Demanda Contínua
Recepção: 15 Agosto 2023
Aprovação: 21 Março 2024
Resumo: A história do Ensino Médio no Brasil é um reflexo das mudanças socioeconômicas pelas quais o país passou desde a Proclamação da República até a atualidade. O objetivo deste artigo não é focar em tais fatos e sim analisar as políticas curriculares do Ensino Médio no Brasil a partir da Reforma Francisco Campos até a Reforma do Novo Ensino Médio efetivada na Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017). Para alcançar tal propósito será feita uma leitura das principais leis que marcaram esse nível de ensino com o intuito de debater sobre os embates políticos que situaram o contexto contemporâneo de grandes mudanças curriculares e seus reflexos na autonomia discente enquanto seu papel ativo neste processo de aprendizagem, utilizando o conceito de estratos do tempo de Koselleck (2006, 2014) e o quadro de políticas públicas de Ball e Bowe (1992). Ainda neste estudo contemplam-se os efeitos que o movimento hashtag Revoga já Novo Ensino Médio encaminhou e os resultados alcançados até o momento, a saber, abertura da consulta pública e a posterior divulgação dos seus resultados, indicando uma transparência maior em relação à momentos anteriores e um avanço no que diz respeito às políticas públicas educacionais.
Palavras-chave: currículo, ensino médio, reformas.
Abstract: The history of Secondary Education in Brazil is a reflection of the socioeconomic changes that the country has gone through since the Proclamation of the Republic to the present day. The purpose of this article is not to focus on such facts, but to analyse the curricular policies of Secondary Education in Brazil from the Francisco Campos Reform to the New Secondary Education Reform enacted in Law 13.415/2017 (Brazil, 2017). To achieve this purpose a reading of the main laws that marked this level of education will be carried out in order to discuss the political clashes placed that the placed the contemporary context of major curricular changes and their reflections on student autonomy as their active role in this learning process using Koselleck's (2006, 2014) time stratum concept and Ball and Bowe's (1992) public policy framework. This study also contemplates the effects that the #Revoke already New Secondary School movement has had and the results achieved so far, namely, the opening of the public consultation and the subsequent dissemination of its results, indicating greater transparency in relation to previous moments and progress with regard to educational public policies.
Keywords: curriculum, hight school, reforms.
Resumen: La historia de la enseñanza media en Brasil es un reflejo de los cambios socioeconómicos por los cuales pasa el país desde la Proclamación de la República. El objetivo de este artículo no es focalizar en tales hechos, sino analizar las políticas curriculares de la Enseñanza Media en Brasil a partir de la Reforma Francisco Campos a la Reforma de la Nueva Enseñanza Media efectuada en la Ley 13.415/2017 (Brasil, 2017). Con el fin de alcanzar lo propuesto se hará una lectura de las leyes principales que señalaron ese nivel de enseñanza en el país con la intención de debate acerca de los embates políticos que fijaron el contexto contemporáneo de grandes cambios curriculares y sus reflejos en la autonomía discente en cuanto su papel activo en este proceso de aprendizaje, utilizando el concepto de estratos de tiempo de Koselleck (2006, 2014) y el cuadro de políticas públicas de Ball y Bowe (1992). Todavía se contempla en este estudio los efectos que el movimiento #Revoga ya Nueva Enseñanza Media llevó y los resultados alcanzados hasta el momento, a saber, la apertura de la consulta pública y la posterior divulgación de los resultados, resultando en una transparencia mayor en comparación a momentos anteriores, además de un avance en relación a las políticas públicas educacionales.
Palabras clave: currículo, enseñanza media, reformas.
Introdução
Antes de iniciar este estudo é importante localizá-lo temporalmente. O período histórico do Brasil em questão é o da República e se divide em Proclamação da República/Primeira República (1889-1930); Revolução de 30/Era Vargas (1930-1945); República Populista (1945-1964); Ditadura Militar (1964-1985) e Redemocratização/Nova República até os dias atuais.
Apesar de adotarmos, para efeitos didáticos, recortes temporais bem demarcados, destacamos que a intenção desta pesquisa não reside em apresentar uma perspectiva historiográfica clássica, marcada por uma análise cartesiana, que entende a sucessão de eventos como em uma perspectiva de causa e consequência, antes, convém utilizamos o conceito de estratos do tempo de Koselleck (2014, p.9), que entende a perspectiva de história do presente, para a qual a história ocorre a partir de acontecimentos que não são sucessivos, nem encadeados a partir de uma mera disposição cronológica. Nesta perspectiva, os diferentes eventos se depositam por meio de diferentes temporalidades, o que significa que “[...] estão presentes e atuam simultaneamente [...]”.
Assim, esta perspectiva histórica que adota, como Charret (2019), o olhar do presente e observa como diferentes estratos temporais podem coexistir, implica em analisar preferencialmente como certas enunciações conquistam possibilidades de irrupção em determinados contextos, ou como determinados eventos conseguem se estabelecer na forma de estratos temporais em detrimento de outros que passam apenas como grãos de areia soltos e espalhados pelo vento da história.
Nestes recortes, um conjunto de mudanças políticas e econômicas irão influenciar diretamente a composição curricular e a forma com que a escola atua na sociedade. Não nos aprofundaremos nos aspectos históricos, uma vez que não é este o objetivo deste trabalho, mas sim nos aspectos legais e curriculares que, de certa forma, refletem o contexto social no qual o Ensino Médio (EM) está inserido.
Para tanto, este trabalho se organizará em torno das principais reformas educacionais no Brasil, a saber, a Reforma Francisco Campos, a Reforma Capanema e a Reforma do Novo Ensino Médio (NEM) efetivada pela Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017). Além de considerar os principais documentos que normatizam a educação nacional neste período, tais como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) (Brasil, 1961, 1971, 1996); a Constituição Federal (CF) de 1988 (Brasil, 1988), os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio (PCNEM) (Brasil, 1999) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) (Brasil, 2018), que influenciaram diretamente o currículo do EM.
Para efeito de análises, esta pesquisa considera as políticas públicas a partir do quadro teórico proposto por Ball e Bowe (1992), admitindo como Charret e Ferreira (2019, p.1592) “[..] que os estágios de formulação, documentação e implantação das políticas não são estanques e que os sentidos veiculados pelos textos políticos não são fixos, mas dependem de processos de interpretação e contestações nos diferentes espaços onde circulam”. Assim, é preciso considerar que um texto político, por mais cuidadoso que seja na sua elaboração, não restringe ou limita os sentidos que o leitor dá a ele. Isso advém de o próprio processo de construção do texto ser oriundo de vozes que se opõem e do diálogo que uma política constrói com outros textos políticos, o que pode ser observado no texto da Reforma do NEM (Brasil, 2017), que dialoga e altera o texto da LDB (Brasil, 1996) e que remete a outro texto político em construção, a BNCC (Brasil, 2018). Dito isto, não há como um texto exercer controle sem permitir a interação e a interferência do leitor na construção de seus sentidos.
Os textos curriculares, dentro do contexto de produção dos textos políticos (Ball e Bowe, 1992), referem-se a documentos oficiais e legais e de outros elaborados a partir destes, com foco na aplicabilidade e que, ao representar convicções diferentes, são reinterpretados por diferentes indivíduos no instante da sua representação política. Estes podem mudar de acordo com as situações que o cercam e até projetar algo idealizado, longe da sua proposta e intenção inicial.
A Reforma Francisco Campos e o surgimento do Ensino Secundário
No Brasil República várias correntes ideológicas orientaram ou frustraram as mudanças educacionais (Aranha, 2006). É importante destacar que, apesar desta fala tratar sobre o Brasil como um todo, os Estados tinham autonomia e, por isso, cada uma das legislações federais tiveram seu próprio ritmo e se efetivaram de forma desigual no país.
Neste período a escola assume uma organização um pouco mais parecida com a atual, ao dividir-se por séries e ter um local próprio para atuação dos chamados grupos escolares (Saviani, 2011). As verbas para educação eram mínimas, mas aos poucos os espaços físicos foram aumentando e cresceu também o interesse pela formação de professores que, apesar de ter sua escola pública pioneira inaugurada no ano de 1830, a Escola Normal de Niterói, no Rio de Janeiro, sofreu com a precariedade de recursos, assim como outras inauguradas posteriormente em alguns estados.
O quadro da educação começa a mudar com a industrialização, a urbanização e com o consequente desenvolvimento da burguesia. A década de 1920 foi marcada pelos conflitos de ideias, principalmente entre católicos e escolanovistas e em 1932 é publicado o Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova que defendia “[...] uma educação obrigatória, pública, gratuita e leiga, como dever do Estado, a ser implantada em programa de âmbito nacional” (Aranha, 2006, p. 304).
Uma das reivindicações deste grupo, inspirada por Anísio Teixeira, era que o ensino secundário tivesse uma base comum de cultura geral para todos, diferentemente do que vinha acontecendo. Contudo, essa e outras solicitações não foram atendidas na Constituição Federal de 1934 (Brasil, 1934).
O ano de 1930 no Brasil foi marcado por vários acontecimentos históricos importantes: o fim da política oligárquica e da política do café com leite, a instituição de um governo provisório, o fechamento do Congresso, o incentivo à industrialização dentre outros. No que diz respeito à Educação, a instituição de um Ministério denominado Ministério da Educação e Saúde Pública, assumido por Francisco Campos, focou em organizar, de forma pioneira, o sistema a nível nacional, criando decretos que normatizam as decisões em todo país. Esta ação ficou conhecida como a Reforma Francisco Campos.
De acordo com Romanelli (1984), esta Reforma apresenta dois pontos importantes: o primeiro foi a estruturação do ensino secundário a nível nacional, através do Decreto 19.890, de 18 de abril de 1931 (Brasil, 1931) e o segundo foi a organização de um currículo seriado, dividido em dois ciclos, sendo um fundamental, com duração de cinco anos e o outro complementar, com duração de dois anos com vistas ao ingresso no ensino superior.
O ensino secundário, até então, tinha um caráter propedêutico para o ingresso às universidades e era voltado para a elite dominante. Mas, apesar de sua reestruturação, o objetivo real era a redução desse acesso e a preparação de mão de obra para o atual crescimento industrial.
A partir da grade disponível é possível perceber um currículo enciclopédico e elitista, já que a grande maioria da população não conseguia chegar a este nível de ensino, que dirá concluí-lo. Era muito difícil para um trabalhador dispor de tempo para cursar, além dos cinco anos do ciclo fundamental, os outros dois anos no ciclo preparatório. Além disso, a população urbana ainda não havia cursado, em sua totalidade, a educação primária, que dirá a secundária. Para marcar ainda mais esse caráter discriminatório, as avaliações eram intensas, sendo feita pelo menos uma prova a cada dois dias de aula. Quem, além do aluno oriundo das classes abastadas teria tempo para dar conta de tamanha exigência? (Romanelli, 1984).
Um outro aspecto a ser considerado é a questão do controle e da rigidez dos programas e disciplinas tendo como modelo o Colégio Pedro II, que estipulava o mesmo currículo para todas as regiões do país, sem levar em conta cada uma das suas especificidades.
Contudo, os principais problemas deste momento foram o descaso com o ensino fundamental, a dificuldade na formação de professores para este segmento e a falta de articulação entre os cursos profissionalizantes e o ensino secundário; a Reforma Francisco Campos acabou por provar um sistema de ensino desigual, seletivo e elitizante.
A Reforma Capanema
No período do Estado Novo ou Era Vargas (1937-1945) ocorreu a Reforma do então ministro Gustavo Capanema. Vários decretos-leis foram criados tratando dos diferentes níveis de escolarização que ficaram conhecidos como Leis Orgânicas do Ensino. Destaca-se aqui, a Lei 4.244 de 9 de abril de 1942 (Brasil, 1942) que trata do ensino secundário.
Neste documento observamos a seguinte reestruturação: quatro anos de curso ginasial (que corresponderia ao que hoje denominamos Ensino Fundamental II) e três de colegial (que hoje chamamos de EM), sendo este subdividido em clássico (voltado para a filosofia e as letras) e o científico (voltado para as ciências). Os cursos ginasial e colegial deveriam ser ministrados em estabelecimentos diferentes e o primeiro exigia prova de admissão, dificultando assim o acesso aos alunos trabalhadores e das classes mais baixas. Esse processo se configurou como um mecanismo de elitização da escolarização formal.
No que concerne à grade curricular, é possível observar sua constituição no Artigo 10, Capítulo I da referida Lei (Brasil, 1942), onde se listam as seguintes áreas/disciplinas para o curso ginasial: Línguas (português, latim, francês e inglês), ciências (matemática, ciências naturais, história geral, história do Brasil, geografia geral e geografia do Brasil) e artes (trabalhos manuais, desenho e canto orfeônico). E no Artigo 12, Capítulo II, para o curso colegial: línguas (português, latim, grego, francês, inglês e espanhol), ciências e filosofia (matemática, física, química, biologia, história geral, história do Brasil, geografia geral, geografia do Brasil e filosofia) e artes (desenho). Sobre as disciplinas, o Capítulo III relata que devem ser simples, claras e flexíveis (Aranha, 2006).
É interessante notar que algumas disciplinas aparecem em capítulos separados, e não na grade listada acima. É o caso da Educação Física (Brasil, 1942, cap. IV , art. 19), disciplina obrigatória até os 21 anos; da Educação Militar (Brasil, 1942, cap. V, art. 20), sendo instrução pré-militar até os dezesseis anos e militar após essa idade, obrigatória aos alunos do sexo masculino; da Educação Religiosa (Brasil, 1942, cap. VI, art. 21), onde esta se constitui parte integrante da adolescência, sendo lícito sua inclusão nos dois ciclos (ginasial e colegial) e ministrado por autoridade eclesiástica; e a Educação Moral e Cívica (Brasil, 1942, cap. VII, art. 22-24) em que patriotismo, missão, disciplina, responsabilidade e iniciativa eram ensinados, não em um tempo de aula específico para isso, mas em todo o tempo da vida escolar do aluno; destaca-se também o canto orfeônico com fins patrióticos (Brasil, 1942).
Além do ensino secundário, o ensino técnico profissional ganha força com a criação dos estabelecimentos de ensino industriais, que acabam dando a formação que o processo de industrialização exigia e que o Estado não conseguia abarcar, fortalecendo assim o ensino privado.
Dessa forma, esta lei reforça o caráter dualista e discriminatório da educação, já que a maioria da população recorria a uma formação profissional para adentrar ao mercado de trabalho; a formação de um currículo acadêmico, elitista e destinado aos poucos que conseguiam ser aprovados nos exames admissionais continuava a atender a uma camada privilegiada, como acentua Romanelli (1984, p.169):
Com o manter e acentuar o dualismo que separava a educação escolar das elites da educação escolar das camadas populares, a legislação acabou criando condições para que a demanda social da educação se diversificasse apenas em dois tipos de componentes: os componentes dos estratos médios e altos que continuaram a fazer opção pelas escolas que “classificavam” socialmente, e os componentes dos estratos populares que passaram a fazer opção pelas escolas que preparavam mais rapidamente para o trabalho. Isso, evidentemente, transforma o sistema educacional, de modo geral, em um sistema de discriminação social.
Ainda assim houve, nesse período, um aumento de escolas primárias e secundárias, principalmente em centros urbanos onde o desenvolvimento econômico foi mais amplo.
As Leis de Diretrizes e Bases da Educação
Outro documento importante, a Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (Brasil, 1961) é oriundo de críticas dos escolanovistas à questão da descentralização do ensino e da tal liberdade pregada pelos conservadores. Neste contexto temos como grande maioria as escolas de grau secundário particulares pertencentes à iniciativa religiosa.
Aquém desta questão, de forma geral, a referida lei não proporcionou grandes alterações na estrutura já estabelecida na Reforma Capanema, com exceção da mobilidade entre os sistemas de ensino, um avanço em relação ao ensino secundário, que ficou menos enciclopédico e reduziu o número disciplinas, além de abrandar a padronização do currículo em relação ao currículo federal.
Neste período ainda se tem metade da população em idade escolar fora da escola, mas alguns movimentos de educação popular permitiram atenuar um pouco essa questão. Contudo, o golpe militar de 1964 acabou interferindo diretamente neste quadro. Nesses anos de ditadura algumas leis foram colocadas em prática e houve a entrada do capital estrangeiro no país. No que diz respeito às escolas de ensino secundário o foco estava nas atividades cívicas, como a Organização Social e Política Brasileira (OSPB, antiga Educação Moral e Cívica) e na tendência tecnicista.
A Lei nº 5.692/71 (Brasil, 1971), também conhecida como Reforma do 1º e 2º grau, reestruturou o ensino, juntou o ensino primário com o ginasial, passando a obrigatoriedade para oito anos. Em relação ao ensino secundário, a lei o unificou em ensino profissionalizante, onde o currículo constava de uma parte geral e outra específica para formação profissional. Esta formatação dependia da região do país e das atividades econômicas ali desenvolvidas. Para Morgan e Najjar (2020, p.12), assim como aquela lei, a Reforma do EM ocorrida em 2017 tomou o mesmo caminho e limitou “[...] o acesso ao conhecimento e à formação crítica dos estudantes das classes populares [...]”.
De acordo com Aranha (2006) o ensino profissionalizante tinha um total de 130 habilitações. Disciplinas como educação física, OSPB, educação artística, programa de saúde e religião acabaram por enxugar o currículo e levaram ao desaparecimento de outras, como filosofia. É possível traçar um paralelo desta lei com a Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) que também causou um efeito semelhante no currículo. Infelizmente, em ambos os momentos, a educação sofreu prejuízos já que tanto anteriormente como hoje não haviam recursos materiais e humanos que dessem conta da demanda. Em contrapartida, as escolas particulares continuaram e continuam com seu trabalho efetivo e preliminar, permanecendo ainda hoje o caráter dualista da educação. Segundo Morgan e Najjar (2020, p.12):
[...] a Reforma, por sua ênfase na formação profissional do Ensino Médio, limita o acesso ao conhecimento e à formação crítica dos estudantes das classes populares, conservando e aprofundando o caráter dual e elitista da educação [...] relativiza a presença no currículo de componentes curriculares como a sociologia e a filosofia e ratifica a obrigatoriedade de outros dois componentes curriculares recomendados por organismos multilaterais.
O país passa por um processo de redemocratização e a década de 80, de acordo com Saviani (2013) foi marcada por inúmeras mobilizações de professores, conselhos e associações educacionais, responsáveis pela pressão na Constituinte e pela Carta de Goiânia. Em relação às políticas educacionais, a Lei nº 7.044/82 (Brasil, 1982) retira a obrigatoriedade do ensino profissionalizante no ensino secundário e volta a dar ênfase à formação geral.
Com a promulgação da CF (Brasil, 1988), a educação recebe destaques e Dourado (2017) enuncia que este documento apontou para a elaboração de uma nova LDB em 1996 e para o Plano Nacional de Educação (PNE) (Brasil, 2014) em 2014.
A LDB, (Brasil, 1996) no seu Art. 3º, estabelece os princípios que devem nortear a educação; destacamos o primeiro, que estabelece a “igualdade de condições para acesso e permanência na escola”. Este princípio deverá nortear toda a Educação Básica, que neste documento, no Art. 4º, inclui também o EM. Este princípio, muitas vezes desconsiderado pelas políticas públicas, evidencia-se de forma desigual no atual momento de reformas e construção das políticas educacionais.
Esta Lei está em vigor até o momento e dispõe das finalidades do EM e traz diretrizes para seu currículo que tem como destaque a educação tecnológica básica, o entendimento das ciências, das letras, das artes, da história, da cultura e do conhecimento de língua estrangeira moderna, com foco na formação geral do estudante para só depois prepará-lo para o ensino profissional.
Não são muitas as informações curriculares contidas neste documento. Consta apenas que o currículo do EM é dividido em áreas de conhecimento e deve conter uma base nacional comum, a ser complementada por uma parte diversificada levando em conta a especificidade de cada região. Ao longo dos anos a LDB (Brasil, 1996) passou por várias alterações em seu texto original e tem tantas modificações que é difícil ler a redação sem remeter a outra lei ou documento. Em relação ao EM, houve a inclusão do Artigo 35-A que será visto com mais detalhe no próximo tópico e todas as outras informações remetem à Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017). Neste artigo, incluído recentemente, “A Base Nacional Comum Curricular definirá direitos e objetivos de aprendizagem do ensino médio, conforme diretrizes do Conselho Nacional de Educação [...]” (Brasil, 1996). Em 2018 a BNCC do EM (Brasil, 2018) foi elaborada.
Outros documentos norteadores do currículo do EM surgem, como os PCNEM (Brasil, 1999), as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM) (Brasil, 2006), a Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) conhecida como a Reforma do EM, as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) (Brasil, 1998) atualizada pela Resolução Nº 3, de 21 de novembro de 2018 (Brasil, 2018) e a BNCC (Brasil, 2018). Não cabe aqui a análise de todos eles, contudo, com o intuito de observar os elementos que se caracterizaram como permanências nas políticas do currículo, se fará uma análise das mudanças que eles propõem para o currículo e para a formação do estudante deste nível de ensino.
É importante neste momento pontuar as características dos PCNEM (Brasil, 1999) uma vez que este texto dialoga com a LDB (Brasil, 1996), com a Lei do NEM (Brasil, 2017) e com a BNCC (Brasil, 2018), marcando sentidos que demonstram ter se estabilizado nas políticas do currículo contemporâneas. O documento que norteou o EM nos últimos anos foi construído em parceria com o Ministério da Educação (MEC) e educadores do país, intencionando contextualizar o ensino e descompartimentá-lo através da interdisciplinaridade, como demonstram os estudos de Charret e Ferreira (2017, 2019).
Os PCNEM (Brasil, 1999) foram precursores da atual reforma e apregoam uma formação focada na aquisição de conhecimentos básicos, na preparação científica e na aptidão do uso de tecnologias. A formação geral é vista como uma forma de desenvolver as capacidades de pesquisa, autonomia, aprendizagem seletiva, revisão e seleção de informações dentre outras.
A proposta curricular do EM segue as diretrizes gerais apontadas pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO): aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser, que orientaram a escolha dos conteúdos significativos e que nos levam a um outro documento sugerido pela LDB (Brasil, 1996): a Base Nacional Comum. Os PCNEM (Brasil, 1999), assim como a Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) trazem informações sobre o que Base deve contemplar e se baseiam nela na elaboração de sua proposta curricular. Em primeiro lugar, a Base Comum Curricular deve permitir o prosseguimento dos estudos, desenvolvendo competências e habilidades que permitam tal objetivo; em segundo lugar, deve permitir a preparação do aluno para o mercado de trabalho; em terceiro lugar, deve assegurar a formação geral básica a todo cidadão brasileiro.
Para abranger tais objetivos será necessário desenvolver competências e habilidades básicas comuns e que servirão de norte para as avaliações em grande escala. Sendo assim, o conhecimento escolar fica dividido em três áreas: Linguagens, códigos e suas tecnologias (língua portuguesa; língua estrangeira moderna; conhecimentos de educação física; conhecimentos de arte; conhecimentos de informática), Ciências da natureza, matemática e suas tecnologias (conhecimentos de biologia; conhecimentos de física; conhecimentos de química; conhecimentos de matemática) e ciências humanas e suas tecnologias (conhecimentos de história; conhecimentos de geografia; conhecimentos de sociologia, antropologia e política; conhecimentos de filosofia).
Para que tais feitos se concretizem:
É importante compreender que a Base Nacional Comum não pode constituir uma camisa-de-força que tolha a capacidade dos sistemas, dos estabelecimentos de ensino e do educando de usufruírem da flexibilidade que a lei não só permite, como estimula. Esta flexibilidade deve ser assegurada tanto na organização dos conteúdos mencionados em lei, quanto na metodologia a ser desenvolvida no processo de ensino-aprendizagem e na avaliação (Brasil, 1999, p.31-32).
É possível observar nos PCNEM (Brasil, 1999) a relevância das disciplinas escolares dentro das áreas de conhecimento, que de três passaram a reorganizar-se em quatro, com a separação da matemática das ciências da natureza em 2009. O olhar para as áreas do conhecimento e não mais para as disciplinas isoladas, segundo Charret (2019) muda a perspectiva da interdisciplinaridade para a flexibilização oferecida pela BNCC (Brasil, 2018).
É importante observar que na medida em que as áreas de conhecimento, a valorização da contextualização e da interdisciplinaridade vão se consolidando nas políticas do currículo, automaticamente as disciplinas escolares vão se tornando estruturas voláteis e de menor relevância, sobretudo no segmento do EM.
No caminho percorrido até aqui destaca-se o eixo descritivo das reformas curriculares que nos trouxeram ao momento atual. Este percurso foi necessário para compreender a profundidade da Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017), que não se constrói do vazio e tampouco foi elaborada despretensiosamente. Por isso, vamos seguir na mesma via, porém com um novo olhar para o significado e as consequências das alterações curriculares propostas.
A Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) é oriunda da Medida Provisória nº 746 de 2016 (Brasil, 2016). Dentre suas facetas se destaca principalmente pela alteração feita à LDB de 1996 (Brasil, 1996) e a inauguração da Política de Fomento à implementação de Escolas de Ensino Médio em tempo integral.
No que diz respeito à estrutura curricular, o NEM se divide em Formação Geral Básica (FGB), Itinerários Formativos e Unidades e Arranjos Curriculares. Observa-se que esta Lei remete diretamente à BNCC (Brasil, 2018) e permite a integralização curricular, possibilitando aos sistemas de ensino incluírem projetos e pesquisas que envolvam os temas transversais.
Os componentes curriculares obrigatórios são estudo e prática de Educação Física, Arte, Sociologia e Filosofia; o que o documento não diz é que eles não são obrigatórios em todas as séries do EM, como faz questão de ressaltar no Art. 3º, § 3º ao referir-se ao ensino da Língua Portuguesa e da Matemática, como se observa:
§ 2º A Base Nacional Comum Curricular referente ao ensino médio incluirá obrigatoriamente estudos e práticas de educação física, arte, sociologia e filosofia.
§ 3º O ensino da língua portuguesa e da matemática será obrigatório nos três anos do ensino médio, assegurada às comunidades indígenas, também, a utilização das respectivas línguas maternas (Brasil, 2017).
Dessa forma, cada sistema de ensino fará uma leitura e montará a sua grade de acordo com sua conveniência, havendo assim uma brecha no que se refere à proposta de uma Base Comum.
A Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017), no seu Art. 3º, acrescenta ainda o Art. 35-A à LDB (Brasil, 1996) que identifica a BNCC (Brasil, 2018) como responsável por definir os direitos e objetivos da aprendizagem, dividindo o currículo em quatro áreas de conhecimento, a saber: I-Linguagens e suas tecnologias; II-Matemática e suas tecnologias; III-Ciências da natureza e suas tecnologias; IV-Ciências humanas e sociais aplicadas.
A Lei do NEM (Brasil, 2017) considera em seu Art.35-A, § 7 a “[...] formação integral do aluno, de maneira a adotar um trabalho voltado para a construção de seu projeto de vida e para sua formação nos aspectos físicos, cognitivos e socioemocionais”. Isto parece se contrapor ao estabelecimento de padrões de desempenho esperados e verificados através de avaliação em larga escala estabelecidos pela União, como o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), que não foi alterado juntamente com a reforma.
O Art. 4º prescreve o currículo composto pela BNCC (Brasil, 2018) e pelos itinerários formativos, de acordo com a relevância no contexto de cada região e a possibilidade dos seus sistemas de ensino, além de acrescentar o item V-Formação Técnica e profissional aos tópicos anteriores:
Art. 4º O art. 36 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996 passa a vigorar com as seguintes alterações:
Art. 36 O currículo do ensino médio será composto pela Base Nacional Comum Curricular e por itinerários formativos, que deverão ser organizados por meio da oferta de diferentes arranjos curriculares, conforme a relevância para o contexto local e a possibilidade dos sistemas de ensino, a saber:
I - linguagens e suas tecnologias;
II - matemática e suas tecnologias;
III - ciências da natureza e suas tecnologias;
IV - ciências humanas e sociais aplicadas;
V - formação técnica e profissional.
§ 1º A organização das áreas de que trata o caput e das respectivas competências e habilidades será feita de acordo com critérios estabelecidos em cada sistema de ensino (Brasil, 2017).
Nota-se uma abertura que soa como uma flexibilização curricular, mas que na verdade, no contexto da prática, acaba por incluir na grade curricular itinerários que não contribuem em nada para o objetivo de ofertar uma formação integral ao estudante. Além disso, a maioria dos Estados brasileiros, segundo Lima e Maciel (2018, p.17) não têm estrutura e condições de oferecer os cinco itinerários, trazendo ainda mais prejuízo à aprendizagem:
Assim, um estudante que opte por determinado itinerário dificilmente terá contato com outra área nem poderá compensar seu desconhecimento em outro campo, obtendo uma formação por meio da BNCC cada vez mais escassa epistemológica e temporalmente. Nesse sentido, o aluno poderá concluir seus estudos sem nunca na vida ter contato com outra área de conhecimento diferente da por ele cursada. Isso era exatamente o que ocorria quando, antes da lei n. 4.024/1961, o aluno tinha que escolher entre o clássico, o normal e o científico.
Para dar conta dessa nova demanda curricular, a Resolução nº 3/2018, em seu Art. 1º (Brasil, 2018):
[...] atualiza as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, a serem observadas pelos sistemas de ensino e suas unidades escolares na organização curricular, tendo em vista as alterações introduzidas na Lei nº 9.394/1996 (LDB) pela Lei nº 13.415/2017” (Brasil, 2017).
Como é possível observar, a Lei do NEM (Brasil, 2017) deixa lacunas e interrogações a serem respondidas, além de apoiar-se totalmente na BNCC (Brasil, 2018), deixando de fora do seu texto a contribuição de outros documentos oficiais que norteiam a elaboração curricular. Além disso, ao propor uma grade curricular com itinerários que permitam escolhas por parte dos discentes, deixou de levar em conta a estrutura de cada escola e os recursos necessários para efetivação da proposta, que acabou não cumprindo seu objetivo junto aos estudantes no seu papel de atores nesse processo.
O PNE (Brasil, 2014) estendeu ao EM a construção de uma Base Curricular Nacional, prevista na CF de 1988 (Brasil, 1988) somente para o Ensino Fundamental. Sobre a questão curricular, é necessário levar em conta que esta se constrói de forma viva, e por mais estruturada que seja, se efetiva contextualmente de formas diferentes, em cada escola. Para Alves (2018, p.46) “[...] nunca há (nunca houve e nunca haverá) processo curricular que se repita, seja cópia de algo oficial, seja algo que foi já feito por docentes e discentes, de um ano a outro, de uma escola a outra [...]”.
No tocante à BNCC (Brasil, 2018), pode-se dizer de forma bem resumida, de acordo com Aguiar (2018, p.14), que foi um documento de tendência privatista e conservadora que estabeleceu uma pedagogia verticalizada que “[...] desde o início privilegia um conjunto de conteúdos e objetivos sem o fundamental suporte de uma referência que deixe claro o projeto de nação e educação desejados”.
Como reflexo dessas políticas educacionais, em março de 2023 iniciou-se o movimento que ganhou força em todo país denominado #Revoga Já Novo Ensino Médio. Esta ação pretendeu exatamente combater as desigualdades geradas e ampliadas pela Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) e pela BNCC (Brasil, 2018), ao desconsiderar o contexto de efetivação do currículo em um país com múltiplas realidades como o Brasil. De acordo com Cássio e Goulard (2022, p.528):
Na medida em que o NEM é uma reforma curricular que promete revolucionar o ensino médio brasileiro unicamente a partir do currículo e com mínimo investimento público, ele não prevê ampliação física das redes de ensino nem a contratação e a valorização de profissionais da educação, tampouco políticas que garantam a permanência de estudantes trabalhadores/ as nas escolas de jornada ampliada. A implementação de uma reforma curricular de grandes proporções sem uma alteração substantiva das condições materiais das escolas resulta no reforço de desigualdades escolares que já existem como desigualdades sociais.
Este movimento ocorre em um momento político importante, de mudança presidencial em que vozes antes ignoradas passam a ser ouvidas. Uma primeira conquista dessa luta, ainda que pequena, foi a Portaria expedida pelo MEC nº 399/2023 (Brasil, 2023a) que abre a consulta pública para avaliação e reestruturação do NEM no prazo de 90 dias. Acrescida a esta, a Portaria nº 627/2023 (Brasil, 2023b) suspende o cronograma da implementação durante a consulta pública e as modificações no ENEM em curso em todo país; estas resoluções vêm de encontro ao que Lopes e Macedo (2011, p.37) mencionam sobre a normatização de um currículo, que [...] não é o consenso, a estabilidade e o acordo, mas o conflito, a instabilidade, o desacordo, porque o processo é de construção seguida de desconstrução seguida pela reconstrução”.
Sobre a consulta pública na Plataforma do Governo Federal Participa + Brasil, efetivada no período de vinte e quatro de abril a seis de julho de 2023, observa-se a preocupação com o aprofundamento das desigualdades já existentes na realidade brasileira no processo de implementação. A participação foi de dez mil novecentos e noventa e cinco contribuições, um quantitativo bem pequeno se comparado à seriedade do tema; as questões propostas, apesar de abrirem espaço para comentários, alocam dois ou três tópicos onde o cidadão deve concordar ou discordar plenamente, sendo confuso ter que concordar com tópicos que tratam de disciplinas diferentes ou temas variados, como no exemplo abaixo:
III – Embora a tradição legislativa brasileira, no campo da Educação, seja delegar aos Estados e Municípios, a composição dos componentes curriculares que será ofertada na Educação Básica, certas disciplinas do currículo apareciam, no cenário anterior à Reforma, como obrigatórias na perspectiva de garantir que os estudantes tivessem acesso a determinadas ciências que nem sempre marcavam presença no Ensino Médio. A Lei 13.415/2017 definiu a obrigatoriedade de disciplinas como Língua Portuguesa, Matemática e Língua Inglesa, por exemplo, ao mesmo tempo em que modificou a expressão “disciplinas de sociologia e filosofia” para “estudos e práticas de sociologia e filosofia”. É preciso equalizar essa situação, de modo a:
• Definir, à luz da BNCC, que a área curricular de ciências humanas e sociais aplicadas deverá ser composta, no mínimo, pelos componentes curriculares de Sociologia, Filosofia, História e Geografia, com oferta obrigatória no Ensino Médio. • Definir, à luz da BNCC, que a área curricular de ciências da natureza e suas tecnologias, deverá ser composta, no mínimo, pelos componentes curriculares de Biologia, Química e Física. • Definir, à luz da BNCC, que a área curricular de Linguagens e suas tecnologias deverá ser composta, no mínimo, pelos componentes curriculares de Língua Portuguesa, Língua Inglesa, Artes e Educação Física (Brasil, 2023a).
Como reflexo dessas políticas educacionais, em março de 2023 iniciou-se o movimento que ganhou força em todo país denominado #Revoga Já Novo Ensino Médio. Esta ação pretendeu exatamente combater as desigualdades geradas e ampliadas pela Lei 13.415/2017 (Brasil, 2017) e pela BNCC (Brasil, 2018), ao desconsiderar o contexto de efetivação do currículo em um país com múltiplas realidades como o Brasil. De acordo com Cássio e Goulard (2022, p.528):
Todavia, o destaque deste trabalho vai para as questões curriculares, onde foram sinalizadas ações importantes como a reorganização dos itinerários formativos que passarão a denominar-se percursos de aprofundamento e integração de estudos, reduzidos de cinco para três (Linguagens, matemática e ciências da natureza; Linguagens, matemática e ciências humanas e sociais; Formação técnica e profissional). E, por fim, a ênfase para a recomposição curricular. Sobre este último tópico, registra-se a preocupação da sociedade com componentes curriculares que foram deixados de fora neste novo formato de ensino, além das questões referentes ao currículo como parte da FGB:
Definir os componentes curriculares cujos saberes precisam ser contemplados na oferta das áreas do conhecimento. Sugere-se que espanhol (alternativamente), arte, educação física, literatura, história, sociologia, filosofia, geografia, química, física, biologia e educação digital passem a figurar na composição da FGB (MEC, 2023).
Muitos outros pontos foram abordados neste resultado que fogem ao objetivo principal deste artigo, não sendo mencionados aqui, mas que não deixam de ser importantes para o desdobramento da educação de EM no Brasil. Contudo, é significativo compreender que, segundo Lopes e Macedo (2011, p.41):
[...] o currículo é, ele mesmo, uma prática discursiva. Isso significa que ele é uma prática de poder, mas também uma prática de significação, de atribuição de sentidos. Trata-se, portanto, de um discurso produzido na interseção entre diferentes discursos sociais e culturais que, ao mesmo tempo, reitera sentidos postos por tais discursos e os recria. Claro que, como essa recriação está envolta em relações de poder, na interseção em que ela se torna possível, nem tudo pode ser dito.
Pode-se concluir que até o momento nenhuma alteração curricular se efetivou de fato, de forma que impactasse a estrutura vigente. Contudo, nessa construção observou-se alguns fatos relevantes , a saber: a criação do Projeto de Lei PL 5.230/2023 (que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, e define diretrizes para a política nacional de ensino médio) em caráter de urgência; e a manutenção dos prazos em curso da Portaria MEC nº 521, de 13 de julho de 2021 (Brasil, 2021), que instituiu o Cronograma Nacional de Implementação do Novo Ensino Médio, suspenso apenas por sessenta dias, durante o período de consulta pública.
Conclusões
Compreendendo que não pode haver currículo sem história, trouxemos um breve contexto histórico, a partir da perspectiva de história do presente (Koselleck, 2006, 2014), considerando a evolução das políticas relacionadas ao currículo desde o período da Reforma Capanema até os dias atuais, de modo a compreender as condições de permanência de determinadas tendências relacionadas ao EM.
Neste percurso analisamos documentos importantes que perpassam o currículo e adentram em questões estruturais e profissionais. As análises evidenciaram a tensão entre qualidade de ensino e as políticas voltadas para obtenção de resultados ou respostas às mudanças socioeconômicas. Assim, a pesquisa destaca que o currículo não se desenvolve no vazio, sem uma história ou contexto, mas a partir de respostas específicas construídas dentro do contexto da prática (Ball; Bowe, 1992) que, como afirmam Lopes e Macedo (2011, p. 260) “[...] é produtivo, mas não pode ser entendido fora dos constrangimentos estabelecidos pelas relações de poder reestruturadas, redistribuídas e recriadas pelas políticas”.
Neste sentido, destaca-se que as mudanças no cenário político ocorridas a partir do período eleitoral de 2022 parecem ter gerado condições para que as demandas populares passassem a ocupar o palco de disputas pelo currículo do EM, materializando-se no movimento # Revoga Já Novo Ensino Médio e levando a alterações na esteira de produção das políticas públicas, tais como a Portaria nº 399/2023 (Brasil, 2023a) que, ainda que pequenas, abrem caminho para demais transformações possam se estabelecer, por meio da abertura à participação institucionalizada de outras vozes no processo de elaboração dos textos políticos, através da consulta pública.
Além disso, conclui-se que mesmo após tantas modificações e reformas, a etapa final da educação básica ainda é um espaço de disputas, de dualismos e de discriminação social. No entanto, e contrariando todas as expectativas, pesquisadores e profissionais da educação de todo país têm se engajado na defesa de uma educação pública que alcance os princípios legais, ou seja, que seja igualitária, gratuita, que respeite o pluralismo de ideias, a diversidade, os profissionais, que seja democrática e de qualidade; assim, para atingir tal objetivo e permitir este diálogo é necessário que o currículo seja pensado a partir das múltiplas realidades onde este se engendra.
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Notas
Autor notes