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ESPAÇOS E TEMPOS DO CURRÍCULO E ESPAÇOS DE AUTOEXPRESSÃO E RESISTÊNCIA DOS JOVENS ESTUDANTES: STORIES
SPACES AND TIMES OF THE CURRICULUM AND SPACES OF SELF-EXPRESSION AND RESISTANCE OF YOUNG STUDENTS: STORIES
ESPACIOS Y TIEMPOS DEL CURRÍCULO Y ESPACIOS DE AUTOEXPRESIÓN Y RESISTENCIA DE JÓVENES ESTUDIANTES: STORIES
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 17, núm. 2, e70393, 2024
Recepção: 03 Junho 2024
Aprovação: 09 Julho 2024
Resumo: O artigo explora as narrativas instantâneas ou efêmeras, conhecidas como “stories”, criadas por jovens nas redes sociais digitais, especialmente no Instagram. Essas narrativas são analisadas no contexto educacional, destacando-se como podem ser incorporadas ao currículo escolar para promover autoexpressão, resistência e transformação social. A pesquisa adota uma abordagem teórica crítica para articular os tempos e espaços do currículo com as práticas digitais dos educandos, evidenciando a necessidade de um currículo dinâmico, inclusivo e conectado às experiências culturais e pessoais dos alunos. Essa articulação exemplifica a potência das práticas cotidianas em reconfigurar espaços usuais e criar formas de interação e empoderamento educacional e social.
Palavras-chave: currículo, redes sociais, tecnologias da informação e comunicação na educação.
Abstract: The article explores instant or ephemeral narratives, known as “stories”, created by young people on digital social networks, especially on Instagram. These narratives analyses in the educational context, highlighting how they can be incorporated into the school curriculum to promote self-expression, resistance, and social transformation. The research adopts a critical theoretical approach to articulate the times and spaces of the curriculum with the digital practices of the students, demonstrating the need for a dynamic, inclusive curriculum connected to the cultural and subjective experiences of the students. This articulation exemplifies the power of everyday practices in reconfiguring usual spaces and creating forms of educational and social interaction and empowerment.
Keywords: curriculum, social network, information and communication technologies in education.
Resumen: El artículo explora las narrativas instantáneas o efímeras, conocidas como “stories”, creadas por jóvenes en las redes sociales digitales, especialmente Instagram. Estas narrativas se analizan en el contexto educativo, destacando cómo pueden incorporarse al currículo escolar para promover la autoexpresión, la resistencia y la transformación social. La investigación adopta un enfoque teórico crítico para articular los tiempos y espacios del currículo con las prácticas digitales de los estudiantes, destacando la necesidad de un plan de estudios dinámico e inclusivo conectado con las experiencias culturales y personales de los estudiantes. Esta articulación ejemplifica el poder de las prácticas cotidianas para reconfigurar espacios habituales y crear formas de interacción y empoderamiento educativo y social.
Palabras clave: currículo, redes sociales, tecnologías de la información y la comunicación en la educación.
Introdução
No cenário contemporâneo, mutável e plural, as pessoas continuamente compartilham sua vida cotidiana e interagem com o mundo por meio de interfaces das tecnologias móveis. Vivem a polifonia e a polissemia proporcionadas pela era digital, viajando através de cibercidades e metrópoles de comunicação, construindo suas subjetividades fluidas, que se manifestam notavelmente nos stories (Souza, 2018, p. 26). São essas histórias que nos interessam aqui: como se configuram, como se estruturam e como se permeiam nas práticas educativas. “Graças ao alfabeto a escrita mudou de mãos”, afirma Vallejo (2022, p. 128), falando da invenção do alfabeto ancestral do livro, como material escrito. Pode-se afirmar esperançosamente, à moda de Vallejo, que, graças às tecnologias digitais, o conhecimento se ampliou para além das pesadas máquinas computacionais e ganhou as casas e as mesas dos estudantes iniciantes e dos doutorandos. Do mesmo modo, mudaram de mãos as fronteiras do poder criado pelas Big Tech que já existem ou vão existir.
Narrativas supõem escritores, leitores, coprotagonistas, seres inexistentes, cenários, ameaças, imaginações, riscos, desejos que se prolongam além das centenas de frases e relatos. A pluralidade dos componentes das narrativas é o cerne de sua riqueza: Júlio Verne, Guimarães Rosa e Luís de Camões são nada sem seus leitores e companheiros de viagem. Este artigo foca as narrativas instantâneas ou efêmeras criadas por jovens nas redes sociais digitais, conhecidas como stories, e analisa como elas podem ser integradas ao contexto educacional, incorporando-as ao currículo por meio de um trabalho também intencional dos professores e das metodologias criativas e comprometidas com o contexto.
Ao analisar os stories, colocamo-nos diante de uma estrutura narrativa peculiar, surgida em decorrência da prática usual de jovens em uma cultura contemporânea cujo modus vivendi se encontra imerso na digitalidade: a cultura digital, ostensivamente explodida na contemporaneidade dos jogos e artefatos individualizados, mas que tem sua origem nas cavernas de todas as imaginações — daí sua riqueza a ser explorada. As práticas sistemáticas havidas nos currículos são terreno para tais experimentos, ricos em significado.
Essas narrativas são consideradas uma prática social que emerge no contexto da sociabilidade físico-virtual, associando múltiplas linguagens em mensagens animadas curtas: vídeos, cenas do cotidiano, composições, sequências, conteúdos educativos ou eventos especiais. Por isso, o estudo dos stories se justifica na medida em que as micronarrativas postadas pelos jovens oportunizam a manifestação da própria voz — não a do professor ou a ‘inventada’ para a realização de tarefas escolares —, identificando o aluno em sua unicidade e considerando seu repertório, sua vivência única e singular, que marca seus atos históricos e seu dever social (Bajtín, 1997), o sujeito de sua voz, de sua palavra. Como uma espécie de patrimônio universal da criança e dos jovens, tais narrativas não podem ser posse de redes televisivas ou de aplicativos de grandes empresas de veiculação de vídeos. Entretanto, sabemos que as micro-histórias, oriundas das divagações das noites mal dormidas ou das aventuras truncadas do dia a dia, são sempre produções coletivas ou para a coletividade. Os produtos do inconsciente são de cunho coletivo e se entranham na coletividade.
Os stories não podem ser entendidos isolados da escola, do currículo, da sala de aula, dos colegas, dos professores, dos agentes escolares, dos pais, dos conteúdos, dos jogos, dos sons e dos cheiros que ali circulam. As micronarrativas, geralmente criadas pelos jovens fora do espaço escolar, assumem outra forma quando se desenvolvem no contexto do processo de ensino e aprendizagem. A apropriação dos stories pela educação, no entanto, não é espontânea. Embora integre as práticas sociais diárias dos estudantes, a sua produção, como ato educativo, dotado de diretrizes cognitivas simbólicas, necessariamente demandam uma intencionalidade.
E tal intencionalidade nasce no terreno da escola e da sua função de ampliar a leitura do mundo que só a família, a cultura urbana e a sociedade do espetáculo nem sempre trazem. Mostram aos jovens que o mundo não cabe na sua casa ou na sua cidade – e no modo como se expressam. De fato, aprendem na escola a ler e escrever o mundo de forma que todos os compreendam e que possam compreender o todo do universo. A escola mostra que o mundo muda e que a história é feita por todos a escola traz-lhes a oportunidade da apropriação do simbólico na escala mundo,– mas não apenas a palavra falada e escrita, mas o número (a geometria, a álgebra), o mapa, as cores, a música, a gestualidade (a prática esportiva, o teatro, o afeto, as artes, o convívio, a busca do primeiro emprego ou trabalho...). Os stories florescem nesse espaço mais amplo que a prestidigitação de teclados e telas. O currículo, as metodologias, as experiências escolares ganham significado de profundidade pela dimensão ética, estética e moral das disciplinas e dos rituais.
As escolas são sempre um espaço no qual os objetos que as compõem se incorporam e medeiam o processo de ensino e aprendizagem. Paredes, cadeiras, currículos, cultura, quadros-negros, livros, tablets, e-books, entre inúmeros outros objetos “são agências não humanas que se misturam com humanos …” (Latour, 2012, p. 9). Tais produtos ancestrais a qualquer escola — a da aldeia ou a da selva de pedras — são resultados antropológicos da proteção das gerações para com suas próximas vidas. Próximas enquanto as do lado, e próximas enquanto subsequentes; os dados concretos da sobrevivência e os sonhos com a lua ou com o fundo dos mares. Sem associação humana e não humana não haveria educação, pois a própria educação é uma simbiose de sujeitos e materialidades. “O lócus privilegiado da educação não é mais [exclusivamente] o espaço físico, mas o virtual, o ‘espaço-rede’ que não se rende a uma localização específica” (Silva, 2020, p. 185).
Articular os espaços e tempos dos stories do Instagram para os jovens, o ‘espaço-rede’, com os espaços e tempos do currículo envolve entender como essas práticas digitais podem instigar os estudantes a forjar espaços e tempos que transgridam os limites tradicionais da comunicação e aprendam de maneiras relevantes e significativas para eles e para a comunidade.
Para Certeau (1998), segundo sua perspectiva focada nos modos cotidianos pelos quais as pessoas negociam, usam e personalizam os espaços e objetos ao seu redor, um Story poderia ser entendido como uma forma de ‘tática’ ou maneira pela qual os indivíduos interagem com estruturas estabelecidas e as manipulam para criar significados próprios. Dessa forma, entendemos ser essa uma tática antropológica cultural, mais do que apenas uma postagem digital realizada por usuários jovens; uma expressão complexa de cultura, de identidade ou de resistência, um meio pelo qual as pessoas podem negociar e redefinir o espaço digital e suas vidas dentro dele e de outros espaços mais concretizáveis.
Assim, nessa perspectiva, por meio da criação de um story, é possível que os usuários capturem momentos mundanos ou rotineiros e os transformem em conteúdos significativos; ou que indivíduos compartilhem suas experiências e culturas, contribuindo para uma maior visibilidade e entendimento em um contexto social mais amplo.
Essa é uma forma de ‘andarilhar’ através do espaço virtual no contexto da sociabilidade, no qual as pegadas deixadas — os stories postados — são temporárias, mas significativas para a experiência cotidiana. O espaço a que nos referimos é o espaço digital/virtual, que não se reduz a uma condição física, mas “[…] um espaço vivido e pensado, que pode adquirir diversas reconfigurações e ressignificações de acordo com as diferentes apropriações” (Certeau, 1995, p. 201). É histórico, uma vez que “conjuga identidade e relação e os indivíduos vão, ao longo de sua vida e história, construindo e reconstruindo” (idem, ibidem, p. 201). O espaço, assim entendido pelo autor, é o ‘lugar praticado’, onde há vida.
O ‘lugar praticado’ dos jovens não se constitui na ausência ou na distância da escola, mas é parte integrante dela. Suas vidas se fundem às dos colegas, dos professores, do pátio, da lousa, dos odores e sabores, dos toques e afetos que constituem o lugar da escola, “são lugares transformados em espaço pelas pessoas — professores, alunos, gestores, serventes, merendeiras — que ali circulam e suas ações que dão vida àquele lugar. Os sujeitos históricos que ali vivem são os praticantes” (Silva, 2020).
O ato de olhar especificamente para os stories busca desvelar as criações dos jovens e refletir sobre elas e o papel autoral dos estudantes nas redes, consideradas espaços de autoexpressão, resistência e reflexão nos tempos e espaços do currículo.
Colocamos entre parênteses os impactos não analisados neste artigo quanto ao tema da verdade e da política na era digital, apontadas na obra de Cesarino (2022). Para a autora, o populismo, a pós-verdade, o negacionismo, o ‘conspiracionismo’, a negação dos eventos climáticos e o ‘terraplanismo’ são alguns dos processos emergentes em um mundo no qual a internet se tornou a principal arena de comunicação política. Por consequência, tal visão equivocada busca estender essa hegemonia interpretativa também à educação formal escolar. Outrossim, ressalta-se que os stories trazem desafios significativos relacionados às práticas consumistas, impulsivas e pouco críticas, em grande parte impulsionadas pelo mercado interessado em influenciar o consumo. Outro fato que se destaca nas redes sociais digitais é a brevidade das narrativas, que podem ser fragmentadas e superficiais, dificultando a formação de uma compreensão complexa dos eventos e das experiências compartilhadas. o que aponta para a necessidade de um olhar crítico, em especial — mas não somente — quando trazemos o tema para o contexto educacional.
Os autores deste artigo entendem que resultados educacionais e de conhecimento podem se estabelecer a partir de uma visão freireana ou, por exemplo, da pedagogia histórico-crítica dos conteúdos. A primeira é retratada pelas obras escritas e vividas por Freire (1967; 1970; 1983; 1996); a outra se reflete em longo trabalho de estudos e reflexões presentes nas publicações de Saviani (1980; 2012). Em ambas as vertentes, a educação escolar estende-se pelas ideias de práticas de liberdade e justiça social – construídas no diálogo e democracia.
Aqui cabe outra circunscrição — ou outro polo — do conceito de aprendizagem, a partir do qual se pode dizer que aprender é exercitar-se para relacionar as necessidades de sobrevivência à percepção do mundo material, econômico e cultural, no sentido de organizá-lo nas múltiplas formas de compreendê-lo. Não apenas sob a forma abstrata da reflexão e compreensão, mas com a intenção de agir sobre ele, em comum com os demais seres sociais e culturais, atribuindo-lhes valores e qualidades humanas — éticas e estéticas. Os mediadores da construção da educação passam integralmente pelas dinâmicas sociopolíticas de construção do indivíduo e da ética do compromisso com o futuro (Freire, 1983).
Dentro desse espectro largo de compreensão do que é a aprendizagem e consequentemente, do que é o conhecimento, aborda-se, a seguir, a metodologia.
Metodologia
No presente artigo, desenvolve-se um ensaio teórico-crítico para explorar as intersecções entre os tempos e espaços do currículo e as características dos stories do Instagram como espaços de autoexpressão e resistência.
Em vez de focalizar apenas dados empíricos, o ensaio teórico valoriza a construção e a crítica de teorias, oferecendo insights que podem orientar futuras pesquisas empíricas e práticas educacionais, abordagem usualmente empregada em áreas de estudos para integrar, consolidar e sintetizar informações (Creswell, 2010). No caso específico deste artigo, que explora a articulação entre os tempos e espaços do currículo e as características dos stories como espaços de autoexpressão e resistência, envolve intersecções entre teoria educacional e práticas digitais.
A justificativa para a adoção do ensaio crítico como metodologia é sustentada por três pilares que o integram: o desenvolvimento do pensamento crítico, a flexibilidade metodológica e o engajamento teórico. Sobre o pilar do desenvolvimento do pensamento crítico, Bourdieu (1996) ressalta que o ensaio permite uma reflexão sobre o ‘habitus intelectual’, promovendo a crítica das condições sociais e epistemológicas que moldam o conhecimento. O pilar da flexibilidade é sustentado por Foucault (1999), ao argumentar que a interdisciplinaridade é indispensável para enfrentar temas contemporâneos complexos que, muitas vezes, demandam abordagens metodológicas que integrem teorias e dados. Sobre o terceiro pilar, Weber (1999) enfatiza a importância da ‘empatia intelectual’ na pesquisa, processo essencial em um ensaio crítico, no qual os pesquisadores devem se envolver com o material teórico.
Dessa forma, a escolha é relevante para explorar práticas sociais emergentes que ainda não foram amplamente estudadas empiricamente A trajetória metodológica inclui uma revisão das teorias de curriculistas críticos e pós-críticos, análise de exemplos de perfis e hashtags[1] no Instagram, além de discussões sobre as implicações educacionais dessas práticas digitais.
O emprego de exemplos num texto dessa natureza visa a complementar a argumentação, uma vez que permite aos leitores a visualização de abstrações, servindo como uma interface entre teoria e prática. Por essa razão, foram selecionados alguns perfis e hashtags a fim de ilustrar as análises, pois exemplificam iniciativas que frequentemente utilizam essa plataforma para fins educacionais e sociais.
O método crítico-descritivo deduzido das considerações de Arendt (2021), em seu capítulo sobre a ‘Crise na Educação’, traz inspiração para o levantamento de dados e a sua análise no nosso contexto. A primeira baliza do método de Arendt é a da busca de universalização dos fenômenos educativos, sem incorrer no “fato tentador de considerá-la como um fenômeno local sem conexões com as questões principais do século…” (2021, p. 258). Portanto, as análises aqui empreendidas buscam considerar as tecnologias e seu entranhamento no currículo escolar como um fenômeno presente na sociedade por inteiro, e não um apêndice de procedimentos esparsos e de originalidade deste ou daquele autor, ou de um aplicativo novíssimo, ou de uma plataforma.
A segunda variável mencionada por Arendt como crivo de análise é a de que estamos em uma crise, vista pela autora como oportunidade. Assim, o método crítico-descritivo representa a “oportunidade proporcionada pelo próprio fato da crise - que dilacera a fachada e destroi preconceitos-, de explorar e investigar a essência da questão em tudo aquilo que foi posto a nu, e a essência da educação é a natalidade, o fato de que os seres nascem para o mundo” (Arendt, 2021, p. 259).
Os procedimentos, segundo ela, dão clareza do método de busca e análise, perpassando a ideia de que “Uma crise só se torna desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos”. O tema que tratamos como fenômeno parcial e aparentemente isolado — atividades produzidas por jovens em possíveis ambientes escolares, como método de trabalho pedagógico —, na visão de Arendt, pode ser aprofundado e entendido de modo universal, como tendência e marca da época. “Por mais claramente que um problema geral possa se apresentar em uma crise, ainda assim é impossível isolar por inteiro o elemento universal das circunstâncias específicas em que ele aparece” (idem, ibidem, p. 259). Essas são as preocupações metodológicas do presente artigo.
A seguir, apresentamos os elementos subjacentes a esta reflexão, que buscam provocar a discussão a ser desenvolvida
O currículo, seus tempos e espaços
Nesta seção, elaboramos um brevíssimo panorama conceitual sobre os espaços e tempos do currículo conforme o olhar de curriculistas das linhas críticas e pós-críticas, que, embora possuam enfoques e ênfases diferentes, convergem em aspectos importantes na conceituação desses aspectos. Embora as linhas críticas e pós-críticas do currículo consistam em abordagens distintas, ambas defendem a educação como processo político e cultural, criticam as estruturas de poder no currículo e visam à transformação social, ainda que por meio de métodos distintos. A abordagem crítica emerge como resposta às abordagens tradicionais, que frequentemente negligenciam as desigualdades sociais e o contexto cultural dos alunos, propondo uma análise mais profunda das relações de poder e da ideologia, focando ideologias e relações de classe. Já a pós-crítica expande a análise para subjetividades e identidades, questionando verdades universais e promovendo a desconstrução de narrativas dominantes.
Freire (1970) entende o currículo como um espaço de diálogo e transformação social. Para o autor, os tempos e espaços do currículo são dinâmicos e reflexivos, promovendo uma educação libertadora. O ‘tempo do diálogo’ igualmente enfatiza a relevância do diálogo entre professores e alunos. Essa prática não segue um tempo rígido; desenvolve-se conforme as necessidades e os interesses dos participantes, promovendo um aprendizado colaborativo. Identificamos, ainda, o ‘tempo de reflexão crítica’, em que o currículo deve permitir tempo/espaço para reflexão crítica, no qual os educandos podem ler criticamente, analisar e questionar a realidade ao seu redor. Esse tempo é fundamental para o desenvolvimento da consciência crítica (Freire, 1967).
Os espaços do currículo, na perspectiva freiriana, são forjados como ‘espaço de libertação’ (Freire, 1996), no qual os estudantes podem desenvolver seu potencial e se tornarem agentes de mudança social. Esse espaço deve ser inclusivo e democrático, permitindo a participação ativa de todos. Outrossim, como ‘espaço de experiência’, o currículo deve estar conectado às experiências dos discentes, valorizando seus conhecimentos prévios, realidade e contextos culturais (idem, 1967).
Com vistas a contribuir para o entendimento dos tempos e espaços do currículo, alguns dos curriculistas ressaltam características relevantes para o estudo em tela. Ao refletir sobre os tempos do currículo, Giroux (1983) assevera que se devem incluir o “Tempo para a desconstrução de narrativas dominantes” e a análise crítica das estruturas de poder. Esse tempo é essencial para a conscientização e a transformação social. De acordo com Apple (2006), o currículo deve dedicar “Tempo para a ação social e a prática transformadora”; logo, os alunos devem ter a oportunidade de se envolver em projetos que promovam justiça social e equidade.
Sobre os espaços, William Pinar (2004) defende a criação de espaços curriculares que acolham a pluralidade de vozes e experiências, os ‘Espaços de experiência e pluralidade’. Esses espaços devem ser abertos e flexíveis, permitindo a expressão de diferentes identidades e perspectivas. Ademais, o currículo deve ser um “Espaço de reconhecimento e valorização das diferenças culturais”, étnicas e de gênero (McLaren, 1998). Os autores enfatizam a importância de um currículo que seja inclusivo e respeite a diversidade.
Estudiosos da linha pós-crítica do currículo compartilham a visão de que o currículo é uma construção dinâmica e multifacetada, que envolve a criação de significados culturais e pessoais, defendendo que deve ser um espaço inclusivo, no qual diversas vozes e perspectivas possam ser ouvidas e valorizadas. Ellsworth (2004), por exemplo, considera as experiências pessoais e subjetivas dos alunos e defende que o currículo deve ser um “Espaço para a construção de significados pessoais e sociais”. Grumet (1998), por sua vez, enfatiza a relevância das narrativas pessoais e culturais no currículo, que deve incorporar as histórias e experiências dos educandos, permitindo que façam conexões significativas entre o conteúdo acadêmico e suas próprias vidas. Já as brasileiras Lopes e Macedo (2013) abordam o currículo como um processo contínuo de construção de significados, no qual as experiências, culturas e subjetividades discentes são centrais. Assim, as autoras exploram como o currículo pode ser um ‘Espaço de negociação e transformação cultural’.
Narrativas digitais: stories
Como já dito, o tema do artigo são os stories. Também conhecidos como ‘digital storytelling’, consistem em narrativas contadas por meio de recursos multimídia, como vídeo, áudio, texto, imagens, animações, elementos interativos e opções de explorar os stories por localização ou hashtag. Essas histórias são produzidas com tecnologias digitais e compartilhadas na internet, gratuitamente ou não. Sua duração varia de acordo com o aplicativo, o objetivo e a história que se deseja contar, seja ela fictícia ou não. Trata-se de construções narrativas, de 15 a 90 segundos em média, criadas por pessoas, grupos ou mesmo corporações. Num pequeno espaço de tela e de tempo, o autor-criador-narrador conta uma história por meio de um fluxo de imagens ou vídeos utilizando efeitos especiais, filtros de cores e música, que pode ser visto em um período usualmente de até vinte e quatro (24) horas por pessoas conectadas ao autor. Este último pode armazenar um story ou salvá-lo nos destaques do perfil. Depois desse período, a história criada se apaga, é esquecida. “Como se as recordações dos espectadores se apagassem juntamente com as publicações da funcionalidade ou como se a lógica do efêmero não dera espaço para a recordações, mesmo que fora a curto prazo” (Souza, 2018).
Essas pequenas histórias, disponíveis por um breve período para serem visualizadas, compartilhadas e ‘curtidas’, usualmente tematizam — mas não se restringem a — eventos cotidianos, vivenciados ou imaginados pelos usuários, que os narram empregando múltiplas linguagens.
Barros (2017) pontua os motivos principais que impulsionam os jovens a criar suas narrativas, a saber: “monitorar a rotina, buscando mostrar o que estão fazendo e ver o que os outros estão fazendo; se aproximar das pessoas; entreter-se e entreter os outros; promover a si mesmos; trocar conhecimentos: aprender ou ensinar algo” (Barros, 2017, p. 195). Na realidade, as redes sociais oferecem uma variedade de maneiras para os jovens se aproximarem das pessoas, seja por meio de interações diretas e compartilhamento de interesses, seja por meio da busca por informações relevantes. A rede é o território privilegiado para a sociabilidade desses jovens conectados.
Criadas em resposta ao apelo fácil da rápida comunicação, tais funcionalidades buscam aumentar a visibilidade e a participação de um perfil nas redes sociais, mesmo que se prevejam a volatilidade da comunicação e a brevidade de seus efeitos. Elas promovem a interatividade da pessoa com seus ‘seguidores’, estabelecendo conexões que se retroalimentam por meio de ‘curtidas’, comentários, figuras animadas, perguntas e fotografias, entre outras possibilidades. A quantidade de likes substitui a densidade temporal da adesão do apreciador. A fidelidade ao tema não é constituição de valor. À primeira vista, parecem ser um elogio ou uma consagração ao espetáculo cotidiano.
As narrativas ou micronarrativas costumam ser espontâneas, capturando um ‘momento’ ou um ‘fragmento’ da vida real, ou até mesmo de um simulacro de vida traduzido para o mundo virtual. No entanto, podem ser planejadas, refletidas e intencionais. Os usuários, além de criar peças e compartilhar atualizações pessoais, podem realizar eventos ao vivo, interagindo diretamente com seguidores mediante enquetes, perguntas e outras ferramentas interativas. O humor e as atitudes ao estilo de ‘pegadinhas’ constituem importantes fatores de interesse e de likes.
Enquanto os stories oferecem oportunidades para autoria, criatividade e conexão, é relevante considerar e abordar as tensões e problemas para garantir que seu uso contribua para a vida dos usuários e minimize os potenciais impactos. Dentre as tensões, podemos citar a pouca separação entre os espaços entre a vida particular e a pública, provocando, por vezes, a superexposição, o espetáculo e a banalização da vida cotidiana. Essa espetacularização se dá em busca de ‘validação’ dos pares ou outros usuários, a chamada ‘viralização’, que pode torná-los mais populares ou até mesmo influenciadores — em geral, seu grande objetivo. O mote de obter popularidade ou aprovação incentiva os jovens a postarem frequentemente, a fim de manter o engajamento dos seguidores, criando uma pressão para compartilharem constantemente suas criações. O feedback imediato em forma de curtidas, comentários e compartilhamentos pode levar a uma busca constante por validação externa e de satisfação imediata, com potencial para gerar ansiedade e uso continuado por longos períodos. A ilusão de felicidade e de perfeição nas postagens em que pessoas parecem apresentar os melhores aspectos de suas vidas, sempre lindas e felizes, levam, muitas vezes, a graus diversos de ansiedade ou baixa autoestima daqueles que não vivem essa realidade ou pseudorrealidade, reforçam o narcisismo e a idealização dos padrões de beleza vigentes avaliaram seu impacto sobre a imagem corporal, em especial na juventude (Lira et al., 2017).
Dentre as questões preocupantes, está a possibilidade de se tornar uma plataforma para a disseminação de desinformação e de notícias falsas; características que parecem afetar diretamente a vida cotidiana dos jovens, impondo novas práticas e comportamentos.
Essas narrativas sintetizam o presente — o “estar acontecendo agora”, breve, fluido e efêmero — como algo descartável no mundo contemporâneo. Assumem estética própria, peculiar das interfaces digitais que nos impõem uma cultura repleta de imagens mentais e lembranças imaginárias e reais. Nesse intrincado processo, a imagem não apenas reproduz a natureza, mas também dispõe de um real intrínseco, de simulacro e simulações (Klix Freitas, 2013). Dessa forma, autor, narrativa, interface, lembranças e imagens se fundem.
Trata-se do autor, sua narrativa e sua obra, sua autoexpressão repleta de significados, modas e formas de ser e viver na contemporaneidade. Esse processo de autoria é um dos objetivos da educação escolar. Não exatamente com tais mediações e propósitos, mas com o valor de ser autor, tomar a vida em suas mãos e ter autoridade sobre seus produtos.
Em diferentes sociedades, os indivíduos desenvolvem tecnologias para se adaptar à vida. Foucault (1990) concebe o que ele chama de ‘tecnologias do eu’, isto é, técnicas e modelos pelos quais os indivíduos podem agir sobre seus pensamentos, comportamentos e formas de ser, alcançados por meio de autorreflexão, autoconhecimento e autoanálise. Essas tecnologias permitem que o ser humano crie e se transforme. São: “Tecnologias que permitem aos indivíduos realizarem por si próprios um certo número de operações em seus próprios corpos, almas, pensamentos e comportamentos, de modo a se transformarem, mudando a si mesmos para atingir um certo grau de perfeição, felicidade, pureza ou poder” (Foucault, 1990, p. 48). Logo, trata-se das narrativas de si mesmo, sejam as secretas em diários íntimos ou as abertas a todos nas redes sociais digitais. As pessoas se constroem e se reconstroem, sejam manifestadas por si mesmas ou por seus avatares, reais ou imaginários, em que se transformam dia a dia.
As tecnologias modificam nossa experiência cotidiana com os meios de comunicação em geral. A chegada do smartphone, por exemplo, com suas funções, criou experiências de expressão e, dificilmente, um ator se desvincula de seu dispositivo. Um ator não é mais do que uma rede, exceto que uma rede não é mais do que atores. É, portanto, o ator-rede. “O ator é apenas um ator porque adquire forma, significado e identidade na rede” (Oliveira; Porto, 2016, p. 62). Para Latour (2013), toda ação deixa rastros e marcas; logo, para entender as associações construídas/reconstruídas e quais atores estão envolvidos, é necessário buscar, seguir e observar — ou até mesmo mapear — esses rastros. Uma micronarrativa, por exemplo, pode gerar comentários ou ‘curtidas’ de inúmeras outras pessoas, e esses comentários seriam os rastros. O trabalho do pesquisador, portanto, é tornar visíveis os elementos que compõem as redes, sejam humanos ou não humanos.
No caso aqui estudado — as narrativas instantâneas na educação —, a rede também é tecida por outros atores. Por exemplo, são atores e fazem parte dessa rede: o Instagram; as funções dos stories, com características que permitem a criação e compartilhamento dessas micronarrativas; as empresas que as criaram e exploraram; os algoritmos que as compõem; as centenas de milhões de usuários distribuídos pelo mundo; e o tempo. Todos atuam e medeiam. Assim, o ato de criar e visualizar stories implica todas as interações e relações estabelecidas nessa rede, não uma isolada da outra, evidenciando o ‘visível’ e o ‘opaco’. Um indivíduo, exemplifica Latour (2013), não pode ser considerado um átomo isolado, “privado de suas propriedades e completamente submetido ao intercambiável antes de entrar em ‘interações’” (p. 30). Aprofundando o tema em questão, os stories com suas possibilidades, o suporte dos smartphones, os aplicativos de redes sociais, as imagens, os efeitos e as narrativas interferem no comportamento uns dos outros, uma hibridização de sujeitos sociotécnicos, sem identificar hierarquias entre si, senão em simbiose.
Portanto, um ator só existe com seus atributos, atores-rede, que se misturam, afetados e afetando-os. A linguagem que flui nessas redes também é um ator; são novos gêneros discursivos híbridos (Santaella, 2014) que empregam as linguagens das redes sociais digitais, escapando do discurso verbal linear, tipicamente de textos, para a associação com imagens estáticas e em movimento e com linguagens sonoras, ruídos, oralidade e música, no multimídia de processos de signos, códigos e meios, assumindo o caráter multidimensional do hipermídia. Além dos hipermídia, a percepção do ‘toque’ na tela de um smartphone ou tablet, bem como o clique do mouse ou a trajetória que ele percorre, cada um tem a mesma condição ontológica e se move através dos nós e links. Ao interagir na ordem informativa desejada, são experienciados e formam a rede.
O Programa Imprensa Jovem da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo[2] (@oficialimprensajovem) nasceu no ano de 2005 e nesses quase 20 anos integra projetos de educomunicação, como jornal, rádio, blog, redes sociais, TV, revista, fotografia e outros meios audiovisuais. As escolas que integram o Programa criam suas mídias, dentre as quais stories, sendo que cada escola tem seu próprio perfil (exemplos: imprensajovemolival; jaimprensajovem18doforte etc.), gerenciado pelos estudantes e onde postam reportagens, entrevistas, atividades do cotidiano escolar, visitas, campanhas contra o bullying, músicas, teatro e muito mais. É um espaço de voz que conecta o currículo às experiências reais dos alunos, como um espaço de experiência. Assim, os jovens utilizam os stories para documentar e compartilhar suas atividades educacionais, transformando o espaço digital em um ambiente de aprendizagem e diálogo constante. Esta prática cria um espaço educacional onde a interação é contínua e ocorre para além dos limites tradicionais da sala de aula. Ao compartilhar suas experiências e projetos nos stories, os jovens ressignificam o uso da plataforma, que passa a ser um espaço de autoexpressão e empoderamento educacional.
Certeau (1998) destaca que o espaço é criado pelas práticas cotidianas das pessoas que o utilizam e transformam. Enquanto o ‘lugar’ é estático e determinado, o ‘espaço’ é dinâmico, produzido e continuamente modificado pelas interações e práticas sociais. De acordo com o autor, os usuários frequentemente ressignificam os produtos culturais. No contexto educacional, os estudantes podem usar os stories para reinterpretar e recriar os conteúdos curriculares, conectando-os a suas próprias experiências e a seus interesses pessoais. Ao utilizá-los, os alunos podem descentralizar essa autoridade, compartilhando suas próprias perspectivas e conhecimentos, e criando um espaço de aprendizado mais democrático e participativo.
No caso do Programa Imprensa Jovem, os estudantes têm seus espaços e ressignificam o próprio espaço escolar.
No contexto das práticas cotidianas, a autoexpressão é o ato de criar espaço pessoal dentro dos limites definidos de um lugar. Por exemplo, um perfil de Instagram, como os das escolas que integram o Imprensa Jovem, é um ‘lugar’ que se torna ‘espaço’ quando é preenchido com postagens e interações dos usuários. Por meio dos stories, os jovens podem compartilhar suas experiências diárias, sentimentos e pensamentos, transformando o espaço digital em uma extensão de suas identidades. Cada postagem, comentário e interação contribui para um espaço de autoexpressão único e pessoal. Os stories possibilitam que os jovens construam e compartilhem suas narrativas de vida, criando um espaço no qual podem se apresentar e serem vistos sob suas próprias condições.
O perfil @narrativasaude é um projeto que incentiva jovens a compartilharem suas experiências relacionadas à saúde mental e emocional através dos stories. O objetivo é criar um espaço seguro para autoexpressão e apoio mútuo. Postam relatos pessoais sobre desafios de saúde mental, dicas de bem-estar e apoio comunitário. Este uso cotidiano cria um espaço de apoio emocional e reflexão crítica, onde os jovens podem encontrar solidariedade e recursos. Ao compartilhar suas histórias de saúde mental, os jovens praticam a transformação de suas experiências pessoais em narrativas públicas que educam e sensibilizam a comunidade.
O ‘Espaço de Resistência’, no sentido de Certeau, é a prática de subverter e ressignificar os usos impostos de um lugar. Por meio dessas práticas, as pessoas encontram maneiras de resistir ao controle e criar espaços de autonomia. A resistência não precisa ser grandiosa; pode ser encontrada nas pequenas práticas do dia a dia. Nos stories, isso pode incluir compartilhar conteúdos que leiam criticamente e discutam normas sociais, culturais ou políticas. Usar esse recurso para documentar protestos, como os movimentos de ocupação de escolas, é um exemplo claro de resistência. Os jovens subvertem o uso padrão da plataforma — para entretenimento — e a transformam em uma ferramenta de mobilização e conscientização.
A hashtag #OcupacaoEscola (desativada) foi utilizada durante as ocupações de escolas por estudantes brasileiros, na qual documentaram suas atividades e protestos através dos stories. Essa hashtag pode ser explorada para encontrar exemplos específicos de resistência estudantil.
Outro exemplo é o perfil @periferiaemmovimento, um coletivo de comunicação que trabalha com jovens de periferias para contar suas histórias e lutas através de diversas plataformas, incluindo os stories. Este perfil destaca como os jovens utilizam as redes sociais para resistir às narrativas tradicionais e promover a justiça social. É apresentada documentação de protestos e atividades culturais nas periferias, onde os jovens discutem temas como racismo, violência e direitos sociais. O projeto analisado busca criar espaços de libertação, onde os jovens possam se expressar livremente e desafiar as narrativas dominantes, utiliza os Stories para dar voz a jovens de periferias, desafiando estereótipos e divulgando os valores da justiça social.
Analisando os exemplos segundo o conceito de espaço praticado, entendemos que esses projetos são usados para documentar protestos e atividades culturais nas periferias. Ao fazer isso, os jovens transformam a plataforma digital em um espaço de resistência ativa, onde narrativas dominantes são desafiadas e novas histórias são contadas. Como “Espaço de Visibilidade e Voz” por meio da prática de compartilhar suas histórias transformam o espaço digital em um local onde vozes marginalizadas ganham visibilidade e poder, mudando a percepção pública e promovendo a justiça social.
Na contemporaneidade, o smartphone é mais do que um simples objeto; desempenha inúmeras funções em associação com os seres humanos. De fato, os dois lados do afastamento e da interação se constituem na ambiência do smartphone. Fala-se com pessoas a grande distância e esquece-se da pessoa ao seu lado, com quem se combinou um café ou com quem se caminha.
A escola e a sala de aula são formadas pela “associação entre indivíduos e tecnologias/objetos […] especialmente hoje com as tecnologias digitais e os objetos infocomunicacionais e não pela separação hierárquica desses como o sujeito que tem a ação e o objeto inerte e passivo, em todas as situações” (Oliveira; Porto, 2016, p. 47). Para os autores, “[…] a educação e o processo educativo como fenômenos multifacetados formados por simbiose e mediações de sujeitos e objetos técnicos, humanos e não humanos, compondo a mesma rede sociotécnica, onde o ensino e a aprendizagem são o foco central” (idem, ibidem, p. 8).
Castro (2014), ao problematizar as práticas educativas e o potencial de produzir significado nos espaços escolares por meio do uso do recurso stories, concluiu que, nos perfis dos sujeitos analisados em sua pesquisa, “não foi encontrada nenhuma proposta de atividade pedagógica com o uso do Instagram, assim como pouca interação entre professores e estudantes”. O vazio apontado por Castro não constitui necessariamente um defeito estrutural, mas o espaço de uma nova tarefa educacional para a escola. O autor afirma que ainda existe uma separação entre as apropriações menos formais de uma rede social e seu potencial como ferramenta educacional, o que indica a demanda pela formação dos professores para tal uso pedagógico. A partir de tais aplicativos aparentemente neutros, a sociedade e toda a escola têm nova tarefa de mobilização valorativa.
A pesquisa de Souza (2018) teve como objetivo analisar pedagogias e formas de ser construídas e apresentadas nos stories por um grupo de jovens. O autor verificou que, nas publicações, eles espetacularizavam o ‘eu’ por meio de selfies, exibiam a felicidade por meio de figuras (gifs) animadas e faziam circular suas histórias. A memória de curto prazo das stories imprime modos específicos, práticas particulares no grupo de jovens. O pesquisador conclui que os stories se constituem como “ambientes que promovem pedagogias e formas de ser”, sinalizando que as narrativas dos sujeitos apresentavam um conjunto de características similares, configurando as ações dos jovens. O campo, assim aberto, não é ameaça, mas convite à nova dimensão do ato de educar. cujo novo desafio será não simplesmente dominar teclas e aplicativos, mas ter uma intenção pedagógica, formativa, educativa e ética, que considere o currículo escolar como centro das atividades da aprendizagem: usar tudo isso para quê? A serviço de quem?
Como um espaço ou ‘arte de fazer’ cotidiano, ou sua reinvenção, conforme pontua Certeau (1995), os alunos parecem lançar mão de “táticas de resistência que vão alterando os objetos e os códigos, e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um”, nos dizeres de Duran (2007, p. 119).
Tais invenções do/no cotidiano vão produzindo uma “cultura”, saberes pedagógicos da escola, saberes produzidos por professores e alunos, na dialeticidade da vida cotidiana, na concretude do cotidiano escolar (idem, ibidem, p. 127).
Assim, a escuta das ‘táticas’ de resistência cotidianas praticadas pelos alunos nos move a compreendê-las segundo sua própria lógica, e não na perspectiva das práticas e da voz de um aparelho técnico ou formal.
Como espaço para autoexpressão do cotidiano, ou um lugar de poder, os stories permitem que os estudantes compartilhem suas experiências, opiniões e identidades. O formato de conteúdo efêmero anima a espontaneidade e reduz o medo de julgamento, incentivando outra forma de expressão. Entretanto, permitir não significa, de fato, a posse da eficácia da ‘permissão’.
Conclusões e considerações
Este artigo teve como objetivo tecer o diálogo entre os espaços e tempos do currículo e os espaços e tempos que os jovens imprimem nas redes sociais digitais na contemporaneidade, especialmente nas narrativas instantâneas — stories —, destacando como elas podem ser estudadas na constituição de espaços de autoexpressão e até de resistência acerca de questões sociais em que estão mergulhados, principalmente os alunos de escola pública e os promotores culturais.
As micronarrativas criadas em gêneros discursivos híbridos são entendidas como práticas sociais cotidianas, construídas para mostrar a rotina, aproximar-se das pessoas, ‘espetacularizar’, ensinar, aprender ou criar espaços e tempos para resistir e reivindicar novos e exclusivos espaços para manifestação, participação, interação e compartilhamento. Os exemplos aqui mostrados são de grupos de jovens militantes em defesa e propagação de poesias, dos direitos à saúde e de lutas ambientais ou em defesa dos direitos de escolha das identidades de gênero, entre outras.
É importante destacar que os jovens imersos na cultura digital contemporânea — sabemos que muitos não estão — podem ter ‘voz’; contam suas próprias histórias sem depender de grandes oradores e sábios, tampouco de feitos heroicos ou de ações extraordinárias.
Os stories, quando utilizados pelos jovens em projetos como @oficialimprensajovem, exemplificam o conceito de ‘espaço praticado’ de Certeau (1995; 1998). Essas práticas cotidianas transformam os espaços digitais em ambientes de resistência, autoexpressão e aprendizagem contínua, alinhando-se com as teorias freirianas e dos curriculistas críticos e pós-críticos.
Como espaços de diálogo, reflexão crítica e libertação, inspirado pelas teorias de Freire (1967; 1970; 1983; 1996), o artigo destaca a importância de espaços e tempos no currículo que promovam o diálogo entre professores e alunos, permitam a reflexão crítica e fomentem a transformação social. Eles devem ser inclusivos e democráticos, valorizando as experiências prévias dos discentes. Os stories, como empregados nos exemplos analisados, podem ser utilizados para desconstruir narrativas dominantes e engajar os estudantes em projetos de justiça social. Outrossim, integrados ao currículo, como no Imprensa Jovem, podem permitir que os educandos expressem suas identidades e experiências de forma autêntica. No contexto educacional, essas narrativas podem ser utilizadas para promover a autoexpressão e o desenvolvimento de uma consciência crítica, conectando o currículo às realidades e contextos culturais dos alunos. Essa articulação exemplifica a potência das práticas cotidianas em reconfigurar espaços usuais e criar formas de interação e empoderamento educacional e social.
Incorporar essas práticas ao currículo escolar não só oportuniza uma educação mais conectada à realidade dos estudantes, mas também pode promover a autoexpressão, a resistência e a transformação social e a consequente evolução na produção social do conhecimento.
No entanto, embora já fortemente incorporados ao cotidiano, caberá às escolas, às estruturas curriculares e aos projetos de formação de docentes reconhecer esses espaços e tempos como de legítimas práticas de expressão de voz do jovem e de suas ‘artes de fazer’ e ser, ao estabelecerem uma (re)apropriação do espaço e do uso de cada um. O conhecimento está sempre encontrando formas de se renovar, manifestando-se de múltiplas formas.
Graças à estrutura escolar, aos currículos abertos e criativos e aos professores que sabem continuar a ser aprendizes, as tecnologias podem mudar de mãos; da posse das Big Tech aos jovens estudantes, para os quais o futuro precisa ser melhor. Não é possível ignorar, no entanto, que o uso das redes traz armadilhas, embora possa revelar a potência como espaços de expressão e resistência. Sabe-se também que o ambiente das redes controlado por grandes corporações, induz ao consumo e favorece a superficialidade. As práticas consumistas e a crise narrativa que esses espaços digitais trazem podem se intensificar sempre mais, por isso exigem uma reflexão crítica sobre como as mídias sociais são estruturadas e como influenciam tanto as práticas individuais quanto a cultura coletiva. A clareza do currículo com suas diferentes disciplinas e práticas educativas cumpre a função de acompanhar a formação cidadã do pensamento escolar e sua relação com as tecnologias.
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Notas
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