Demanda Contínua
CRUSH, AFETOS E CHUVA DE NUDES: O CURRÍCULO DA NUDEZ NA PRODUÇÃO DAS SEXUALIDADES NA CIBERCULTURA
CRUSH, AFFECTIONS, AND NUDE DOWNPOURS: THE CURRICULUM OF NUDITY IN THE PRODUCTION OF SEXUALITIES IN CYBERCULTURE
CRUSH, AFECCIONES Y LLUVIA DE DESNUDOS: EL CURRÍCULO DE LA DESNUDEZ EN LA PRODUCCIÓN DE LAS SEXUALIDADES EN LA CIBERCULTURA
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 17, núm. 1, e67246, 2024
Recepção: 08 Julho 2023
Aprovação: 29 Setembro 2023
Resumo: A prática de capturar e compartilhar a própria nudez a partir do autorretrato nu contribui para que o corpo, a sexualidade, o gênero e a nudez integrem a rede mundial de computadores e outros artefatos digitais. Neste artigo, o objetivo foi analisar os modos de atuações do currículo da nudez na produção de relações de sexualidades e gênero na cibercultura. O currículo da nudez foi pesquisado por meio da netnografia de três grupos secretos na rede social Facebook, a partir da análise do discurso de inspiração em Michel Foucault. O argumento desenvolvido é que o currículo da nudez produz a posição de sujeito ciborgue e fruta-de-sermos-nós-mesmas, caracterizadas pela prática de fotografar-se nua e compartilhar seus nudes com crushes, por meio dos aplicativos digitais. Nesse currículo, acionam-se brincadeiras que dissidem da heterossexualidade compulsória nas redes sociais e constroem redes seguras de compartilhamento de nude selfies.
Palavras-chave: currículo, sexualidades, cibercultura.
Abstract: The practice of capturing and sharing one's own nudity through nude self-portraits contributes to the integration of the body, sexuality, gender, and nudity into the worldwide network of computers and other digital artifacts. In this study, the aim is to investigate the modes of operation of the curriculum of nudity in the production of relationships of sexuality and gender in cyberculture. The curriculum of nudity was researched through the netnography of three secret groups on the social network Facebook, based on the discourse analysis inspired by Michel Foucault. The argument put forth is that the curriculum of nudity produces the position of the cyborg subject and the fruit-of-being-ourselves, characterized by the practice of photographing oneself naked and sharing nudes with crushes through digital applications. In this curriculum, playful activities are activated that dissent from compulsory heterosexuality in social networks and construct safe networks for sharing nude selfies.
Keywords: curriculum, sexualities, cyberculture.
Resumen: La práctica de capturar y compartir la propia desnudez a través del autorretrato desnudo contribuye a que el cuerpo, la sexualidad, el género y la desnudez formen parte de la red mundial de computadoras y otros artefactos digitales. En este trabajo, el objetivo es investigar las formas en que el currículo de la desnudez influye en la producción de las relaciones de sexualidad y género en la cibercultura. El currículo de la desnudez se investigó a través de la netnografía de tres grupos secretos en la red social Facebook, mediante el análisis del discurso inspirado en Michel Foucault. El argumento desarrollado sostiene que el currículo de la desnudez produce la posición de sujeto cíborg y fruta-de-sermos-nós-mesmas, caracterizadas por la práctica de fotografiarse desnudas y compartir sus desnudos con crush a través de aplicaciones digitales. En este currículo se activan juegos que disienten de la heterosexualidad compulsiva en las redes sociales y construyen redes seguras para compartir selfies desnudos.
Palabras clave: currículo, sexualidades, cibercultura.
Introdução
A palavra em inglês “crush” é usada para significar as relações culturais e sociais da sociedade contemporânea. Crush se insere no campo das afetividades construídas principalmente na cibercultura. Ter um crush em alguém é se sentir atraída/o por ela/e; é desejar ter um relacionamento afetivo e/ou sexual com aquela pessoa, sendo uma palavra utilizada para expressar o modo como as pessoas produzem relações de sexualidade. Assim, ter “crush” em alguém apreende a produtividade do poder nas relações de sexualidade e nos modos de existir e sentir. Desse modo, pretendemos mostrar como a cibercultura apresenta a intensa presença nos sistemas de significações culturais e nos modos de vida ciborgue em estabelecer crush, afetos e brincadeiras, tendo como eixo de análise as relações sociais da prática do autorretrato nu nas tecnologias digitais.
O nude selfie é uma prática e fruto das relações tecnológicas e sociais próprias da primeira década do século XXI. A captura e compartilhamento do autorretrato nu se popularizou a partir do smartphone que tem acoplado ao seu sistema operacional o selfie. Com o selfiee a permanente conexão com a internet é possível fazer vídeos e fotos de forma constante e publicar nas redes sociais no mesmo instante. Essa proliferação de fotos, vídeos e autorretratos no ciberespaço englobam a nudez, o corpo, o gênero e a sexualidade. Nesse contexto, o nude selfie é a exibição de corpos nus na rede mundial de computadores, compartilháveis e acessíveis por meio de inúmeros artefatos digitais (smartphones, tablets, ipads). Essa multiplicidade de corpos nus exibidos nas redes sociais digitais forja as relações de poder contemporâneas, assim como as relações de poder também constituem a prática do nude selfie. Dessa maneira, os modos de vivência da sexualidade e do gênero são produzidos de maneira amalgamada com as tecnologias digitais em meio às relações de poder.
Esses modos de vivência produzem os fenômenos que serão analisados neste artigo e que envolvem a nomeação do crush para determinadas relações da sexualidade na cibercultura e a constituição de brincadeiras nos grupos analisados, centrados na troca de nude selfie no Facebook. Para essa investigação, foi construído um caminho metodológico próprio por meio da netnografia de três grupos secretos do Facebook e da análise do discurso de inspiração foucaultiana. A partir dessas escolhas, compreendemos que “[...] toda produção de conhecimento [...] se dá a partir de uma tomada de posições que nos implica politicamente”, (Passos; Barros, 2009, p. 150). Desse modo, foi necessário refletir permanentemente sobre as escolhas adotadas ao longo do caminho percorrido na investigação.
A escolha metodológica pela netnografia se baseou no entendimento de que “[...] a netnografia é uma abordagem da pesquisa online de observação participante”, (Kozinets; 2014, p. 72). Para Amaral, Natal e Viana (2008, p. 34), a netnografia é uma “[...] metodologia para estudos na internet”. Nesse viés, é um método interpretativo que investiga o comportamento cultural de comunidades online (Kozinets, 2014). Assim, foi realizada a netnografia das práticas ciberculturais em três grupos secretos do Facebook que existiam com o intuito principal de trocar autorretrato nu, conversar sobre experiências sexuais, prazeres e desejos. Vídeos, memes, comentários, publicações e brincadeiras foram analisados a partir de uma noção consensual das informações.
Foram atribuídos nomes fictícios para cada grupo, o maior deles nomeia-se “Somente Libidinosas” e apresentava no ano de 2014 mais de quatorze mil usuárias do Facebook em todo o Brasil. O segundo, por sua vez, foi nomeado de “Gostosuras” e apresentava três mil usuárias, com predomínio do estado de Minas Gerais nas discussões. Ao terceiro foi dado o nome de “As Minas”, com mais de oito mil usuárias de todo o Brasil, sem predomínio de uma região ou estado, com a especificidade de ser movimentado também pelos relatos de experiência, desabafos, denúncias de estupro e outros abusos sexuais. Os três não permitem a entrada de homens cisgêneros[1], a partir do entendimento de que os grupos têm objetivos de partilha e fortalecimento entre mulheres cisgêneras, pessoas trans[2] e não-binárias[3]. Nos atentamos às discussões, que mostraram práticas e vivências de sexualidades não-hegemônicas, que dissidem da heteronormatividade.
No campo da análise do discurso, Evangelista (2016, p. 29) afirma que o Facebook pode ser considerado um “[...] texto cultural produzido pelas postagens que se desenham na linha do tempo”. Essa rede social produz narrativas, estabelece relações, vincula enunciações e, assim, constitui-se “[...] como o próprio discurso” (ibidem). Essa abordagem metodológica trouxe a possibilidade de perguntar: “por que isso é dito aqui, desse modo, nesta situação, e não em outro tempo e lugar, de forma diferente?”, (Fischer, 2001, p. 205). Nesta pesquisa, a análise do discurso interroga sobre as invenções, sobre as condições de possibilidade para que um discurso apareça em um contexto histórico-social específico.
As produções de sujeitos, saberes autorizados, verdades e valores compartilhados divulgados nos materiais coletados nos três grupos do Facebook foram nomeados de “currículo da nudez”. Esse currículo é analisado sob a perspectiva pós-crítica que entende que o currículo é “[...] um discurso que ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos” (Silva, 1996, p. 195). Nesse sentido, a perspectiva pós-crítica tem mostrado que o currículo constitui sujeitos, produz relações de poder e saber e possibilita também que algumas verdades sejam autorizadas (Tadeu; Corazza, 2003). A análise do currículo da nudez segue a abordagem teórica do “currículo cultural” de Green e Bigum (1995), que “[...] envolve a construção de significados e valores culturais” (Silva, 2015, p. 55) e produz modos de ver, ser e compreender o mundo que está para além de um catálogo de disciplinas e conteúdo.
De acordo com a perspectiva pós-crítica educacional, o currículo é um artefato cultural que produz modos de existência (Paraíso, 2007). É a partir dessa perspectiva que o compreendemos como “[...] um discurso que ao corporificar narrativas particulares sobre o indivíduo e a sociedade, nos constitui como sujeitos” (Silva, 1996, p. 195), pois, “[...] quando informações, aprendizagens, sentimentos e pensamentos são articulados, está-se compondo o texto de um currículo” (Maknamara, 2020, p. 59). O currículo da nudez está articulado com Paraíso (2023, p.8), que afirma que “[...] o currículo circula, percorre, move-se, atravessa vários espaços, desloca-se, desdobra-se e conecta-se com culturas, com perspectivas variadas, com políticas, com vidas”.
No currículo da nudez, a cibercultura apresenta centralidade na produção de modos de vida. E, embora não se trate de um currículo escolar, é caracterizado também por ensinar “[...] elementos da cultura, de parte dos saberes acumulados, de produção de sentido sobre o mundo [...] é um território de luta por representações e significados” (Paraíso, 2023, p. 10). As tecnologias digitais tornam “[...] cada vez mais problemática as separações e distinções entre conhecimento cotidiano, o conhecimento de massa e o conhecimento escolar” (Silva, 2015, p. 141). Assim, o currículo da nudez problematiza as fronteiras entre essas formas de conhecimento. A perspectiva pós-crítica “[...] vê tanto a indústria cultural quanto o currículo propriamente escolar como artefatos culturais”, ou seja, “[...] sistemas de significação implicados na produção de [...] subjetividades” (Silva, 2015, p. 142).
Dessa maneira, o currículo da nudez fabrica determinados modos de ser, sentir e viver, e divulga certos discursos que são autorizados como verdadeiros e legítimos. Suscita saberes sobre o corpo, o gênero e a sexualidade, constituídos por relações de poder que estão em constante disputa e transformação. Neste artigo, as relações de sexualidade apresentam centralidade nas operações analíticas. A sexualidade é compreendida como uma rede de prazeres e trocas sexuais discursivamente produzidas que direciona as formas de sentir e compreender as relações. É também uma rede de “estimulação dos corpos”. É “[...] a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação de conhecimentos” (Foucault, 2014b, p. 115). O dispositivo da sexualidade, a partir do século XIX na Europa, passa a inventar “tipos sexuais”, passa a decidir “o que era normal ou patológico” e a hierarquizar essas tipificações de atos e condutas a respeito da sexualidade (Louro, 2009). Por meio desse dispositivo, busca-se tenazmente “[...] conhecer, explicar, identificar e também classificar, dividir, regrar e disciplinar a sexualidade” (Louro, 2009, p. 88).
Correlato à sexualidade, temos o conceito de gênero. Butler (2013) afirma que gênero é um processo, uma construção sem origem e nem fim, um constante vir a ser que se faz por uma reiteração de atos. Gênero é “[...] um conjunto de atos repetidos no interior de uma estrutura reguladora altamente rígida, a qual se cristaliza no tempo para produzir a aparência de uma substância, de uma classe natural do ser” (Butler, 2013, p. 59). Dessa forma, a autora nega qualquer possibilidade de essência ou substância inata aos seres, pois, segundo ela, “[...] não há nenhuma ‘essência’ que o gênero expresse ou exteriorize” (Butler, 2013, p. 199). Portanto, gênero para Butler (2014, p. 253) é o “[...] mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados”.
Assim, o currículo da nudez apresenta discursividades que produzem os objetos de que falam no campo das relações de sexualidade e gênero. Esse campo discursivo é constituído por um conjunto estratégico de técnicas e tecnologias de poder que, ao serem acionadas, produzem saberes, verdades e sujeitos de determinados tipos. Os saberes sobre a sexualidade que constituem o currículo da nudez são produzidos a partir de uma discursividade histórica própria do contexto social em que emerge. São criações e interpretações culturais elaboradas a partir dos sistemas de significações sociais do currículo. Nessa perspectiva, esses saberes são analisados no que autorizam, legitimam, deslegitimam, incluem e refutam. Relações de saber e poder estão intrinsecamente relacionadas, para Foucault, não há relações de poder sem a constituição de saberes, assim como não há saber que não produza relações de poder (Foucault, 2010a). Sendo assim, o currículo da nudez é constituído por relações de saber e de poder que o sustentam e o constituem.
O poder “[...] é um modo de ação de alguns sobre alguns outros” (Foucault, 2014b, p. 132). Ele “existe em ato” (ibidem), é correlação de força, é estratégia e não uma propriedade de classe. “É um conjunto de ações sobre ações possíveis” e, nesse mecanismo, “ele incita, ele induz, ele desvia, ele facilita ou torna mais difícil” (Foucault, 2014b, p. 133), isso porque o poder “[...] é menos da ordem do enfrentamento entre dois adversários” (ibidem) e mais sobre “[...] estruturar o campo de ação eventual dos outros” (ibidem). A partir desse entendimento, o currículo da nudez é analisado em termos produtivos do poder, investigando os motivos de algo ser nele aceito ou não, os saberes que nele circulam e as verdades ali fabricadas.
Segundo Tadeu e Corazza (2003), o currículo também é constituído por verdades autorizadas. Nessa perspectiva teórica, a verdade é uma “[...] ficção, invenção, criação” (Corazza; Tadeu, 2003, p. 35). Não há essência ou substância verdadeira no currículo da nudez, mas, sim, uma relação produtiva de invenção do regime de verdade. “Não há nenhuma verdade a ser descoberta ou revelada porque a única verdade é aquela que nós criamos” (Corazza; Tadeu, 2003, p. 40). Dessa forma, analisar os modos de atuação do currículo da nudez na produção de sexualidades e gênero acarreta “[...] analisar seus conhecimentos, linguagens, formas de raciocínio” (Corazza, 2001, p. 57), que estão vinculados às relações de poder. Na análise do currículo da nudez, importa “[...] o papel produtivo que [ele] exerce nas práticas sociais” e “[...] na produção de verdades” (Paraíso, 2007, p. 68).
Essa relação produtiva do currículo se inscreve no comportamento dos sujeitos, nos seus modos de ser. No viés pós-crítico, os sujeitos não são dados a priori. Assim sendo, essa perspectiva nega qualquer associação à essência ou substância dos sujeitos. Isso porque, no entendimento do currículo como discurso, investigam-se exatamente os modos pelos quais os sujeitos são constituídos. Neste capítulo, duas produções do sujeito são analisadas: ciborgue e a fruta-de-sermos-nós-mesmas. Essas posições de sujeito são fabricações de modos específicos de existência que surgem como próprios do contexto histórico contemporâneo de intensa conexão com as tecnologias digitais. Desse modo, de acordo com Foucault (2008b, p.86), produz-se “[...] um sujeito de um discurso” que se trata de uma “posição que alguém assume” a partir de uma discursividade. Assim, os sujeitos são constantemente incitados a serem de certos modos em uma rede produtiva do poder.
No currículo da nudez, a produção da ciborgue e da fruta-de-sermos-nós-mesmas envolve relações produtivas do poder voltadas à “[...] constituição dos modos de ser sujeito a partir de práticas de si” (Foucault, 2010b, p. 42). Assim, técnicas de si são produtivas nesse currículo de modo a criar determinadas afirmações sobre si mesmas/os, seus modos de vida, desejos e prazeres. Desse modo, os sujeitos são “[...] capazes de tomar a si próprios como sujeitos de sua própria ação” (Rose, 2001a, p. 143), “[...] tais como: compreender a si mesmos; falar a si mesmos; colocar a si mesmo em ação; julgar a si mesmos” (Rose, 2001a, p. 145). Os sujeitos se relacionam consigo mesmos de modo a produzir o conhecimento de si, o controle de si e o cuidado de si (Rose, 2001b). Toda essa produção se dá a partir das relações entre saberes e poderes no currículo da nudez.
No currículo da nudez, as ciborgues e fruta-de-sermos-nós-mesmas constroem práticas que embaralham os códigos sociais, articulam de formas não lineares sexo, gênero e sexualidade e, em alguns momentos, dissidem da norma heterossexual. Sendo assim, o primeiro tópico do artigo aborda os modos autorizados de ação ao fotografar e enviar o autorretrato nu a partir da relação com crush e da relação consigo mesma. No segundo momento, serão analisadas as relações produtivas da sexualidade e do gênero, no currículo da nudez, a partir dos jogos e brincadeiras propostos nos grupos pesquisados. Esses jogos surgiram nos grupos com o intuito de criar uma rede de proteção de envio de nude selfie e também para estabelecer encontros sexuais e afetivos entre mulheres, sujeitos não-binários e pessoas trans que também apresentam sexualidades “não hegemônicas”, (Rios; Oliveira, 2015).
Nesse viés, ciborgues e fruta-de-sermos-nós-mesmas têm como características a construção de redes de afetos a partir da noção de crush, a criação de brincadeiras que envolvem erotismo e técnicas de segurança e a prescrição também dessas técnicas para o compartilhamento de autorretrato nu na cibercultura. Diante disso, o argumento desenvolvido é que o currículo da nudez produz as posições de sujeito ciborgue e fruta-de-sermos-nós-mesmas, caracterizadas pela prática de fotografar-se nua e compartilhar seus nudes com crushes, por meio de aplicativos digitais. Nesse currículo, acionam-se brincadeiras que dissidem da heterossexualidade compulsória nas redes sociais e constroem redes seguras de compartilhamento de nude selfie.
“Crush é para quem eu mando nudes”: produções de sexualidade no currículo da nudez
“O que é crush?”: “é quem a gente tá de olho”, “é o antigo paquerar”, “é a famosa ‘queda’ por alguém”, “vem da expressão em inglês ‘i have a crush on you’”, “versão pós-moderna de amor platônico”, “é a paixonite aguda”, “é pra quem mando meus nudes”. Essas foram algumas das respostas das ciborgues quando questionadas, em um dos grupos do Facebook, sobre o que seriam crushes. Essa onomatopeia para corações quebrados expressa as maneiras contemporâneas de sentir e produzir relações de sexualidade com intensa presença das tecnologias digitais. Em inglês, a gíria crush expressa um sentimento de “queda” por alguém. Ao acontecer a queda, o barulho que o coração faz é o crush. Uma palavra que expressa os modos de sentir produzidos na sociedade contemporânea interconectada.
A significação crush para nomear determinados tipos de relações afetivas na cibercultura foram recorrentes nos três grupos secretos do Facebook analisados. Em um episódio observado, o currículo da nudez fez insurgir a seguinte questão: “é ético mandar os mesmos nudes bonitos para mais de um crush?”. Essa pergunta foi feita em um dos grupos pesquisados e apreende um campo produtivo das relações de sexualidade na cibercultura. A prática do envio do autorretrato é constituída por modos desejáveis de exibição do corpo nu, por discursos autorizados sobre como o corpo deve ser fotografado e por saberes específicos sobre como enviar a foto. Essa questão indica que existem ações autorizadas como “éticas” no envio do autorretrato e modos reconhecidos como “não éticos” nessa ação.
Como uma das respostas para a pergunta apresentada, está o comentário a seguir, na Figura 1:
A resposta à pergunta sobre ética do nude possibilita a compreensão de que, no currículo da nudez, produz-se o sentimento que as ciborgues denominam de crush. A partir desse comentário, é possível perceber que o sentimento de crush é endereçado a alguém. De acordo com o dito, existem muitos crushes para enviar nude selfie. O fato de a ciborgue dizer “imagina ter que fazer um nude diferente para cada crush, teria que viver só pra isso” indica que são várias as crushes e tirar nudes diferentes para cada uma demandaria muito tempo e dedicação. Assim, o currículo da nudez divulga que é ético mandar um mesmo nude selfie para crushes diferentes, sem exclusividade.
Nesse campo produtivo, crush parece indicar os modos contemporâneos das relações de sexualidade. Consideramos que a expressão crush representa um tipo de sentimento em relação a algumas pessoas. Sentimento esse que pode ser endereçado a mais de um indivíduo e que não garante a exclusividade na troca de autorretrato nu. A partir desse comentário, podemos argumentar que o currículo da nudez produz relações de sexualidade que constituem um campo de afetos. Crush é um tipo de sentimento em intensa relação com os códigos sociais produzidos na cibercultura. Existem diferentes maneiras como as vivências afetivas e sexuais “[...] passam a se expressar no contexto contemporâneo” (Pelúcio, 2016, p. 317). Esses modos de sentir propiciam “dinâmicas de trocas emocionais” e “intensificação de (des) afetos” como características da relação produtiva das sexualidades no currículo da nudez, (Pelúcio, 2016).
O comentário diz que se crush pedir “exclusividade” na troca de autorretrato nu é uma “cilada”. Os ditos desse comentário estão no campo produtivo do discurso que demanda determinados tipos de sujeito. Desse modo, a posição de sujeito ciborgue é disponibilizada nesse discurso. Ciborgue é caracterizada pela prática cotidiana de produção e compartilhamento de nudes selfies nos aplicativos digitais. Isso constitui a vivência da sexualidade, em que há a troca de nudes com vários crushes, sem “exclusividade”. As ciborgues, portanto, produzem a “ética” do nude selfie como modos de agir autorizados na micropolítica das vivências da sexualidade na cibercultura.
As produções das relações de sexualidade no currículo da nudez apresentam “[...] possibilidades emocionais ofertadas pelas novas tecnologias, pactuando uma estreita relação entre estas e os sentimentos” (Pelúcio, 2016, p. 311). A partir da intensa presença das tecnologias digitais, “[...] as relações entre afeto, sexo e amor passam a se dar em uma nova configuração” (Pelúcio, 2016, p. 317). Desse modo, o currículo da nudez produz aquilo que “[...] impele a sonhar, pensar, a fazer, a ser” (Paraíso, 2007, p. 23), divulgando as ciborgues como um ponto de ancoragem do sujeito. Esse currículo produz e faz circular relações de sexualidade nas quais a troca de autorretrato nu é central.
Ainda, tal currículo, ao hibridizar os sentimentos com as tecnologias digitais, produz as ciborgues. Essa produção se dá à medida que ocorre a fusão entre as tecnologias digitais e os sentimentos, afetos e práticas. Para a mesma pergunta sobre a questão ética no envio do mesmo nude selfie para diferentes crushes, divulga-se ainda outra possibilidade. Vejamos a Figura 2:
No comentário, a ciborgue diz que é preciso ser “esperta” e mandar os mesmos nudes para vários contatos, porque não é todo dia que ela se sente “maravilhosa” e que o nude selfie fica bom. Para ela, quando o autorretrato fica muito bom, sente vontade de mandá-lo para todos os “contatos para espalhar” sua “beleza naquele dia”. Esses ditos constituem o vocabulário das vivências da sexualidade, que engloba as trocas de afeto na cibercultura. Verdades são autorizadas, nesse currículo, sobre o modo de ação das ciborgues em relação ao corpo, à beleza e à divulgação das fotos para os contatos.
Esses contatos podem estar nas redes sociais ou na agenda do smartphone e a vontade da ciborgue é de espalhar seus nudes bonitos. Assim, “contatos” e “crushes” expressam o “vocabulário afetivo/romântico” (Pelúcio, 2016) do currículo da nudez. Novos ditos surgem, no currículo, para dar conta das configurações específicas das relações de sexualidade em fusão com as tecnologias digitais. Para Pelúcio (2016, p. 317), as “[...] pessoas têm [...] assimilado novas palavras para pensar em si e nas relações à sua volta” no contexto histórico em que as tecnologias digitais têm intensificado transformações nas relações de sexualidade, que incluem as relações afetivas.
Nesse sentido, a ciborgue afirma que é preciso ser “esperta” nas maneiras de enviar nude selfie. Ser “esperta” é aproveitar os dias em que ela se sente bonita para se autofotografar. E, ainda, ser “esperta” pode explicitar uma produção de si própria através “[...] de uma prática de si que tem como objetivo construir a si mesmo” (Sousa, 2008, p. 23). Ou seja, voltar atenção para si na intenção de produzir como é necessário ser na troca de autorretrato nu. Esse processo de produzir a si mesma é possível através de práticas que visam a fabricação do sujeito por ele mesmo. Esse processo produtivo “[...] permite aos indivíduos efetuarem, sozinhos ou com a ajuda de outros, certo número de operações sobre o corpo e sobre a alma, seus pensamentos, suas condutas, seu modo de ser” (Foucault, 2014b, p. 266).
O dito “se sentir maravilhosa” também apreende um modo de “[...] voltar a atenção para si” (Foucault, 2010c, p. 43), de forma a dizer sobre como se sente ao tirar bons autorretratos nus. Para concluir que é preciso ser “esperta” e “maravilhosa”, é necessário acionar uma série de exercícios reflexivos sobre si que possibilitam se avaliar a partir desses modos de ser disponibilizados no currículo da nudez. Assim sendo, as técnicas de si operam de modo a produzir uma série de exercícios do poder. Esses exercícios se efetivam no autogoverno. Na acepção de Michel Foucault (2008a), o autogoverno é o governo de si mesmo, ou seja, o estabelecimento da relação consigo no sentido de se conduzir de certo modo.
Sentir-se “esperta” e “maravilhosa” é um modo de levar a atenção a si mesma e de dizer uma verdade, ainda que provisória, sobre quem se é no envio de autorretratos nus. Sentir-se “maravilhosa” é característica da posição fruta-de-sermos-nós-mesmas. Por isso, no episódio analisado da “ética do nude”, as técnicas de si efetivam o autogoverno e produzem a fruta-de-sermos-nós-mesmas no currículo da nudez. Nessa operação do poder, ciborgues são ensinadas a serem “espertas” e “maravilhosas” na troca de nude selfie. Assim, elas são ensinadas a serem também frutas-de-sermos-nós-mesmas nessa operação discursiva da produção do sujeito. Para Foucault (2014a), a posição de sujeito é fabricada a partir de uma racionalidade do poder no nível das estratégias, técnicas, tecnologias e discursos. Por esse viés, uma especificidade do currículo da nudez é que, além de produzir ciborgues, também ensina modos de ser fruta-de-sermos-nós-mesmas. Nesse caso, a produção de si como “esperta” e “maravilhosa” na troca de nude selfie é característica desses modos de ser.
Nesse sentido, as posições de sujeito são provisórias e podem ser ocupadas ou não de acordo com a correlação de forças estabelecida no currículo. No caso dos ditos da Figura 2, as frutas-de-sermos-nós-mesmas são espertas, mas também são vaidosas e gostam de mandar os autorretratos nus para todos os “contatos” quando estão se sentindo “maravilhosas”. Esse dito produz a fruta-de-sermos-nós-mesmas, pois apresenta a vaidade, a autoestima e a esperteza como forças atuantes na publicação do nude selfie nas redes sociais. Assim, o currículo da nudez prescreve essa posição de sujeito e divulga essas práticas de vida.
A fruta-de-sermos-nós-mesmas gosta de divulgar a nudez quando está se sentindo “maravilhosa”, provocando instabilidade no discurso que prescreve que as mulheres não podem se exibir nuas. Essas resistências são efeitos da produção e divulgação do discurso que objetiva romper com as assimetrias de sexualidade e gênero. Os discursos que resistem aos imperativos morais possibilitam o deslocamento do poder, de maneira a convocar a produção de modos de ser que publicam autorretratos nus. Essas transformações nos modos de existência produzem “[...] nossos desejos e expectativas sexuais e amorosas” (Pelúcio, 2016, p. 330), além de possibilitarem outras maneiras de ser e de exercer trocas afetivas e sexuais, que implicam na produção de relações de sexualidade no currículo da nudez.
Para Pelúcio (2016, p. 311), “[...] possibilidades emocionais [são] ofertadas pelas novas tecnologias, pactuando uma estreita relação entre estas e os sentimentos”. Os ditos expressam a “[...] maneira como as vidas sexuais e amorosas e o próprio desejo das pessoas passam a se expressar no contexto contemporâneo” (Pelúcio, 2016, p. 317). Sendo assim, as relações produtivas da sexualidade estão intimamente relacionadas com as tecnologias digitais no currículo da nudez e também “[...] trazem sua carga emocional e significam tanto quanto as mensagens que se trocará por meio delas” (Pelúcio, 2016, p. 329).
Desse modo, nos ditos da conversa a seguir, Figura 3, são prescritas formas adequadas de dispor o corpo para a realização do autorretrato nu, em resposta à pergunta sobre como elas capturam e mandam as fotos:
Juçara mostra que a realização do autorretrato nu “depende do objetivo”. Ela explica dois objetivos para o nude selfie: “mandar para grupos” ou “enviar prss crushs”. O autorretrato nu para enviar em grupos “é uma foto mais comportada, digamos assim, que mostre mas de uma maneira natural”. E o nude selfie para enviar para crushes “pode inovar, brincar, ousar mais”. Desse modo, a ciborgue mostra como se auto fotografa de acordo com os modos prescritos na cibercultura para cada situação.
No discurso, relações de poder e saber se articulam para a produção do sujeito. “Nesse caso ‘técnicas de si’ são acionadas e operam na autoinspecção”, “auto problematização”, “automonitoramento” (Rose, 1999, p. 43) das ciborgues para a realização do autorretrato nu. Então, esses sujeitos fabricam o modo como irão se exibir para a foto de acordo com seus “objetivos”. Posar para a fotografia é um dos pontos principais para saber realizar o autorretrato nu de acordo com cada objetivo. Para Butler (2013), o corpo é produzido no discurso e, assim, é feito e efeito dos mecanismos de poder que regulam o que nomeiam. No comentário, Juçara aponta como escolhe o modo de auto fotografar, que segundo ela, ou é de modo comportado e “natural” ou de modo inovador e ousado.
No currículo da nudez, são divulgadas práticas que conectam modos de ser, agir e pensar próprios da rede de poder desse currículo. Maria Elvira Díaz-Benítez (2015, p. 66) afirma que “[...] no fetiche produzido hoje nesse país encontramos majoritariamente práticas associadas à adoração de uma parte do corpo”. Nessa relação produtiva com o corpo, modos de existência são divulgados, oriundos “[...] daquilo que o discurso produz e objetiva” (Paraíso, 2007, p. 23). Esses modos de existência divulgados no discurso produzem sujeitos de determinado tipo, (Paraíso, 2007). No caso aqui analisado, o sujeito produzido é a ciborgue, que fabrica o corpo de forma a dispô-lo de determinados modos para o nude selfie, dependendo dos objetivos do envio. Tal produtividade do poder mostra que a disposição do corpo das ciborgues para o autorretrato não é algo natural, mas, sim, uma produção corporal em conjunto com técnicas de poder em intensa relação com as tecnologias digitais. As ciborgues posam de modo “ousado” ou “comportado” para a foto digital que será divulgada nas redes sociais. Assim, produzem-se e são produzidas nesse processo de construção da disposição do corpo para o nude selfie a ser publicado no ciberespaço. Na posição de sujeito ciborgue, sexualidade, intimidade, erotismo e autorretrato nu alteram e dissolvem dualismos do natural versus artificial na produção de si mesmas. Essa é uma característica de como a sexualidade é constituída e vivenciada nas redes sociais pelo modo de ser ciborgue.
Os modos de produzir sexualidades on-line continuarão a ser analisados no tópico a seguir, a partir das brincadeiras, jogos e interações que acontecem nos grupos do Facebook. Essas brincadeiras têm três características centrais: estabelecer redes seguras de compartilhamento de foto, encontrar crush, paqueras, namoradas e obter encontros sexuais.
Nude selfie para diversão e segurança: dissidência à heteronormatividade nas redes seguras de envio de autorretrato nu
Neste tópico, são analisadas as relações produtivas de sexualidade e gênero, no currículo da nudez, a partir dos jogos e brincadeiras propostos nos grupos pesquisados. De maneira geral, esses jogos surgiram com o intuito de criar uma rede de proteção de envio de nude selfie. Essa rede se constituía pelo incentivo à publicação de autorretratos nus, mas com diferentes estratégias de segurança, que serão apresentadas neste tópico. Outro objetivo, tão importante quanto o anterior, é a interação nas brincadeiras para estabelecer encontros sexuais, amorosos e afetivos entre as participantes do jogo.
As brincadeiras acontecem entre mulheres, pessoas não-binárias e pessoas trans que participam dos grupos do Facebook analisados. São indivíduos também de “[...] sexualidades não-hegemônicas (entendida como identidade, preferências, expressões e práticas diversas do padrão heterossexual tradicional)” (Rios; Oliveira, 2012, p. 261). Isso porque as brincadeiras parecem ser uma tecnologia de poder que possibilita a divulgação do nude selfie de forma segura, além de funcionarem também para estabelecer crushes, paqueras e “contatos”. Considera-se que as relações produtivas de sexualidade, nessas brincadeiras, visam romper com o regime heteronormativo. A “[...] heteronormatividade é um conjunto de disposições (discurso, valores, práticas) por meio das quais a heterossexualidade é instituída e vivenciada como única possibilidade natural” (Junqueira, 2012, p. 281). Nas brincadeiras dos grupos, as ciborgues rompem a heteronormatividade, porque criam possibilidade de afeto e sexo entre mulheres, de modo a criar “arsenais” de prazer. Esses sujeitos produzem saberes, práticas e modos de ser dissidentes da norma heterossexual. As brincadeiras que serão explicadas neste tópico são evidências de práticas que rompem com as normas de sexualidade.
Assim sendo, no currículo da nudez os ditos sobre nude selfie constituem um campo produtivo sobre quem se é nas vivências das relações de sexualidade, a partir de brincadeiras. Na Figura 5, um comentário com proposta de outra brincadeira para o grupo:
A proposta é de que todas do grupo brinquem da seguinte forma: “todo mundo posta nudes”. Mas as fotos têm hora marcada para serem apagadas. Participam aquelas que estão online durante o período estabelecido da brincadeira, que normalmente acontecia das 18 horas às 23 horas. Tem-se como o objetivo principal manter uma rede segura para a troca de nude selfie, porque a possibilidade de ter acesso às fotos se dá a partir de um tempo pré-estabelecido, assim, os nudes não ficam arquivados no grupo para acesso posterior. E, além da segurança, as “gurias ‘entrosam’”, ou seja, as ciborgues, podem se conhecer, estabelecer contatos e trocas afetivas e sexuais.
Nesse sentido, o currículo da nudez produz a brincadeira que coloca em funcionamento a segurança e o entrosamento entre as ciborgues do grupo. Esse currículo prescreve formas de garantir segurança do não vazamento de autorretratos nus através de brincadeiras, que também rompem a norma da heterossexualidade compulsória. O regime político heteronormativo é a ordem sexual que exige que todas/os organizem suas vidas conforme o único modelo legítimo de vivência da sexualidade, a heterossexualidade (Junqueira, 2012). Sendo assim, a heteronormatividade se estabelece por um conjunto de disposições que autorizam apenas a heterossexualidade como possibilidade de experiência afetiva e sexual.
Nessa “brincadeira”, o currículo da nudez é produzido pelo discurso da segurança no compartilhamento dos autorretratos, o que propicia a criação de uma rede de proteção que também é uma troca de vivências afetivas e sexuais por meio dos autorretratos nus. A troca de nude selfie, a partir dessa brincadeira, constitui uma relação produtiva do poder, porque o autorretrato é potência motivadora dessa ação social. Para Hall (1997, p.1), “[...] toda ação social é ‘cultural’”. A troca de nude selfie é, portanto, uma prática de significação que expressa códigos sociais que produzem as relações de poder.
A relação de poder “[...] facilita, do mesmo modo que dificulta, limita, torna mais ou menos difícil uma ação ou um discurso” (Paraíso, 2007, p. 54) e, assim, faz circular determinadas maneiras de ser (Paraíso, 2007). A “brincadeira” possibilita técnicas de poder que aumentam a segurança e oportunizam as trocas afetivas e sexuais. Nesse sentido, pode ser compreendida como uma tecnologia de poder divulgada no currículo da nudez para fazer circular técnicas de segurança para o compartilhamento de autorretratos nus. A técnica de segurança atua tanto na regulação no tempo limitado de publicação das fotos quanto no compartilhamento da fotografia apenas com as usuárias online do Facebook, durante o período estabelecido.
A “brincadeira” como tecnologia de poder também faz circular ditos de resistência à heteronormatividade. Para Aspis (2017, p. 73), com base em Deleuze, resistir “é criação, movimento insistente de re-existir” e “é a afirmação da vida”. No currículo da nudez, as ciborgues também resistem à “heterossexualidade compulsória” (Butler, 2013). Assim, afirmam a vida de modo a produzir sexualidades que não seguem a norma heterossexual. A partir da postagem do nude selfie na publicação da brincadeira, as ciborgues participantes podem iniciar uma conversa privada. Mulheres que vivenciam prazeres sexuais entre si estão rompendo com a prescrição normativa de que apenas podem vivenciar práticas heterossexuais. Para Butler (2013, p. 195), a heterossexualidade compulsória é a “[...] ilusão mantida discursivamente com o propósito de regular a sexualidade nos termos da estrutura obrigatória da heterossexualidade”.
Para entender a resistência à heteronormatividade no currículo da nudez a partir da tecnologia de poder da “brincadeira”, vejamos, na Figura 6, outra forma de brincar no ciberespaço, que produz relações de sexualidade contemporâneas:
A Figura 6 mostra a brincadeira do “pontinho”. Segundo a ciborgue que a propõe, a brincadeira é “simples”. Quem quer participar comenta com um ponto “.”. “Quem curtir quer te beijar”. Assim, se alguém curtir o comentário, significa que tem interesse em conversar com a pessoa que o publicou. Mas, para que iniciem a conversa, é necessário que a outra pessoa curta o comentário da primeira que curtiu. Apenas se as duas curtirem o comentário uma da outra é que elas iniciam uma conversa privada e “oficializam o crush”.
A “brincadeira do pontinho” constitui uma tecnologia que coloca em funcionamento modos específicos de vivenciar as relações de sexualidade no currículo da nudez. Modos que dizem respeito à potencialidade das relações afetivas entre mulheres, sujeitos não-binários e trans que produzem sexualidades “não hegemônicas” (Rios; Oliveira, 2012). A hegemonia no campo das sexualidades é a heterossexualidade, que é classificada como o modelo saudável da prática sexual através de “diversos regimes e arsenais normativos” de “ajustamento, marginalização e exclusão” de práticas não heterossexuais (Junqueira, 2015, p. 39). A ruptura à norma heterossexual se constitui, no currículo da nudez, no modo como as ciborgues interditam o arsenal normativo da heterossexualidade e criam laços de afeto, segurança e “oficializam o crush”. Ao criar as possibilidades de afeto que envolvem prazer e autoestima entre mulheres, elas rompem com a heteronormatividade e ressignificam os códigos sociais.
Nesse campo produtivo, as brincadeiras aparecem nos grupos em diferentes formatos. A seguir, como verifica-se na Figura 7, um episódio da brincadeira “chuva de nudes”:
A brincadeira da “chuva de nudes” tem como objetivo a publicação de muitos nudes pelas participantes. A palavra “chuva” explicita essa intenção de muitos autorretratos na forma de comentário. A brincadeira também utiliza a técnica de segurança ao apagar a publicação algumas horas depois. Com essa técnica, elas podem “fazer chuva de nude sem medo”. A chuva de nudes é similar às outras brincadeiras, porque também preza pela segurança e pela interação entre as participantes. As ciborgues publicam os autorretratos nus e outras fazem comentários sobre as fotos, que vão desde elogios até declarações sobre crushes, paqueras e conversas inbox para marcar encontros.
Nesse campo de forças produtivo do poder, a constituição de campos de afetos é intensificada na relação com as tecnologias digitais. Esse processo traz as especificidades das relações de significação da cibercultura. Isso porque os comentários com autorretratos nus acontecem nas redes sociais e apresentam a linguagem própria das relações sociais estabelecidas no ciberespaço, como por exemplo: “chuva de nudes”, “post”, “crushes”, “contatos”. Para Sales (2010, p. 92), a linguagem produzida na cibercultura é “híbrida” e “possui gramáticas próprias”. No caso, a “chuva de nudes” traz uma linguagem que é “visualmente interessante e chamativa” por conter as palavras em caixa alta e entre colchetes, de modo a chamar atenção para a proposta da brincadeira. Para a maior engajamento das participantes, a publicação traz características atrativas. Um dos argumentos atrativos envolve a técnica de segurança de limitar o tempo de permanência da publicação nos grupos.
Parece que as ciborgues só podem fotografar “sem medo” a partir da ação da técnica de segurança, que consiste em apagar a publicação depois de algumas horas. O compartilhamento de nudes é controlado pela permanente ameaça de vazamento. Ameaça que é produtiva nas redes de poder do currículo da nudez, porque incita a fabricação de técnicas de segurança. Esse fato indica que as vivências das ciborgues são constituídas também pela ameaça constante do possível vazamento do autorretrato, chantagens e violências. Nesse sentido, o currículo da nudez é constituído tanto pelas potencialidades de reinvenção que o autorretrato nu propicia quanto pelas assimetrias de poder vivenciadas pelas ciborgues ao divulgarem sua nudez nas redes sociais. Mesmo em um grupo secreto, os autorretratos sofrem vazamentos constantes. Portanto, para atrair mais participantes para a brincadeira, é preciso acionar a técnica de segurança de tornar a publicação temporária.
Considerações finais
Crush, chuva de nudes, afetos, brincadeiras, redes de compartilhamento de nude selfie, flerte e dicas de compartilhamento seguro de autorretrato nu. Todos esses fenômenos foram analisados a partir do desenvolvimento da argumentação de que o currículo da nudez produz a posição de sujeito ciborgue e fruta-de-sermos-nós-mesmas, caracterizadas pela prática de fotografar-se nua e compartilhar seus nudes com crushes por meio de aplicativos digitais. No currículo da nudez, acionam-se brincadeiras que dissidem da heterossexualidade compulsória nas redes sociais e constroem redes seguras de compartilhamento de nude selfie. Foi possível perceber que as multiplicidades curriculares mostram a imprevisibilidade das relações produtivas do poder na sociedade contemporânea interconectada. Novas palavras tornam-se populares na cibercultura para expressar sentimentos, ações e práticas produzidos nas singularidades históricas, espaciais e sociais estudadas. Singularidades essas de um contexto histórico da íntima conexão dos sujeitos com as tecnologias digitais, com as características espaciais do ciberespaço e da cibercultura e segundo a ótica das prescrições e reinvenções produzidas no currículo da nudez.
A positividade desse currículo encontra-se na produção de diferentes modos de ser e de existir. Assim, são fabricados modos de ver, compreender e significar o mundo. Na mesma medida, produzem-se discursos, relações de poder, saber e verdade. Todos esses componentes do currículo estão relacionados, de modo que o discurso produz aquilo que nomeia. E todo discurso produz sujeitos próprios desse discurso. No caso do currículo da nudez, as produções discursivas das posições ciborgue e fruta-de-sermos-nós-mesmas foram relacionadas com os componentes constitutivos desse território curricular. Ciborgues estabelecem íntima conexão com as tecnologias digitais, smartphones, selfies e aplicativos digitais.
Ciborgues apresentam a dimensão produtiva da relação dos sujeitos com dispositivos digitais ao se auto fotografarem e fazerem disso uma prática frequente no jogo de sedução com crushes. No currículo da nudez, divulgam-se os modos de se relacionar com crushes nas redes sociais. Ciborgues produzem formas autorizadas sobre como se auto fotografar, quando mandar a foto, como produzi-la, para quantas pessoas e em quais momentos surge a vontade de enviar autorretrato nu. Nesse campo discursivo, surgem brincadeiras que incitam a relação de práticas afetivas sexuais que dissidem da heterossexualidade compulsória. Surgem cantadas, romances, crushes, contatinhos, sexo casual, sexo pelas redes sociais, a partir dessas brincadeiras. Ainda criam redes de segurança para envio de autorretrato nu, a partir de trocas de experiência sobre formas de uso de aplicativos digitais.
Além das ciborgues, o currículo da nudez ensina modos de ser fruta-de-sermos-nós-mesmas, posição de sujeito na qual se transgridem os imperativos morais e produzem-se prazer, autoestima e política a partir do autorretrato nu. As marcas características dessa posição de sujeito são a autoestima, a vaidade e o prazer de tirar fotografias do próprio corpo nu. Os modos de existência da fruta-de-sermos-nós-mesmas estão em intensa ligação com a produção de relações de sexualidade e de gênero. Assim, no currículo da nudez, a produção de relações de sexualidade inclui admirar o corpo e namorar a si mesma a partir do autorretrato nu. As relações produtivas de gênero encontram-se nas marcas constitutivas da fruta-de-sermos-nós-mesmas, e outros modos de ser mulher são divulgados: mulheres vaidosas e cheias de estima por si mesmas, que saboreiam seus corpos a partir do autorretrato publicado no ciberespaço. Portanto, o currículo da nudez é fruto de um processo que pretende provocar deslocamentos, questionamentos e criações singulares. É um currículo que foge da armadilha do campo das essências deterministas e faz parte de uma perspectiva epistêmica que questiona as normatividades vigentes.
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Notas
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