Artigos
Recepção: 08 Junho 2022
Aprovação: 23 Agosto 2022
Resumo: O artigo apresenta a importância da obra Grande Sertão: Veredas (1956) de Guimarães Rosa em dois sentidos presentes em sua fortuna crítica: primeiramente resgata a leitura canônica do romance que evidencia sua relevância linguística, bem como os componentes existenciais e metafísicos. Nesse sentido, o sertão tomado como totalidade permite ao leitor refletir também sobre a totalidade do mundo. Em segundo lugar, elenca as principais releituras feitas na virada da década de 1990 para os anos 2000, as quais privilegiam os elementos sócio-históricos elaborados pelo autor no romance que, por sua vez, contribuem para a compreensão dos desafios da sociedade brasileira da primeira metade do século XX. Esses dois movimentos formam o núcleo do artigo, antecedido por uma introdução que sugere o entendimento de que o romance de Guimarães Rosa pode ser tomado como continuidade, ainda que com particularidades, da tradição da literatura empenhada analisada por Antonio Candido. O objetivo do artigo consiste em mostrar que o sertão de Rosa, no qual o “jaguncismo” é superado e, ao mesmo tempo, mantido, pode ser visto como expressão do Brasil, cuja formação nacional se dá sem que se superem os aspectos que vem do passado.
Palavras-chave: Guimarães Rosa, Sertão, Brasil, Formação Nacional.
Abstract: The article presents the importance of the work The Great Backcountry: Byways (1956) by Guimarães Rosa in two senses present in its critical fortune: first, it rescues the canonical reading of the novel that highlights its linguistic relevance, as well as the existential and metaphysical components. In this sense, the backcountry taken as a totality also allows the reader to reflect on the totality of the world. Secondly, it lists the main re-readings made at the turn of the 1990s to the 2000s, which privilege the socio-historical elements elaborated by the author in the novel, which, in turn, contribute to the understanding of the challenges of Brazilian society from the first half of the twentieth century. These two movements form the core of the article, preceded by an introduction that suggests the understanding that Guimarães Rosa's novel can be taken as a continuation, albeit with particularities, of the tradition of committed literature analyzed by Antonio Candido. The objective of the article is to show that the hinterland of Rosa, in which the “system of thugs” is overcome and, at the same time, maintained, can be seen as an expression of Brazil, whose national formation takes place without overcoming the aspects that come from the past.
Keywords: Guimarães Rosa, Backcountry, Brazil, National Formation.
1. Introdução
O presente trabalho tem como objetivo analisar a relação entre literatura e realidade social tomando como contexto sócio-político brasileiro da segunda metade dos anos 1950 e como obra de referência o romance Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa, publicado em 1956. Naquele contexto havia uma grande discussão no plano das ciências sociais sobre o tema da formação da sociedade brasileira, compreendida como transição da colônia para a nação. Um entendimento rigoroso sobre a relação entre literatura e essa ampla discussão exigiria uma arqueologia das obras que remetesse aos tempos coloniais. A isso se dedicou longamente e de forma pioneira Antonio Candido em sua investigação sobre a constituição do sistema literário em nosso país. Proponho-me aqui, evidentemente, a algo muito mais modesto, tendo como orientação metodológica a mesma de Candido: compreender de que modo uma obra literária expressa, por meio de seu conteúdo e de seus aspectos formais, os elementos sociais do contexto em que é escrita
O romance de Guimarães Rosa tem uma longa fortuna crítica. No entanto, predomina entre os estudiosos de Grande Sertão: Veredas[1] (GSV) o enfoque em seus aspectos míticos e metafísicos. As inúmeras relações do autor entre o sertão e o mundo, o sertão e o sentimento humano, entre outras, contribuíram para que esta obra se firmasse como um clássico da literatura brasileira por sua inovação linguística e densidade narrativa.
É apenas na década de 1990 que os críticos se dedicarão ao estudo dos aspectos históricos e sociais presentes no romance, algo que apenas havia sido sinalizado pontualmente em momentos anteriores. É esta direção que o artigo toma, pretendendo, assim, contribuir para fortalecimento dessa abordagem na fortuna crítica de GSV. De que modo o sertão pode ser compreendido como expressão do contexto em que o romance foi escrito? O que implica em dizer que o sertão é o Brasil? De que modo o protagonista Riobaldo, em sua trajetória, pode ser tomado como referência dos processos sociais do país ao longo do século XX? Como entender a busca por extinguir o jaguncismo do sertão como expressão da modernização do país?
No intuito de responder a tais questões, o artigo se organiza em três movimentos. No primeiro, busco estabelecer os antecedentes literários de GSV. Não pretendo me demorar nessa parte, por mais que sejam importantes as obras mencionadas. Destacarei apenas alguns exemplos. Para isso, tomo de empréstimo a Antonio Candido a ideia de literatura empenhada. A formulação de Antonio Candido aparece no seu trabalho Formação da literatura brasileira de 1957. O referido empenho dos autores consiste no “desejo de construir uma literatura como prova de que os brasileiros eram tão capazes quanto os europeus” (Candido, 2009, p. 26). No período posterior à Independência acentua-se tal esforço, pois é próprio da literatura empenhada “a expressão de um conteúdo humano, bem significativo dos estados de espírito de uma sociedade que se estruturava em bases modernas” (Candido, 2009, p. 27).
Na segunda parte do artigo me dedico a apresentar a fortuna crítica de GSV, tendo como referência a recepção da obra por autores como Antonio Candido e Roberto Schwarz. Demonstro a relevância da obra na tradição literária brasileira, ao mesmo tempo em que fica evidente que, distinto do regionalismo dos anos 1930 e de outras obras de cunho social da primeira metade do século, a primeira impressão da crítica sobre GSV não se ateve aos elementos históricos e políticos nelas presentes, mas sobretudo no enredo construído magistralmente pelo autor.
Por fim, chego à terceira parte onde se situa propriamente o objeto da discussão: as releituras sócio-históricas feitas sobre o romance de Rosa nos anos 1990. Parto da leitura pioneira de Walnice Galvão, que ainda nos anos 1970, captou aspectos históricos fundamentais da obra em sua elaboração, com destaque para a noção de ambiguidade. Avanço, na sequência, por outras leituras que, de formas distintas, compõem um quadro interpretativo do romance que me permitem aproximá-lo, com as devidas mediações, do conceito de literatura empenhada.
Se aplicarmos tal conceito ao século XX veremos que a pedra de toque é a formação brasileira – tema que percorre as ciências humanas e sociais, sobretudo entre os anos 1930 e 1960[2]. Em linhas genéricas, compreende-se por formação a transição do velho padrão colonial para o modelo de Estado nacional, ou seja, o processo pelo qual o Brasil, por compreender-se como participante da modernidade, empenha-se para concretizar este novo estágio, assumindo as consequências sociais, econômicas, políticas e culturais que tal processo implica.
O sentimento geral de constituição de um país efetivo, desamarrado das velhas referências coloniais e oligárquicas, impulsiona a literatura a assumir, tal qual outras áreas da vida cultural, uma função social e histórica. É nesta chave, inclusive, que se compreende melhor o fenômeno do regionalismo. Para além dos traços pitorescos e localistas, trata-se, sobretudo, da busca de um encontro do país consigo mesmo. A fragmentação política das regiões ainda não unificadas reflete-se na literatura – seja em propostas de harmonização, seja na exacerbação das diferenças – no desafio de unidade das partes desconhecidas ou secundarizadas do país.
No plano literário, a abertura e o fechamento desse ciclo de consolidação da era republicana – com seu empenho em torno da formação nacional – podem ser situados em duas obra: Os Sertões, de Euclides da Cunha, e Quarup, de Antonio Callado. Em tal percurso está situado GSV que, embora distinto dos demais romances apontados, pode ser tomado também como expressão dos desafios sócio-históricos que estão colocados no contexto em que é escrito. Entender o lugar de GSV na tradição literária sob a chave da literatura empenhada: a isto se dedica o artigo.
2. Literatura e sociedade brasileira na primeira metade do século XX
Qualquer seleção tem inevitavelmente algo de arbitrário e implica limites[3]. Não se trata aqui de um mapeamento detalhado da história literária brasileira do século XX e sim da escolha de alguns pontos que julgo suficientes para a observação, por meio da literatura, de um itinerário social e político indispensável a uma análise mínima sobre a maneira pela qual a literatura da primeira metade do século XX elabora os desafios da sociedade brasileira. São obras que antecedem a publicação de GSV e que oferecem elementos importantes sobre a sociedade brasileira em fase de afirmação do modelo republicano e sua consequente modernização.
Coincidentemente, esta seleção abarca, não por acaso, alguns autores regionalistas, visto ser esse gênero aquele que tratou de forma aguda grandes contradições do país ainda em transição do passado colonial para a sociedade nacional[4]. Opto pelo critério do antagonismo, presente nas obras, do qual decorre a escolha dos exemplos.
2.1 Litoral e sertão
Publicado em 1902, Os Sertões de Euclides da Cunha aborda a Guerra de Canudos, na Bahia (1896-1897). Como correspondente do jornal O Estado de São Paulo enviado para cobrir a batalha, o autor articula elementos documentais sobre a terra, o sertanejo e a batalha propriamente, dando ao texto um tratamento estético, configurando-se na fronteira entre uma obra historiográfica ou sociológica e literária. A incomunicabilidade entre o Brasil moderno, simbolizado no litoral, e a parte do país ainda não integrada – o sertão – é o grande eixo da obra[5]. Numa palavra, a marcha do progresso da qual Euclides é entusiasta, mostrava-se, no Brasil, carregada de elementos condenáveis, como a força desproporcional aplicada pela República a Canudos, configurando-se em uma verdadeira carnificina[6]. Como afirma Antonio Candido (1999, p. 64), com Os Sertões “a opinião pública sentiu que a sociedade brasileira repousava sobre a contradição entre o progresso material das áreas urbanizadas e o atraso que marginalizava as populações isoladas do interior”.
2.2 Tradição oligárquica e República
Em 1915 Lima Barreto publica Triste Fim de Policarpo Quaresma, sua obra mais célebre. Feroz crítico da Primeira República e de sua condescendência com os velhos privilégios das famílias aristocráticas, Lima Barreto disseca as contradições de um país que sequer se organiza propriamente como nação republicana. O princípio coletivo, simbolizado no romantismo patriótico do protagonista, choca-se com interesses privados, num país em que reina a distinção e a burocracia[7].
2.3 Arcaico e moderno
Obra representativa desse antagonismo, O Quinze (1930) de Raquel de Queiroz trata do tema da seca, recorrente na chamada literatura do Nordeste, por isso geralmente associada ao regionalismo dos anos 1930. No entanto, o romance extrapola esse enquadramento ao apresentar o choque entre a urbanização da região de Fortaleza e a miséria dos retirantes que para ali seguem em busca da sobrevivência. Os chamados campos de concentração cearenses são apresentados de forma sutil, porém contundente, permitindo ao leitor entrever o quanto a sociedade brasileira, na medida em que se urbaniza, vai deixando à margem parcela considerável da população. O movimento interno da narrativa, marcada por uma constante busca dos personagens por condições melhores – do Sertão à zona urbana de Fortaleza e dali a São Paulo – dá um bom parâmetro do contexto social daquelas décadas.
2.4 Urbanização e miséria
Em 1937 vem à luz Capitães da Areia, sexto romance de Jorge Amado, com a história de um grupo de crianças e adolescentes que vivem nas ruas de Salvador. Como nos anteriores trabalhos do autor há um forte componente social, permitindo ao leitor um mergulho na condição de vida de quem está à margem da cidade. A narrativa contrasta com o período de otimismo vivido então pelo Brasil e por meio de tal sentimento o enredo constrói um antagonismo de classes: de um lado o senso comum expresso nas reportagens de jornal acerca dos meninos de rua e, de outro, o cotidiano deles, oscilando entre o crime e a sensibilidade, a ponto de gerar a simpatia do leitor. O desenrolar permite conceber a condição de criminalidade como social e transitória, desnaturalizando a ideia do bandido. Como é comum em grande parte da obra do autor, a politização dos personagens acena para uma transformação social e mesmo revolucionária. Em Jorge Amado o empenho da literatura se converte em franco engajamento político.
2.5 Sertão e cidade
Quase simultaneamente à obra de Jorge Amado, Graciliano Ramos publica em 1938 o romance Vidas Secas, transportando-nos, como em O Quinze, para o dilema da seca. Mas são obras distintas. No caso de Graciliano a fuga – tema recorrente na literatura de ambiente sertanejo – é construída narrativamente como busca por um estatuto mínimo de humanidade. Os personagens são desprovidos não só de condições, mas também da própria fala – só alcançada nas páginas finais, onde o casal protagonista consegue articular um diálogo mínimo. Aqui não há idealizações e nem grandes elaborações teóricas sobre o sertanejo. O texto duro e árido nos leva ao nível pré-social da família de Fabiano, evidenciando não apenas as diferenças de ambientes dentro de um mesmo país – próprio do regionalismo – mas também um sertão indefinido geograficamente, o que desloca a atenção para além da fome e da pobreza. Ao ir além da vinculação geográfica característica da literatura regionalista, Graciliano Ramos toma “o homem pobre do campo e da cidade (...) não como objeto, mas, finalmente, como sujeito” (Candido, 1999, p. 83). O deslocamento dos personagens equipara-se a uma busca de completude do estatuto de existência que o sertão lhes nega – daí as fugas. No entanto, a última destas desmistifica a cidade: ainda que seja a esperança, fato é que o sertão bruto continuará existindo a enviar gente para a cidade. É a literatura transparecendo os limites de nossa modernização que urbanizava o país, mas não garantia as mínimas condições humanitárias à grande parcela da população.
2.6 A literatura empenhada e os anos 1950
Esse breve quadro é suficiente para evidenciar o quanto os antagonismos sociais são passíveis de observação na forma literária do período. Nas demais obras de Lima Barreto ou Jorge Amado, no ciclo da cana-de-açúcar de José Lins do Rego, assim como em outros autores, o processo pelo qual passa o país vai fornecendo elementos preciosos para o campo literário. A assertiva de Antonio Candido sobre o regionalismo – que aqui bem pode ser expandida para toda a literatura empenhada – dá conta da relevância de uma literatura que se produz encharcada dos desafios do tempo. De forma distinta da realidade dos países avançados da Europa, nos quais uma literatura nos moldes de nosso regionalismo é “ou uma tendência menor, ou apenas uma alternativa possível”, nos países da América Latina, nações, em certa medida, ainda em formação, “el[a] invade imperiosamente o campo da inspiração, porque representa o direito à existência por parte dos marginalizados pela cultura dominante, geralmente privilégio de minorias, às quais pertencem também os escritores” (Candido, 1999, p. 93).
Nesse sentido, poderíamos passar, sem mais, para o contexto dos anos 1960 em que o campo da cultura, de modo geral, reflete o engajamento do intelectual brasileiro, elemento que se mostrará presente no cinema, no teatro, nas artes plásticas e, obviamente, na literatura. Como ponto alto desse processo poderíamos apontar Quarup (1967), de Antonio Callado.
Ocorre que antes de chegarmos aos anos 1960 há algo incontornável: a obra de Guimarães Rosa, em especial Grande Sertão: Veredas (1956). Para além de sua qualidade estética, reconhecida de pronto pela crítica, resta a pergunta: deveríamos incorporá-la ao quadro que definimos como literatura empenhada ou se trata de uma obra distinta que, embora relevante na história literária brasileira, deve ser lido com outra chave?
É notório que se tomamos GSV como literatura empenhada, stricto sensu, estaríamos provavelmente forçando seu enquadramento em moldes inadequados, dado seu aspecto peculiar e uma aparente aposta em questões humanas e existenciais, mesmo metafísicas, em detrimento dos conflitos sociais das demais obras.
No entanto, sustento que GSV contém aspectos fundamentais para o entendimento da formação nacional, a ponto de enriquecer ou mesmo redimensionar nossa compreensão sobre o contexto da segunda metade dos anos 1950 e, consequentemente, o que se refletiria na década seguinte tanto na literatura quanto na sociedade. Em outros termos, entre o romance de Euclides da Cunha e o de Antonio Callado, GSV é uma obra distinta, porém afinada com o seu tempo, elaborando esteticamente ao seu modo os entraves de uma sociedade que ser forma suprimindo a si mesma como nação, o que os romances do período da ditadura irão tratar de forma ainda mais contundente.
Desse modo, após ter sumariado o empenho da literatura em tratar dos desafios do país, elaborados na forma de antagonismos, detenho-me a seguir numa visão panorâmica quanto à fortuna crítica de GSV, por sinal bastante controversa, para em seguida analisar possiblidades de uma leitura do romance a partir dos elementos sócio-históricos por ele elaborados.
3. Um romance incontornável – Grande Sertão: Veredas
Na II Semana Nacional do Livro de 1956 foi concedido ao romance GSV o Prêmio Machado de Assis, do Instituto Nacional do Livro, situando o autor como um dos principais escritores da geração. Isso não significa, porém, que a saga da recepção crítica do romance tenha sido tranquila; ao contrário, foi tortuosa. A nota da Revista Leitura, escrita meses depois, acerca da premiação é um bom indício: “Ainda não houve autor entre nós, um escritor tão discutido como o Sr. Guimarães Rosa, cujas edições se esgotam em pouco tempo”; e completa: “Com o autor de ‘Sagarana’ e ‘Grande Sertão: Veredas’, a obra que acaba de ser premiada, ocorre um fato raro, pouco comum entre nós: os leitores de seus livros, ou são entusiasticamente a favor, ou violentamente contra” (Revista Leitura, 1957, p. 5). A nota ainda aponta expressões antagônicas comuns daquele contexto como: “é o maior escritor do século” ou “não conseguimos passar das 40 páginas”.
Do lado da boa recepção temos no mesmo número da revista o artigo de Dias Costa, no qual propõe um balanço da obra: “Em toda a história da ficção brasileira poucos livros poderão reivindicar o título de abridor de caminhos como esse ‘Grande Sertão Veredas’, do Sr. João Guimarães Rosa” (Costa, 1957, p. 37). Tecendo elogios ao romance como uma “verdadeira revolução”, um “verdadeiro rapisodo regional”, o autor destaca elementos como a linguagem, a narrativa entre o fantástico e o real, entre outras qualidades, e conclui: “Por tudo isso é que julgamos o Sr. João Guimarães Rosa o mais revolucionário de nossos ficcionistas, desde o nascimento de nossas pobres letras até os dias atuais”.
Em contraponto, no ano seguinte a mesma Revista publica um curioso artigo intitulado “Autores que não conseguem ler Grande Sertão Veredas” (Revista Leitura, 1958). Diversos escritos brasileiros como Barbosa Lima Sobrinho, Ferreira Gullar, Adonias Filho e outros destacam as dificuldades em ler o romance. A título de ilustração, a fala de Adonias Filho, que considera a obra um “equívoco literário”; ou de Ferreira Gullar, que confessa ter lido apenas as setenta páginas iniciais: “Não pude ir adiante. A essa altura começou a parecer-me uma história de cangaço contada para linguistas”; ou, ainda, J. Guimarães Menegali, que sintetiza bem a reação dos que abandonaram a leitura inicial do romance: “Vou voltar à carga. Experimentei uma vez, não deu certo; forcarei de novo... e quem sabe? Não prometo gostar: mas, se fazem questão, prometo insistir” (Revista Leitura, 1958, p. 50a-58a).
Mas é no número especial da Revista Diálogo de 1957, dedicado a Guimarães Rosa que a crítica literária se debruçaria com profundidade sobre GSV. O oitavo número da Revista, importante meio de debates das ciências humanas naquele contexto, reúne nomes como Antonio Candido – cujo ensaio será ponto referencial para a futura crítica do romance-, Milton Vargas, Roberto Simões, Paulo Dantas, entre outros[8].
Em trabalhos posteriores Antonio Candido contribuirá para consolidar o paralelo de importância entre Guimarães Rosa e Machado de Assis. Para o crítico, o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas representa “um certificado de maioridade da literatura brasileira”, posto que vai além da absorção de temas locais e evidencia “que a verdadeira literatura depende, não do registro de aspectos exteriores e modismos sociais, mas da formação de um ‘sentimento íntimo’; tal sentimento “embora fazendo do escritor um homem ‘do seu tempo e do seu país’” é o que assegura “a sua universalidade” (Candido, 1999, p. 55, grifo meu).
No caso de Guimarães Rosa, que carrega atrás de si longo debate sobre localismo e cosmopolitismo presente na literatura na primeira metade do século, “o processo que estamos analisando na literatura brasileira chega a um ponto culminante, porque o assunto perde a soberania e parece produto da escrita” (Candido, 1999, p. 94, grifo meu)[9]. A crescente autonomia da linguagem em relação à referência aos aspectos locais, que como lembra o crítico no mesmo texto, estará presente no concretismo, é índice da maturidade do sistema literário brasileiro. Maioridade com Machado de Assis; maturidade com Guimarães Rosa[10].
Em resenha escrita para o Diário de São Paulo em 1946, ano de lançamento de Sagarana, Antonio Candido já fundava uma das matrizes de interpretação sobre Guimarães Rosa. Para ele, o livro de contos no qual se localiza A hora e a vez de Augusto Matraga, desde já um dos melhores da literatura brasileira segundo o crítico, “não vale apenas na medida em que nos traz um certo sabor regional, mas na medida em que constrói um certo saber regional, isto é, em que transcende a região” (Candido, 2002, p. 185, grifo do autor). Na perspectiva do crítico, Guimarães Rosa construía, desde então, e “em termos brasileiros”, a experiência literária “de uma altura encontrada geralmente apenas em grandes literaturas estrangeiras; criando uma vivência poderosamente nossa e ao mesmo tempo universal, que valoriza e eleva nossa arte” (Candido, 2002, p. 189).
Dez anos depois, no ano de lançamento de Grande Sertão: Veredas, Candido (1956) publica sua resenha no Suplemento Literário do Jornal Estado de São Paulo, quando retoma as observações anteriores e cristaliza o entendimento que orientaria toda a crítica posterior à obra. O romance de Rosa teria uma “característica fundamental: transcendência do regional (cuja riqueza peculiar se mantém intacta) graças à incorporação em valores universais de humanidade e tensão criadora” (Candido, 1956, p. 10). À luz do crítico, o escritor mineiro criara um “desses raros momentos em que a nossa realidade particular brasileira se transforma em substância universal”, o que a leva a “adquirir a soberana maturidade das obras que fazem sentir o homem perene” (Candido, 1956, p.10, grifo meu).
Um ano depois da publicação de Grande Sertão: Veredas, no referido número especial da Revista Diálogo, Antonio Candido apresenta “O Sertão e o Mundo”, recolhido no ano de 1964 em Tese e Antítese com o título “O Homem dos Avessos” (Candido, 2000). Esse trabalho de maior fôlego retoma argumentos já esboçados nas resenhas de 1946 e 1956 – na leitura de Candido, o sertão de Guimarães é o mundo – e também os aperfeiçoa. Isto se dá pela leitura em paralelo de Grande Sertão: Veredas com Os Sertões de Euclides da Cunha[11].
Tanto em GSV como em Os Sertões os componentes terra, homem e luta estão presentes. O que, em princípio, poderia sugerir uma reescrita, não se confirma – a leitura de Candido é mais elaborada. Se em Euclides da Cunha predomina o documental, a descrição, a explicação, em Guimarães, predomina a inventividade, a criação, a reflexão[12]. No prefácio ao livro de 1964, o crítico é incisivo sobre Grande Sertão: Veredas: trata-se do “primeiro grande romance metafísico da literatura brasileira” (Candido, 2000, p. 2).
Mesmo em passagens sugestivas para uma abordagem sociológica como o julgamento de Zé Bebelo ou o pacto de Riobaldo, Antonio Candido prioriza o tratamento literário dado por Guimarães Rosa que, segundo o crítico, reuniria fabulação lendária e interpretação racional, mito e logos. E conclui com uma valiosa ideia para a crítica futura: o princípio de reversibilidade, ou seja, uma dialética viva, nos termos do autor, exposta na fusão de contrários como o popular e o erudito, o bem e o mal, o arcaico e o moderno, etc.
Em 1966 – mas publicando apenas em 1971 – Antonio Candido sedimentaria sua crítica acerca de GSV no ensaio Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. Candido recupera uma variedade de obras desde o final do século XVIII – tendo como ponto inicial Vila Rica de Cláudio Manuel da Costa, nomeado no título – em que a violência, o banditismo e a jagunçagem são trabalhados na literatura.
A novidade em Grande Sertão: Veredas é que o tema do jagunço, com tudo que lhe é próprio, não recebe tratamento estritamente realista ou mesmo pitoresco, como prevalecera em toda a tradição sobre o tema. Agora, é a conduta do homem que é discutida, sua existência. Os traços documentais e presentes na obra estão a serviço de um tema maior: “o comportamento do jagunço aparece como um modo de existência, como forma de ser no mundo, encharcando a realidade de preocupações metafísicas” (Candido, 1977, p. 151).
Indo além dos elementos históricos e sociais dos quais parte, Guimarães faz com que o deslizamento constante entre o sertão e o mundo torne o jagunço um condutor de ampla reflexão sobre as dimensões da vida e suas inúmeras travessias. O sertão tomado como totalidade – o que não esgota sua compreensão, mas, ao contrário, conserva propositadamente uma gama de mistério e dúvida – permite ao leitor refletir também sobre a totalidade do mundo. De forma lapidar, o crítico afirma: “Se ‘o sertão é o mundo’ como diz ele a certa altura do livro, não é menos certo que o jagunço somos nós” (Candido, 1977, p. 151).
Portanto, é esta a grande chave de leitura proposta por Antonio Candido a respeito de Guimarães Rosa, em especial no livro Grande Sertão: Veredas: a dialética entre o particular e o universal, por meio da qual os elementos documentais e pitorescos se subordinam às grandes questões da existência, tornando o romance uma obra de alcance metafísico[13].
Note-se que Antonio Candido é cuidadoso na sua argumentação e evita o enquadramento do romance rosiano nos moldes da velha literatura empenhada. Ao contrário, a grandeza da obra de Guimarães Rosa estaria justamente em assimilar as demandas do particular – aí incluída a jagunçagem, a dualidade entre ordem política e poder de mando etc. – numa perspectiva dos desafios universais do homem, explicitados no constante deslizamento entre ambiguidades. Por isso, aliás, a justificativa de estar aí o ponto de maturidade da obra na literatura brasileira.
O velho debate sobre o regionalismo, especialmente nas obras ditas mais engajadas, estaria superado em Guimarães Rosa. No entanto, a leitura de Antonio Candido, ao trazer para o primeiro plano o aspecto metafísico e universalista de GSV, perde de vista a possibilidade de abordagem do romance em perspectiva sócio-histórica – ou pelo menos não a desenvolve. Ao preenchimento de tal lacuna se dedicarão as leituras posteriores que tomarão o romance pelo conceito de formação brasileira. Retornarei a este ponto mais adiante, após tratar, brevemente, da leitura de Roberto Schwarz sobre GSV.
Coube a esse crítico sistematizar mais uma importante chave interpretativa de GSV: seu conteúdo fáustico. Schwarz está de acordo com Candido sobre a grandiosidade da obra rosiana, especialmente Grande Sertão: Veredas. No entanto, se na leitura de seu mestre encontramos, ainda que de forma difusa, alusões ao contexto histórico e aspectos políticos presentes na obra, o enfoque de Roberto Schwarz tomará o romance sobre Riobaldo em seu aspecto propriamente estético e estilístico, o que se sintetiza na contundente afirmação: “Em Grande Sertão a História quase não tem lugar – o que não é defeito; dentro das proposições do livro é virtude” (Schwarz, 1981, p. 50).
É notório que a reação crítica de Roberto Schwarz à obra de Guimarães Rosa tenha se restringido ao ano de 1960. Futuramente voltará a tratar do autor apenas de forma pontual, mas não diretamente. Naquele ano Schwarz publicou no Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo um conjunto de três textos que foram, cinco anos depois, reunidos na coletânea A sereia e o desconfiado em duas partes: Grande-Sertão: a fala; Grande-Sertão e Dr. Faustus.
No primeiro o enfoque é na combinação de gêneros presente na construção discursiva do romance de Guimarães Rosa: “Tem muito de épico, guarda aspectos da situação dramática, seu lirismo salta aos olhos” (Schwarz, 1981, p. 37). A palavra que busca um estatuto de grandeza ao mesmo tempo se configura a partir da oralidade sertaneja: “a palavra, símbolo dela mesma, tende a absoluta; é o que chamamos lirismo” (Schwarz, 1981, p. 41)[14]. A relevância da abordagem de Schwarz está no fato de que seu texto, ao destacar o primor linguístico de Guimarães Rosa, contribui para a consolidação daquilo que Antonio Candido apontara quatro anos antes, ou seja, o valor de universalidade do romance. Diferentemente do que fará com Machado de Assis, autor no qual Schwarz buscará importantes chave de leitura sobre o país, em Guimarães Rosa sua leitura passa totalmente ao largo dos aspectos históricos e políticos presentes em GSV.
O segundo ensaio é ainda mais contundente nesse sentido e, por isso, interessa-me mais diretamente, pois é nele que ganha consistência mais uma chave interpretativa de GSV, a saber: a dimensão fáustica do romance. Para isso, Roberto Schwarz analisa concomitantemente o romance do escritor mineiro e o Dr. Faustus de Tomas Mann.
Não cabe aqui refazer o caminho argumentativo de Schwarz. Restrinjo-me a destacar que fatores como a dimensão diabólica e o pacto são lidos pelo crítico de forma distinta nos dois romances. Esses fatores desde o Fausto de Goethe de 1829 e, por consequência, remetendo aos relatos seculares dos quais emana o mito, remetem necessariamente a aspectos que superam o indivíduo, tais como o sentido da existência, a felicidade, a autodescoberta etc. Para Schwarz, no romance de Thomas Mann o desenrolar da trama articula destino do personagem e dimensão histórica concreta. Ou seja, em Dr. Faustus “o itinerário para a universalidade passa pela dimensão de uma camada a mais, o destino da Alemanha”.
Em Grande Sertão: Veredas o movimento é distinto. Como já sinalizado, a preocupação de Roberto Schwarz em suas intervenções sobre o romance feitas em 1960, não tem relação direta com a matéria brasileira, como ocorrerá, quase duas décadas depois, com seus estudos sobre a obra de Machado de Assis[15]. Em outros termos, Schwarz dará eco à formulação de Antonio Candido segundo a qual a passagem do sertão para o mundo, com significado estético mais que histórico, dá-se sem mediação. Para o crítico, em Grande Sertão: Veredas “a passagem da região para o destino humano, tomado em sentido mais geral possível, é imediata”. Por isso, concordando com Candido, o “sertão é o mundo”, uma vez que “o que se passa no primeiro é elaboração artística das virtualidades do segundo” (Schwarz, 1981, p. 50-51).
O ensaio se fecha de modo a articular a excelência linguística com o distanciamento de Guimarães Rosa em relação a obras, como as do regionalismo, em que o local ganha preponderância: “No coração mesmo da linguagem, tornada fluida e refeita maior, o escritor realiza esse constante itinerário: da realidade para o fantástico, do mínimo para o imenso, do chulo para o símbolo cósmico” (Schwarz, 1981, p. 51).
O breve exposto sobre a primeira recepção de GSV coloca em dúvida se os elementos da narrativa que apontam para aspectos sócio-históricos são suficientes para que, por meio de uma crítica dialética, possamos entrever a sociedade brasileira do período elaborada esteticamente no romance ao modo da velha literatura empenhada. Tomando as leituras de Candido e Schwarz a resposta seria negativa.
As questões que ficam, portanto, são duas: primeiramente, se nos mantivermos na chave interpretativa de Antonio Candido, como tomar uma obra que foi índice da maturidade literária nacional sem detectar em sua estrutura formal elementos que indiquem o espírito de seu tempo?
Segunda questão: como entender o fato de que Schwarz acompanhe Candido na deferência à obra Grande Sertão: Veredas sem, no entanto, emparelhá-lo a Machado de Assis na relevância de interpretação do Brasil? De outro modo: a interpretação de Schwarz indicaria uma ausência da matéria brasileira em Guimarães Rosa ou esta existe e não foi destacada?
Tais questões implicam em lançar mão de leituras posteriores da obra de Guimarães Rosa que, dialogando com as interpretações canônicas de Antonio Cândido e Roberto Schwarz, dão passos adiante. É quando os críticos retomam o conceito de formação brasileira[16].
4. Releituras sócio-históricas de GSV
A primeira iniciativa de abordagem do romance GSV com ênfase no elementos sócio-históricos foi feita, ainda nos anos 1970, por Walnice Galvão. Nos anos que separam aquele trabalho do conjunto de outros que só ocorrerá com maior fôlego na década de 1990, as leituras do romance privilegiarão aspectos como a a relação entre particularidade do sertão e universalidade – alicerçadas, sobretudo, na crítica de Antonio Candido – ou mesmo aquelas de cunho esotérico o puramente metafísico. As releituras feitas nos anos 1990 desenvolverão aspectos que estão presentes na leitura de Walnice Galvão, ao mesmo tempo em que sinalizarão, cada qual ao seu modo, a influência da crítica inicial de Antonio Candido[17].
Com a ressalva desse intervalo na crítica de GSV e embora situado ainda na década de 1970, tomarei o trabalho de Walnice Galvão como ponto de partida. Na sequência, procurarei mostrar os principais aspectos das referidas releituras de décadas depois: primeiro em textos fruto de pesquisas mais extensas que privilegiam aspectos alegóricos de GSV – Heloísa Starling, Luiz Roncari e Willi Bolle – e, em seguida, num ensaio breve de cunho acentuadamente dialético de José Antonio Pasta Jr. Ao final deste quadro sinótico, será possível apontar o que de mais importante reter, dada a diversidade de enfoques, dessa nova etapa da fortuna crítica de Grandes Sertão: Veredas[18].
4.1 As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade no Grande sertão: veredas
O trabalho de Walnice Nogueira Galvão As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade no Grande sertão: veredas, publicado em 1972, é fruto de tese de doutorado defendida sob orientação de Antonio Candido. É a primeira análise que se dedica a aspectos históricos e sociais presentes no romance de Rosa, tomando como ponto de partida e avançando sobre o ensaio Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa de Antonio Candido, publicado um ano antes.
O trabalho de Walnice Galvão anuncia no título o elemento fundamental do romance. Distintamente da contradição, que engendraria o novo, é a “ambiguidade, [o] princípio organizador deste romance, [uma vez que] atravessa todos os seus níveis: tudo se passa como se ora fosse ora não fosse, as coisas são e às vezes não são” (Galvão, 1972, p. 12).
É como ambiguidade que a história comparecerá no romance, segundo a leitura de Galvão. Para a autora, há duas instâncias que se inter-relacionam: a “matéria historicamente dada” – aspectos sociais, econômicos e políticos que destrincham o coronelismo e a jagunçagem – e a “matéria imaginária” – que se mostra nos traços medievais com que o escritor reveste a narrativa (Galvão, 1972, p. 12-13; 51).
Sem diferenciar o jagunço do cangaceiro, interessa a autora mostrar como a condição de jagunçagem está associada à dos coronéis na vigência da Primeira República (1889-1930), contexto em que se passa a narrativa de GSV. Avançando algumas casas em relação da Antonio Candido, em cuja leitura a matéria histórica é apenas sugerida, mas não desenvolvida, Walnice Galvão mostra como o romance transparece o “braço armado” da jagunçagem, uma vez que é “tradição brasileira secular a presença de uma força armada a serviço de um proprietário rural” (Galvão, 1972, p. 21).
Em diálogo com abordagens diversas sobre o Brasil, como as de Oliveira Vianna, Raymundo Faoro, Caio Prado Jr., entre outros, Walnice Galvão deixará uma pista de enorme valor para as futuras leituras de GSV. Para a autora, Guimarães Rosa “dissimula a História para melhor desvendá-la” (Galvão, 1972, p. 63). Mantendo-se fiel à tradição da crítica literária dialética, a autora não propõe a equivalência esquemática entre os fatos ou figuras políticas da República Velha e os elementos do romance, e sim a análise da dinâmica presente na narrativa, ou seja, a “encarnação em personagens do romance do próprio processo político de consolidação nacional” (Galvão, 1972, p. 64).
Destaque-se, nesse sentido, o conflito entre unidade nacional e interesses localistas dos coronéis – algo tão vivo nas primeiras décadas da República. A figura de Zé Bebelo, por exemplo, e seu esforço de superação do jaguncismo interessa à autora por emular, na estrutura estética do romance de Guimarães Rosa, o “papel histórico do princípio centralizador republicano” (Galvão, 1972, p. 64). Nesta figura, elementos como eleições, educação e progresso denotam uma “visão nacional”, porém sem escapar à ambiguidade, pois Bebelo arvora a valentia, o uso da força, numa palavra: “usa jagunços para acabar com jagunços” (Galvão, 1972, p. 64-65). O que, não por acaso, Riobaldo também adotará como estratégia no decorrer na trama[19].
Do vasto estudo da autora, do qual aqui apenas recolho seletivamente alguns aspectos, cabe ainda destacar a ambiguidade que se mostra de modo particular na figura do narrador Riobaldo: ele se alterna entre o letrado e o jagunço, entre a condição de professor de Zé Bebelo – o adversário dos bandos localistas de Joca Ramiro e outros líderes – e a de futuro jagunço do próprio Joca Ramiro. O ponto alto estará no pacto com o diabo, evento no qual se mostrará com todo vigor a “reversibilidade das relações entre o bem e o mal” (Galvão, 1972, p. 117). Este elemento que já aparecera na abordagem de Antonio Candido é retomado por Walnice Galvão. Analisando sub-narrativas presentes em GSV, a autora mostra que o pacto é uma tentativa de encontrar certeza no terreno da incerteza – do que decorre a quase obsessão de Riobaldo em saber se fez ou não o pacto. Com efeito, ao contar a história a um interlocutor, o narrador busca uma forma de remissão. Ali “teríamos a confissão como instrumento de reversibilidade” (Galvão, 1972, p. 120).
O fluir da vida e a constante mudança sofre no pacto uma interrupção – papel exercido pelo diabo. Não por acaso, o fruto será ambíguo, pois resulta na vitória de Riobaldo, agora alçado a chefe do bando pela força renovadora do pacto, sobre os Hermógenes, mas também na perda de Diadorim – inferno e céu se intercambiam. Desse modo, querer “subjugar o mundo e fazê-lo curvar-se às suas ordens pode redundar em danação” (Galvão, 1972, p. 130).
O pêndulo entre uma coisa e outra também aparecerá na posição do autor. Seu texto apresenta um discurso oral e, ao mesmo tempo, escrito; sertanejo e erudito; lúcido ao tratar da matéria historicamente dada e mítico quando resvala para a matéria imaginada.[20] Em síntese, um autor que “apreende as tensões da realidade como ambiguidades sem radicalizá-las em contradições” (Galvão, 1972, p. 122)[21].
Esse breve apanhado é o suficiente para evidenciar dois grandes veios que o estudo de Walnice Galvão fornece e que, cerca de duas décadas depois, as releituras procurarão desenvolver: de um lado, a sugestiva indicação de possíveis alegorias entre o romance e a realidade brasileira; de outro, o aspecto da ambiguidade sem fim que perpassa a obra e aponta ao infinito – símbolo que (talvez) propositadamente fecha a narrativa.
4.2 Lembranças do Brasil: teoria, política, história e ficção em Grande Sertão: Veredas
Publicado em 1999, o trabalho de Heloisa Starling, também fruto de pesquisa de doutorado, analisa o tratamento ficcional que é dado pelo romancista ao contexto político da Primeira República.
Partindo do campo da ciência política e não da crítica literária, a autora enxerga em GSV um “mapa alegórico” do Brasil na passagem do arcaico para o moderno (Starling, 1999, p. 14)[22]. Nesse sentido, a alternância de tipos distintos de chefes jagunços demonstraria o embate entre projetos políticos diversos. Os gestos fundadores de Medeiro Vaz (justiça), Joca Ramiro (interesse) e Zé Bebelo (modernidade) deixam “entrever uma ambição fundadora, recriando literariamente as tentativas de transformações de uma comunidade territorial, linguística, étnica ou religiosa” (Starling, 1999, p. 13).
Desse modo, na interpretação de Starling comparecem tanto os problemas oriundos de um processo inacabado de formação nacional quanto elementos de esperança de sua conclusão. É sobretudo Zé Bebelo a figura representativa de um “programa modernizador”, como afirma a autora em outro trabalho, ainda que com “pretensões políticas reformistas”; não obstante, o determinante é o fato de que “o Sertão não é outra coisa senão o traço da paisagem passada que se pretende ver concluída” (Starling, 1998, p. 142).
Como bem aponta Corpas (2006, p. 199), a importante discussão feita por Heloisa Starling quanto aos elementos políticos e sociais que transparecem no romance rosiano não impede que a abordagem tenha um alcance crítico relativamente restrito e isso se deve, sobretudo, ao fato de que a “observação analítica é direcionada não para a dinâmica interna da obra (...), mas para as intenções subjetivas do escritor, dos personagens e, eventualmente, do narrador”. De onde decorrem as várias referências – ou inferências – a um “projeto literário de Guimarães Rosa” (Starling, 1998, p.145), supondo que a feitura da obra tenha obedecido à consciência daquilo “que é necessário se fazer presente na realidade de um país que precisa, a todo custo, encontrar o próprio caminho de passagem para o moderno” (Starling, 1999, p.18). Em suma, uma abordagem que parece atribuir à literatura rosiana um caráter empenhado, no sentido dado por Antonio Candido, para além do que o romance mesmo permite vislumbrar em seu constructo estético.
4.3 O Brasil de Rosa. Mito e história no universo rosiano: o amor e o poder
Em 2004 vem à luz a publicação de Luiz Roncari que procura, tal como os trabalhos de Heloisa Starling e Willi Bolle, discutir os aspectos estéticos de GSV concomitantemente os seus elementos históricos e sociais, dando ênfase ao período da narração – as primeiras décadas do século XX. Além disso, o enfoque de Roncari tem a preocupação de apresentar os traços patriarcais visualizáveis em GSV, assim como elementos míticos e cósmicos oriundos da cultura greco-latina.
De forma análoga ao exercício proposto por Walnice Galvão, Roncari também propõe duas “camadas de texto”, ou seja, uma voltada aos temas concretos do sertão – a jagunçagem, os conflitos etc. – e outra voltada à “dimensão simbólica, universal e mítica”; porém, acrescenta à análise uma terceira camada, a que “alegorizava a história da vida político-nacional de nossa primeira experiência republicana e numa perspectiva que poderíamos considerar conservadora” (Roncari 2004, p. 18-19)[23].
Numa chave interpretativa próxima à de Oliveira Vianna – e indiretamente à de Alberto Torres com sua tese da insuficiente organização nacional brasileira –, a dimensão conservadora é atribuída à instabilidade que o novo regime republicano teria criado, gerando uma “nostalgia da ‘ordem imperial’” (Roncari, 2004, p. 19). A análise sobre os grupos de jagunços terá influência de tal chave e, por isso, enquanto Heloisa Starling vê na sucessão dos líderes um movimento para frente em busca da modernização do país Luiz Roncari vê reflexos do passado, no vazio deixado pela ausência do Imperador. Daí a afirmação do autor de que teria encontrado “Oliveira Vianna dentro da obra literária e da visão do autor [Rosa], como um seu fator ideológico de sustentação importante, e não fora, como teoria história explicativa da realidade empírica na qual se passava a ação do livro” (Roncari, 2004, p. 274). Não por acaso, calcado no mesmo Oliveira Vianna, Luiz Roncari vai associar o romance ao princípio da “modernização conservadora”, aquele processo pelo qual, em termos sociais, ocorre “a mudança no sentido de seu revigoramento e fortalecimento” (Roncari, 2004, p. 303). Não é irrelevante, nesse sentido, o fato de que o jaguncismo se transforma durante a trama – modernizando-se, poderíamos dizer – mas não se extingue por completo, pois a própria narrativa se dá em uma condição em que Riobaldo recebe o interlocutor em sua fazenda cercada de jagunços que a protegem.
Como se vê, o autor procura evitar o equívoco atribuído por Willi Bolle a Heloisa Starling de aplicar teorias de fora para dentro da obra, tendo o mérito de buscar no interior mesmo dela os aspectos que remetem ao mundo externo. No entanto, é discutível o quanto a dimensão conservadora visualizada pelo ensaísta não seria também uma projeção lançada sobre o texto de Guimarães Rosa, atribuindo-lhe uma visão ideológica que teria condicionado a feitura do romance.
Nesse sentido, Luiz Roncari, semelhante a Heloisa Starling, porém com sinal trocado, atribui a Guimarães Rosa um projeto de cunho político inerente ao romance, o que se manifesta mais fortemente na relação (detectada pelo ensaísta) entre o escritor e o pensamento de Alceu Amoroso Lima, particularmente com seu Política e Letras, publicado em 1924: “Este ensaio (...) procura apontar a saída quase milagrosa aos seus impasses [da civilização brasileira]: a harmonização das forças contrárias, como modo de solução” e, acrescenta, “e Guimarães parece tê-lo assumido como diagnóstico e aceito a sua proposta de solução, quase como uma missão a ser cumprida pela sua obra” (Roncari, 2004, p. 23-24).
Mesmo discutível, o aspecto de harmonização das forças contrárias, ou seja, um empenho pela superação da desordem por meio de um equilíbrio de antagonismos, que em muito lembra Gilberto Freyre, é uma contribuição original de Luiz Roncari para a leitura do romance de Guimarães Rosa. Como lembra Corpas (2006, p. 224), a leitura sócio-histórica do romance rosiano feita pelo ensaísta sinaliza “a harmonização mantenedora dos parâmetros norteadores de práticas sociais e políticas enraizadas, patrocinados por patriarcalismo e mandonismo, e apenas ajustados aos novos termos da institucionalidade”.
4.4 Grandesertão.br. O romance de formação do Brasil
No mesmo ano de lançamento do livro de Luiz Roncari, Willi Bolle publica seu extenso trabalho sobre Guimarães Rosa, relacionando de modo ainda mais enfático que os outros textos apontados anteriormente a relação entre romance e formação nacional brasileira, já prenunciados em seus artigos anteriores (Bolle, 1994/1995; 1997/1998). Em termos gerais, há para o crítico uma articulação direta entre um problema social e político secular do Brasil – “a ausência de um verdadeiro diálogo entre os donos do poder e o povo” (Bolle, 2004, p. 17) – e a construção do romance GSV.[24]
A ausência de diálogo é um impedimento para a plena emancipação do país e teria se conformado no elemento literário fundamental de Guimarães Rosa. Por isso a correspondência entre elementos histórico e sociais – desigualdade entre classes, desagregação, impasses etc. – e estéticos da obra, como a “montagem contrastiva”, a “utopia da invenção de uma nova linguagem” e, sobretudo, a força desagregadora do Diabo (diabolos, o que separa) como “entidade que se interpõe, entre pessoas, entre classes” (Bolle, 2004, p. 17-18).
O referido princípio da historiografia alegórica de Walter Benjamin é tomado por Willi Bolle para a compreensão da sociedade brasileira e seus desafios: “a realidade histórico-social do país é iluminada por uma qualidade específica de conhecimento”, o que permite compreender o romance “como um retrato do Brasil” (Bolle, 2004, p. 22-23). Retomando a proposta do sertão como mapa alegórico do Brasil, é possível ao crítico visualizar as correspondências: “o sistema jagunço” com “a instituição entre a lei e o crime”; o “pacto com o Diabo”, como a “alegoria de um falso pacto social”; a “figura de Diadorim” com o “desafio de desvendar o dissimulado e o desconhecido”; “a fala do povo” com “o próprio labirinto da língua...” (Bolle, 2004, p. 8-9).
Se na crítica de Roberto Schwarz fora destacado o diálogo entre gêneros estéticos – o épico, o dramático e o lírico – para Willi Bolle o diálogo se dá entre o romance de Rosa e o gênero “ensaios de formação do Brasil” (Bolle, 2004, p. 261). A visita a este gênero presente em Euclides da Cunha, Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr., Antonio Candido, entre outros, não configura um procedimento inovador – Heloisa Starling e Luiz Roncari também o propuseram, ainda que com outros recortes. No caso de Willi Bolle está em questão compreender no romance os elementos da “nação dilacerada”, como explica o crítico: “dilaceramento tratado pelo romancista em sua dimensão linguística e simbólica, com o Diabo encarnando o princípio do desentendimento” (Bolle, 2004, p. 263).
Do vasto e complexo estudo de Willi Bolle destaco apenas dois elementos: o comparativo com Os Sertões de Euclides da Cunha e a interpretação do pacto com o Diabo como alegoria de um falso contrato social. Quanto à obra euclidiana, o autor é taxativo: o romance de Rosa é “uma reescrita crítica desse livro precursor” (Bolle, 2004, p. 8). Admitindo uma dimensão especulativa, que não descarta o apoio em fontes, Willi Bolle defende que Guimarães Rosa, leitor de Os Sertões, “precisava ter uma noção estratégica da posição que pretendia ocupar com o seu romance no cenário da literatura brasileira e universal” (Bolle, 2004, p. 28). O fulcro da abordagem sobre Euclides da Cunha está em situar seu método falho, uma vez que “se propõe a escrever a história de ambos os lados, estabelecendo uma empatia simultânea com os ‘bárbaros’, como ele chama os sertanejos rebeldes, e com os ‘antigos’, que seriam seus concidadãos ‘civilizados’” (Bolle, 2004, p. 37).
No caso de GSV a forma adotada é a da conversa que, como elemento estético, “coloca no centro do seu romance o problema da heterogeneidade da chamada ‘cultura brasileira’” (Bolle, 2004, p. 39). Mais que isso, a reinvenção da linguagem rosiana alcança um efeito importante, reforçando o subtítulo do livro: “Ele [Guimarães Rosa] não se limita a escrever sobre o povo, mas faz com que as pessoas do povo sejam elas mesmas donos das palavras, assim como ele, o escritor mergulha em suas falas” e, com isso, realiza um “engajamento na oficina de linguagem de uma país que ainda está se fazendo” o que “pode nos levar a considerar Grande Sertão: Veredas como o romance de formação do Brasil” (Bolle, 2004, p. 44, grifos do autor).
Passo ao segundo aspecto, o pacto. O crítico compreende o episódio das Veredas-Mortas dentro do esquema interpretativo geral do ensaio. Não há, para o autor, contradição entre elementos históricos e míticos, o que, segundo ele, foi uma falsa oposição na fortuna crítica de GSV: “Trata-se, em vez disso, de desenvolver uma interpretação dialética, no sentido de extrair dos elementos esotéricos, míticos e metafísicos do romance conhecimentos históricos, políticos e sociais” (Bolle, 2004, p. 148).
Diferentemente de Heloisa Starling que prioriza os “gestos fundadores” dos líderes jagunços como exemplos de um empenho rumo à modernização – dos quais Zé Bebelo é o mais moderno –, Willi Bolle centra a dinâmica da sociedade sobre o pacto do narrador. O ensaísta visualiza no pacto uma ascensão social do protagonista da condição de jagunço pobre a latifundiário e também o indicativo da instituição de uma ordem social e jurídica: “A contribuição de Guimarães Rosa para a teoria da política e da história consiste” em apresentar a “ascensão de um raso jagunço a chefe e latifundiário, a história da institucionalização da propriedade, da lei e da ordem social” (Bolle, 2004, p. 158). Com aporte na teoria política de Jean-Jacques Rousseau, Willi Bolle interpreta o pacto com o Diabo como uma alegoria de um falso contrato social – que não unifica a sociedade, mas ao contrário justifica sua desigualdade interna.
O diabólico que atormenta o narrador do romance é exatamente o mal social, ou seja, há um empenho de Riobaldo em encontrar remissão de sua culpa como correlato político-social de justificativa de uma ordem social, na qual impera, agora na forma de um contrato social a desigualdade e o uso legítimo da força pelos que tem o domínio político. No sossego da propriedade e no gozo da autoridade que adquiriu graças ao pacto, Riobaldo se cerca de jagunços, antes companheiros de armas e agora seus servidores.
Bem ao modo de construção da sociabilidade brasileira, elementos formais como o trabalho e a administração misturam-se com aspectos afetivos e personalistas: “Deixo terra com eles, deles o que é meu, fechamos que nem irmãos”; porém, por atrás de uma relação de aparenta compadrio se esconde o fundamental que é a defesa da propriedade: “Estão aí, de armas areiadas. Inimigo vier, a gente cruz chamado, ajuntamos: é hora dum bom tiroteiamento em paz, exp’rimentem ver” (Rosa, 2001, p. 40). Falsa igualdade, ausência de diálogo entre donos do poder e o povo. O romance como retrato do Brasil.
A intepretação de Bolle é, por certo, original e suscita reflexão. Ocorre que em tais ambiguidades ou limites do romance o ensaísta enxerga um projeto, uma possibilidade dada pela obra de Rosa para a superação dos velhos problemas sociais brasileiros – e isso iluminado pelo marco civilizatório das sociedades modernas (educação, lei, Estado etc.). Confessadamente, o crítico vislumbra na reescrita da história a partir do romance um potencial transformador, que possibilitaria o alcance de “um utópico ponto no futuro” e talvez aquilo que até então foi malogrado, ou seja, “um autêntico diálogo entre a classe dominante e as classes de baixo” (Bolle, 2004, p. 446).
Como lembra Corpas (2006, p. 156), há no ensaio de Willi Bolle um “indisfarçado elogio à atitude de Riobaldo, análogo à valorização de Guimarães Rosa como reescrita ou nova escrita da história capaz de trazer à tona a micro-história dos vencidos”. Seria um encantamento demasiado com o texto? Ou estaríamos diante de uma forma adequada de lê-lo? Penso que ambas as coisas. A leitura de Bolle faz com que se vislumbre um projeto do autor do romance que, no limite, tornaria sua elaboração estética uma espécie de decorrência de seus intensões para o Brasil. Por outro lado, indica a possibilidade de uma leitura de elementos como a violência, o conflito de classes, o pacto com o diabo como reveladores da dinâmica mesma do país. Nesse sentido, independentemente do que tenha desejado o autor de GSV, a matéria brasileira está ali presente.
4.5 O romance de Rosa. Temas do Grande sertão e do Brasil
Embora escrito no mesmo período que os demais (1999) esse breve ensaio de José Antonio Pasta Jr. apresenta aspectos que o singularizam. Dentre todas as abordagens aqui entendidas como releituras sócio-históricas de GSV a de Pasta Jr. é aquela em que o apuro dialético encontra maior grau de profundidade.
Ao mesmo tempo em que conserva da recepção inicial ao romance sua valorização estética, Pasta Jr. incorpora elementos das leituras sócio-históricas. No entanto, não há em seu ensaio o mesmo trabalho alegórico que se encontra em Heloisa Starling, Luiz Roncari ou Willi Bolle, tampouco a indicação de qualquer projeto do autor subjacente ao romance: a dinâmica histórica que a obra apresenta se encontra no interior de sua estruturação formal, no melhor estilo proposto por Antonio Candido. Tentarei apresentar um esboço da complexa abordagem do ensaísta.
De início Pasta Jr. apresenta um grande desafio à crítica literária, sobretudo em se tratando de um texto envolvente como o de Guimarães Rosa. Os aspectos de transcendência, de enigma e mistério de sua narrativa exigem um esforço de relativização: “quem quiser de fato ler o Grande Sertão guardando fidelidade à demanda do livro, terá de lê-lo ao mesmo tempo com isolamento e a distância que supõe o romance moderno e com o fusionamento e a participação que, no limite, só conhecem o mito e o rito” (Pasta Jr.., 1999, p. 62, grifos do autor)[25].
A pedra de toque da crítica é sem dúvida a hibridização que o romance leva ao infinito e que constitui sua estruturação formal. Nesse sentido se apresenta a “matriz de todas as misturas: a vigência simultânea de dois regimes da relação sujeito-objeto”, um que supõe a distinção e outro, a indistinção (Pasta Jr., 1999, p. 62).
Aquilo que o crítico nomeia como princípio organizador do romance está na “movência contínua”, tornando toda a narrativa uma “série incessante e mesmo dramática de mutações” (Pasta Jr., 1999, p. 63). Não estaríamos nesse caso tão longe de outras abordagens vistas. No entanto, a originalidade do ensaio está, sobretudo, em retomar um aspecto deixado pela leitura de Walnice Galvão, desenvolvendo-o. A autora afirmara que o romance de Rosa “apreende as tensões da realidade como ambiguidades sem radicalizá-las em contradições” (Galvão, 1972, p. 122, grifo meu). Para Pasta Jr. (1999, p. 63, grifo meu), a mutação ou metamorfose contínua presente no romance aparece como um motor paradoxal “incapaz de produzir a diferença ou de encaminhar a transformação”; desse modo, “[n]o passado do narrador, no presente da narração – nenhuma superação –, o mesmo dilema se põe e repõe inteiro, irredutível: como o mesmo pode ser outro?”.
Há uma contradição de base que constitui Riobaldo, eixo da trama: “Indivíduo isolado, de um lado, membro de fratria ou clã de outro; livre e dependente; homem de lei e de mando, de contrato e de pacto; letrado e iletrado – moderno e arcaico”; ou, em outros termos: “de passagem abrupta de um polo a outro, de um bando a outro, de uma convicção a outra, de um caráter a outro”, no que pode se chamar de replicação de reversibilidades (Pasta Jr., 1999, p. 63-64). Esse valioso achado crítico de Antonio Cândido é retomado agora numa chave sócio-histórica, o que dá maior amplitude à postura de “pergunta necessariamente obsessiva e necessariamente sem resposta” de Riobaldo (Pasta Jr., 1999, p. 64). O narrador vem a ser no mesmo movimento em que deixa de ser: “ele se forma suprimindo-se” (Pasta Jr., 1999, p. 64, grifo do autor).
O movimento que ao mesmo tempo supõe o lugar do outro e o anula – também chamado pelo ensaísta de má infinidade – atinge até o leitor: “o Grande Sertão estende a lei que é a sua, a única que finalmente conhece: o outro é o mesmo” e tal processo faz “desse leitor uma espécie de duplo do narrador, um seu outro e o mesmo, algo entre o contratante e o pactário” (Pasta Jr., 1999, p 64).
Mas, afinal, em que medida se encontram elementos sócio-históricos em tal abordagem? A resposta está na formulação lapidar de Pasta Jr.: formação supressiva. Movimento frustrado, eterno retorno, sentimento de imutabilidade – a forma estética do livro a elaborar a dinâmica própria da sociedade brasileira. Como lembra o autor, “a obra culmina sem terminar-se, escoando-se como para um ponto de fuga infinito” (Pasta Jr., 1999, p. 64).
O hibridismo da obra é índice do hibridismo que constitui a realidade brasileira, uma “marca de nascença” que exatamente como no romance é “posta e reposta ao longo de sua história”; tal marca está no fato de que o Brasil “surge na órbita do capital e como empresa dele”, porém, “evolui com base na utilização maciça (...) do trabalho escravo” (Pasta Jr., 1999, p. 67). Contradição de base de Riobaldo; contradição de base do Brasil: “uma espécie de enigma histórico e sociológico que as ciências humanas permanecem a interrogar”, tal qual o narrador do romance interroga o interlocutor doutor (Pasta Jr., 1999, p. 67). É como se na cena do sertanejo que hospeda o homem dos estudos – “Inveja minha pura é de uns conforme o senhor, com toda leitura e suma doutoração” (Rosa, 2001, p. 30) – durante a qual toda a narrativa se desenvolve, estivesse refletido, uma vez mais, o empenho do intelectual brasileiro em compreender os antagonismos de seu país. Não deixa de ser sintomático que o homem de estudos, no romance, permaneça em silêncio.
O amálgama complicado de “relações interpessoais e sociais que supõem”, de um lado “a independência ou a autonomia” e, de outro, “sua dependência pessoal direta” constitui uma realidade social que encontra na estruturação formal de GSV igualmente o caráter de insolubilidade – em outros termos, uma formação supressiva que reconhece e nega ao mesmo tempo a alteridade (Pasta Jr., 1999, p. 67).
Retomando agora um elemento da crítica de Roberto Schwarz ao romance, Pasta Jr. indica a confluência entre gêneros – o lírico, o épico, o trágico. Isso tudo concentrado na consciência narradora, encontra aspectos de uma luta de morte: “Vivendo de modo aparentemente tão afirmativo sua identidade, Riobaldo, no entanto, nunca é ele mesmo – na medida em que a todo momento é tomado ou possuído pelo projeto de um outro” (Pasta Jr., 1999, p. 68).
O princípio que rege o turbilhão de mutações é o diabólico. Nesse sentido, o redemoinho que dá subtítulo ao livro, é imagem perfeita da formação supressiva ou má infinidade, por girar em torno de um ponto fixo: “Movimento imóvel, ele não conhece superação ou síntese, mas apenas o entrematar-se dos princípios em oposição e, assim, o conflito sempre renascente” (Pasta Jr., 1999, p. 68, grifo meu). A reversibilidade contínua do romance – cuja altura maior está sem dúvida na figura de Diadorim, céu e inferno de Riobaldo – fornece, portanto, os elementos para a noção de formação supressiva proposta por Pasta Jr. Trata-se de uma “ultrapassagem que não supera” (Pasta Jr., 1999, p. 69).
Nesse sentido, vale um parêntese sobre interessante formulação advinda do campo cinematográfico – recolhida por Arantes (1992). Trata-se de um apontamento de Paulo Emílio Sales Gomes, feito em 1977, acerca da trajetória do cinema em países subdesenvolvidos como o Brasil. O crítico dá conta de um movimento simultâneo de identificação e dissociação: “Não somos europeus nem americanos do Norte, mas destituídos de cultura original, nada nos é estrangeiro, pois tudo o é” – uma vastidão similar ao sertão rosiano; e completa: “A penosa construção de nós mesmos se desenvolve na dialética rarefeita entre o não ser e o ser outro” (Gomes, 1996, p. 90, grifo meu). Antonio Candido, em debate sobre o artigo de Paulo Emílio, comentaria que “o brasileiro não pode deixar de viver pendurado no Ocidente e ele deve tentar não viver pendurado no Ocidente. Ele tem que tentar fazer uma cultura dele, mas a cultura que ele pode fazer é uma cultura pendurada no Ocidente”; e concluiria, expandindo a perspectiva do artigo – a do não ser e o ser – para além do cinema: “Essa é a dialética da cultura brasileira” (Candido et al., 1980, p. 4, grifo meu).
Voltando a Pasta Jr., trata-se de um ensaio complexo e instigante. Além do debate, suscita ressalvas às releituras sócio-históricas de GSV que lhe são contemporâneas. Em certa medida próximo da conclusão de Luiz Roncari, segundo a qual o antigo ordenamento social não é propriamente superado, mas ajustado – porém sem o elemento conservador daquela leitura –, Pasta Jr. destoa bastante das conclusões mais otimistas ou esperançosas de Heloisa Starling e Willi Bolle, visto que no registro da formação supressiva não há salto para uma modernização emancipadora e tampouco a superação da desigualdade, ainda que nos marcos de um diálogo entre classes. O que há é a infinita continuidade do mesmo, aspecto de grande importância para a compreensão das décadas seguintes ao romance de Rosa.
Considerações Finais
Os apontamentos feitos neste artigo não dão conta da complexidade de análise de um autor como Guimarães Rosa e nem pretenderam um balanço rigoroso sobre as releituras sócio-históricas de GSV realizadas na virada dos anos 1990 para os anos 2000. Ainda assim, foram suficientes ao propósito deste artigo que consistiu em situar GSV não como uma exceção na trajetória da literatura empenhada, mas como continuidade dela, ressalvadas suas inegáveis características próprias. As releituras do romance permitem um entendimento do sertão roseano, ao mesmo tempo, herdeiro do regionalismo dos anos 1930 e composto de aspectos metafísicos e existenciais, sem perder – e isso o que nos interessou especialmente – traços de elaboração do contexto brasileiro da década de 1950.
Desse modo, retomo, como síntese, duas linhas gerais de interpretação quando às releituras sócio-históricas de GSV: a primeira, formada por aquelas mais apegadas ao entendimento da história fornecido pelo romance, na qual se enquadram os trabalhos de Heloisa Starling, Luiz Roncari e Willi Bolle. Desta, há um sem-número de linhas de investigação e aprofundamento possíveis, sobretudo no que propõem de diálogo entre literatura e os ensaios de interpretação do Brasil. A crítica literária de Guimarães Rosa só tem a ganhar.
A segunda linha, que privilegiei na análise, é aquela que busca se manter atenta ao estudo da forma literária e do substrato histórico que ali subjaz, à revelia da intensão do autor do romance. Nesse caso, o trabalho de Walnice Galvão me parece manter pleno vigor, mesmo após décadas. Além dele, o de José Antonio Pasta Jr. aponta um caminho que merece continuidade. Ambos, por sinal, retomam e desenvolvem, agora com maior atenção ao aspecto da história, o que a leitura de Antonio Candido já desbravava nos primeiros anos de recepção do romance – a meu juízo o mais valioso da fortuna crítica de GSV: a ambiguidade e a reversibilidade do texto como visíveis manifestações de uma conjuntura de formação nacional igualmente marcada por idas e vindas, por proposições e inadequações, por afirmações e supressões, todos esses elementos plenamente visíveis na efervescente década de 1950 e que se tornarão agudos em 1964.
A literatura regionalista do século XX, notadamente nos anos 1930, havia problematizado um antagonismo de novo tipo em relação à tradição literária brasileira, ou seja: o localismo regionalista não é propriamente uma defesa em abstrato de um nacionalismo ou patriotismo e sim uma exacerbação dos problemas sociais gritantes de um país que ensaiava alcançar patamares de nação moderna, mas não realizava as tarefas que tal processo deveria impor.
Nesse sentido, quando Guimarães Rosa supera o regionalismo por meio de uma forma literária que atinge a universalidade própria de grandes obras da civilização, ele o faz não abandonando in totum a cena local, mas revisitando o próprio regionalismo – processo a que Antonio Candido chamou de super-regionalismo. A chave agora é outra: evidenciam-se os processos de permanência do arcaico em plena vigência do moderno. Não é mais a feição local a se transmutar gradativamente rumo a um marco universal – como o regionalismo de 1930, por exemplo, sinalizava nos grandes temas da educação, cidadania etc. – mas sim uma “feição local do universal”, nos termos de Arantes (1992, p.18-19). Ou seja, um modo específico de ser moderno e não um atraso.
Portanto, no lugar de uma formação nacional no horizonte distante o que se descortina é um processo em fase de conclusão. Um país em grande medida já moderno que, para usar os termos de Pasta Jr., suprimiu os elementos civilizatórios mínimos que a modernização implicava. A ambiguidade e a reversibilidade da narrativa de GSV apontam, nesse caso, para a insistência de um tipo de dialética, em que os antagonismos, ao invés de serem superados, são renovados no momento seguinte, com qualidade e gravidade também novas.
O que esse romance tem a dizer sobre o nosso tempo? O anacronismo de tal questionamento é evidente. A pergunta mais apropriada parece ser: o que GSV pode dizer sobre a segunda metade dos anos 1950? O breve estudo proposto neste trabalho indica que já ali era possível um entendimento da nossa sociedade como um compósito entre o velho e o novo. Ao tempo em que varre o jaguncismo do sertão, Riobaldo o recoloca, agora sobre as bases da propriedade privada e sob a necessidade da paz social.
Entendido assim, GSV se mostra um romance potente, afinado com o seu tempo. Os anos seguintes evidenciarão que, em certa medida, o sertão de Rosa é o Brasil. Os romances que surgirão pós-1964 procurarão retratar as imensas contradições de uma sociedade marcada pelo autoritarismo e pelo uso oficial da força por parte da classe dominante para calar aqueles que defendem um Estado republicano e democrático. Mais adiante, a literatura de memória da ditadura demonstrará que o processo de modernização custou a supressão dos supostos aspectos civilizatórios do capitalismo. A relevância em reler GSV está justamente em considerar não a ditadura como o evento que impõe tal contradição, mas sim o nosso processo de formação nacional que lhe é anterior e já em 1956 dava sinais dos seus limites.
Notas de rodapé
[1] Para facilitar a exposição, tomarei o romance de Rosa doravante por suas iniciais – GSV.
[2] Como exemplos de obras basilares desse período: Casa grande e senzala (1933) de Gilberto Freyre; Raízes do Brasil (1936, 1ª ed.) de Sérgio Buarque de Holanda; Formação do Brasil contemporâneo (1942) de Caio Prado Jr.; Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro (1958) de Raymundo Faoro; Formação econômica do Brasil (1959) de Celso Furtado e Formação da literatura brasileira (1959) de Antonio Candido.
[3] Entre outros critérios possíveis para enfeixar obras que permitissem compreender os desafios centrais colocados ao país ao longo do século XX haveria o da temática propriamente sertaneja que, retrocedendo ao final do sec. XIX, está presente em obras como Inocência (1872) de Visconde de Taunay, O sertanejo (1875) de José Alencar e O Cabeleira (1876) de Franklin Távora; estaríamos na tradição que atinge o ápice em Euclides da Cunha. Outro caminho seria tomar as obras que buscam refletir o “coração do país” em obras como Iracema (1865) de José de Alencar, o próprio Os Sertões (1902) e Macunaíma (1928) de Mário de Andrade; o que nos colocaria nos trilhos que levam a Quarup de Antonio Callado, na qual há o arremate desta temática. Para isso, ver Lacerda (2008).
[4] Para boa parte desta seleção me inspiro na conferência de João Cezar Castro Rocha intitulada “Literatura brasileira: missão ou entretenimento”, proferida no Instituto CPFL em 03/05/2012. Disponível em: http://www.institutocpfl.org.br/2012/05/03/ficcao-brasileira-missao-ou-entretenimento-joao-cezar-de-castro-rocha/. Acesso: 27/02/2020.
[5] Para uma visão resumida sobre a originalidade de Os Sertões no início do sec. XX ver Candido (1999, p. 64).
[6] Esta posição oscilante de Euclides da Cunha em relação ao progresso é analisada por Simone Kropf (1996).
[7] A respeito da literatura de Lima Barreto, bem como a de Euclides da Cunha, ver o minucioso ensaio e Nicolau Sevcenko (1999). Sobre os dois escritores, o autor afirma que suas obras “resumem nas propostas e respostas estéticas os conflitos mais agônicos que marcaram a sociedade brasileira nessa fase”, já que cada um deles “é como que uma síntese das alternativas históricas possíveis, que se colocavam diante dos olhos dos autores” (Sevcenko, 1999, p.23).
[8] A Revista Diálogo fora fundada em 1955 por Dora Ferreira da Silva, Vicente Ferreira da Silva e Milton Vargas. Na edição dos Cadernos de Literatura Brasileira (2006, p. 59-60), há um depoimento da Dora Ferreira sobre a visita de Guimarães Rosa à sua casa, exatamente quando era preparado aquele número especial dedicado à sua obra. O escritor estava interessado na publicação e fez questão de ouvir o ensaio que a poetisa preparava para aquele número. Esse mesmo encontro é discutido por Enivalda Freitas Souza (2016), trabalho no qual a relevância da Revista é evidenciada.
[9] A discussão entre cosmopolitismo e localismo é complexa e remete, pelo menos, ao final do século XIX, não sendo possível abordá-la aqui. Ainda assim, vale mencionar que tal impasse se acentuou nas discussões entre Silvio Romero e José Veríssimo e ganhará novo capítulo, décadas depois, no movimento modernista, cf. Chagas (2014, p.241-244).
[10] O entendimento do alcance dessa formulação exige uma consideração, bastando dizer como fator problemático a diferença entre tempo e cenário das principais obras dos dois autores. Em Machado de Assis, final do XIX, a predominância do mundo urbano; em Guimarães Rosa, entre 1940 e 1950, novamente o mundo rural, num aparente (e estranho) recuo ao regionalismo. Coube a Paulo Arantes (1992) apresentar em Sentimento da Dialética um aprofundado estudo o caráter dialético na crítica literária de Antonio Candido, assim como na de Roberto Schwarz. Arantes mostra como em Antonio Candido a dialética se evidencia exatamente no movimento de tensão entre localismo e universalismo. Desde a Arcádia e o Romantismo – os “momentos decisivos” da obra Formação da literatura brasileira – o jogo entre afã universalista e afirmação do local ou nacional constitui o que, avançando pelo século XX, seria a “ambivalência que rege nossa dinâmica espiritual” (Arantes, 1992, p. 17). Esse jogo de força encontra situações em que os ciclos cumulativos se mostram completos. É então que se afirmam duas grandes referências: em Machado de Assis e Guimarães Rosa o particular tem caráter universal. Desse modo, como recorda Paulo Arantes, a dialética em Antonio Candido carrega esses dois sentidos inseparáveis: o de visível antagonismo entre localismo e universalismo e outro, mais sutil, de superação de um ciclo em outro que, não raro, mantém o antagonismo – não o mesmo, mas de outra qualidade, porque elevado a novo patamar. O aprofundamento teórico desse segundo sentido da dialética caberá a Roberto Schwarz.
[11] Ressalte-se que o paralelo entre GSV e Os Sertões – e que outros autores perseguirão futuramente – fora feito anteriormente no pioneiro ensaio Trilhas do Grande Sertão, em 1957, por Manuel Cavalcanti Proença. Como recorda Danielle Corpas (2006, p. 15), também os aspectos formais do romance, bem como ressonâncias míticas, desenvolvidos por Antonio Candido já estavam esboçados no texto de Proença.
[12] Em que pese a cuidadosa argumentação de Antonio Candido em tomar esse caminho interpretativo, autores como Walnice Galvão e Willi Bolle, que também traçam o paralelo entre os dois clássicos, encontrarão no texto rosiano aspectos similares ao de Euclides da Cunha, em especial no que seriam formas de “retratos do Brasil”. Tratarei disso adiante, na parte das releituras sócio-históricas de GSV.
[13] Para um estudo detalhado da relação entre a crítica de Antonio Candido e a recepção de Grande Sertão: Veredas, aqui apenas sumariado, ver o trabalho de Carvalho (2016), do qual aproveito valiosas referências.
[14] Foge aos nossos propósitos avaliar a imensa fortuna crítica de Grande Sertão: Veredas, em especial ao impacto que seu estilo linguístico e sua força poética causaram. Mas é digno de nota, a título de exemplo, o empenho de autores como Augusto de Campos em priorizar os aspectos formais do texto rosiano, algo consoante ao que, junto a seu irmão Haroldo Campos, já se delineava no concretismo. Em seu trabalho, Danielle Corpas se debruça com detalhes sobre isso, destacando o artigo de Augusto Campos Um lance de “dês” do Grande Sertão, publicado em 1959, que permite compreender o caráter de excepcionalidade que gradativamente foi dado à prosa de Guimarães Rosa, algo que os referidos ensaios de Roberto Schwarz corroboram, embora por caminhos distintos daquele seguido pelo concretismo. Ver Corpas (2006, p. 46-49).
[15] Paulo Arantes, no referido ensaio sob a dialética em Antonio Candido e Roberto Schwarz, faz questão de observar que a análise deste sobre o GSV é datada, ou seja, na década de 1960 o crítico ainda estava em vias de tomar o caminho da “cor local” brasileira como referência indispensável, daí a razão de conceber a passagem do particular para o universal em Guimarães Rosa sem a mediação da camada histórica (Arantes, 1992, p. 54-55). A justificativa seria plausível, não fosse o fato de que Schwarz, após dedicar-se à matéria brasileira, não tenha retomado obras como Sagarana ou GSV nas quais a cor local brasileira me parece evidente não como marcas de regionalismo e sim como representação estética de dilemas nacionais.
[16] Evito aqui, por fugir ao propósito deste trabalho, uma ampla apresentação da fortuna crítica de Grande Sertão: Veredas, por isso a ausência de referência a interpretações esotéricas ou místicas do romance, que não são poucas. Willi Bolle (2004, p.19-20) propõe uma síntese de cinco tipos metodológicos acerca de GSV: estudos linguísticos e estilísticos; análise de estrutura, composição e gênero; crítica genética; interpretações esotéricas, mitológicas e metafísicas; e, por fim, interpretações sociológicas, históricas e políticas. Para um entendimento detalhado sobre a fortuna crítica de GSV ver os já referidos trabalhos de Danielle Corpas (2006) e Candice Carvalho (2016), nos quais também me apoio para o apontamento sumário sobre as releituras sócio-históricas do romance.
[17] Embora não o aborde aqui, devo lembrar o ensaio de 1973, de José Hildebrando Dacanal intitulado A epopeia de Riobaldo, no qual aparecem, ainda que não amplamente desenvolvidas, sugestões de aspectos históricos internos ao romance que serão explorados futuramente. Sobre os trabalhos de Dacanal, ver Danielle Corpas (2006, p. 88-100).
[18] Ainda que fiquem à parte, pela distinção de abordagem, cabe destacar os trabalhos O mundo misturado: romance e experiência em Guimarães Rosa (1994) de Davi Arrigucci Jr. e Veredas-Mortas e Veredas-Altas: a trajetória de Riobaldo entre o pacto demoníaco e aprendizagem (2010) de Marcus Mazzari. Tomando igualmente aspectos sugeridos na primeira recepção do romance, os autores analisam o texto de GSV na chave do processo formativo do herói e, por isso, em paralelo a outros romances universais que discutem o tema fáustico e principalmente os que se configuram como romance de formação (Bildungsroman). Outra leitura de GSV, sui generis por sinal, é a de Silviano Santiago. Diferentemente das principais leituras do romance, e mesmo contra muitas delas, o autor concebe a obra de Guimarães Rosa como algo original, intempestivo, monstruoso. Tal interpretação está presente em seu recente ensaio Genealogia da ferocidade: ensaio sobre Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa (2017).
[19] Embora não analisado aqui, cabe destacar o trabalho de Sandra Guardini T. Vasconcelos que retomará a discussão de Walnice Galvão sobre o fim do coronelismo e do jaguncismo na Primeira República, destacando o enfoque rosiano “narrado de dentro e de baixo, da perspectiva de uma personagem que viveu todo o processo” (Vasconcelos, 2002, p. 331).
[20] A ambiguidade do autor é um dos achados críticos de Walnice Galvão, conforme os já referidos trabalhos de Danielle Corpas (2006) e Candice Carvalho (2016) e que a crítica futura pouco desenvolveu: o impasse do intelectual servidor do Estado e ao mesmo tempo experimentador de aspectos do Brasil profundo.
[21] Esta pista terá valor cabal na análise de José Antonio Pasta Jr., desenvolvido adiante, e para a perspectiva que adoto no presente trabalho.
[22] A autora toma a expressão “mapa alegórico” de um trabalho anterior de Bolle (1995) que, por sua vez, baseia-se no que chama de “historiografia alegórica” de Walter Benjamin. Não é o caso aqui de abordar o imenso debate sobre o sentido benjaminiano de alegoria, bem como do seu uso pela literatura brasileira, sobretudo nos anos 1970. No primeiro caso, ver Gagnebin (2013, p. 31-53); sobre o segundo, ver, entre outros, Franco (1998, p. 143-164) e Pellegrini (1996, p. 27-29). Na abordagem sobre GSV, restrinjo-me a sinalizar apenas o enfoque de Willi Bolle: “A ‘alegoria’ é o conceito-chave em que se baseiam todas as demais categorias imagéticas da historiografia benjaminiana. No sentido etimológico, a alegoria é o discurso através do ‘outro’. A partir daí é derivada a ‘historiografia alegórica’, que consiste no estudo de uma época ou de um espaço diferente, para o historiador esclarecer aspectos do seu próprio espaço-tempo” (Bolle, 1995, p. 82). Ou, como afirma em outro trabalho: “Trata-se de uma historiografia desenvolvida a partir da história literária e fundamentada na relação entre produção e recepção das obras” (Bolle, 1994, p. 25). Observe-se que, embora Heloisa Starling referencie-se em Willi Bolle, este compreende a abordagem da autora como distinta da sua. Em um texto anterior do autor, já ficara implícito que a abordagem da autora realiza “aplicações” e, por isso, “força paralelos” entre história e ficção (Bolle, 1998, p. 37). No seu trabalho mais extenso, o autor volta a este ponto afirmando que Heloísa Starling “‘aplica’, de fora pra dentro, determinadas teorias políticas ao texto ficcional – ao passo que o meu trabalho (...) procura revelar a teoria política intrínseca à forma do romance e sua perspectiva narrativa” (Bolle, 2004, p. 160).
[23] Ressalte-se que a leitura de Roncari toma duas obras de Guimarães Rosa em conjunto com GSV: Sagarana (1946) e Corpo de Baile (1956). Foge ao propósito desse breve apontamento abordar o conjunto variado de elementos detectados pelo ensaísta, em especial a lógica do escravismo e do patriarcalismo, temas que o autor retomará em trabalhos futuros. Para uma visão mais ampla sobre o enfoque do autor acerca da abordagem aqui tratada ver Danielle Corpas (2006, p. 202-226).
[24] Nesse sentido, Willi Bolle demarca com clareza a distinção entre o seu enfoque – que toma o GSV como romance de cunho social, de “formação do Brasil” – e aquele privilegiado por autores como Marcus Mazzari e Davi Arrigucci Jr. que destacam, na análise do romance, a formação do indivíduo – o Bildungsroman. Cf. Bolle (2004, p. 378-379).
[25] O fato de que “a leitura de Guimarães Rosa apele para a empatia e a encantação” está presente também no estudo de Luiz Roncari que sugere ao leitor “não sucumbir aos mistérios” do romance (Roncari, 2004, p. 106-107).
Referências
Arantes, P. 1992. Sentimento da dialética na experiência intelectual brasileira. Dialética e dualidade segundo Antonio Candido e Roberto Schwarz. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Bolle, W. 1994. Fisiognomia da metrópole moderna. Representação da história em Walter Benjamin. São Paulo: EDUSP.
Bolle, W. 1995. Grande Sertão: Cidades. Revista USP. São Paulo, n. 24, p. 80-93.
Bolle, W. 1998. O pacto no Grande Sertão – Esoterismo ou lei fundadora?. Revista USP. São Paulo, n. 36, p. 26-45.
Bolle, W. 2004. grandesertão.br: o romance de formação do Brasil. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34.
Candido, A. et al. 1980. Debate do artigo Cinema: trajetória no subdesenvolvimento de Paulo Emílio Sales Gomes. Revista Filme e Cultura. Rio de Janeiro. n. 35/36, p. 2-20.
Cadernos de Literatura Brasileira. 2006. João Guimarães Rosa. Edição Especial, n. 21 e 22. São Paulo: Instituto Moreira Sales.
Candido, A. 1956. Grande Sertão: Veredas. Estado de São Paulo. Suplemento literário. Disponível em: https://www.amlef.com.br/2019/02/antonio-candido-escreve-sobre-grande.html Acesso: 17/02/2020.
Candido, A. 1977. Jagunços mineiros de Cláudio a Guimarães Rosa. In: Vários Escritos. 2 ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades, p. 133-160.
Candido, A. 1989. A nova narrativa. In: A educação pela noite e outros ensaios. São Paulo: Ed. Ática.
Candido, A. 1999. Iniciação à literatura brasileira: resumo para principiantes. 3. ed. São Paulo: Humanitas/FFLCH/USP.
Candido, A. 2000. O homem dos avessos. In: Tese e Antítese. Ensaios. 4 ed. São Paulo: T. A. Queiroz.
Candido, A. 2002. Nota de crítica literária – Sagarana. In: Textos de Intervenção. Seleção, apresentação e notas de Vinícius Dantas. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, p.183-189.
Candido, A. 2009. Formação da literatura brasileira. momentos decisivos. 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: FAPESP.
Carvalho, C. A. B. 2016. Antonio Candido e a fortuna crítica de Guimarães Rosa. A recepção de Grande Sertão: Veredas. Tese de Doutorado. Faculdade de Ciências e Letras. Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários. UNESP, Araraquara.
Chagas, P. R. D. 2014. Sobre a origem histórica da diversidade do romance brasileiro contemporâneo. Uma leitura de Quarup como “romance de arquivo”’. Brasiliana. Journal for Brazilian Studies. Londres, vol. 3, n. 1, p. 237-264.
Corpas, D. S. 2006. O jagunço somos nós. Visões do Brasil na crítica de Grande Sertão: veredas. Tese de Doutorado. Faculdade de Letras. Programa de Pós-Graduação em Letras. UFRJ, Rio de Janeiro.
Costa, D. 1957. No mundo da ficção. Revista Leitura. Rio de Janeiro, v. 1, n. 1 a 16, jul. a dez.
Franco, R. B. 1998a. Itinerário político do romance pós-64: A Festa. São Paulo: Fundação Editora UNESP.
Gagnebin, J. M. 2013. História e narração em Walter Benjamin. 2 ed. São Paulo: Perspectiva.
Galvão, W. N. 1972. As formas do falso: um estudo sobre a ambiguidade no Grande sertão: veredas. Coleção Debates n. 51. São Paulo: Perspectiva.
Gomes, P. E. S. 1996. Cinema, trajetória no subdesenvolvimento. 2ª ed. São Paulo: Paz e Terra.
Kropf, S. P. 1996. Manoel Bomfim e Euclides da Cunha: vozes dissonantes aos horizontes do progresso. Manguinhos.Rio de Janeiro, v. III, n. 1, p. 80-98.
Pasta Jr., J. A. 1999. Temas do Grande sertão e do Brasil. Novos Estudos Cebrap. São Paulo, n. 55, p. 61-70.
Pellegrini, T. 1996. Gavetas Vazias. Ficção e política nos anos 70. São Carlos: EDUFScar/Mercado de Letras.
Revista Leitura. 1957. Concedido o prêmio “Machado de Assis” ao escritor Guimarães Rosa. Revista Leitura. Rio de Janeiro v. 1, nrs. 1 a 16, jul. a dez., 1957.
Revista Leitura. 1958. Escritores que não conseguem ler ‘Grande Sertão: Veredas’. Revista Leitura. Rio de Janeiro, n. 16, outubro.
Roncari, L. 2004. O Brasil de Rosa: mito e história no universo rosiano: o amor e o poder. São Paulo: Editora UNESP.
Rosa, G. 2001. Grande Sertão: Veredas. 19 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Schwarz, R. 1981. A sereia e o desconfiado. Ensaios críticos. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
Sevcenko, N. 1999. Literatura como missão. Tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 4ª ed. São Paulo: Brasiliense.
Souza, E. N. F. 2016. ‘Você é a Dora? Eu sou Guimarães Rosa’: Encontros míticos do escritor mineiro com a poeta paulista Dora Ferreira da Silva. Em Tese. Belo Horizonte, v. 22, n. 2, p. 157-174.
Starling, H. M. M. 1998. O sentido do moderno no Brasil de João Guimarães Rosa – Veredas de política e ficção. Scripta. Belo Horizonte, v. 2, n. 3, p. 138-146.
Starling, H. M. M. 1999. Lembranças do Brasil: teoria política, história e ficção em Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Revam; UCAM; IUPERJ.
Vasconcelos, S. G. T. 2002. Homens provisórios: coronelismo e jagunçagem em Grande sertão: veredas. Scripta. Belo Horizonte, v. 5, n. 10, p. 321-333.