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APRESENTAÇÃO DO DOSSIÊ: RESISTÊNCIAS DE MULHERES ÀS DITADURAS LATINO-AMERICANAS ENTRE 1950 E 1980
Caminhos da História, vol. 28, núm. 2, pp. 4-8, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Caminhos da História
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1517-3771
ISSN-e: 2317-0875
Periodicidade: Semestral
vol. 28, núm. 2, 2023

Recepção: 31 Maio 2023

Aprovação: 25 Junho 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Na América Latina, podemos observar movimentos que, nas últimas décadas, têm reconhecido e defendido o direito à memória e à reparação em relação às violações cometidas pelos governos autoritários durante o século XX. Os debates realizados por grupos da sociedade civil, em diferentes países, promoveram transformações na Academia que têm ampliado as pesquisas que tratam da resistência contra os autoritarismos latino-americanos e em defesa da democracia, principalmente em tempos de negacionismos e reacionarismos como o que vivemos. Em meio aos trabalhos, vimos se alargarem temas que abordam experiências de mulheres como sujeitas e protagonistas de ações na luta e enfrentamento a experiências repressivas que envolveram as ditaduras na América Latina e que também foram marcadas pela permanência histórica de elementos racistas e sexistas, aspectos tratados, em alguns momentos, por certa historiografia e pela militância de forma secundária e subordinada às questões de classe ou de combate ao autoritarismo político.

As práticas repressivas, adotadas pelas ditaduras latino-americanas promoveram formas de subjugação profundas, interferindo nas organizações coletivas e nas condutas de gênero, procurando invisibilizar e apagar o protagonismo feminino em movimentos sociais, armados, sindicais e, principalmente, na organização feminista que também fez críticas às masculinidades hegemônicas que não se reduziram aos órgãos de repressão. A imposição da censura, a interdição, a hierarquia e a violência física, moral e simbólica sobre corpos de mulheres, em diversos espaços – em especial o político - permaneceram invisibilizadas durante certo tempo, sob discursos e sob uma escrita majoritariamente masculina, seja na Academia ou em grupos políticos, recusando-se a reconhecer, muitas vezes, especificidades nas demandas femininas submetidas a bandeiras universalizantes.

No entanto, o conjunto de textos reunidos no dossiê Resistências de mulheres às ditaduras latino-americanas, entre 1950 e 1980 procura apresentar diferentes reflexões e registros de existências e resistências, a partir de testemunhos, sensibilidades e percepções, expressos em autobiografias, narrativas orais, produções escritas, além de práticas políticas e sindicais, que demonstram formas diferenciadas de resistência, questionando relações desiguais de classe, de raça e de gênero, reforçadas pela violência do Estado, mas construídas cotidianamente nos mais variados espaços, entre as décadas de 1950 e 1980.

A singularidade das abordagens aqui compartilhadas reside no fato de considerarem a continuidade e a articulação entre a vida privada e íntima e a vida pública das próprias ativistas. Consideramos que apesar das múltiplas experiências e especificidades políticas que cada país vivenciou nos períodos de repressão (no caso do Dossiê, compartilhamos reflexões sobre Brasil, Argentina e Bolívia), as estratégias de violação dos direitos humanos – especialmente contra as mulheres – se assemelhavam, principalmente em relação aos traços, permanências e efeitos de aspectos estruturais – mas não fixos e imutáveis – do capitalismo, do racismo e do patriarcado. Esses elementos disciplinadores de corpos femininos foram, muitas vezes, articulados e reforçados por ações do Estado autoritário e ancorados em valores sociais conservadores que também foram observados em discursos e práticas da própria esquerda, na defesa de uma libertação universalizante e classista que permeou a luta armada, os espaços estudantis, sindicais, políticos, fabris e campesinos, além da família em seus moldes ainda tradicionais, machistas e cristãos.

Nesse sentido, o texto de Paula Andrea Lenguita, intitulado Conspiradora para a rebelião: Alicia Eguren nas milícias femininas de 1955 a 1957, lança luz sobre a história de uma mulher na linha insurrecional do peronismo argentino. Ela foi uma liderança que se posicionou contra o regime militar que a perseguiu e prendeu durante quase dois anos, imediatamente após o desencadeamento do golpe contra o presidente Juan Perón. Para reconstruir as origens desta liderança na constituição de milícias de mulheres contra o golpe de 1955, a autora analisou as fontes da militância na clandestinidade e os escritos de Eguren na prisão, mostrando uma atuação que vai além de uma história dos homens.

O artigo La resistencia a la racionalización: las obreras textiles de la Matanza entre 1955-1959, de Solange Anahí Miner, procura abordar a perspectiva de gênero na análise da indústria têxtil, na tentativa de recuperar o ativismo de suas trabalhadoras. A autora faz uso da metodologia qualitativa, utilizando diferentes arquivos nos quais analisa a imprensa comunista e os comunicados oficiais da Asociación Obrera Textil, entre outras fontes, orientando sua análise pelos conflitos das trabalhadoras têxteis no período, com foco em La Matanza e destaque às fábricas Danubio e Textil Oeste, de forma a abordar criticamente o lugar das mulheres na fábrica, nos protestos e sua relação com o mercado de trabalho, na Argentina.

Darío Dawyd, em seu texto Bajo la caperuza había una trabajadora: la trayectoria de una obrera metalúrgica en la Argentina postperonista, reconstrói a trajetória de Elida Curone, uma trabalhadora metalúrgica e delegada de fábrica, na Argentina pós-peronista, procurando refletir sobre a gravitação das bases na resistência à sucessão de governos autoritários desde 1955 e, principalmente, o lugar das mulheres nessas ações. Fazendo uso de diversos documentos, o autor procura evidenciar a trajetória laboriosa e militante de Curone a fim de reconstruir historicamente as experiências de resistência, a partir de uma perspectiva que leva em conta as relações entre gênero, fábrica e sindicato.

Mulheres e participações políticas (Brasil, 1964), escrito por Andréa Bandeira, trata dos protagonismos das mulheres militantes na oposição ao golpe e à ditadura militar brasileira, desde o golpe de 1964, em oposição às ações das militantes golpistas, fundamentada na abordagem de gênero de linha marxista e no feminismo decolonial. Tendo como base os atravessamentos entre as suas vidas íntimas e públicas, por meio da análise de excertos de suas biografias e inserções nos partidos e movimentos sociais de esquerda, Bandeira apresenta as relações históricas, dialéticas e materiais da interseccionalidade do sexo-social no processo da luta de classes, tendo a cidade do Recife como um microuniverso que intervém e desvenda a macroestrutura nacional e latino-americana imperialistas.

As experiências das mulheres na guerrilha brasileira são apresentadas em dois artigos. O primeiro, A guerrilha urbana no eixo Brasília/Goiânia: espaços de resistências e (des)esperanças?, de Eloisa Pereira Barroso, analisa as representações das mulheres nos espaços da guerrilha urbana, por meio da história oral, de forma a demonstrar como a ação das mulheres nos espaços de luta em prol da democracia brasileira foi mais um espaço de lutas por direitos e igualdades sociais. A autora procura mostrar como formas de resistências, reverberadas por meio dos atos de memória, podem indicar que o combate às múltiplas opressões vivenciadas pelas mulheres se dá em experiências vividas em diferentes espaços, temporalidades e contextos sociais. O segundo texto é escrito por Ary Albuquerque Cavalcanti Junior e Gilneide de Oliveira Padre Lima e intitula-se “As Dinas do Araguaia”: trajetórias, idealismos e protagonismos contra a Ditadura Militar (1966-74), pelo qual o autor e a autora apresentam suas pesquisas sobre duas guerrilheiras baianas que, embora nunca tenham se encontrado, trazem em sua trajetória aspectos em comum: Dinaelza Coqueiro e Dinalva Oliveira, a quem denominam “Dinas do Araguaia”. A partir da análise, o artigo aponta que, em geral, o lugar da mulher guerrilheira não foi uniforme nem linear na Guerrilha do Araguaia, mas que as histórias estudadas mostram que houve um grande esforço das mulheres guerrilheiras para se firmarem em condições de igualdade com os homens e contra a ditadura, o que lhes custou a vida, pois foram torturadas e assassinadas pelo Estado brasileiro. No entanto, afirmam Cavalcanti e Lima, elas devem ser lembradas por sua ousadia e coragem.

Em outro espaço de luta, Javier Sebastián Rojas fala das Clandestinas: historias de lucha y resistencia contra la dictadura de Banzer en Bolívia (1973-1976). Por meio de sua pesquisa, ele procura reconstruir parte dos processos de luta e de resistência do Comitê de Donas de Casa do Século XX, durante as greves de 1975 e 1976. Para isso, o autor foca sua metodologia no trabalho com fontes orais secundárias, principalmente mulheres garimpeiras que deixaram seus depoimentos em diversas entrevistas escritas e audiovisuais. Dessa forma, evidencia que as estratégias de luta e resistência são construídas a partir de suas relações de exploração e opressão dentro do sistema capitalista, patriarcal e racista com o objetivo de questionar a exploração de classe e a opressão de gênero e raça.

Inés Agustina Luna, com seu texto Mujeres y militancia: rol político y social en la última dictadura cívico-militar en Tucumán (1976), analisa um grupo de mulheres que foi sequestrado no CCDTyE Arsenal Miguel de Azcuénaga, na província de Tucumán desde 1976. A razão de sua detenção se originou no fato de terem assumido um papel político de protagonismo dentro das diferentes organizações da época e não pelo fato de terem compartilhado algum tipo de vínculo com homens pertencentes à militância popular.

Com o artigo Mulheres argentinas na política: protagonismo e violência de gênero nos olhares de Dora Barrancos e Fernanda Gil Lozano, Ana Maria Veiga e Joana Maria Pedro destacam a trajetória de duas feministas, ambas envolvidas com a academia e com a política institucional. As autoras buscam traçar uma cartografia de mulheres argentinas que estiveram e estão dentro do campo político, que abrange desde a militância feminista até as candidaturas e os mandatos para cargos públicos, passando pelo vínculo com partidos políticos. Elas destacam a história de Dora Barrancos e de Fernanda Gil Lozano, para refletirem sobre suas visões amplas da política de gênero e raça, a partir de percepções sobre as mulheres políticas nas arenas compostas pela esquerda e pela direita argentina.

O Dossiê também conta com a apresentação de uma resenha, feita por Marcela Boni Evangelista, sobre o último livro da própria Dora Barrancos, publicado no Brasil em 2022, sob o título História dos Feminismos na América Latina. Evangelista nos brinda com a apresentação da obra que contribui para pensarmos a força do feminismo latino-americano.

Ao final, Marta Gouveia de Oliveira Rovai compartilha o resultado de uma entrevista realizada com Zuleide Aparecida do Nascimento, neta de Tercina Dias do Nascimento, mulheres que sobreviveram à ditadura, após serem presas e banidas do Brasil com sua família, na década de 1970. O texto transcriado em primeira pessoa, para valorizar a perspectiva autobiográfica, intitula-se A tia dos guerrilheiros: Tercina e o enfrentamento à ditadura brasileira nas memórias de Zuleide, sua neta.

Em suma, o dossiê organizado pretendeu renovar a perspectiva historiográfica sobre a resistência às ditaduras, delineando práticas de oposição antes ignoradas para reescrever as narrativas desses anos de repressão política, social e de gênero. A soma de trabalhos que aqui se apresentam projeta um olhar sobre o passado na América Latina, que ilumina formas de militância feminina que um dia foram fortemente silenciadas. Não se trata de narrar uma história complementar à luta masculina contra as ditaduras latino-americanas, mas proporcionar novas perspectivas que nos permitam compreender esse passado, por meio de vozes, memórias e narrativas construídas no plural pelas mulheres que resistiram à violência ditatorial com diferentes matizes na América Latina.

Autor notes

i Professora adjunta na Universidade Federal de Alfenas (UNIFAL-MG). Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo, com estágio pós-doutoral pela Universidade Federal Fluminense. Professora colaboradora da Universidade de São Paulo. Diretora do Instituto de Ciências Humanas e Letras da UNIFAL-MG. Vice-coordenadora do GT de Gênero ANPUH-MG. E-mail: marta.rovai@unifal-mg.edu.br. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0769-0748.
ii Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires. Pós-doutorado no Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisadora independente do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas. Coordenadora do Programa de Estudos Críticos sobre o Movimento Operário do Centro de Estudos e Investigações Laborais. Compiladora do livro: "La resistencia de las mujeres en gobiernos autoritarios: Argentina y Brasil (1955-1969)" em 2020 e do livro "68 Obrero en Argentina y Brasil: 50 años después" em 2018. Professora de pós-graduação na Universidade de Buenos Aires na Argentina e na Universidade Federal da Integração Latino-Americana no Brasil. E-mail: paulaandrealenguita@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6665-0554.

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