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EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA: PRÁTICAS PEDAGÓGICAS E CURRICULARES EM CLASSES MULTISSERIADAS

QUILOMBOLA SCHOOL EDUCATION AND THE CURRICULUM: POSSIBILITIES OF PEDAGOGICAL PRACTICES IN MULTIGRADE CLASSES

LA EDUCACIÓN ESCOLAR QUILOMBOLA Y EL CURRÍCULO: POSIBILIDADES DE LAS PRÁCTICAS PEDAGÓGICAS EN CLASES MULTISSERIADAS

Maisa Eveline Duarte da Silva 1
Universidade Federal do Pará, Brasil
Neide Maria Fernandes Rodrigues de Sousa 2
Universidade Federal do Pará, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 17, núm. 3, e66483, 2024

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 23 Abril 2023

Aprovação: 25 Abril 2024



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v17i3.66483

Resumo: O currículo escolar agrega um conjunto de significados, com critérios de seleção de produção de conhecimento. A pesquisa visa compreender o currículo escolar e as práticas pedagógicas de uma escola quilombola com classe multisseriada. O desenho curricular em escolas do quilombo tem como característica a valorização histórica de suas terras e cultura. As classes multisseriadas, comuns em comunidades do campo caracterizam-se por reunir em um mesmo espaço físico diferentes séries que são gerenciadas por um mesmo professor (a). Nesse contexto, é importante refletir sobre as orientações curriculares e as práticas pedagógicas destinadas a educação escolar quilombola com classes multisseriadas. No levantamento de campo adotou-se uma abordagem qualitativa; no qual participaram da pesquisa duas professoras de uma escola em uma comunidade quilombola com classe multisseriada; como instrumento de levantamento utilizou-se a entrevista semi-estruturada. Nos resultados as participantes em seus relatos sinalizam para a necessidade de construir políticas curriculares em conformidade com as demandas escolares em que prevalece a Educação Quilombola, assim também indicam a falta de comprometimento de políticas públicas direcionadas para escolas em comunidades quilombolas. E atentam para a construção e valorização de uma educação mantenedora dos saberes culturalmente construídos e legitimados.

Palavras-chave: currículo escolar, escola quilombola, classes multisseriadas.

Abstract: The school curriculum aggregates a set of meanings, with selection criteria for the production of knowledge. The research aims to understand the school curriculum and pedagogical practices of a quilombola school with multigrade classes. The curricular design of quilombo schools is characterized by the historical appreciation of their land and culture. Multi-grade classes, common in rural communities, are characterized by bringing together different grades in the same physical space, which are managed by the same teacher. In this context, it is important to reflect on the curricular guidelines and pedagogical practices aimed at quilombola school education with multigrade classes. A qualitative approach was adopted in the field survey, in which two teachers from a school in a quilombola community with multigrade classes took part; a semi-structured interview was used as the survey instrument. In their reports, the participants point to the need to build curricular policies in line with the demands of schools in which Quilombola education prevails, as well as pointing to the lack of commitment of public policies aimed at schools in Quilombola communities. They also highlight the need to build and value an education that maintains culturally constructed and legitimized knowledge.

Keywords: school curriculum, quilombola school, multi-grade classes.

Resumen: El currículo escolar reúne un conjunto de significados, con criterios de selección para la producción de conocimiento. La investigación tiene como objetivo comprender el currículo escolar y las prácticas pedagógicas de una escuela quilombola con clases multigrado. El diseño curricular de las escuelas quilombolas se caracteriza por la valorización histórica de su tierra y cultura. Las clases multigrado, comunes en las comunidades rurales, se caracterizan por reunir diferentes grados en un mismo espacio físico, que son dirigidos por el mismo profesor. En este contexto, es importante reflexionar sobre las orientaciones curriculares y las prácticas pedagógicas dirigidas a la educación escolar quilombola con clases multigrado. Se adoptó un abordaje cualitativo en el relevamiento de campo, en el que participaron dos docentes de una escuela de una comunidad quilombola con clases multigrado; como instrumento de relevamiento se utilizó una entrevista semiestructurada. En sus relatos, los participantes señalan la necesidad de construir políticas curriculares acordes con las demandas de las escuelas en las que prevalece la educación quilombola, además de señalar la falta de compromiso de las políticas públicas dirigidas a las escuelas de las comunidades quilombolas. También llaman la atención para la construcción y valorización de una educación que sostenga saberes culturalmente construidos y legitimados.

Palabras clave: currículo escolar, escuela quilombola, clases multigrado.

Introdução

A escola enquanto espaço de construção de valores sociais e compartilhamento de conhecimentos, carrega em sua totalidade aspectos relevantes para sua funcionalidade, a ela são atribuídos diversos fatores pessoais, culturais, político, econômicos e sociais que permeiam não só em seu interior, mas também seus arredores, já que, a mesma advém de um sistema considerável e amplo.

As escolas quilombolas foram regularizadas a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais específicas em 2012 com a orientação que a Educação Escolar Quilombola fosse nas próprias comunidades quilombolas; e no currículo deveria conter temáticas com especificidade étnico cultural. Para Candau (2012) a escola tem a função de reconhecer e valorizar sujeitos que socioculturais historicamente foram subalternizados. Nesse sentido, as escolas em contexto de quilombo legitimam o patrimônio histórico local.

Por sua vez, no cenário da educação do campo, as escolas/classes multisseriadas são uma forma de estruturação em que convivem em uma mesma sala estudantes de diferentes idades e níveis de escolarização. Os professores de classes multisseriadas enfrentam grandes desafios no sentido da organização curricular e do trabalho pedagógico.

Entender o currículo escolar enquanto instrumento fundamental na formação pessoal, sociocultural dos sujeitos, leva-nos a ponderar sobre os diversos fatores que são constituintes dessa estrutura curricular, suas intenções e contribuições no âmbito educacional, social e pessoal. Refletir sobre qual sujeito pretende-se formar e, quais meios viáveis buscar para a formação de cidadãos críticos, oportunizados a usufruírem de uma educação digna, colaborando para a construção de uma sociedade democrática. Nesse contexto, são dimensões pertinentes de debate, o currículo escolar em escolas quilombolas na modalidade multisseriada, suas especificidades e finalidades além dos sistemas educacionais de ensino.

Nessa direção, é importante refletir sobre as questões curriculares e pedagógicas com pauta na diversidade sociocultural, em específico as políticas destinadas à educação escolar quilombola em classe multisseriada, no que tange a organização curricular, as práticas pedagógicas e as adversidades das professoras para o alcance dos objetivos na escola para uma educação de qualidade. Como também, se faz necessário refletir sobre a identidade das escolas quilombolas em classes multisseriadas. Assim esse artigo tem como objetivo compreender o currículo escolar e as práticas pedagógicas de uma escola quilombola com classe multisseriada.

O currículo quilombola e as escolas multisseriadas

Para auxiliar na discussão sobre o a educação quilombola na dimensão curricular em escolas multisseriadas, inicialmente apresentaremos uma reflexão referente aos fundamentos legais e a concepção do currículo quilombola. Em seguida, discorreremos sobre o currículo escolar nas escolas de campo, em específico nas escolas multisseriadas

O currículo quilombola: bases conceituais e aportes legais

O currículo escolar mantém em seu caráter histórico, diversas concepções tecidas no decorrer dos anos. Para Silva (2011), o ponto central na discussão sobre a questão curricular é perguntar o que deve ser ensinado e que tipo de subjetividade está sendo formado. Aspectos como o saber, a identidade e as relações de poder são dimensões importantes na compreensão desse objeto de estudo. As teorias curriculares ao utilizar critérios de seleção para indicar qual conhecimento deve ser tratado no currículo tratam com questões de poder e de subjetividade. Nessa direção, os diferentes discursos sobre esse campo de conhecimento constroem noções particulares de currículo. O autor classifica as teorias do currículo em três categorias: tradicional, crítica e pós crítica.

As vertentes tradicionais apresentam um discurso sobre o currículo enquanto algo neutro, estagnado e intencionalmente ligado as relações de poder. Na década de 1970 o tecnicismo era central nos debates sobre o currículo; e as categorias que se destacaram nessa perspectiva era ensino, aprendizagem, avaliação, didática, metodologia, organização, planejamento e eficiência.

As teorias críticas realizam uma mudança nas bases teóricas tradicionais. Essas deslocam as categorias conceituais referente ao ensino-aprendizagem para os conceitos de ideologia e poder; bem como, destaca questões como reprodução cultural e social, classe social, conscientização, emancipação e currículo oculto entre outros. Essas teorias partem da ideia de que o currículo se direciona para justiça social, crescimento individual e comprometido com emancipação e liberdade.

As teorias pós-críticas apontam para perspectivas curriculares mais abrangentes, com o deslocamento no modo de produzir o currículo; questões como cultura, alteridade, diferenças e identidade são destacadas nas discussões. Categorias conceituais como subjetividade, cultura-saber-poder, significação e discurso são enfatizadas nos aportes teóricos. Os sujeitos são percebidos como ativos e com múltiplas culturas e protagonistas de seus processos formativos, logo a aprendizagem passa a ser concebida de forma diversificada, em que conhecimento e poder se relacionam na prática educacional como características indissociáveis. Referente a isso, Silva (1996, p.23) diz que:

O currículo é um dos locais privilegiados onde se entrecruzam saber e poder, representação e domínio, discurso e regulação. É também no currículo que se condensam relações de poder que são cruciais para o processo de formação de subjetividades sociais. Em suma, currículo, poder e identidades sociais estão mutuamente implicados. O currículo corporifica relações sociais.

Estudos apontam que o currículo se caracteriza como eixo norteador para a efetivação de saberes historicamente legitimados no contexto escolar, por meio dele, há a possibilidade de validar o conhecimento sem desconsiderá-lo, alcançando a diversidade cultural, proporcionando a formação de pessoas críticas. Souza (2015) destaca a questão curricular como uma dimensão fundamental na educação escolar; por intermédio do currículo são produzidos a seleção de conhecimentos considerados como válidos e são expressos projetos de sociedade. Para a autora, a estrutura curricular colabora no modo de perceber e interpretar uma realidade e auxilia na produção de sujeitos e identidades a partir de interesses de grupos que controlam uma política curricular.

Silva (2007) afirma que o currículo não é somente construção de conhecimento, mas também, uma questão de identidade, visto que que o conhecimento está implicitamente ligado a nossa subjetividade ou no que somos e nos tornamos. Laraia (1999) (apudSilva, 2011, p. 54) salienta que:

O indivíduo com cultura diferente é possível ser identificado por características como modo de agir, de vestir, de comer, de andar, de falar que é um dos fatos mais observados empiricamente. O modo de ver o mundo, as apreciações de ordem moral e valorativa, os diferentes comportamentos sociais e mesmo as posturas corporais são assim produtos de uma herança cultural, ou seja, resultado da operação de uma determinada cultura.

Nesse sentido, o currículo em sua essência deve abranger todos os aspectos que são relevantes para o reconhecimento e preservação dos elementos identitários de um povo, buscando envolvê-los em sua totalidade, no sentido de, torna-se inovador e integrador no tocante às classes que ainda não se encaixam em sua totalidade como receptores desse mecanismo de trabalho.

Para Ferreira (2014), o currículo se destaca como um campo amplo de significações. Para o autor:

Refletir e falar sobre currículo é interagir com um artefato múltiplo, que agrega uma gama de definições, portanto, [...] o currículo não é somente uma seleção de saberes, mas, também um produtor contínuo de conhecimentos e sentidos, em tempo e sociedade (Ferreira, 2014, p. 84).

Desse modo, salienta-se que a sociedade é caracterizada pela diversidade cultural que nela está inserida. Para tanto, não devem ser desconsideradas a pluralidade social, pois, de certo modo estas podem contribuir para a transformação e o enriquecimento das práticas educacionais, de modo que possam redirecionar as divergências que são adicionais nas políticas curriculares.

Ainda nessa linha de pensamento, Ferreira (2014) afirma que o currículo é marcado por conflitos, negociações, disputas que estão diretamente vinculadas as relações de poder. Assim, currículo, cultura e identidade estão implicados de forma permanente em lutas pela afirmação e legitimação de vozes silenciadas [...]. Com isso, as relações do currículo ultrapassam as finalidades internas da escola, como uma política cultural que transita pelos diversos caminhos que o currículo escolar percorre até sua efetivação.

Nessa direção, uma política pedagógica e curricular da identidade e da diferença deve colocar na centralidade um aporte teórico que possibilite questionar que instituições estão implicadas no estabelecimento dessa identidade (Silva, 2000).

Documentos oficiais, regulamentam a estrutura curricular nos diversos níveis de ensino. A Lei de Bases e Diretrizes da Educação- LDB (Lei n. 9.394/96) surge como proposta para direcionar de forma sistemática as diretrizes curriculares e propiciar a melhoria de ensino nos sistemas educacionais. Podemos considerar assim, a elaboração da LDB como um instrumento ordenado por diretrizes, a fim de minimizar os empasses educacionais, evidenciando a luta por um currículo que agregue todas as classes sociais, evidenciando que, nesse novo cenário de reestruturação em que o currículo escolar se insere, as especificidades locais e diversidade cultural contemporânea são postas em questão, e consequentemente, passam a ser visibilizadas com mais frequência em suas particularidades e finalidades.

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) pontua que o currículo e propostas pedagógicas na formação geral básica tem o encargo de garantir as aprendizagens essenciais, compromissado com a formação e desenvolvimento global. O documento indica que na Educação Básica os estudantes têm que desenvolver dez competências gerais. Uma das competências diretamente relacionada com a Educação Quilombola é a habilidade capacidade de agir, pessoal e coletivamente. E a coletividade, um dos eixos das comunidades quilombolas devem ser construído no cotidiano do contexto das comunidades quilombolas (Brasil, 2018).

Desse modo, é válido ressaltar que as questões do currículo no âmbito educacional são tecidas por muitas mudanças em relação as suas finalidades, sendo contextualizadas de acordo com as intenções e contextos. Assim sendo, os argumentos apresentados a seguir refletirão sobre o currículo na Educação Quilombola, sendo este, contemplado de forma mais aprofundada nas políticas curriculares.

Nessa direção, a Educação Quilombola apresenta-se como uma modalidade de ensino que vem aos poucos ocupando seu espaço no currículo escolar e nas políticas públicas de ensino. Brito, Santos e Matos (2020) salientam que as conquistas foram recentes:

Em se tratando dessas questões no campo da educação escolar quilombola, seus marcos legais no país são muito recentes: foram colocadas como pauta nas agendas do governo a partir do ano de 2003, quando, pela força dos movimentos sociais, principalmente do Movimento Negro, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei) sofreu modificações atribuídas pela Lei n. 10.639 (Brasil, 2003), que trata da obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na Educação Básica (Brito; Santos; Matos, 2020, p. 432).

Logo, a Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003 é definida como sinônimo de lutas que foram traçadas, principalmente pelos movimentos negros em todo território nacional, possibilitando o acesso aos conhecimentos identitários historicamente construídos, valorizando assim, vagorosamente as comunidades quilombolas e seu contexto educacional. No entanto, ainda são necessárias ações de ajustes nos diversos aspectos das realidades quilombolas, principalmente no campo educativo em que o currículo aparece como eixo norteador da prática pedagógica educacional.

Nota-se com isso, que o direito a uma educação em conformidade com as realidades das escolas quilombolas, deve refletir diretamente no currículo, ao qual, possa considerar os valores culturais constituintes nos processos formativos e que contribuam para a construção social dos sujeitos envolvidos no espaço escolar.

Entre os anos de 2010 até 2012 foram construídas e aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola -DCNEEQ. O referido documento enfatiza que:

O currículo da Educação Escolar Quilombola diz respeito aos modos de organização dos tempos e espaços escolares de suas atividades pedagógicas, das interações do ambiente educacional com a sociedade, das relações de poder presentes no fazer educativo e nas formas de conceber e construir conhecimentos escolares, constituindo parte importante dos processos sociopolíticos e culturais de construção de identidades (Brasil, 2012).

Pode-se considerar assim, o currículo como um instrumento de execução da prática pedagógica, relevante para refletir sobre a construção identitária das pessoas, considerando as demandas da escola, as dimensões políticas, culturais e sociais que lhe são adicionais.

No que se refere ao currículo e as ações de cunho pedagógico para a educação quilombola as DCNEEQ apresentam algumas questões a serem consideradas, como explicitadas no documento em questão:

I - Os conhecimentos tradicionais, a oralidade, a ancestralidade, a estética, as formas de trabalho, as tecnologias e a história de cada comunidade quilombola; II - as formas por meio das quais as comunidades quilombolas vivenciam os seus processos educativos cotidianos em articulação com os conhecimentos escolares e demais conhecimentos produzidos pela sociedade mais ampla (Brasil, 2012).

Nessa direção, o currículo quilombola precisa estar alinhado a um conjunto de características que vão desde a inserção do sujeito à escola, até sua formação, seja cultural, pessoal e social, buscando organizar de modo complementar os pressupostos que estão contidos nos Parâmetros Curriculares.

Compreende-se assim, o currículo escolar agregado a um sistema abundante de propostas intencionais de acordo com o modelo de sujeito que se deseja formar. Logo, apresenta-se como um dispositivo oportuno para inserir no exercício da prática educacional, as especificidades culturais locais, colaborando para uma perspectiva construtiva de educação integral.

O Currículo e os sistemas multisseriados em escolas de campo

O currículo escolar nas escolas de campo vem sendo marcado pelo travamento de lutas diárias, questão essa que se intensifica devido a maioria dessas escolas estarem situadas em áreas rurais, pautadas em realidades que estão distantes de serem ideais, sendo caracterizadas como escolas de campo.

Referente às escolas rurais Chizzotti e Silva (2018) salientam qu

Historicamente, a criação do conceito de educação escolar no meio rural esteve vinculada à educação “no campo”, descontextualizada e oferecida para uma minoria da população brasileira. A escola brasileira, desde o seu início até o século XX, serviu e serve para atender às elites, sendo inacessível para grande parte da população rural (Chizzotti; Silva, 2018, p. 1422).

O processo de desconstrução de um ensino centralizado e controlador que prevalece nas escolas rurais vêm sendo traçado por diferentes vertentes, que vão desde a construção de um currículo escolar estagnado até a luta por uma educação que agregue diversas classes sociais.

Com a Lei 9.394/96- Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), a educação passa a ser configurada de forma mais abrangente, como previsto no Art. 1º “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”.

Nesse percurso, as escolas de campo perpassam por uma significativa mudança em seu caráter educativo, mas especificamente na educação básica, em que, lhes são acrescentadas um modo diferenciado de trabalho nas escolas rurais, mais contextualizado e abrangente, como previsto na LDB em seu Art. 28 “Na oferta de educação básica para a população rural, os sistemas de ensino promoverão as adaptações necessárias à sua adequação às peculiaridades da vida rural e de cada região”. Nota-se com isso, uma mudança minuciosa nas escolas de campo, que vão ganhando espaço nas políticas públicas de ensino, porém essas políticas nem sempre são efetivadas em suas totalidades.

Nesse cenário, as escolas rurais e do campo ainda são marcadas por diversos entraves. As políticas de inclusão social nem sempre alcançam todos os ambientes educacionais inseridos nesse contexto, como as escolas quilombolas.

Os espaços escolares em comunidade quilombola podem ser classes multisseriadas, o que nos leva a refletir sobre o cunho político dos sistemas públicos de ensino. Parente (2014) ressalta que as classes multisseriadas foram uma alternativa política no atendimento à população do campo, que historicamente era excluída da escola; a organização da escolarização em multisséries é mais perceptível em países subdesenvolvidos.

Segundo Hage (2014) as comunidades rurais não têm opções de escolas, o que dificulta o sucesso escolar:

Essas escolas se constituem geralmente na única alternativa para os sujeitos estudarem nas comunidades rurais em que vivem, encontrando-se expostos a um conjunto de situações que não favorecem o sucesso e a continuidade dos estudos, evidenciando, inclusive, o descumprimento da legislação vigente, que estabelece parâmetros de qualidade a serem alcançados na educação básica nas escolas do campo (Hage, 2014, p. 9).

Chizzotti e Silva (2018) colaboram com tal concepção ressaltando que na educação das crianças do campo nas classes multisseriadas foi um modo da encaminhar a educação para as comunidades distantes das áreas urbanas. Nesse panorama devem ser considerados algumas dimensões como a estrutura física das escolas, os materiais didáticos e a formação de professores.

A concepção formada a partir do distanciamento das escolas rurais das sedes municipais colabora para que tais escolas sejam adotadas de forma excludente, aderindo assim ao ensino multisseriado, ao qual, é conceituado pelo poder público como uma forma de manter o alunado nos próprios territórios rurais. Para Hage e Reis (2018):

Isso tem feito com que, historicamente, a escola pública rural assuma a identidade de escola (multi)seriada ao reunir estudantes de diferentes séries e níveis em uma mesma turma, com apenas um professor como responsável pela condução do trabalho pedagógico, sendo, por esse motivo, também denominada de escola unidocente (Hage; Reis, 2018, p. 80).

Com isso, as escolas multisseriadas são historicamente caracterizadas pelas múltiplas particularidades que por elas perpassam, pautadas nos variados fatores que intervêm na excelência da educação e que de alguma forma causam impactos nas ações educativas, fazer pedagógico e relações culturais.

Ainda segundo os autores, as turmas e escolas multisseriadas têm como traço a heterogeneidade, pois reúnem grupos diversos. As diferenças podem ser de sexo, gênero, raça, etnia, religiosidade, idade, interesses, domínio de conhecimentos, níveis de aproveitamento, ritmos de aprendizagem, entre outras. Referente a isso, Rocha e Colares (2013) salientam que:

As classes multisseriadas caracterizam-se por reunir em um mesmo espaço físico diferentes séries que são gerenciadas por um mesmo professor. São, na maioria das vezes, única opção de acesso de moradores de comunidades rurais (ribeirinhas, quilombolas) ao sistema escolar. As classes multisseriadas funcionam em escolas construídas pelo poder público ou pelas próprias comunidades, ou ainda em igrejas, barracões comunitários, sedes de clubes, casas de professores entre outros espaços menos adequados para um efetivo processo de ensino-aprendizagem (Rocha; Colares, 2013, p. 93).

Nessa perspectiva, pode-se destacar que a política educacional chega ao campo muito desafiadora, sendo necessárias adaptações de tempo, espaço e planejamento pedagógico, para que se possa cumprir com as propostas curriculares, uma vez que, ainda é perceptível que a estrutura curricular para a modalidade de ensino rural se assemelha com o ensinamento no meio urbano, o que contribui para que a educação nessas escolas seja complexa e precária, já que as realidades do campo e urbana se distinguem.

Em meio aos embates pelo qual as unidades de ensino multisseriado vivenciam, podemos mencionar o currículo escolar, que nem sempre está alinhado com a realidade rural/do campo, indo em contramão com a diversidade cultural, política e social dessas instituições, fazendo com que as práticas pedagógicas sejam aplicadas de forma superficial. Supõe-se que, um currículo elaborado a partir de vivências e particularidades locais, exerce papel preponderante no processo formativo dos sujeitos.

Desta maneira, Silva (2015), sinaliza a ausência do direcionamento comprometido com a elaboração dos conteúdos curriculares para as classes multisseriadas em escolas quilombolas. Para a autora o seu não reconhecimento dentro dos currículos escolares tem trazido consequências econômicas, sociais, psicológicas, culturais e políticas para esta população, além de produzir e reproduzir desigualdades.

No que está relacionado a garantia do direito a educação para as classes multisseriadas, Caldart (2002), pontua que:

A população do campo tem direito a luta por políticas que garantam o seu direito a uma educação e que seja do e no campo. No: o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive; Do: o povo tem direito a uma educação que seja pensada desde o seu lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais (Caldart, 2002, p. 26).

Supõe-se com isso, que o currículo para as classes multisseriadas nas escolas rurais e do campo, precisa estar em conformidade com as necessidades educacionais dos sujeitos, elencando elementos que sejam pertinentes e complementares em seu processo de ensino e aprendizagem.

Assim, as escolas do campo e rural traçam um percurso em meio a desafios e conquistas, que vão desde a resistência para manter um enlace cultural até a aquisição de políticas públicas educacionais que sejam efetivadas nas especificidades locais, currículo, classes multisseriadas e cultura local, entre outras questões que permeiam no espaço escolar.

O percurso metodológico

Para atingir o objetivo, qual seja, compreender o currículo escolar e as práticas pedagógicas de uma escola quilombola com classe multisseriada, organizamos o desenho metodológico. Optamos pela abordagem qualitativa que por suas características foi a mais adequada a investigação, visto que no paradigma qualitativa segundo Lüdke e André, (2014) se busca o significado que as pessoas dão ao fenômeno pesquisado e a fonte direta dos dados ocorre em ambiente natural. Além disso, a produção de dados é predominantemente descritiva e o processo da pesquisa é mais importante do que o produto. Assim, a abordagem de cunho interpretativo ou qualitativo atende aos objetivos da pesquisa.

A pesquisa de cunho qualitativo permite observar o universo de significações do fenômeno social ao qual busca-se estudar e contribui para o entendimento dos processos que envolvem os contextos sociais relevantes da educação. Segundo André (2013):

As abordagens qualitativas de pesquisa se fundamentam numa perspectiva que concebe o conhecimento como um processo socialmente construído pelos sujeitos nas suas interações cotidianas, enquanto atuam na realidade, transformando-a e sendo por ela transformados. Assim, o mundo do sujeito, os significados que atribui às suas experiências cotidianas, sua linguagem, suas produções culturais e suas formas de interações sociais constituem os núcleos centrais de preocupação dos pesquisadores (André, 2013, p. 97)

Lócus: A escola na comunidade Quilombola Bela Aurora

O lócus de referência para o estudo foi uma escola pública multisseriada, que oferece os níveis de ensino educação Infantil e ensino fundamental anos iniciais. Atende um público equivalente a 21 alunos com faixa etária de 03 a 12 anos nos turnos matutino e vespertino. Recentemente, a escola passou por uma reforma em seu espaço físico dispondo de uma sala climatizada, cozinha, secretaria e espaço recreativo.

A escola é composta por um quadro de sete funcionários, envolvendo serviços gerais, serventes, vigias e professores, possuindo assim, quatro funcionários efetivos e três contratados. No ano de 2022, a escola foi contemplada com as Diretrizes Curriculares Quilombola, no entanto, não dispõe de uma coordenação em seu interior, tendo que ser submetida às orientações curriculares e pedagógicas advindas da escola polo ao qual o Município decretou que fossem implementadas as Diretrizes; essa escola polo é responsável pelas orientações curriculares e pedagógicas em educação escolar quilombola para escola pública multisseriada em Bela Aurora.

A referida escola está situada na Comunidade Quilombola Bela Aurora às margens do Rio Gurupi na divisa dos Estados Pará e Maranhão, acerca de 36 quilômetros da sede Municipal Cachoeira do Piriá. A comunidade agrega 64 famílias tendo como principal meio de sustento a pesca e, como fonte de renda a agricultura familiar, a qual, o açaí e a farinha são os produtos com maior comercialização.

Bela Aurora é uma comunidade legalmente reconhecida como Quilombola, teve sua titulação no ano de 2004 pela Fundação Cultural Palmares e, desde então, vem conquistando seu espaço por meio de lutas e resistência que ao longo dos anos foram servindo de alicerces para a ascensão da comunidade. Com predominância religiosa católica, a comunidade está situada em área rural, estando seus residentes organizados por meio de uma associação denominada Associação Quilombola Rural de Bela Aurora, está registrada em cartório, visando suporte para a conquista de direitos e elevação da comunidade enquanto território reconhecido legalmente.

Participantes da pesquisa: as professoras da escola no Quilombo Bela Aurora

Os participantes da pesquisa foram duas professoras que lecionam na escola da comunidade Quilombola Bela Aurora. A 1ª professora leciona nas turmas de 2° ao 5° ano, a mesma tem graduação em letras – língua inglesa, atuante há dois anos como professora e responsável pela escola. A 2ª professora atua há cinco meses na Educação Infantil (creche e pré-escola) e 1° ano do ensino fundamental, tem graduação em pedagogia. No campo da religiosidade, ambas, se declaram católicas. As professoras desempenham papéis relevantes dentro do ambiente pesquisado, uma vez que possuem vínculos oriundos de familiares com pertencimento étnico e residencial dentro da comunidade.

Para preservar a identidade das participantes, as professoras foram reconhecidas com nome fictício. A professora que leciona do 2º ao 5ºano foi denominada de Rosa, e a professora que atua na creche, educação infantil e 1º ano foi denominada de Tais.

Instrumentos e procedimento de levantamento da pesquisa

Para a obtenção dos dados, utilizou-se como instrumento de levantamento a entrevista semiestruturada com roteiro pré-estabelecido e o questionário socioeconômico. As questões pertinentes a entrevista relacionaram-se às características escolares, a estrutura curricular e como funciona a prática docente em classes multisseriadas.

Como procedimento inicial foi realizada uma pesquisa exploratória. Nessa etapa estabeleceu-se um contato com as professoras a fim de construir uma relação positiva; tivemos um primeiro diálogo no qual explicamos o objetivo da pesquisa, e solicitamos que as mesmas autorizassem o levantamento, com a assinatura do Termo de Consentimento Livre Esclarecido. Na pesquisa exploratória também fizemos observação assistemática da escola e uma pré-testagem do roteiro de entrevista. A pesquisa exploratória serviu como suporte para um envolvimento mais aprofundado, considerando os requisitos da pesquisa. Após a pesquisa exploratória, realizamos o levantamento de campo, no caso, as entrevistas com as professoras. Essas foram realizadas em datas separadas e cada uma durou aproximadamente 60 minutos.

Resultados e discussões

Para atingir os objetivos da pesquisa foram organizados os dados segundo análise de conteúdo de Bardin (2011). Essa estruturação ocorreu em três fases: a pré-análise, no qual sistematizamos as entrevistas feitas com as professoras, nessa etapa realizamos a transcrição e a leitura flutuante. A 2ª etapa denominada exploração do material fizemos a codificação, por meio do recorte das entrevistas das professoras, em seguida, foi feita classificação e agregação das informações em categorias temáticas ou unidades de sentido. Por fim, na etapa - exploração do material e tratamento dos resultados fizemos a inferência e interpretação. No tratamento dos resultados, verificamos as ideias explícitas e latentes dos relatos das professoras e em seguida fizemos a síntese, as inferências e as interpretações.

Assim, após a fase de exploração do material emergiram as seguintes categorias temáticas ou unidades de sentido:

  1. As diretrizes curriculares em escolas quilombolas em series multisseriadas

    Planejamento curricular e práticas pedagógicas;

    Desafios e dificuldades das escolas quilombolas em contextos multisseriados

As diretrizes curriculares em escolas quilombolas em series multisseriadas

Para as participantes, a política curricular direcionada à educação escolar quilombola apesar de ser uma conquista educacional propiciadora de debates relevantes, é também, um processo vagaroso. As mesmas destacaram que a escola pode ser um espaço de resistência e lutas pelo reconhecimento e fortalecimento das especificidades locais, como enfatizado na fala da professora responsável pela escola quando expôs sua percepção sobre o currículo escolar quilombola:

Um sonho que estamos vivendo em nossa escola. Este ano em nosso município foi implantado o currículo escolar quilombola, essa é uma grande conquista do povo quilombola onde nossos saberes, nossos costumes estão sendo reconhecidos e repassados em sala de aula, enegrecer o currículo escolar é um grande avanço e se faz necessário para o reconhecimento e o fortalecimento do povo quilombola (Professora Rosa[1]).

Nota-se na fala da professora Rosa o quão importante se mostra a efetivação das diretrizes curriculares quilombolas em escolas designadas como tal, em que a aquisição de políticas públicas possa direcionar-se para a melhoria das práticas educativas, evidenciando a necessidade de valorizar o processo educacional da diversidade nos diversos contextos escolares. Para Ferreira (2014):

A construção de uma política curricular para as escolas quilombolas, transita por vários fragmentos da instituição mantenedora, que tem o poder de avaliar e decidir o que pode e o que não pode ser legitimado numa proposta curricular, cujo objetivo maior é o reconhecimento, visibilidade, integração entre conhecimentos oriundos de uma cultura historicamente subalternizada, portanto, negada, quando não estereotipada no currículo dito oficial (Ferreira, 2014, p. 86).

Nessa lógica, supõe-se que o currículo quilombola deve estar alinhado a um conjunto de ações que agregue os direitos reservados as relações étnico raciais, de modo contribuinte, para elencar a valorização e o despertar de uma educação mantenedora dos valores institucionais e pessoais dos povos tradicionais.

Podemos perceber o sentido vinculado à implementação das diretrizes curriculares quilombolas na fala da professora Tais:

O currículo escolar quilombola é o que faz toda diferença no processo de formação das crianças do quilombo, pois é com ele que as crianças entendem seu papel de formação social enquanto crianças quilombolas, não só das crianças, mas caba impactando as famílias do quilombo também, porque todos acabam se envolvendo nesse processo (professora Tais).

A fala da professora Tais evidenciou o quanto se faz necessário pensar nas ações curriculares como uma questão sensível e precisa das necessidades escolares, mesmo sabendo que a construção de uma proposta curricular para as escolas quilombolas perpassa por uma trajetória extensa e com diferentes concepções, a elaboração desta não deve dar-se apenas como algo que esteja dentro de uma norma institucional, mas que, enalteça os conhecimentos válidos que colaboram para a construção social de uma população.

Planejamento curricular e práticas pedagógicas

No que se refere ao planejamento curricular e pedagógico da escola estudada, evidencia-se na narrativa das professoras a carência de suporte para que a prática docente possa efetivar-se com menos sobrecarga de trabalho. Para as participantes a falta de apoio por parte das coordenações ocasiona no exercício de planejamento escolar uma lacuna considerável, o que acaba responsabilizando, em sua maioria, os professores pela realização dessa ação.

O planejamento curricular é feito de forma externa, na escola polo, onde fica situada a coordenação pedagógica das escolas anexas. Porém, fica difícil, as vezes há falta de apoio por parte da coordenação, aí esse planejamento acaba sendo interno desenvolvido pelo próprio professor (Professora Rosa).

O planejamento curricular e pedagógico deve considerar o contexto cultural específico e as demandas das instituições de ensino nas escolas do campo, agregando os direitos constitucionais concedidos aos indivíduos envolvidos nos sistemas educacionais de ensino. Arroyo (2015) sinaliza para o privilégio pontuado nas políticas e diretrizes curriculares:

O reconhecimento da diversidade em que se avança lentamente nas políticas e diretrizes curriculares dá ênfase em que os conhecimentos dos currículos valorizando as diferenças ajudem a toda criança, adolescente, jovem-adulto na construção, reconstrução da diversidade de suas identidades culturais. (Arroyo, 2015, p. 58).

Contudo, o que se percebe na realidade da escola, o planejamento escolar nem sempre acontece dentro dos preceitos, os conhecimentos tradicionais nem sempre são considerados e o fazer pedagógico acontece de forma superficial o que colabora para que a prática docente aconteça de forma árdua e exaustiva, uma vez que os professores precisam suprir as carências e enfrentar as adversidades escolares, para que assim, o ensino e aprendizagem possam efetuar-se de forma colaborativa.

Apesar da escola estar fundamentada em documentos oficiais que regulamentam as escolas quilombolas, o planejamento curricular e pedagógico ainda se mostra como um desafio enfrentado por professores que atuam nesse cenário, pois necessitam desenvolver práticas que estejam em consonância com as demandas escolares dessas comunidades, não sendo um processo fácil, já que se faz necessário um conjunto de ações que os docentes precisam desenvolver para inserir as diversas realidades e níveis de aprendizagem. Ainda assim, percebeu-se que as professoras tentam constantemente complementar suas práticas pedagógicas envolvendo os saberes locais, lidando de forma compreensível com as dificuldades dos discentes.

Desafios e dificuldades das escolas quilombolas em contextos multisseriados

Atuar em contextos com salas de aulas multisseriadas requer estar preparado para enfrentar um ambiente com múltiplas especificidades. Para tanto, inserir-se dentro de um sistema multisseriado de ensino possibilita enxergar um mundo de descaso e falta de reconhecimento com quem precisa ter devida valorização. Nesse sentido, os relatos das professoras entrevistadas chamam atenção para a falta de comprometimento com a educação, para que, esta, possa ser efetivada em sua totalidade dentro dos territórios quilombolas. Na fala da professora responsável pela escola fica notório o quão desafiador é o trabalho docente nessas escolas.

São inúmeros os desafios, porém a maior dificuldade é ministrar aulas para alunos da creche ao 5º ano ao mesmo tempo, pois são: faixa etária diferente, níveis de aprendizagem diferente, conteúdos diferentes entre outros, resumindo é muito complicado trabalhar com turmas multi. Principalmente quando se trata de educação infantil e ensino fundamental junto. Por mais que seja desenvolvida estratégia de ensino e aprendizagem, fica muito complicado tanto para o professor quanto para os alunos desenvolver e obter resultados desejados, até conseguimos mais de uma forma lenta, e o que acontece é que as vezes o aluno chega ao 5º e não consegui desenvolver todas as habilidades propostas[...] um profissional sobrecarregado fica impossibilitado de exercer um excelente trabalho por mais que se esforce o que fica as vezes é a sensação de incapacidade por não conseguir do aluno o resultado que almeja devido essa complexidade que são as escolas com classes multisseriadas (Professora Rosa).

Na narrativa da professora Rosa, a complexidade da atuação docente em escolas multisseriadas no campo. O contexto não facilita o desenvolvimento de habilidades e aprendizagem e dificulta o trabalho da professora de contribuir para a aprendizagem dos alunos, para que possam progredir de forma significativa.

Outra questão a ser discutida são as políticas públicas direcionadas às comunidades quilombolas. A realidade indica a falta de comprometimento e inoperância dessas políticas, evidenciando a inoperância das secretarias de educação que em sua maioria deixam a desejar, causando assim lacunas nos sistemas educacionais, questão essa evidente na fala de uma das professoras ao mencionar as necessidades vivenciadas

As dificuldades é a falta de suporte da secretaria de educação para nos auxiliar na organização pedagógica, pois a escola não tem uma equipe específica para essa organização, como coordenador pedagógico e etc. somos nós professores que construímos todo o processo de organização do trabalho pedagógico. A escola conta também apenas com 1 professor, no meu caso, mesmo sendo pedagoga, não lotada como professora e sim, como auxiliar administrativa, porém, vendo as dificuldades enfrentadas no dia a dia dentro da sala de aula acabei me doando para ficar responsável pela creche, educação infantil e 1º ano já que sou pedagoga[...] (Professora Tais).

A narrativa da participante vem indicar a realidade de uma escola em uma comunidade quilombola, marcada pela desigualdade e por políticas públicas pouco exitosas em comparação as escolas urbanas. Enquanto as escolas urbanas dispõem de estabelecimentos com diversas turmas, vários professores nos níveis maiores de ensino e alunos distribuídos por séries, as escolas rurais em que prevalece as classes multisseriadas, vivenciam uma realidade totalmente inversa, em que todos os seus atuantes são submetidos a enfrentarem os diversos desafios que fazem parte desse sistema de ensino. Para Oliveira e Gimenez (2018):

Os docentes de classes multisseriadas enfrentam dificuldades da própria docência presentes nas salas de aulas urbanas, porém em proporções maiores, pois fazem intervenções pedagógicas em uma sala com diferentes séries e faixas etárias em um mesmo local e horário (Oliveira; Gimenez, 2018, p. 11).

Em escolas do campo multisseriada observa-se uma complexidade em organizar o trabalho pedagógico e ministrar aulas para estudantes com idades e níveis de aprendizagem diferentes, visto que a escola tem poucos recursos e mínimas condições de trabalho docente. O professor se percebe muitas vezes com um conjunto de adversidades para enfrentar, precisa muitas vezes resolver os problemas escolares ou mesmo amenizar esses, para garantir a aprendizagem dos estudantes, com recursos limitados e poucas condições do trabalho docente. Assim também, o professor sente-se pressionado no atendimento às prescrições da secretária da educação do município, e que pela circunstância do ambiente de trabalho e poucos recursos materiais, tornam o trabalho docente exaustivo nessas escolas.

Considerações finais

Em virtude do que foi mencionado, entende-se que as constantes reformas educacionais, são frutos de olhares que ainda chamam atenção para a necessidade de construção de uma política curricular que envolva todas as classes sem distinção, com um currículo escolar específico que englobe os diversos ambientes em que a escola está situada, favorecendo assim, os sistemas e modalidades de ensino. Mesmo com a implementação das diretrizes curriculares quilombolas, as comunidades rurais vivenciam uma realidade complexa, não só nos espaços físicos das escolas como também na estrutura curricular, em que nem sempre as peculiaridades locais são reconhecidas, portanto, não são efetivadas de forma complementar.

A escola ao qual foi realizada a referida pesquisa perpassa por uma mudança significativa, porém, lenta. A realização do referido estudo permitiu pensar o currículo escolar enquanto espaço de resistência por parte das comunidades quilombolas, o que nos leva a refletir sobre as políticas curriculares nos sistema de ensino e seus impactos na tentativa de conciliar com as práticas pedagógicas.

Com isso, ao nos reportamos para os objetivos da pesquisa, conclui-se que o currículo de uma escola se fundamenta em um elemento central para que a prática educativa possa ser efetivada de forma significativa, no entanto, as escolas quilombolas com classes multisseriadas comungam de um ensino desafiador, com currículos que nem sempre abrangem as características equivalentes para o desenvolvimento de uma prática eficaz. Assim, a Escola Quilombola na comunidade Bela Aurora ainda se constitui dentro de um cenário precário de ensino, com uma melhoria minuciosa em que os docentes buscam de toda forma criar estratégias para desenvolverem suas práticas pedagógicas, para assim impulsionar o reconhecimento dos valores da escola e comunidade a fim de elevar seu ensino e aprendizagem para que seus saberes sejam legitimados e consequentemente os alunos vislumbre de uma educação íntegra.

Nesse contexto, são muitas as dificuldades que os profissionais precisam enfrentar para atuarem nas escolas quilombolas, ainda assim, podemos visibilizar professores empenhados e comprometidos com suas profissões a fim de construírem ações somativas com a educação dos sujeitos que compõem a comunidade, para que possam usufruir de um aprendizado que concretize seus saberes locais e possivelmente torná-los ativos na busca pela valorização de sua história.

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Notas

[1] Entrevista de pesquisa concedida em 10 de junho de 2022, na comunidade quilombola Bela Aurora.
Como citar SILVA, Maisa Eveline Duarte da; SOUSA, Neide Maria Fernandes Rodrigues de. EDUCAÇÃO ESCOLAR QUILOMBOLA E O CURRÍCULO: possibilidades de práticas pedagógicas em classes multisseriadas. Revista Espaço Currículo, v. 17, n. 3, e66483, 2024. DOI: 10.15687/rec.v17i3.66483

Autor notes

1 Pedagoga pela Universidade Federal do Pará. Docente da Prefeitura de Cachoeira de Piriá.
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Pará. Docente na Universidade Federal do Pará.
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