Artigos Científicos

Indícios tecnológicos e práticas nos cotidianos complexos e multirreferenciais da escola pública

Rogério Gusmão do Carmo
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia , Brasil
Denise Aparecida Brito Barreto
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil
Claudia Vivien Carvalho de Oliveira Soares
Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Brasil

Revista de Estudos e Pesquisas sobre Ensino Tecnológico

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas, Brasil

ISSN-e: 2446-774X

Periodicidade: Frecuencia continua

vol. 10, e226224, 2024

educitec.revista@ifam.edu.br

Recepção: 26 Agosto 2023

Aprovação: 07 Fevereiro 2024



Resumo: O presente artigo tem como objetivo compreender a presença e influência das tecnologias no cotidiano escolar, assim como a visão dos educadores pesquisados em relação aos seus usos a partir das práticas cotidianas e dos fundamentos teóricos relacionados às tecnologias digitais. A metodologia empregada baseou-se nas perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa com os cotidianos e nos princípios da pesquisa exploratória através das entrevistas abertas como dispositivo. A amostra do estudo incluiu quatro professores do ensino fundamental, pertencentes a uma escola pública situada na região periférica de Vitória da Conquista, Bahia. Os resultados do estudo evidenciam que as principais dificuldades no uso das tecnologias digitais na educação são fincadas em dois pilares fundamentais: a formação inadequada dos professores e a precariedade da infraestrutura. Além disso, é notável a influência dos desdobramentos da pandemia de covid-19 nas percepções dos professores e em suas práticas educacionais, destacando os desafios enfrentados. Ademais, o estudo aponta para a necessidade de uma abordagem inovadora, que difira do que normalmente é proposto para a educação contemporânea, muitas vezes focando excessivamente na criação de produtos e estímulo ao consumo, em detrimento das reais necessidades da escola pública.

Palavras-chave: cibercultura, cotidianos, tecnologias digitais.

Abstract: This article aims to understand the presence and influence of technologies in everyday school life, as well as the view of the educators surveyed in relation to their use based on everyday practices and theoretical foundations related to digital technologies. The methodology employed was based on the theoretical-methodological perspectives of everyday research and the principles of exploratory research using open-ended interviews as a device. The study sample included four elementary school teachers from a public school located on the outskirts of Vitória da Conquista, Bahia. The results of the study show that the main difficulties in using digital technologies in education are based on two fundamental pillars: inadequate teacher training and precarious infrastructure. In addition, the influence of the consequences of the covid-19 pandemic on teachers' perceptions and their educational practices is notable, highlighting the challenges faced. In addition, the study points to the need for an innovative approach, which differs from what is usually proposed for contemporary education, often focusing excessively on creating products and stimulating consumption, to the detriment of the real needs of public schools.

Keywords: digital technologies, cyberculture, quotidian.

Resumen: El presente artículo tiene como objetivo comprender la presencia e influencia de las tecnologías en la vida cotidiana escolar, así como la visión de los educadores investigados sobre sus usos a partir de las prácticas diarias y los fundamentos teóricos relacionados con las tecnologías digitales. La metodología empleada se basó en las perspectivas teórico-metodológicas de la investigación en los cotidianos y en los principios de la investigación exploratoria a través de entrevistas abiertas como dispositivo. La muestra del estudio incluyó a cuatro profesores de educación primaria, pertenecientes a una escuela pública ubicada en la región periférica de Vitória da Conquista, Bahia. Los resultados del estudio evidencian que las principales dificultades en el uso de las tecnologías digitales en la educación se fundamentan en dos pilares fundamentales: la formación inadecuada de los profesores y la precariedad de la infraestructura. Además, es notable la influencia de las ramificaciones de la pandemia de covid-19 en las percepciones de los profesores y en sus prácticas educativas, destacando los desafíos enfrentados. Asimismo, el estudio señala la necesidad de un enfoque innovador, que difiera de lo que normalmente se propone para la educación contemporánea, a menudo centrado en exceso en la creación de productos y el estímulo al consumo, en detrimento de las verdaderas necesidades de la escuela pública.

Palabras clave: tecnologías digitales, cibercultura, cotidiano.

Indícios tecnológicos e práticas nos cotidianos complexos e multirreferenciais da escola pública

Resumo

O presente artigo tem como objetivo compreender a presença e influência das tecnologias no cotidiano escolar, assim como a visão dos educadores pesquisados em relação aos seus usos a partir das práticas cotidianas e dos fundamentos teóricos relacionados às tecnologias digitais. A metodologia empregada baseou-se nas perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa com os cotidianos e nos princípios da pesquisa exploratória através das entrevistas abertas como dispositivo. A amostra do estudo incluiu quatro professores do ensino fundamental, pertencentes a uma escola pública situada na região periférica de Vitória da Conquista, Bahia. Os resultados do estudo evidenciam que as principais dificuldades no uso das tecnologias digitais na educação são fincadas em dois pilares fundamentais: a formação inadequada dos professores e a precariedade da infraestrutura. Além disso, é notável a influência dos desdobramentos da pandemia de covid-19 nas percepções dos professores e em suas práticas educacionais, destacando os desafios enfrentados. Ademais, o estudo aponta para a necessidade de uma abordagem inovadora, que difira do que normalmente é proposto para a educação contemporânea, muitas vezes focando excessivamente na criação de produtos e estímulo ao consumo, em detrimento das reais necessidades da escola pública.

Palavras-chave: cibercultura; cotidianos; tecnologias digitais.

Technological evidence and practices in the complex and multi-referential daily life of public schools

Abstract

This article aims to understand the presence and influence of technologies in everyday school life, as well as the view of the educators surveyed in relation to their use based on everyday practices and theoretical foundations related to digital technologies. The methodology employed was based on the theoretical-methodological perspectives of everyday research and the principles of exploratory research using open-ended interviews as a device. The study sample included four elementary school teachers from a public school located on the outskirts of Vitória da Conquista, Bahia. The results of the study show that the main difficulties in using digital technologies in education are based on two fundamental pillars: inadequate teacher training and precarious infrastructure. In addition, the influence of the consequences of the covid-19 pandemic on teachers' perceptions and their educational practices is notable, highlighting the challenges faced. In addition, the study points to the need for an innovative approach, which differs from what is usually proposed for contemporary education, often focusing excessively on creating products and stimulating consumption, to the detriment of the real needs of public schools.

Keywords: digital technologies; cyberculture; quotidian.

Evidencias y prácticas tecnológicas en la compleja y multirreferencial cotidianidad de la escuela pública

Resumen

El presente artículo tiene como objetivo comprender la presencia e influencia de las tecnologías en la vida cotidiana escolar, así como la visión de los educadores investigados sobre sus usos a partir de las prácticas diarias y los fundamentos teóricos relacionados con las tecnologías digitales. La metodología empleada se basó en las perspectivas teórico-metodológicas de la investigación en los cotidianos y en los principios de la investigación exploratoria a través de entrevistas abiertas como dispositivo. La muestra del estudio incluyó a cuatro profesores de educación primaria, pertenecientes a una escuela pública ubicada en la región periférica de Vitória da Conquista, Bahia. Los resultados del estudio evidencian que las principales dificultades en el uso de las tecnologías digitales en la educación se fundamentan en dos pilares fundamentales: la formación inadecuada de los profesores y la precariedad de la infraestructura. Además, es notable la influencia de las ramificaciones de la pandemia de covid-19 en las percepciones de los profesores y en sus prácticas educativas, destacando los desafíos enfrentados. Asimismo, el estudio señala la necesidad de un enfoque innovador, que difiera de lo que normalmente se propone para la educación contemporánea, a menudo centrado en exceso en la creación de productos y el estímulo al consumo, en detrimento de las verdaderas necesidades de la escuela pública.

Palabras clave: tecnologías digitales; cibercultura; cotidiano.

Contextos e aproximações

A tecnologia abalizada como o conhecimento que marca a busca por alternativas para questões referentes à vida humana, é, em seus compêndios, fruto espontâneo do próprio desenvolvimento humano. À medida em que a humanidade estabelece e desenvolve meios sistemáticos para manipular as técnicas, os métodos, meios e instrumentos, a própria evolução e complexidade das necessidades humanas corroboram o seu aperfeiçoamento e superação, dando início ao que conhecemos como inovação. Nesse ínterim, a evolução das tecnologias e os seus usos vem acontecendo num ritmo acelerado e, como efeito, impactando profundamente na forma com que as pessoas se relacionam com o mundo, consigo mesmas e com os outros.

Numa perspectiva histórica de investigação introdutória, é relevante pontuar que os novos paradigmas emergidos no final do século XX, fortemente marcados por forças tensionadas em transformações de amplitude mundial, anuncia formatos de inovações e baliza espaços ainda não explorados dentro de contextos complexos e multirreferenciais da pós-modernidade. É nesse cenário que surge o termo “Sociedade da Informação”, advindo do intenso desenvolvimento da informática e das telecomunicações, acaba por reverberar em novas formas de estruturação social, cultural, econômica, política e educacional. Ademais, tais novas formas de organizar a vida em sociedade acabaram por impactar nos delineamentos da comunicação e acessos à informação, do trabalho, da educação e das próprias relações humanas, assumindo novas maneiras plurais de viver e conviver.

Nessa perspectiva, Castells (1999) afirma que, com a revolução da tecnologia da informação alcançando várias culturas e ampliando os seus objetivos, as novas tecnologias evoluíram, tenazmente, em todos os tipos de aplicações e usos, produzindo grande inovação tecnológica, aligeirando a velocidade, ampliando o escopo das suas transformações e diversificando as suas fontes. Para o autor, as novas tecnologias da informação estão promovendo a integralização do mundo em uma gama enorme de comunidades virtuais. “O paradigma da tecnologia da informação não evolui para seu fechamento, como um sistema, mas rumo a abertura como uma rede de acessos múltiplos” (Castells, 1999, p. 113).

Nesse cenário, podemos afirmar que o surgimento da Internet em 1969 foi o maior marco de evolução tecnológica em toda a história, contudo, é nos anos 2000 que acontece a sua popularização e por onde os impactos em todas as esferas da sociedade começam a acontecer de forma pujante. Essa demarcação temporal acaba por balizar processos impactantes de inovação, como a consolidação e evolução dos dispositivos móveis, o desenvolvimento de diferentes tipos de recursos e funcionalidades para a otimização de tarefas diárias através dos aplicativos, as múltiplas novas formas de pagamento instantâneo com baixo custo, o surgimento de plataformas interativas e colaborativas, as redes sociais, entre outros tantos. Moura (2023, p. 15), ao tratar os processos (auto)formativos dos sujeitos, aponta que os avanços tecnológicos viabilizaram

[...] a construção de artefatos para os dizeres e saberes dos usuários, que por sua vez desenham e formatam modos de ser e estar no mundo, bem como as aprendizagens significativas que estes sujeitos vão construindo nos usos de tecnologias (Moura, 2023, p. 15).

Ao pensarmos na integração deste cenário com o contexto educacional, é possível afirmar que são muitos os debates que se ocupam dos problemas que rondam os usos das tecnologias digitais na educação: desigualdades de acesso aos artefatos tecnológicos, limitações dos acessos à Internet, formações docentes inadequadas, políticas públicas ineficientes ou inexistentes, tentativas globais de controle das informações que trafegam a Internet, falhas na proteção de dados e as movimentações políticas neoliberais para fragmentação das telecomunicações às grandes corporações. Aspectos como estes não podem ser negligenciados quando se pretende observar a inegável relevância adquirida pelas tecnologias digitais nos processos educacionais contemporâneos. Portanto, é admitindo esta conjuntura paradoxal que articulamos a estrutura investigativa desde trabalho cujo objetivo é compreender a presença e influência das tecnologias no cotidiano escolar, assim como a visão dos educadores pesquisados em relação aos seus usos a partir das práticas cotidianas e dos fundamentos teóricos relacionados às tecnologias digitais.

Cotidianos complexos e multirreferenciais

Inacabados, inconclusivos e constantemente confrontados por recorrentes processos de transformações, nós, seres pulsantes de um planeta translado e rotacionado em direção ao desconhecido, viemos perscrutando, ainda que entre múltiplos e novos arranjos cotidianos, respostas como tentáculos para novas incertezas. As ciências da educação, esteiras condutoras dos saberes que se reconstroem para além do conhecimento racional ou meramente técnico, revelam a profícua necessidade que se transpassa à afluência de múltiplos olhares, alheios às imposições da disciplina e às circunscrições da uniformidade, abertas ao pensamento plural e emancipatório, multirreferrencial e complexo nos cotidianos ordinários.

No campo educacional, diante de um movimento contrário à formação aprendida e instituída na maioria das pesquisas que, de forma muito abrangente, nega o cotidiano como espaço de saberes e criação, as pesquisas com os cotidianos buscam compreender as atividades do dia a dia dos sujeitos comuns sob uma ótica diferente do que já foi visto, desenvolvendo a capacidade de mergulhar completamente na realidade do campo, perscrutando e instituindo múltiplas referências “de sons, sendo capaz de engolir sentindo a variedade de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e me deixando tocar por elas, cheirando os odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho diário” (Alves, 2008, p. 19).

Condizente com os momentos vivenciados na contemporaneidade, a dinâmica que circunda a pesquisa com os cotidianos se preocupa em revelar os movimentos e sentidos produzidos nos espaçostempos[4], indo ao encontro de formas de compreender as compreensões liquefeitas na pós-modernidade em oposição subversiva das padronizações anteriores. Sob um ponto de vista que colide com os preceitos da ciência moderna e do arranjo cartesiano de produzir conhecimento, que busca fragmentar o sujeito, separando-o do pesquisador e dele próprio, negando o inegável e separando o inseparável, pautamos a nossa pesquisa nas narrativas emergidas dos saberes cotidianos que dialogam com a ciência nos contextos do cocriar, do ser e do produzir saberes. Nessa perspectiva, entrelaçamos as práticas cotidianas marcadas ao contexto da complexidade e à justificativa da multirreferencialidade como modos outros de compreender o mundo, de dialogar com a ciência e de compreender as trocas a partir do que entendemos como epistemologia da prática.

Ao tratar a perspectiva teórico-metodológica da pesquisa com os cotidianos, Alves (2008, p. 17) argumenta que

[...] o conjunto das "teorias, categorias, conceitos e ideias derivados das ciências estabelecidas e elaboradas na época moderna, que continuam sendo uma ferramenta essencial, não representa apenas apoio e guia para o caminho a ser percorrido, mas também, cada vez mais, atua como um "limite" para aquilo que deve ser tecido (Alves, 2008, p. 17).

Aprofundando nessa linha de pensamento, Ferraço (2008) rejeita as restrições teóricas e metodológicas que obscurecem a percepção do transitório, dos detalhes, das perspectivas fugazes, das insinuações nas entrelinhas e das comunicações gestuais. Ele propõe "uma metodologia do que é realizado e do modo como é realizado" (Ferraço, 2008, p. 112), explorando o que se desvenda nas práticas concretas e nas estratégias habilidosas estabelecidas e compartilhadas na vida cotidiana.

Compreendemos, pois, que a pesquisa com os cotidianos é o próprio espaço habitado pela complexidade, onde os atores culturais, diante de uma caótica imprevisibilidade, são inabilitados a desenvolver afirmações absolutas, uma vez que estão imersos na busca desafiadora de compreender as incertezas e incompletudes que instituem a si próprios. Nesse contexto, o paradigma da complexidade apresenta uma nova compreensão acerca da sociedade, da natureza, do objeto e do sujeito, onde o foco não é renegar a ciência clássica, nem tampouco recusar os reducionismos, a disciplina e a especialização, mas sim, pretende colocar em perspectiva dialógica e complementar: a ordem e a desordem, o inseparável e o separável, a autonomia e a dependência, buscando, assim, a conexão das partes na totalidade.

Segundo Ferraço (2008), em razão própria dinâmica peculiar do viver e conviver na vida cotidiana, os praticantes atuam em modos singulares e únicos, estabelecendo constantes alterações nas redes entre os sujeitos, os saberes, valores e na própria prática social. O autor aponta a necessidade de se produzir novas linguagens, novas relações, novos meios de interação e pesquisas com aqueles e aquelas que, realmente, inventam o cotidiano a cada dia vivido. Ademais, Ferraço (2007) também colabora ao afirmar que, diante do dinamismo da invenção no cotidiano, não há repetições e nem mesmice. O cotidiano se faz com o efêmero, o caótico, o incontrolável, o imprevisível, possibilitando o surgimento de outras questões, desafios, enfrentamentos e impasses com os quais os praticantes, cientes de que não podem e não conseguem controlar tudo e todos, movimentam-se na busca por alternativas, caminhos e atalhos a serem trilhados.

Conhecer a proposta da pesquisa nos/dos/com os cotidianos no âmbito escolar demanda, necessariamente, a compreensão dos aspectos abordados por Michel de Certeau. O autor, embora trate as questões da educação e da escola de forma incidental e tenha estabelecido seus constructos teóricos num tempo anterior ao que pretendemos investigar neste estudo, promoveu imensuráveis contribuições para as pesquisas em educação, sobretudo as que marcam os novos paradigmas tratados nesta pesquisa, materializadas numa esteira teórica que visou criar uma epistemologia das práticas baseada nos cotidianos, resgatando a criatividade e a invenção do homem ordinário e apontando caminhos para se pensar as práticas.

A partir das discussões que emergem nos anos 60 sobre uma epistemologia baseada no sujeito comum, marcando a contravenção para o olhar mais atento às práticas ordinárias, Certeau (1994) se desloca das grandes narrativas, das histórias de grandes pensadores, figuras públicas renomadas ou da história política marcada pelo passado, ocupando-se em pensar na vida cotidiana e ordinária (no sentido de não extraordinária). Portanto, é sobre essa dinâmica infinita da cotidianidade que o autor vai estruturar um modelo epistemológico que procura revelar as vozes e os rastros das invisibilidades cotidianas, uma vez que nelas são expostas as relações sociais do mundo real em seus sentidos complexos, diversos e potentes. Certeau (1994), ao valorizar as vozes desses sujeitos ordinários, estabelece que a oratória que emana desses diálogos triviais:

[...] são práticas transformadoras de “situações de palavra”, de produções verbais onde o entrelaçamento das posições locutoras instaura um tecido oral sem proprietários individuais, as comunicações de uma comunicação que não pertence a ninguém (Certeau, 1994, p. 50).

Partindo da compreensão de que o cotidiano é fluido e está em constante movimento, mudança e reinvenção, presumimos que estudos que cercam o pensarfazer tecnológico no âmbito educacional e sob uma perspectiva cibercultural (marcas pulsantes da pós-modernidade) estabelece a necessidade de um diálogo constante com os cotidianos escolares, sobretudo, no que tange a compreensão das práticas culturais e dos processos formacionais. No contexto da cultura do digital em rede, os dispositivos tecnológicos são acionados e mobilizados, reiteradamente, para a produção de informações, comunicações, interações e sentidos, não sendo possível, portanto, estabelecer fissuras entre a nova cultura que emerge na contemporaneidade, as práticas educativas e a vida cotidiana. Nesse sentido, compreendemos que as noções do cotidiano caminham em consonância com a pesquisa-formação na cibercultura (abordagem maior desta pesquisa), requerendo o entendimento de que os praticantes culturais se achegam à pesquisa munidos de repertórios (saberes, inquietações, frustrações, teorizações e desejos) cocriados em suas próprias histórias de vida e formação.

Revelando o campo empírico

Amparados nas perspectivas teórico-metodológicas da pesquisa com os cotidianos e nos princípios da pesquisa exploratória, o corpus da pesquisa foi delineado por quatro professores (P1, P2, P3 e P4) dos anos iniciais de uma Escola Municipal localizada na zona periférica de Vitória da Conquista, terceira maior cidade do estado da Bahia. Ademais, cabe mencionar que o presente artigo é resultado de uma pesquisa realizada para a titulação de mestre do Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), com dissertação intitulada “Design Thinking: caminhos possíveis para a educação na perspectiva da pesquisa-formação na cibercultura” e aprovação do Comitê de Ética (CEP) pelo parecer de Nº 5.290.955.

A pesquisa foi conduzida com professores do ensino fundamental I e se desdobrou em três fases:

a) Introdução no ambiente empírico por meio da concepção de “tornar-se membro” aceito e envolvido, que, de acordo com Coulon (1995, p. 48) abrange a filiação a um grupo ou instituição,

[...] o que requer a gradual maestria da linguagem institucional compartilhada. Essa filiação repousa na singularidade de cada indivíduo, em sua maneira única de encarar o mundo e de estar imerso nas instituições sociais do cotidiano (Coulon, 1995, p. 48).

b) Exploração dos fazeressaberes ciberculturais dos professores nas práticas diárias mediadas pelas tecnologias digitais de informação e comunicação. Para essa finalidade, optou-se por uma entrevista aberta e uma estrutura de análise fundamentada nas noções subjacentes, que, de acordo com Santos (2005, p. 153), são "[...] categorias analíticas resultantes do diálogo entre empiria e teoria, em um processo de aprendizado significativo".

c) Realização de uma investigação exploratória para mapear a presença ou ausência das tecnologias digitais no contexto escolar.

Na busca por uma produção de dados comprometida com as singularidades dos participantes culturais deste estudo, desenvolvemos uma compreensão inicial dos sujeitos colaboradores da pesquisa através da entrevista aberta, pautada num tema específico, mas como uma livre conversa. Segundo Boni e Quaresma (2005, p. 74), as entrevistas abertas atendem as finalidades exploratórias, sendo amplamente utilizadas para a descrição de questões mais precisas dos conceitos relacionados. O entrevistador introduz o tema mais amplo e o entrevistado discorre, com liberdade, sobre o tema sugerido, sendo uma de poder explorar mais amplamente uma questão. As perguntas e respostas vão emergindo dentro de uma conversação informal e o entrevistador deve interferir o mínimo possível, assumindo uma postura de ouvinte.

Diante deste caminho metodológico, a estruturação analítica das entrevistas abertas indicou duas noções subsunçoras como núcleos temáticos mais relevantes para o nosso campo empírico, a saber: Formação e usos (os percursos formativos e os usos nas práticas do cotidiano) e Pandemia de COVID-19 (as reverberações do ensino remoto vivenciado na pandemia):

Formação e usos

Analisaremos neste tópico dois temas que, embora se mostrem dissonantes neste campo empírico, revelam, diante de uma observação paralela, criações singulares do próprio cotidiano como estratégia para suprir eventuais ausências: a formação dos professores no contexto tecnológico e os seus usos.

Eu tenho especialização em mídias na Educação pela UESB, mas nunca houve uma formação fornecida pelo município sobre as tecnologias digitais (P1, em entrevista aberta).

Tivemos somente uma formação, mas já tem bastante tempo. Me lembro que eles ensinaram como utilizar a plataforma da prefeitura. Eram vídeos gravados. Foi tudo online (P2, em entrevista aberta).

Eu nunca passei por nenhuma formação direcionada para as tecnologias, mas desde pequenininha eu sempre fui muito curiosa. Minha tia tinha uma papelaria e fazia uns trabalhos no computador. Então, eu ficava olhando e aprendendo. E até hoje, se tiver alguma coisa nova, eu vou para aprender (P3, em entrevista aberta).

Não passei por formação em tecnologias na rede, nem durante a pandemia [...] Na época que fui tutor na UESB, passei por um curso para criar joguinhos (P4, em entrevista aberta).

Conquanto nosso foco neste artigo não seja a investigação dos caminhos formativos dos praticantes desta pesquisa, interessa-nos compreender os meios com os quais a formação continuada vem sendo capaz de instituir saberes ciberculturais que ultrapassem a lógica tecnicista baseada na instituição de alunos e professores meramente executores de ferramentas tecnológicas e receptores de projetos instituídos por um poder proprietário. Nesse ínterim, as narrativas realçam as deficiências que permeiam a formação de professores em nosso país, evidenciando a necessidade de conduzir a formação docente para o centro dos certames que encalçam as políticas públicas, a fim de vislumbrarmos perspectivas que, de fato, incentivem práticas que oportunizem novas concepções, conhecimentos e práticas pedagógicas, sobretudo diante da nova cultura digital.

Segundo Souza e Bonilla (2014), a efetivação de cursos básicos de informática destinada ao uso de equipamentos e produtos não é suficiente para processos formativos que intencionam articular as tecnologias digitais com as práticas pedagógicas. Hoje, os debates que tratam a formação humana caminham em torno das percepções e das mudanças emanadas da cultura digital no que tange a constituição do sujeito, a convivência e a criação coletiva de múltiplos saberes. “Implica ainda a percepção dos novos desafios que se colocam aos sujeitos sociais, às instituições e aos governos para darem conta das incertezas, inquietações, dúvidas e questionamentos que emergem deste contexto em constante mutação” (Souza; Bonilla, 2014, p. 25). As autoras apontam que, no contexto da cultura digital, todos podem comunicar, criar, interagir e participar no cenário das redes tecnológicas que estão presentes no nosso cotidiano. Durante todo o percurso formativo, “[...] aspectos como interatividade, produção colaborativa, aprendizagem compartilhada, precisam ser incorporados e discutidos” (Souza; Bonilla, 2014, p. 27).

Muito embora as limitações e carências sejam evidentes nos processos formativos oferecidos pela rede pública, os professores se mostram persistentes no interesse constante pela busca de novos saberes. Esse foi um ponto muito marcante nas percepções que ficaram sobre as entrevistas e que nos tocaram de forma intensa ao compreender que o tornar-se professor é um processo profundo de autorização, que não se resume ao encargo de transmitir o conhecimento acumulado, mas, sobretudo, de processos pessoais singulares, múltiplos e enviesados nos saberes coletivos e relacionais. Diante desta percepção, aludimos Nóvoa (1992) ao anunciar que a formação de professores deve encorajar as perspectivas críticas e reflexivas que forneçam aos professores os caminhos do pensamento autônomo e que incentivem a autoformação. “Estar em formação implica um investimento pessoal, um trabalho livre e criativo sobre os percursos e os projectos próprios, com vista à construção de uma identidade, que é também uma identidade profissional” (Nóvoa, 1992, p. 26).

No presente campo empírico, paralelamente às questões que abarcam a exígua formação ofertada, a investigação dos usos das tecnologias digitais para tarefas pessoais e profissionais parecem evidenciar a instituição de outros movimentos singulares e coletivos que viabilizem as práticas de ensino:

Eu não uso muito o celular. Quando eu vou pesquisar ou digitar algum material, utilizo muito o computador. No celular, eu uso mais o whatsapp e o aplicativo de banco (P1, em entrevista aberta).

Utilizo as tecnologias digitais nas minhas atividades pessoais e profissionais. Eu adoro pesquisar novas metodologias, pois eu gosto de trabalhar sempre com atividades práticas na sala de aula, e faço isso pelo celular [...] Agora assim, eu tive muitas dificuldades, viu? [...] e ainda estou aprendendo. Tem momentos que eu tenho medo do novo, mas eu estou tentando encarar esse medo (P2, em entrevista aberta).

Para meu uso, sempre utilizo as planilhas do Excel que já soma e me dá tudo direitinho [...] Para a escola, faço planejamento e pesquisas na internet para criação de atividades. Hoje em dia, eu uso pouco os recursos tecnológicos na sala, pois a escola não tem a estrutura. Tem somente uma televisão e acaba sendo muito solicitada (P3, em entrevista aberta).

Uso muito as tecnologias em minhas atividades pessoais [...] Profissionalmente, eu utilizo a tecnologia para fazer os planejamentos e também uso por meio de jogos [...] Por exemplo, aquele jogo que está ali no chão, eu utilizo a tecnologia para a música, pois essa questão sonora trabalha o movimento e o ritmo (P4, em entrevista aberta).

Embora sejam apontadas algumas dificuldades para o uso das tecnologias digitais, de modo geral, os professores do campo empírico não revelam resistência, rejeição ou grandes impasses acerca dos usos das tecnologias para fins pessoais e profissionais em seus cotidianos. Alves (2006), compreendendo a tecnologia como a forma com que os sujeitos trabalham com

os artefatos culturais nos tantos ‘usos’ que deles fazemos, cotidianamente, para além das ‘indicações pensadas que existem nos manuais [...] criamos, de forma permanente, tecnologias no uso de artefatos culturais, velhos ou novos (Alves, 2006, p.165).

O autor afirma que os professores sempre foram usuários dos artefatos culturais disponíveis nos cotidianos, sendo, portanto, criadores de tecnologias e saberes.

Nesse ínterim, Pretto, Bonilla e Sena (2020) endossam que os professores já têm certa habilidade no uso cotidiano das tecnologias digitais e da Internet, mas encontram dificuldade na articulação com o cotidiano dos processos formativos, pois o que lhe é cobrado está engessado pela grade curricular. Dessa forma, o uso das redes está associado com formas mais libertárias e sem controle, não se articulando nos espaços educacionais com as práticas pedagógicas. Para os autores, “[...] o resultado disso é a culpabilização do professor pelo fracasso do uso das tecnologias digitais na educação” (Pretto; Bonilla; Sena, 2020, p. 12).

Em forma de adendo, cabe pontuar que a prática de P4 no campo empírico é uma exceção entre os outros professores, uma vez que se trata de um docente que trabalha na sala de recursos multifuncionais (espaço destinado ao ensino dos alunos com deficiência ou com altas habilidades). Nessa sala, há um computador destinado para o uso do professor, mas que, para como estratégia do profissional para aproveitamento dos recursos disponíveis na Internet, acaba sendo compartilho com os alunos.

Estabelecendo um paralelo entre as evidências que revelam a falta de formação e a efetivação dos usos das tecnologias digitais por parte dos professores é possível perceber que a falta de processos formativos voltados para os usos das tecnologias digitais na prática pedagógica não impele a criação de alternativas para que os usos sejam instituídos na escola. Assim, nesta vivência com o cotidiano encontramos múltiplos saberes, fazeres e sentidos que mostram as potencialidades autorais dos praticantes. A arte do fazer com astúcias dos praticantes culturais ordinários, muitas vezes invisibilizadas na cegueira do que está enraizado, vão infringindo o instituído e criando numa lógica que os tira da posição de meros reprodutores e consumidores. No contexto cibercultural, os praticantes se apropriam dos recursos tecnológicos que os cercam e criam outras práticas, produzindo outros sentidos. Neste sentido, Certeau (1994), ao apresentar aportes para os estudos baseados em prática, afirma que o imprevisto e a criatividade transgressora são caminho que permanecem abertos no cotidiano e que, para além da potencialidade de desconstruir a ordem imposta, é potente para a invenção de táticas e re-co-criação de novas práticas, ainda que sejam efêmeras.

Pandemia de covid-19

É importante pontuar que, muito embora a pandemia de covid-19 não seja o foco deste estudo, fomos provocados no sentido de trazer um olhar mais atento para este momento histórico vivenciado por todo o planeta e que tem causado impactos profundos em todas as esferas sociais. Em campo, percebemos como as repercussões causadas por este cenário atravessaram as narrativas dos professores desde os primeiros momentos da entrevista, evidenciando as angustias vividas com o medo da infecção, a perda de entes queridos, a ansiedade com as incertezas do que estava por vir, os esforços presentes para contemplar a aprendizagem dos alunos e os movimentos realizados para a compensação de uma formação inexistente para lidar com o ensino remoto mediado pelas tecnologias digitais.

Segundo Oliveira, Gusmão e Barreto (2022, p. 390), a Pandemia de covid-19 ocorrida no ano de 2020 marcou alterações emergenciais no sistema educacional:

De forma emergencial, a população foi impelida pela adequação ao distanciamento ou isolamento social impostos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), repercutindo drasticamente no funcionamento de todas as atividades que demandam o contato social, inclusive na educação. As instituições de ensino presencial foram expostas à emergência do Ensino Remoto Emergencial (ERE) como transposição provisória e desordenada do arranjo presencial para o online, ordenando esforços no sentido de adaptação às plataformas online emergentes, sobretudo àquelas que ofertam os serviços de comunicação por vídeo (Oliveira; Gusmão; Barreto, 2022, p. 390).

Ao relatar as suas experiências ante ao ensino remoto, percebemos que os praticantes estruturam as suas ações no cotidiano a partir das suas relações singular com os seus percursos formativos, as interações sociais e as partilhas entre os próprios docentes, levando-nos a pensar sobre a importância de compreender os processos de construção, elaboração e reinvenção das práticas educativas para criar novos caminhos formativos possíveis, sobretudo no que tange a formação do adulto. Sabemos que o cenário educacional revelado pela pandemia de covid-19 não foi vivenciado de forma confortável, uma vez que, repentinamente, estudantes, professores, funcionários e gestores foram postos diante de uma situação inesperada, que demandou esforços emergenciais para a adequação a essa nova realidade. Contudo, ainda que escassos de infraestrutura e formação adequadas, os atores educacionais passaram a viabilizar o ensino remoto em massa:

No começo foi desesperador para todo mundo, né? [...] Na parte profissional, foi muito bom para mim, pois aprendi coisas que eu nem imaginava que teria condições de fazer. Eu fui atrás e fiz [...] eu peguei duas caixas de televisão e enrolei fita adesiva. Fui pesquisando na Internet como que fazia o fundo e descobri que tinha o chroma key. Aí fui para no centro procurar esse pano [...] Eu me empolguei e fui pesquisando mais coisas [...] Aprendi também a colocar o próprio livro dos alunos na Internet (P1, em entrevista aberta).

Muitos alunos sem celular e isso foi muito complicado. Algumas casas só tinha um celular para vários irmãos e eles iam dividindo o tempo para contemplar a todos [...] Muitos pais trabalhavam durante o dia e só podiam acompanhar o aluno à noite. Então, o que é que eu fiz? Eu abri um pouco o meu tempo para esses pais e essas crianças, para poder atendê-los (..) teve um dia que recebi atividade até a meia noite, trabalhando os 3 turnos (P2, em entrevista aberta).

Durante as minhas aulas remotas, eu fiz até experiências de ciências com os alunos. Uns dias antes eu avisava os materiais que iriam precisar, os pais colaboravam e a aula era excelente (P3, em entrevista aberta).

Isso é extremamente positivo, porque a tecnologia não se tornou algo distante, ela precisou entrar literalmente na casa dos professores. Então, por força da pandemia, houve uma evolução muito grande, nós ganhamos aí uns 10 anos pela frente em termos de aquisição de conhecimento sobre tecnologia (P4, em entrevista aberta).

Os excertos evidenciam a intensidade com que as tecnologias digitais estão inseridas no cotidiano de alunos e professores. Por mais que sejam evidenciados diversos empecilhos técnicos e estruturais[5] que refletem a grande desigualdade social existente em nosso país, percebemos um movimento constante dos professores pela busca do desenvolvimento independente de novos saberes inovadores para as práticas educativas na cibercultura. Fato esse intensificado e evidenciado durante a pandemia de covid-19. Assim, as buscas por alternativas para viabilizar a aprendizagem dos seus alunos em meio ao contexto caótico integram o que Certeau (1994) aponta como rede de antidisciplina, de resistência, de trocas e de usos diversos, expressos como práticas indicativas de que “[...] há uma maneira de pensar investida em uma maneira de agir, uma arte de combinar indissociável de uma arte de utilizar” (p. 42) realizadas pela "[...] própria decisão, ato e maneira de aproveitar a 'ocasião'" (p. 47). Nesse sentido, os professores subvertem os espaços, os currículos e a práticas instituídas pela articulação de táticas, caminhos.

Quando pensamos nas tecnologias digitais no contexto do isolamento social imposto pela pandemia de covid-19, inevitavelmente somos levados a deduzir que a experiência com o ensino remoto despertou novos e múltiplos caminhos de possibilidade, demonstrando as potencialidades existentes nas pesquisas realizadas pelos professores. Assim, as narrativas acabam por revelar que somos todos sujeitos com olhares, percepções e perspectivas potencialmente multirreferenciais. As buscas por alternativas reveladas durante a pandemia evidenciam que os praticantes articulam, mobilizam e vivenciam, diferentes saberes de forma crítica e construtiva no cotidiano. Segundo Barbosa e Ribeiro (2019), pensar e fazer uma formação inspirada na multirreferencialidade demanda um olhar plural sobre e com os sujeitos, tanto na perspectiva da teoria, quanto nas vivências, princípios filosóficos, crenças, desejos e angústias. Para os autores, esse entendimento amplia a noção de sala da sala, que passa a se configurar como todo e qualquer espaço onde se estabelece relações entre pessoas. “Nessa perspectiva, não existe aprendizagem desvinculada da vida, das experiências aprendentes dos sujeitos sociais” (Barbosa; Ribeiro, 2019, p. 54).

Embora a precariedade de infraestrutura e a falta de formação sejam grandes pontos de problemas apontados pelos professores, é uníssona a compreensão da sala de aula como espaço de pesquisa, autonomia e liberdade, onde as aulas deixam de ser compreendidas como espaços formais e burocráticos, limitados num único local e num tempo determinado. Nesse contexto, os professores afirmam buscar por um ensino aberto ao diálogo e uma aprendizagem contextualizada com a realidade do aluno, incentivando o desenvolvimento de indivíduos capazes de exercitar a própria condição de subjetividade, permeados por conteúdos heterogêneos e mediados pelo professor em processos de interação, co-criação[6] e colaboração.

Pois bem, partindo desta discussão que se revela nas narrativas dos professores, é útil ponderar a necessidade de superar as perspectivas que encabeçam a transmissão de conteúdo em detrimento de práticas que permitam a colaboração em rede, onde a atribuição do professor passa a ser o de arquitetar desenhos didáticos capazes de promover a curiosidade, a autonomia e a negociação, pontos fulcrais da cibercultura. Por este ângulo, Santos (2009) afirma que, na cibercultura, a autoria é uma obra aberta, móvel e em constante simulação. A simulação é a virtualização, a invenção, a criação e o teste das hipóteses, onde a interatividade e o hipertexto permitem que os sujeitos simulem coletivamente, mesmo que dispersos geograficamente. A autora afirma ser fundamental que haja a organização de um projeto educacional que abarque todas as potencialidades do “[...] hipertexto, da interatividade e da simulação nestes novos espaços do saber. Potencialidades estas que não são excludentes entre si e que não são conceitos emergentes da cibercultura, mas que são por ela potencializados” (Santos, 2009, p. 5.665).

Considerações Finais

Considerando o objetivo de compreender a presença e influência das tecnologias no cotidiano escolar, bem como a perspectiva dos educadores pesquisados sobre os seus usos a partir das práticas cotidianas, foi observado que alguns debates relacionados a essa temática têm seguido trajetórias equivocadas e pouco produtivas para os processos educacionais. Primeiramente, é importante ressaltar um equívoco recorrente nas discussões sobre a integração das tecnologias digitais na educação: a suposta lacuna geracional entre alunos e professores, que supostamente justificaria as dificuldades na implementação de abordagens alinhadas com as necessidades e particularidades individuais, enquanto também lança culpa sobre os educadores. A partir de discursos muitas vezes empolgados, porém geralmente carentes de utilidade, que presumem discrepâncias nas habilidades tecnológicas entre alunos e professores, emerge uma visão equivocada e polarizada entre as dificuldades dos docentes e a destreza dos estudantes.

Entre os resultados encontrados, vale salientar vale destacar a necessidade de reformular a formação de professores no Brasil, ressaltadas as deficiências existentes. Sugere-se que a formação docente deve ser central nas políticas públicas, incentivando práticas pedagógicas inovadoras, especialmente diante da cultura digital. Apesar das limitações na formação pública, os professores demonstram persistência na busca por novos conhecimentos e, embora haja algumas dificuldades no uso de tecnologias digitais, em geral, os professores não mostram resistência significativa. Ademais, o relato das experiências durante o ensino remoto destaca a importância das relações pessoais, interações sociais e compartilhamento entre os professores na criação de novas abordagens educativas, especialmente no contexto da formação de adultos.

Ainda que as questões exploradas neste estudo não busquem perpetuar uma visão fatalista das discrepâncias entre aqueles imersos na era digital e os que não são, há possibilidades de utilizar os saberes aqui revelados para estabelecer conexões, valorizar trajetórias educativas e criar novas abordagens no contexto da cultura digital. Assim, ao adotar essa abordagem investigativa e ao experimentar as dimensões que tais conceitos podem oferecer, surge a crença na importância das interações e trocas entre diversos pontos de vista para a (re)imaginação da educação contemporânea.

No que diz respeito ao aspecto docente, é fundamental ressaltar que, ao contrário de alguns debates que enfatizam a resistência à tecnologia e a falta de alfabetização digital, os educadores em geral estão inseridos no uso das tecnologias digitais e da Internet. O fato é que as tecnologias têm provocado mudanças significativas na maneira como ensinamos e aprendemos, gerando reflexões relevantes sobre modelos educativos, metodologias e processos de formação. Neste cenário, o estudo revela que os principais desafios no campo das tecnologias digitais estão enraizados na carência de dois pilares essenciais: a formação docente e a infraestrutura adequada.

Por fim, considerando o objetivo de entender os processos tecnológicos presentes no ambiente escolar cotidiano e a percepção dos educadores sobre sua aplicação nas práticas pedagógicas, explorando potencialidades e desafios, este estudo destaca a necessidade de uma abordagem inovadora que se afaste do que geralmente é proposto para a educação contemporânea. Além das campanhas de marketing e do consumo em massa, é evidente que a inovação muitas vezes carece de consistência e frequentemente se baseia em tendências, ao invés de atender às reais demandas da educação, especialmente no contexto da educação pública.

Referências

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