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ASPECTOS IDEOLÓGICOS E CONJUNTURAIS DA POLÍTICA EXTERNA DE LUIZ INÁCIO DA SILVA (2003-2010): RUPTURAS E CONTINUIDADES
IDEOLOGICAL AND CONJUNCTURAL ASPECTS OF LUIZ INÁCIO DA SILVA'S FOREIGN POLICY (2003-2010): RUPTURES AND CONTINUITIES
ASPECTOS IDEOLÓGICOS Y COYUNTURALES DE LA POLÍTICA EXTERIOR DE LUIZ INÁCIO DA SILVA (2003-2010): RUPTURAS Y CONTINUIDADES
Caminhos da História, vol. 28, núm. 2, pp. 243-262, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Artigos Livres

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 28, núm. 2, 2023

Recepção: 08 Novembro 2022

Aprovação: 23 Dezembro 2022


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumen: El objetivo de este trabajo es analizar la política exterior de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) a través del concepto de enfoque paradigmático. Entendemos que la política exterior brasileña, a lo largo de su historia republicana, se ha mantenido constante en relación a sus principales objetivos: el desarrollo del país y la búsqueda de la autonomía política en el escenario internacional. Sin embargo, las estrategias implementadas para lograr estos objetivos variaron de acuerdo con la ideología de los gobiernos y la coyuntura internacional que, no pocas veces, provocó cambios de paradigma. En el caso de la política exterior de Lula da Silva, consideramos que algunos aspectos ideológicos de su gobierno influyeron en su planificación y toma de decisiones finales, de tal forma que ayudaron a superar los obstáculos coyunturales que se presentaron en el período. Para sustentar nuestro análisis, utilizamos como fuente los discursos presidenciales y ministeriales pronunciados durante el gobierno de Lula y los gobiernos que lo precedieron, especialmente el de Fernando Henrique Cardoso.

Palabras clave: Política Exterior Brasileña, Lula da Silva, Enfoque Paradigmático, Aspectos Ideológicos, Coyuntura Internacional.

Resumo: A proposta deste trabalho é analisar a política externa de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) por meio do conceito de enfoque paradigmático. Compreendemos que a política externa brasileira, ao longo de sua história republicana, manteve-se constante em relação a seus principais objetivos: o desenvolvimento do país e a busca da autonomia política no cenário internacional. Todavia, as estratégias implementadas para alcançar tais objetivos variaram de acordo com a ideologia dos governos e com a conjuntura internacional que, não raro, provocaram mudanças de paradigma. No caso da política externa de Lula da Silva, consideramos que alguns aspectos ideológicos de seu governo influenciaram seu planejamento e a tomada final de decisões, de tal forma que auxiliaram a superar obstáculos conjunturais que se apresentaram no período. Para amparar nossa análise, utilizamos como fonte os discursos presidenciais e ministeriais proferidos ao longo do governo Lula e das administrações que o precederam, em especial a de Fernando Henrique Cardoso.

Palavras-chave: Política Externa Brasileira, Lula da Silva, Enfoque Paradigmático, Aspectos Ideológicos, Conjuntura Internacional.

Abstract: The purpose of this paper is to analyze Luiz Inácio Lula da Silva's foreign policy (2003-2010) through the concept of paradigmatic approach. We understand that Brazilian foreign policy, throughout its republican history, has remained constant concerning its primary goals: the development of the country and the search for political autonomy on the international scene. However, the strategies implemented to achieve these objectives varied according to the ideology of governments and the international situation, which often provoked paradigm changes. In the case of Lula da Silva's foreign policy, we consider that some ideological aspects of his government influenced his planning and final decision-making, in such a way that they helped to overcome conjunctural obstacles actives in the period. To support our analysis, we used as sources the presidential and ministerial speeches delivered during Lula's government and the administrations that preceded it, especially that of Fernando Henrique Cardoso.

Keywords: Brazilian Foreign Policy, Lula da Silva, Paradigmatic Approach, Ideological Aspects, International Conjuncture.

Introdução

A proposta deste artigo é analisar a influência exercida pela conjuntura internacional encontrada pela administração Lula da Silva (2003-2010) e como seu governo a interpretou para a formulação de sua política externa. Ademais, procuraremos compreender o grau de distanciamento desta política com relação à tradição diplomática e de relações internacionais brasileiras, buscando compreender o nível das rupturas e continuidades em relação às políticas externas de governos anteriores, em especial o de Fernando Henrique Cardoso.

É nossa intenção responder às seguintes perguntas: (1) como a mudança de paradigma, na era Lula, influenciou nas tomadas de decisão e na percepção de mundo dos tomadores de decisão? (2) sabendo-se que os paradigmas nas ciências humanas coexistem e não exigem o encaixe de todas as variáveis para elaboração de uma abordagem apropriada (CERVO, 2003, p. 7-8), como podemos compreender as rupturas e as continuidades da aplicação da política externa e das relações internacionais brasileiras durante o governo Lula?

Como aparato metodológico, nos apoiamos na proposta de enfoque paradigmático de Amado Cervo (2003) e de sistema internacional hierárquico, conforme explicitado por Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2016). Para esses autores, embora as teorias “clássicas” das Relações Internacionais auxiliem na interpretação de determinados elementos das relações internacionais de um país, elas são demasiadamente voltadas, como não poderia deixar de ser, às realidades dos países de origem de quem as formulou, em sua maioria, estadunidenses. Daí a necessidade de elaborar teorias e conceitos mais epistemologicamente adequados às realidades latino americana e brasileira.

Como fontes de nossa análise, foram consultados discursos, documentos e publicações em que os tomadores de decisão, especialmente os presidentes e ministros das relações exteriores, expõem os programas e estratégias de política externa. Ao longo do texto, foram diretamente citados os discursos de Fernando Henrique Cardoso na abertura da III Reunião de Cúpula das Américas, realizado em Québec, Canadá, em 2001, e os discursos de Luiz Inácio Lula da Silva por ocasião do colóquio Brasil: Ator Global, realizado em 2005 em Paris, e o da Cúpula da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura – FAO reunida em Roma, em 2008. Conjuntamente, realizamos um apanhado bibliográfico a respeito do tema estudado, que foi crítica e detidamente analisado.

Enfoque paradigmático e o sistema internacional hierárquico

A história da política externa brasileira após o encerramento da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) pode ser compreendida como um processo contínuo de incentivo ao desenvolvimento nacional e de busca pela autonomia do país no cenário internacional. Ao longo deste período, contudo, aconteceram importantes alterações na estratégia empregada para alcançar os objetivos, acarretando, por conseguinte, mudanças de paradigma.

De acordo com Amado Cervo (2003), o paradigma do Estado desenvolvimentista foi predominante na política externa brasileira entre 1930 e 1989, quando foi lentamente ocupando um papel secundário diante do avanço do neoliberalismo durante a década de 1990. Ao longo deste período, o país adotou modelos alternativos de desenvolvimento, aspecto que ganhou força com a criação, pela Organização das Nações Unidas – ONU, da Comissão Econômica para a América Latina e Caribe - CEPAL. Mesmo durante o governo Fernando Henrique Cardoso, quando o novo paradigma neoliberal assume o seu momento mais forte no Brasil, o desenvolvimentismo permanece atuante e, de certa forma, ainda conceitualmente estoico no que diz respeito à ideia de desenvolvimento que faziam os principais tomadores de decisão da política brasileira. De fato, possuíam uma acepção conceitual do termo estritamente vinculado à expansão industrial e ao crescimento econômico herdada das décadas anteriores.

A busca e/ou manutenção de certa autonomia política internacional do Brasil é um eixo central da formulação e da implementação da política externa nacional. Essa centralidade remonta ao período da Independência, quando se procurou, primeiramente, obter o reconhecimento da soberania brasileira perante a antiga metrópole, Portugal (CERVO; BUENO, 2010), mas que também percorreu todo o período republicano, variando as “escolas diplomáticas”, as leituras do sistema internacional e as estratégias para alcançá-la (VIGEVANI; CEPALUNI, 2010).

Essa variedade de abordagens em busca do desenvolvimento e da autonomia política sofre influência em dois níveis: o nível doméstico, campo de ação dos grupos de pressão econômicos e políticos, e o nível externo, no qual a conjuntura internacional pesava nas tomadas de decisão e na proposição da política externa a ser implementada. Robert Putnam (1993) entende que a construção da política internacional dos Estados é influenciada pela opinião pública e pela sociedade de maneira geral. Contudo, até que ponto essa influência pode ser sentida? Ela pode ser sentida com a mesma intensidade, independente do país e do momento histórico?

A resposta a essas perguntas é: certamente não. Existem duas razões principais para essa negativa. Em primeiro lugar, ao longo da história a importância da opinião pública e o peso da vontade da sociedade nas tomadas de decisão variou. Somente a partir do século XIX, principalmente, é que esses elementos passam a ser vistos como fatores que não devem ser ignorados quanto à formulação e implementação de uma política externa. Um rei absoluto, como Luís XIV[1], não tomava suas decisões sozinho, mas seu círculo de influência política era extremamente restrito. Em segundo lugar, o tipo de governo é profundamente relevante. Um regime democrático tende a levar a vontade de sua população mais em conta do que uma autocracia, por exemplo.

Cumpre salientar que a leitura que os líderes de governo fazem da conjuntura internacional é essencial para compreender a formulação de uma política externa. Gideon Rose (1998) explica que essa leitura, ou interpretação, do contexto internacional, funciona como um filtro quando atinge a sociedade, exercendo, assim, enorme peso na formação da opinião pública. Nesse sentido, dado o privilégio do acesso à informação dos homens de Estado, a interpretação do governante e do(s) tomador(es) de decisão tende a ser a leitura predominante dentro de determinado Estado em um determinado momento. Por sua vez, Jeffrey Taliaferro (2001) infere que a percepção da liderança política pode gerar uma modificação da estratégia da política externa a ser implementada, o que pode ser visto como uma mudança de paradigma no que tange a atuação internacional deste Estado. Numa palavra, a leitura realizada pelo chefe de Estado (e por seu estafe) é que fornece as diretrizes para formulação da política externa e que define as estratégias a serem utilizadas para alcançar seus objetivos.

Amado Cervo (2003) compreende o desenvolvimento da Política Externa Brasileira (PEB) por meio de um enfoque paradigmático. Para Cervo (2003, p. 6), “a análise paradigmática (...) revelou-se um método criador de conceitos instrumentais, cujo conjunto conduz à teoria”. Desta forma, um estudo a respeito da PEB por meio do enfoque paradigmático desenvolve uma teoria que se aplicaria melhor à realidade brasileira.

O autor ressalta que, no campo das ciências humanas, o paradigma “restringe-se à função de dar inteligibilidade ao objeto, iluminá-lo através dos conceitos, dar compreensão orgânica ao complexo da vida humana” (CERVO, 2003, p. 7). Diferentemente de outras áreas do conhecimento, em que um novo paradigma substitui um antigo, nas ciências humanas um paradigma não consegue encaixar todas as variáveis explanatórias, sejam elas dependentes, intervenientes ou independentes, podendo, com frequência, coexistir com outro paradigma que auxilie na explicação de determinado fato ou acontecimento histórico. Nesse sentido, a construção de uma análise paradigmática utiliza a história como campo de observação.

Ainda de acordo com Cervo (2003), é necessário compreender determinados pressupostos que compõem um enfoque paradigmático. Em primeiro lugar, um paradigma de política externa é dotado de uma cosmovisão construída por meio de uma identidade nacional vinculada a um conjunto de valores socioculturais. Uma cosmovisão que interpreta, influenciada por esses valores, os outros povos, nações e o próprio sistema internacional. Em segundo lugar, o paradigma muda de acordo com a percepção dos tomadores de decisão a respeito dos “interesses nacionais"[2], que sofrem influências ideológicas, de pressões domésticas e da conjuntura internacional. Quer dizer, uma mudança de paradigma é provável caso a leitura do sistema internacional e dos “interesses nacionais” do tomador de decisão seja diferente da percepção que o governo anterior tinha desses elementos. Finalmente, o paradigma comporta formulações políticas ao permitir a permanência de certas tendências anteriores e permitir rupturas, sejam elas estruturais, de ajustes ou de mudanças de programa.

Assim sendo, a história da política externa brasileira conviveu com certos paradigmas predominantes em determinados períodos que, todavia, coexistiram com outros paradigmas complementares ou transicionais. Ao longo do período republicano, predominaram o desenvolvimentismo e a busca pela autonomia. Contudo, mudaram-se a compreensão desses conceitos e as estratégias para alcançar esses objetivos, o que, como vimos, acarretam mudanças de paradigma.

Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2016) concordam com Amado Cervo (2003) no que diz respeito à necessidade de construção de uma teoria de política externa adequada à realidade brasileira e latino-americana. Desta forma, os autores traçam duas concepções conceituais a respeito do sistema internacional e do termo autonomia.

No que diz respeito à ideia de sistema internacional, Vigevani e Cepaluni (2016) recusam a teoria de sistema anárquico promovida pela escola realista, na qual os Estados seriam soberanos e iguais entre eles. Na América Latina, desde a década de 1970, pensa-se o sistema internacional como uma ordem hierárquica. Nela, os países pobres e em desenvolvimento, embora tenham sua independência e soberania reconhecidas, são constantemente constrangidas política, econômica e mesmo militarmente pelas grandes potências.

Essa noção influencia diretamente a concepção de autonomia proposta por Vigevani e Cepaluni (2016). Na política externa, autonomia estaria vinculada à ideia de não-constrangimento externo. Isso quer dizer que

a noção de autonomia é caracterizada pela capacidade do Estado implementar decisões baseadas em seus próprios objetivos, sem interferência ou restrição exterior, por meio de sua habilidade em controlar processos ou eventos produzidos além de suas fronteiras (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016, p. 17).

Desta forma, põe-se por terra a noção proposta pelo mainstream das Relações Internacionais de que autonomia seria o mero reconhecimento jurídico de soberania de um determinado Estado. O conceito de autonomia traz consigo o reconhecimento das assimetrias do sistema internacional e da forte pressão – não raro por meio de ações intervencionistas – exercida pelos países desenvolvidos sobre a periferia mundial, incluindo os países latino-americanos.

Antecedentes: a década de 1990

Como a proposta desta pesquisa é analisar as rupturas e continuidades promovidas pela política externa do governo Lula da Silva, é de fundamental importância levantar alguns dados históricos da política externa brasileira, especialmente no que diz respeito ao contexto imediatamente anterior à sua posse, cuja influência na formulação de sua política se fez sentir sobremaneira dada a proximidade cronológica.

Entre 1930 e 1989, houve a prevalência do Estado desenvolvimentista (CERVO, 2003). Ao longo deste período, apesar de alguns hiatos de alinhamento aos EUA durante os governos Eurico Dutra (1946-1950) e Castello Branco (1864-1967), procurou-se estabelecer uma política externa autônoma por meio do distanciamento das grandes potências da época e através do estabelecimento do programa de substituição de importações, estratégia conhecida pela historiografia especializada como “autonomia pela distância”. Tratava-se de um posicionamento que contestava determinados princípios e normas oriundos de organismos internacionais – tais como o GATT, o FMI, dentre outros – contrapondo-se às agendas liberais das grandes potências e visando à proteção do mercado interno, de tal forma que a soberania nacional e o desenvolvimento econômico doméstico ficassem resguardados (VIGEVANI; CEPALUNI, 2010; 2016).

Nesse contexto, os debates a respeito das tipologias desenvolvimentistas, e sobre qual delas seria ideal para o Brasil, ganharam destaque especialmente na década de 1950 e tiveram participação decisiva no que tange à concepção do Plano de Metas do governo Juscelino Kubitschek. Inicialmente, a formulação deste plano econômico levava em conta o diagnóstico do economista Roberto Campos, segundo o qual haveria pontos de estrangulamento no âmbito da economia brasileira que deveriam receber o foco dos investimentos. Todavia, prevaleceria a visão da CEPAL, muito influenciada pela proposta de Celso Furtado, então diretor do órgão onusiano. De acordo com esta visão, aliados aos pontos de estrangulamento apontados por Roberto Campos, foram identificados polos de crescimento que também deveriam ser alvo prioritário dos investimentos. Para Furtado, era necessária, a princípio, a adoção de uma estratégia de substituição de importações para, em seguida, incentivar a produção de bens de consumo e intermediários. Somente assim, numa etapa posterior, seria alcançada a produção de bens de capital (FICO, 2019).

As décadas seguintes também foram marcadas pela prevalência do caráter desenvolvimentista dos planos econômicos: das reformas de base do governo João Goulart, que visavam à reestruturação social e econômica, aos planos econômicos das décadas de 1970 e 1980, já preocupados em conter a onda inflacionária ao mesmo tempo em que pensavam alternativas para o crescimento econômico.

Já a década de 1990 foi caracterizada pela ascensão dos valores neoliberais. Na América Latina, em razão da crise da dívida da década anterior, diversos países sul-americanos se viram forçados a recorrer ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao Banco Mundial, que lhes que prometiam auxílios financeiros em troca de reformulações econômicas com base nas propostas do Consenso de Washington[3]. Tais reformulações envolviam a “desregulamentação da economia, respeito à disciplina fiscal, liberalização comercial, flexibilização das regras trabalhistas, privatizações, etc. (DORATIOTO; VIDIGAL, 2014, p. 116).

Desta forma, houve necessidade de adaptação da estratégia da política externa diante das mudanças conjunturais internacionais, com a proeminência dos valores neoliberais, e perante a nova realidade interna advinda da redemocratização. O início da década de 1990, nos governos Fernando Collor de Mello e Itamar Franco, foi uma fase de transição de paradigmas, na qual coexistiram a “autonomia pela distância” e algumas características da “autonomia pela participação”, como maior abertura do mercado interno e a defesa do livre comércio internacional (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016)

A “autonomia pela participação” seria mais bem definida e enfatizada durante o governo Fernando Henrique Cardoso. Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2016, p. 22) definem essa estratégia como “a adesão aos regimes internacionais, inclusive de cunho liberal (como a OMC) sem perder a capacidade de gestão política interna”. A ideia por trás desta estratégia era trazer mais legitimidade às ações e pretensões brasileiras e exercer maior influência sobre a formulação das regras que regem o sistema internacional, de tal forma que os objetivos nacionais fossem mais fácil e plenamente alcançados.

De acordo com André Luiz Reis da Silva (2012), a administração de Fernando Henrique Cardoso foi marcada pela rápida ascensão e queda da matriz neoliberal na política externa brasileira. No Brasil, a adoção da matriz neoliberal não foi inicialmente hegemônica, sofrendo grande resistência por parte dos movimentos sociais recém fortalecidos pela redemocratização do país e até mesmo por parte de uma burguesia nacional acostumada a ser economicamente protegida pelo Estado. Todavia, a forte crise instalada desde a década de 1980 e a dificuldade de se encontrar uma solução para ela fizeram com que, paulatinamente, houvesse certo consenso em torno da necessidade de uma reforma estruturante da economia e do Estado.

Nesse sentido, a política externa, sob Fernando Henrique Cardoso, procurou se aproximar dos valores internacionais então vigentes, ditos “universalistas”, de forma a se adequar à conjuntura internacional. A agenda internacional do Brasil passa a contemplar os assim chamados “novos temas”, tais como direitos humanos, meio ambiente, populações indígenas, minorias e narcotráfico. O objetivo era se adaptar à realidade internacional de tal forma que o país perdesse o estigma negativo herdado da ditadura militar[4] e fosse visto com melhores olhos pela opinião pública, com vistas à uma maior participação e integração nas agendas internacionais. A ideia era mostrar que o Brasil pretendia se inserir ativamente na agenda internacional, posicionando-se a respeito dos supramencionados “novos temas” de modo a influenciar os rumos das tomadas de decisão em consonância com os interesses nacionais.

Nas palavras de Luiz Felipe Lampreia, Ministro das Relações Exteriores entre janeiro de 1995 e janeiro de 2001, a política externa de Fernando Henrique Cardoso seguiu “uma linha que eu chamaria de ‘convergência crítica’ em relação ao conjunto dos valores, compromissos e práticas que hoje orientam a vida internacional” (LAMPREIA in VIGEVANI, OLIVEIRA; CINTRA, 2003, p. 36).

A “convergência crítica”, à qual Lampreia se refere em seu discurso, se trata de um posicionamento crítico a respeito das distorções e assimetrias observadas pelo governo. Numa palavra, a gestão Fernando Henrique Cardoso, mesmo procurando se adequar à conjuntura neoliberal internacional, concebe o sistema internacional como assimétrico e hierárquico. Como forma de se proteger dessas distorções, ao mesmo tempo em que procura maior credibilidade no ambiente internacional para intensificar sua participação nos meios diplomáticos e plataformas multilaterais, a política externa do governo FHC procura defender maior normatização das relações internacionais.

Em discurso proferido na Terceira Cúpula da Alca, em Québec, em 2001, Fernando Henrique Cardoso deixa clara sua percepção a respeito de tais distorções, especialmente na região das Américas: “nosso objetivo deve ser o de uma Comunidade das Américas. E ‘comunidade’ pressupõe consciência de um destino comum e, portanto, eliminação de assimetrias e garantia de oportunidades iguais para todos” (CARDOSO, 2001, p. 243).

Assim sendo, ao longo do período FHC prevaleceu o discurso multilateralista nas relações internacionais, especialmente quanto às questões econômicas, quando aderiu à OMC, na defesa da integração regional por meio do fortalecimento do Mercosul, e, em menor escala, nas relações bilaterais com países em desenvolvimento, quando se posicionou ao lado de Índia e África do Sul no caso da quebra de patentes de medicamentos no combate à AIDS.

As plataformas de negociações multilaterais, como a OMC, foram compreendidas como o melhor ambiente para atuação brasileira, tendo em vista a estratégia de “autonomia pela participação” que objetivava maior proatividade internacional de forma a exercer maior influência nas tomadas de decisão e na criação de regras de uma nova ordem internacional. Por outro lado, o fortalecimento do bloco regional era visto como importante ferramenta de projeção e influência internacional da política externa nacional. Assim, enquanto integrante do Mercosul, o Brasil adquiria maior poder de barganha com vistas à defesa de seus objetivos internacionais. Inclusive, por exemplo, no âmbito da negociação da ALCA, durante a qual o país adotou uma posição proteladora e, por vezes, obstrucionista (SILVA, 2012).

Alca e Mercosul, ademais, eram vistas diferentemente pelo governo FHC. Enquanto o Mercosul era tido como destino, dado o posicionamento histórico-geográfico do Brasil, a Alca era apenas uma opção ou oportunidade a ser criticamente avaliada.

Não há pensamento único que possa ditar os rumos das nações. O livre-comércio é um dos instrumentos. A eliminação progressiva dos obstáculos às trocas comerciais pode desempenhar um papel decisivo na criação de oportunidades para o crescimento econômico e para a superação das desigualdades. Assim concebemos no Brasil a possibilidade de uma Alca. Assim temos realizado, com êxito, a construção do Mercosul, que para o Brasil é uma prioridade absoluta, uma conquista que veio para ficar, e que não deixará de existir pela participação em esquemas de integração de maior abrangência geográfica (CARDOSO, 2001, p. 244).

Provavelmente, o mais importante a ser ressaltado com relação ao posicionamento do Brasil perante a Alca é que se trata de uma evidência da autonomia política externa brasileira. Nesse sentido, o Brasil, sob FHC, se posiciona como ator internacional relevante, que não deve ser desconsiderado e cuja participação exerce influência nas tomadas de decisão em âmbito internacional.

Todavia, os acontecimentos do 11 de setembro de 2001 provocariam um choque no sistema internacional. Os Estados Unidos passam a adotar uma postura unilateralista em suas relações, que já havia sido iniciada com o início do governo de George W. Bush, mas que se intensificou a partir dos atentados terroristas. Rapidamente, a política externa estadunidense perde seu viés multilateralista e passa a focar numa agenda pragmática de segurança nacional e de combate ao terror. Com a perda de interesse de seu principal parceiro – as relações com os Estados Unidos nunca perderam sua centralidade durante a administração de Fernando Henrique Cardoso –, a política externa brasileira, tradicionalmente multilateralista e historicamente pouco inclinada a conflitos externos e a questões de segurança, vai paulatinamente se modificando. De forma geral, há o que Charles Hermann (1990) denomina de choque externo, uma situação capaz de provocar mudanças significativas na política externa de um país.

Assim, “Fernando Henrique Cardoso começou a aumentar o tom da crítica à política externa de George W. Bush e a buscar outros parceiros mais afinados com a agenda do país” (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016). É neste momento que o Presidente procura diversificar um pouco o foco de sua política externa, passando a se relacionar mais estreitamente com países em desenvolvimento, especialmente Índia, Rússia, África do Sul e China. Este último país, aliás, já assume, em 2002, o posto de segundo maior parceiro econômico do Brasil (VIGEVANI; OLIVEIRA; CINTRA, 2003).

Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2016) já identificam, neste momento final de governo Fernando Henrique, elementos de uma nova estratégia que viria a ser implementada durante o governo Lula, somando-se à “autonomia pela participação” e ao tradicional desenvolvimentismo. Desta forma, ao longo da administração de FHC, coexistiram, em algum momento, dois ou mais paradigmas de política externa, o que Amado Cervo (2003, p. 19) chamou de “dança dos paradigmas”.

A política externa de Luiz Inácio Lula da Silva: “mudança dentro da continuidade”

Celso Lafer, que foi Ministro das Relações Exteriores dos governos Collor e FHC, cunhou a expressão “mudança dentro da continuidade” para caracterizar a política externa que prevaleceu no período em que Fernando Henrique Cardoso ocupou a Presidência da República. Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2010) argumentam que a expressão cunhada por Lafer pode ser aplicada, também, à política externa de Luiz Inácio Lula da Silva, já que

“não se afastou do princípio historicamente assentado para a diplomacia de que a política externa é um instrumento para o desenvolvimento econômico e para a consequente preservação e ampliação da autonomia do país. Há mudanças de ideias e mesmo de estratégias para lidar com os problemas e objetivos que estão colocados pela história, pela posição e pelo destino, mas não essencialmente diferentes dos existentes há muito para o Brasil” (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016, p. 322).

Isso quer dizer que a política externa desenvolvida ao longo do governo Lula bebeu em fontes diferentes da história brasileira. Para além da continuidade em certo sentido quanto à PEB de FHC, também são percebidas semelhanças com a Política Externa Independente, desenvolvida pela administração de João Goulart, e com o “pragmatismo responsável”, do governo Geisel, especialmente no que diz respeito à uma posição de autonomia em relação às grandes potências e quanto ao incremento das relações Sul-Sul (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016).

Todavia, o paradigma desenvolvimentista, ainda que presente na política externa de Luiz Inácio Lula da Silva, sofre uma ruptura conceitual e ideológica importante para a formulação das estratégias a serem adotadas. Anteriormente compreendido como mera expansão da indústria e de crescimento econômico, o desenvolvimentismo brasileiro também foi carregado, até o segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso[5], de elementos ideológicos liberais, ocidentalistas e de cultura da democracia (CERVO, 2003, p. 12-13). Durante o governo Lula, a diversificação das ações de sua política externa traz consigo a ideia de desenvolvimento para além do crescimento econômico e industrial: percebe o desenvolvimento social, o combate à fome e à pobreza como critérios essenciais de desenvolvimento. Ademais, a diversificação comercial e de parcerias demonstra que a política exterior bebe em outros valores ideológicos, mais abrangentes ou menos restritos, que possibilitaram uma intensificação da política de diversificação de parcerias e ênfases. Nesse sentido, é válido dizer que houve uma mudança de leitura, de percepção de mundo, por parte da nova administração, que gerou, necessariamente, uma mudança de paradigma.

De fato, a ideia de diversificação na política externa de Luiz Inácio Lula da Silva não significava apenas novos parceiros, mas sobretudo variabilidade temática, ampliando a cartilha de “novos temas” da era FHC. O combate à fome e à miséria, por exemplo, assumiram centralidade não apenas a nível doméstico, mas também na agenda internacional do governo, conforme destaca o excerto abaixo retirado do discurso do Presidente Lula quando da Reunião da Alta Cúpula da FAO no ano de 2008, em Roma:

A segurança alimentar sempre foi uma preocupação central do meu Governo. Em 2003, lancei um programa pioneiro, o Fome Zero, que permitiu que milhões de brasileiros, antes submetidos à condição de miseráveis, tenham passado a comer três refeições por dia. Fiz do combate à fome e à pobreza uma prioridade da ação internacional do Brasil. Juntei-me a outros líderes de países ricos e pobres com o objetivo de encontrar fontes de recursos capazes de liberar uma grande parcela da humanidade dos flagelos da fome e da desnutrição (LULA DA SILVA, 2008, p. 71).

O cenário internacional durante o governo Lula não era muito diferente daquele do fim do governo de Fernando Henrique Cardoso. Os Estados Unidos ainda se dedicavam ao unilateralismo e a uma política de segurança. O Brasil, país tradicionalmente pacífico, procura demonstrar que existem outras alternativas de relações internacionais para além do poder bélico. O que muda é a postura do governo brasileiro, que passa a se posicionar de forma mais firme, cobrando maior cooperação junto aos países desenvolvidos. No ano de 2005, em discurso na cidade de Paris, em evento que debateu a importância do Brasil como ator global, Luiz Inácio Lula da Silva procura esclarecer que elementos de soft power[6],nos quais o Brasil é rico, também são boas moedas de negociação:

É evidente que riqueza e força militar são expressões de poder. Elas não esgotam, no entanto, a capacidade de ação e de influência de que pode dispor um país. (...) Nossa diplomacia é experiente, bem preparada e suficientemente lúcida para não ser nem tímida nem temerária. Minha experiência pessoal, como líder operário, ensinou-me que em qualquer negociação a credibilidade é um fator fundamental. E para ter credibilidade é preciso conhecer as forças de que dispomos (LULA DA SILVA, 2008, p. 42)

Embora após os atentados do 11 de setembro o governo Fernando Henrique tenha dado um pouco mais de destaque às relações com os países em desenvolvimento, o foco continuou nos países ricos – a União Europeia entra como um importante parceiro nas relações com o Mercosul, por exemplo -, o que limitou a possibilidade de estabelecer laços mais estreitos com países emergentes. Todavia, o primeiro passo havia sido dado, e caberia ao governo Lula a intensificar essa estratégia, tornando-se uma das características principais do novo paradigma de política externa elaborado durante seu governo.

De fato, a variedade de parcerias estratégicas estabelecida por Lula da Silva foi de tal importância que Tullo Vigevani e Gabriel Cepaluni (2010) batizaram o novo paradigma de “autonomia pela diversificação”. De acordo com esses autores, as principais características da “autonomia pela diversificação” são

a adesão do país aos princípios e às normas internacionais por meio de alianças Sul-Sul, inclusive regionais, e de acordos com parceiros não tradicionais, como China, Ásia-Pacífico, África, Europa Oriental, Oriente Médio, etc., com o objetivo de reduzir as assimetrias e aumentar a capacidade de barganha internacional do país em suas relações com países poderosos, como os Estados Unidos e União Europeia. Uma característica importante é a capacidade de negociar com estes últimos sem rupturas, com a perspectiva de romper o unilateralismo e buscar a multipolaridade e um maior equilíbrio (VIGEVANI; CEPALUNI, 2016, p. 22)

Perceba o leitor que não existe, na realidade, grandes rupturas nos objetivos da PEB de Lula em comparação com os do governo anterior. Tais rupturas se encontram nas estratégias estabelecidas para alcançar os objetivos e no comportamento diante dos desafios impostos pela conjuntura internacional. Basicamente, a forma pela qual o Brasil agiria no sistema internacional sofreu ajustes relevantes de forma a melhor adequar a estratégia da PEB à percepção e à ideologia do novo governo. Por exemplo, tanto FHC quanto Luiz Inácio Lula da Silva percebiam as assimetrias da ordem global. Porém, ao passo que Fernando Henrique Cardoso procurou priorizar as relações com parceiros mais tradicionais e poderosos, como Estados Unidos e Europa, o Presidente Lula optou por uma maior intensificação das relações com o Sul Global, promovendo maior intensidade na diversificação e institucionalização das parcerias.

Portanto, embora haja uma continuidade quanto aos objetivos de ambas as políticas externas (manutenção da autonomia e busca pelo desenvolvimento), as rupturas são percebidas em termos de leitura e percepção do sistema internacional e, mais especificamente, em relação às estratégias adotadas para se alcançarem tais objetivos. Nesse sentido, a cooperação torna-se conteúdo essencial para o sucesso das metas estabelecidas, como podemos perceber no excerto retirado do supramencionado discurso proferido na Reunião de Alto Nível da FAO, em Roma:

[Cooperação] É o que o Brasil tem procurado fazer com seus parceiros do mundo em desenvolvimento, sobretudo com a África, a América Central e o Caribe. A expansão desse tipo de iniciativa pode se beneficiar enormemente com a elaboração de novas parcerias, que permitam a cooperação triangular (LULA DA SILVA, 2008, p. 75).

Luiz Inácio Lula da Silva percebia a institucionalização dessas relações como primordial para alcançar seus objetivos. A posição de liderança para a formação de blocos estratégicos entre os países emergentes foi uma importante característica de seu governo. Coalizões como o G20, IBAS e BRICS, assumiram preponderância no desenvolvimento estratégico da PEB, sendo utilizadas com o objetivo de ampliar o potencial internacional de barganha brasileiro.

Segundo André Luiz Reis da Silva (2015), essa estratégia se diferenciava do paradigma desenvolvimentista na medida em que era mais multidimensional, não se limitando a um alinhamento do tipo “terceiro-mundista”, e mais flexível, variando de acordo com os parceiros e interesses. Por exemplo, o BASIC, coalizão formada por Brasil, África do Sul, Índia e China, foi criado durante a 15ª Conferência das Partes (COP-15) para discutir as mudanças climáticas. O grupo se formou diante da pressão exercida pelos países desenvolvidos, que queriam forçar os países emergentes a também reduzir a emissão de gases do efeito estufa. A posição dos países do BASIC ficou conhecida pela expressão “responsabilidades comuns, porém diferenciadas”. Esse posicionamento defende maior auxilio econômico dos países desenvolvidos aos emergentes, auxiliando-os a alcançarem as metas estabelecidas pela COP ao mesmo tempo em que articulam “as demandas ambientais com a necessidade de desenvolvimento dos países (SILVA, 2015, p. 149).

Por sua vez, o G20 comercial foi criado no âmbito da Organização Mundial do Comércio, e visa articular os interesses dos países emergentes quanto à abertura dos mercados estadunidense e europeu às suas produções agrícolas.

Seguindo o mesmo espírito [do IBAS], estamos coordenando um grupo de 20 exportadores agrícolas do mundo em desenvolvimento – o G20 -, que surgiu na Conferência Ministerial de Cancun, como uma voz favorável a uma maior liberalização do comércio para a agricultura, e contrária aos bilhões gastos em subsídios agrícolas que distorcem o mercado (AMORIM in VIGEVANI; CEPALUNI, 2010, p. 298).

O papel de liderança do Brasil na construção de coalizações estratégicas é de fundamental importância para se compreender a política externa do governo Lula. Trata-se, na concepção de seu governo, de uma responsabilidade do país, enquanto potência regional que exerce influência entre seus parceiros. Além de tudo, exercer liderança configura-se uma estratégia de afirmação positiva em termos de participação nas agendas internacionais, sempre pontuando as assimetrias existentes e contestando posicionamentos não-colaborativos, especialmente por parte das grandes potências. Em seu discurso de abertura do colóquio “Brasil: Ator Global”, realizado em Paris em julho de 2005, o Presidente Lula pontuou que os brasileiros

Não fugimos a nossas responsabilidades, por timidez ou por temor aos mais poderosos. Nosso desafio é o de tentar entender, e de afirmar, como o Brasil pode colaborar para a construção de uma nova relação de forças internacional. Necessitamos de um mundo mais democrático, justo e pacífico, mas isso não depende somente de nós, tampouco pode nos conduzir à passividade. Abrir mão da idéia de uma “ação global” seria deixar o futuro ao sabor das forças de mercado, onde prolifera enorme desordem econômica e financeira, ou ao sabor de políticas de poder, dominadas por posturas unilaterais (LULA DA SILVA, 2008, p. 42).

O papel de liderança brasileira nas plataformas multilaterais caminha lado a lado a esse posicionamento contestador a respeito das posturas adotadas pelos países ricos, o que pode ser identificado em discursos presidenciais proferidos nos mais diversos foros internacionais. Estrategicamente, em discurso na Cúpula da FAO reunida em Roma, em 2008, Luiz Inácio Lula da Silva menciona o entrave ao comércio agrícola promovido pelos países desenvolvidos como uma das causas da crise alimentar mundial:

Outro fator decisivo para a alta dos alimentos é o intolerável protecionismo com que os países ricos cercam a sua agricultura, atrofiando e desorganizando a produção em outros países, especialmente os mais pobres. A chamada crise mundial de alimentos é, acima de tudo, uma crise de distribuição. É preciso produzir mais e distribuir melhor. O Brasil, como potência agrícola, está empenhado em aumentar sua produção. Mas de que adiantará produzir, se os subsídios e o protecionismo tolhem o acesso aos mercados, mutilam a renda e inviabilizam a atividade agrícola sustentável? Alguns países especialmente bem-dotados de recursos e que desenvolveram tecnologias avançadas até podem, por meios de ganhos extraordinários de produtividade, vencer as injustificadas barreiras e distorções criadas pelas economias mais ricas do mundo. Mas que dizer das economias mais pobres, que lutam para manter uma agricultura de subsistência em meio a dificuldades de financiamento, irrigação, insumos, como é o caso de muitas economias africanas? Os subsídios criam dependência, desmantelam estruturas produtivas inteiras, geram fome e pobreza onde poderia haver prosperidade. Já passou da hora de eliminá-los (LULA DA SILVA, 2008, p. 74).

Os argumentos apontados em seu discurso soam em uníssono junto às demandas dos países em desenvolvimento, cujos interesses em comum residem numa condição histórica estabelecida pela própria relação de dominação Norte-Sul, que lhes impôs o subdesenvolvimento e o papel de meros exportadores de commodities. A exigência desta cooperação era assim enxergada como um dever dos países ricos junto ao Sul-Global, uma espécie de dívida histórica que deveria ser paga conjuntamente.

Contudo, apesar da ênfase nos vínculos com os países emergentes, as relações com os países desenvolvidos nunca foram deixadas de lado pela administração Lula da Silva. Nas palavras do próprio Presidente, a política externa procurou “manter excelentes relações políticas, econômicas e comerciais com as grandes potências mundiais e, ao mesmo tempo, priorizar os laços com o Sul do mundo” (LULA DA SILVA, 2007). O que muda aqui é a forma como governo Lula passa a abordar esse relacionamento, exigindo um posicionamento mais colaborativo por parte das grandes potências europeias e dos Estados Unidos, em especial.

Todavia, o principal benefício da estratégia da “autonomia pela diversificação” implementada pelo governo Lula foi que, ao reforçar as conexões com os países do Sul Global, o Brasil encontrou alternativas comerciais e desvencilhou-se, paulatinamente, das influências dos países ricos, angariando maior autonomia política na esfera internacional (SILVA, 2015). Um dos efeitos dessa grande variedade de alternativas comerciais foi que o Brasil, ao menos inicialmente enquanto o paradigma se manteve, foi um dos países que menos sentiu os impactos da crise financeira de 2008.

Considerações Finais

A aparente derrota da economia planificada após a dissolução da União Soviética no início da década de 1990 e a intensificação do processo de globalização fizeram com que a política externa brasileira adotasse uma postura de aceitação de valores considerados “universalistas”, adaptando seu enfoque paradigmático ao neoliberalismo predominante no cenário internacional. Assim, o governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) buscou defender os “interesses nacionais” por meio de maior proatividade nas agendas internacionais, inaugurando o paradigma da “autonomia pela participação” num esforço que visava alcançar a solução para a crise da dívida e da estagnação econômica.

Choques externos, como os atentados do 11 de setembro de 2001 e a retomada do posicionamento unilateralista dos Estados Unidos, colocam em cheque esse enfoque paradigmático baseado em valores neoliberais. Como resposta, FHC passa a considerar a diversificação de parcerias estratégicas e o fortalecimento de coalizões, contudo limitando-se aos blocos regionais e às relações bilaterais com países em desenvolvimento, sem nunca perder o foco das relações com os países desenvolvidos.

Coube ao governo Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010) intensificar essa estratégia de diversificação. É importante ressaltar que a administração Lula não rompe com paradigmas históricos da política externa brasileira. Pelo contrário, a carga desenvolvimentista e participativa são partes integrantes de sua política. O próprio multilateralismo, que sob Lula seria elevado a níveis nunca antes observados na história brasileira, foi incentivado à época de FHC, cuja compreensão respaldava a ideia de que os interesses brasileiros seriam mais facilmente alcançados por meio da utilização de plataformas de cooperação multilateral.

Também cumpre observar que a agenda neoliberal, predominante na década de 1990, foi importante para que o Brasil se reintegrasse de maneira positiva ao sistema internacional. Foi na tentativa de melhorar uma imagem internacionalmente deteriorada pela ditadura militar que os chamados “novos temas” (direitos humanos, meio ambiente, povos indígenas, democracia, narcotráfico, etc.), muitos dos quais ganharam maior ênfase e uma roupagem mais “moderna” durante o governo Lula, passaram a ocupar parte relevante do debate não apenas da PEB, mas também a nível interno.

Como vimos, a ordem internacional do final do período FHC não se diferenciou muito daquela que a administração subsequente encarou. Todavia, as principais diferenças entre uma abordagem e outra residem na forma como cada governo leu o cenário a respeito dos constrangimentos internacionais enfrentados. Lula procurou na formação de coalizões estratégicas multidimensionais obter maior poder de barganha junto aos países ricos, diante dos quais se posicionou de uma maneira mais firme e assertiva. Fundamentado numa dívida histórica, demandou das nações desenvolvidas maior cooperação e auxílio aos países pobres e emergentes.

Existe, também, uma diversificação temática fundada numa diferença pessoal entre os dois Presidentes. Com a ascensão de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, houve uma mudança ideológica no poder que consequentemente provocou uma ruptura na leitura de mundo por parte do Estado brasileiro. Para usarmos uma expressão de Amado Cervo (2003), houve uma modificação da cosmovisão brasileira a respeito dos seus “interesses nacionais”. Essa nova percepção deu as diretrizes básicas para a formulação de novo paradigma de política externa, cuja fundação ainda perpassava por uma novidade, ao menos a nível nacional, a respeito da ideia que se fazia, no Brasil, do conceito de desenvolvimento. Formulação de grande complexidade, até o governo Fernando Henrique desenvolvimento era compreendido como mera expansão industrial com vistas ao crescimento econômico, não contemplando, por exemplo, suas dimensões sociais. Com Lula, desenvolvimento passar a ter novo teor, ampliando seu escopo conceitual e ganhando novos matizes voltados para o combate à fome e à miséria, o acesso à moradia, à educação, dentre outros.

A mudança do cenário internacional após 2001 intensificou um processo de reestruturação global do poder, cujo foco se deslocava de um contexto unipolar para um multipolar. Essa mudança da geografia de poder exigia uma mudança de paradigma de política externa à qual o governo Fernando Henrique não soube responder. As diferenças ideológicas entre os dois governantes permitiram a Lula realizar as leituras necessárias para adequar a PEB à nova realidade do sistema internacional.

Nesse sentido, entendemos que a principal ruptura entre os paradigmas de “autonomia pela participação” e de “autonomia pela diversificação” tem um caráter ideológico que ampliou as perspectivas dentro do cenário internacional, de tal forma que fossem construídas pontes e portas fossem abertas ao diálogo com a diplomacia brasileira. Ademais, a estratégia implementada fortaleceu internacionalmente o Brasil, conferindo-lhe a credibilidade que tanto almejava recuperar após décadas sob um regime ditatorial que manchou a imagem do país aos olhos da opinião pública mundial.

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Notas

[1] Luís XIV foi rei da França entre 1643 e 1715. Seu reinado é tido pela historiografia como símbolo do absolutismo, sistema de governo que predominou em grande parte da Europa na Idade Moderna e que pregava o poder absoluto do monarca.
[2] Compreendemos “interesse nacional” como a conjunção, artificialmente construída, dos interesses da população com os interesses do Estado. O “interesse nacional” prevalecente seria o do Estado, que exerce influência sobre a população na medida em que traça estratégias que levam à confusão dos anseios populares com os objetivos do Estado, transformando-os em “interesses nacionais”. Esse estratagema do Estado confere ao governo credibilidade e margem de manobra para alcançar seus desígnios de política externa. Cf: STARLING, Bruno Pimenta. A Alemanha Acima de Tudo: o nacionalismo como ferramenta do imperialismo alemão. Temporalidades. v. 13, n. 2, p. 265-294. 2021.
[3] O Consenso de Washington foi um conjunto de medidas elaborado em 1989, cujo objetivo manifesto era auxiliar os países subdesenvolvidos, em especial da América Latina, a saírem da crise econômico-financeiro por meio da adoção de condutas neoliberais em suas respectivas economias.
[4] Acompanhamos aqui o que pondera Marcos Napolitano (2009, p. 215) a respeito do debate sobre a natureza do regime instaurado no Brasil após o golpe de Estado de 1964. Napolitano considera que, amplamente apoiado por setores da sociedade civil, o golpe pode ser caracterizado como um movimento civil-militar, ao passo que o regime que o seguiu deve ser definido como essencialmente militar pois, “a partir de 1965, sobretudo, o topo do sistema político e os processos decisórios de alto-nível ficam restritos ao alto comando das Forças Armadas, assessorados por intelectuais orgânicos civis (a “tecnocracia”). Obviamente, a elite econômica civil foi sócia e beneficiária do regime militar, com seus prepostos desempenhando papel central na alta burocracia”.
[5] O governo FHC foi responsável por inserir no conceito desenvolvimentista a ideia do mercado como indutor do desenvolvimento, rompendo, desta forma, com o paradigma nacional-desenvolvimentista que privilegiava o protecionismo econômico (CERVO, 2003, p. 17).
[6] O conceito de soft power foi introduzido por Joseph S. Nye (2009, p. 76), que o definiu como um aspecto do poder segundo o qual “um país é capaz de alcançar os resultados desejados no mundo da política porque outros países querem imitá-lo ou concordam com um sistema que produza tais efeitos. (...) O soft power pode repousar em recursos como a atração de suas ideias ou a capacidade de estabelecer a política de maneira a expressar as preferências dos outros”. Importante ressaltar que essa formulação surge em contraponto ao conceito de hard power, definido como o poder material, militar e econômico por excelência.

Autor notes

i Bacharel em História (UFMG); Especialista em Estudos Diplomáticos (CEDIN) e em Ensino de História (PUC Minas); Mestre em Relações Internacionais (PUC Minas). Servidor efetivo da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, onde atua na Diretoria de Relações Internacionais – DIRI. E-mail: starlingbp@gmail.com. Orcid: https://orcid.org/0000-0003-3786-3179.

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