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EMERGÊNCIAS DA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR EM CURSOS DE LICENCIATURAS EM CIÊNCIAS DA NATUREZA

EMERGENCIES FROM AN INTERDISCIPLINARY PERSPECTIVE IN NATURAL SCIENCES DEGREE COURSES

LAS EMERGENCIAS DESDE UNA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINARIA EN LAS CARRERAS DE LICENCIATURA EN CIENCIAS NATURALES

Jéssica Blank Lopes 1
Universidade Federal do Rio Grande, Brasil
Rafaele Rodrigues de Araujo 2
Universidade Federal do Rio Grande, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 17, núm. 1, e66378, 2024

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 14 Abril 2023

Aprovação: 20 Setembro 2023



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v17i1.66378

Resumo: A pesquisa buscou investigar como os cursos de formação de professores da área de Ciências da Natureza apresentam a perspectiva interdisciplinar, através dos Projetos Pedagógicos de Cursos (PPCs). Para tal, foi realizada uma análise documental em 29 PPCs de diversas regiões do Brasil. Com as análises realizadas, emergiram dois tópicos de debate: os documentos que apresentam uma discussão sobre a perspectiva interdisciplinar e os documentos que não a definiam. A partir das discussões realizadas, argumentamos que o currículo posto apresenta ainda a fragmentação da organização curricular por meio das disciplinas, de forma que, apesar de emergirem cursos que prezam pela interdisciplinaridade na teoria, não explicitam estratégias que possibilitem a mesma na prática. Dessa forma, nos PPCs que apresentam a perspectiva interdisciplinar, seguem trabalhando suas disciplinas de forma segmentada. Sendo assim, mesmo que proponham uma ação interdisciplinar, a organização de seus PPCs não deixa claro uma possibilidade do trabalho interdisciplinar na formação dos futuros docentes.

Palavras-chave: interdisciplinar, ciências da natureza, docentes.

Abstract: The research sought to investigate how the teacher training courses in the area of Natural Sciences present the interdisciplinary perspective, through the Pedagogical Course Projects (PPCs). To this end, a documentary analysis was carried out in which 29 PPCs from different regions of Brazil were analyzed. With the analysis performed, two topics of discussion emerged: the documents that present a discussion about the interdisciplinary perspective and the documents that did not define it. Based on the discussions held, we argue that the proposed curriculum still presents the fragmentation of the curricular organization through disciplines, so that despite the emergence of courses that value interdisciplinarity in theory, they do not explain strategies that make it possible in practice. Thus, the PPCs that present the interdisciplinary perspective, continue working their subjects in a segmented way. Thus, although they propose an interdisciplinary action, the organization of their PPCs does not make clear the possibility of interdisciplinary work in the training of future teachers.

Keywords: interdisciplinary, nature sciences, teachers.

Resumen: La investigación buscó investigar cómo los cursos de formación de profesores en el área de Ciencias Naturales presentan la perspectiva interdisciplinaria, a través de los Proyectos Pedagógicos de Cursos (PPCs). Para ello, se realizó un análisis documental en el que se analizaron 29 PPCs de diferentes regiones de Brasil. Con el análisis surgieron dos temas de discusión: los documentos que presentan un debate sobre la perspectiva interdisciplinar y los documentos que no la definen. A partir de las discusiones, argumentamos que el currículo aún presenta la fragmentación de la organización curricular a través de las disciplinas, de modo que a pesar del surgimiento de cursos que premian la interdisciplinariedad en la teoría, no explicitan estrategias que la posibiliten en la práctica. De esta forma, los PPC que presentan la perspectiva interdisciplinaria, continúan trabajando sus disciplinas de manera segmentada. Por lo tanto, si bien proponen una acción interdisciplinaria, la organización de sus PPC's no deja clara la posibilidad de un trabajo interdisciplinario en la formación de los futuros docentes.

Palabras clave: interdisciplinariedad, ciéncias de la naturaleza, maestros.

Introdução

O termo currículo foi mencionado pela primeira vez por volta do ano de 1633, de acordo com os registros da Universidade de Glasgow, na Escócia. Nesse contexto, o currículo possui como base a referência à estrutura de etapa escolar inteira, seja a nível superior ou da Educação Básica, a ser realizado pelos discentes, conforme salientam Lopes e Macedo (2011).

Ainda que os estudos curriculares apontem diferentes definições para currículo, geralmente esses conceitos estão voltados ao cotidiano escolar (Lopes; Macedo, 2011). Conforme discorre Santomé (1998), mesmo que diferentes autores sinalizem definições para tal, é imprescindível levar em consideração o que está acontecendo historicamente, também em outras esferas. Fazemos essa ressalva, visto que o contexto educacional dentro de cada momento histórico é amplamente relacionado aos processos produtivos e de busca de mão de obra.

De acordo com Roldão (2002), o currículo possibilita o desenvolvimento de competências e ações práticas, sendo um agrupamento de aprendizagens a serem oportunizadas pela instituição. Para Lopes e Delboni (2018), o currículo pode ser compreendido como um documento, elaborado para e na instituição escolar, levando em consideração suas práticas educacionais, os diferentes sujeitos e suas finalidades sociais. Com isso, é possível observarmos que há relação entre a organização estrutural, o currículo e a execução de um plano de estudos.

Explicitamos, de acordo com as ideias de Goodson (2012, p. 21), que “o currículo escrito não passa de um testemunho visível, público e sujeito a mudanças [...] promulga e justifica determinadas intenções básicas de escolarização, à medida que vão sendo operacionalizadas em estruturas e instituições”. Com isso, consideramos o currículo como um documento normativo, que está sempre em movimento, que compreende os objetivos da aprendizagem, da referência de gestão e da organização do conhecimento escolar, que orienta o trabalho dos professores e que envolve os conteúdos estudados, as competências a serem desenvolvidas e as atividades realizadas. Sendo assim, é a base da prática pedagógica como um todo, com o objetivo da formação plena dos estudantes, seja a nível de Ensino Básico ou Ensino Superior.

Isso posto, salientamos que esta é uma pauta que está longe de ser exaurida: o ensino ainda considerado “tradicional” e articulado através de disciplinas desconexas. Do mesmo modo, continuamos trabalhando assim desde o Ensino Básico até os cursos de Ensino Superior, em especial, nos de formação de professores. Ao pensarmos o ensino das disciplinas dentro da área das Ciências da Natureza, esta realidade segue uma constante.

Desde meados dos anos 80, Krasilchik (1987) já apontava que, após a Guerra Fria, o ensino de Biologia já passava a ser visto com outros olhos no Brasil. Naquela década, a ideia era de se contrapor ao ensino tecnicista que buscava a formação de mão de obra para a busca de um ensino que visava maior autonomia do estudante no seu processo de obtenção de conhecimento. Ainda que essa discussão tenha sido abordada pela autora no final da década de 80, essa pauta segue atual dentro do Ensino de Biologia. Mello (2000) observa que a formação de professores continua pautada por uma metodologia dita tradicional e conteudista. Apesar deste ser um tema, de certo modo, bastante debatido e ainda não esgotado.

Nessa perspectiva, Marandino, Selles e Ferreira (2009) observam que a construção dos currículos, sejam eles escolares, em Ciências e Biologia, ou ainda acadêmicos, dentro da área das Ciências Biológicas, são pautados em diferentes perspectivas. Enquanto os do Ensino Básico levam em consideração, especialmente, as necessidades e demandas das escolas, dos alunos e da comunidade ao seu redor, aqueles constituídos nas instituições de Ensino Superior são, por sua vez, guiados por finalidades próprias de cada instituição (Marandino; Selles; Ferreira, 2009).

Nesse aspecto, consideramos que um currículo interdisciplinar na formação de professores seja uma possibilidade de romper com esses arquétipos citados, criados em cima das Ciências Naturais como um todo. Marandino, Selles e Ferreira (2009) também observaram que, em muitos casos, essas disciplinas estão sendo consideradas como desatualizadas e/ou mesmo pautadas em memorização, ante à facilidade de acesso à informação de que dispomos com o advento da internet e seu acesso cada vez mais facilitado. Assim, novos olhares sobre a ação docente, formação inicial de professores e relação com os estudantes estão se tornando cada vez mais importantes para que ocorra a permanência do interesse dos estudantes em sala de aula.

Levando em consideração o currículo e a perspectiva interdisciplinar, Fazenda (2013) observa que podemos definir interdisciplinaridade de duas formas. A primeira, pensando apenas na junção de disciplinas, em que se cabe pensar o currículo de acordo com a construção de seu quadro, de forma bastante simplista. Já a segunda perspectiva, compreende a interdisciplinaridade como uma atitude de ousadia e busca diante do conhecimento. Nesse caso, cabe pensar aspectos dos locais de onde são formados novos professores. Assim, a referida autora questiona: “Como a interdisciplinaridade se define quando a intenção é formar professores?” (Fazenda, 2013, p. 22). Desse modo, apontamos diferentes visões acerca da interdisciplinaridade para embasar a discussão ao longo do texto.

A interdisciplinaridade, como um movimento corrente, manifesta-se na perspectiva da dialogicidade e da união do conhecimento e das ciências (Thiesen, 2008). Para Fazenda (2011, p. 73), a “interdisciplinaridade é um termo utilizado para caracterizar a colaboração existente entre disciplinas diversas ou entre setores heterogêneos de uma mesma ciência [...]”. Dessa forma, refletimos sobre as práticas e as vivências do cotidiano escolar de forma mais complexa e abrangente. Nessa mesma perspectiva, Japiassu (1976) observa que a interdisciplinaridade surge como uma oposição ao conhecimento sistematizado e fragmentado vigente na época e, ainda, até os dias de hoje.

No que tange a prática interdisciplinar, salientamos, inicialmente, as ideias de Fazenda (2011), em que a autora aponta a interdisciplinaridade como algo que “[...] não se ensina, nem se aprende: vive-se, exerce-se” (Fazenda, 2011, p. 17). Além disso, de acordo com a autora, a interdisciplinaridade está ligada à "questão do conhecimento, da abertura à compreensão de aspectos ocultos, do ato de aprender e dos aparentemente expressos, colocando-os em questão” (Fazenda, 2011, p. 21).

Com essas discussões em mente, investigamos como os cursos de formação de professores da área de Ciências da Natureza apresentam a perspectiva interdisciplinar, através dos Projetos Político Pedagógicos (PPCs). Para isso, realizamos uma análise documental de 29 PPCs de cursos de formação de professores, a qual apresentamos no próximo tópico. Vale salientar que o presente artigo se trata de um recorte da pesquisa de mestrado e virá a compor a versão final da dissertação posteriormente.

Percurso metodológico

A investigação ocorreu por meio de uma abordagem qualitativa, haja vista que os dados aqui descritos foram analisados como situações particulares e específicas, buscando uma compreensão mais aprofundada sobre os mesmos (Minayo; Deslandes; Gomes, 2016). Ludke e André (2017) salientam que este tipo de interpretação se preocupa mais com o processo do que com o produto, buscando, então, o significado que as pessoas dão às coisas.

Inserida nessa abordagem qualitativa, o método utilizado foi a análise documental. De acordo com Severino (2016), documento é todo objeto que se torna suporte material de uma informação que nele é fixada mediante técnicas especiais. Desse modo, torna-se uma fonte duradoura de informação acerca do episódio investigado.

Ainda nesse sentido, os documentos constituem-se como uma fonte poderosa de informações, de modo que podem ser consultados diversas vezes e utilizados para dar voz a diferentes estudos, convertendo-se em uma matriz estável de análise. Com isso, o investimento para diagnóstico do material geralmente requer apenas o tempo e atenção por parte do pesquisador interessado (Ludke; André, 2017; Rampazzo, 2002; Severino, 2016).

Nesse sentido, a fonte de dados utilizada para a investigação foi a página do Cadastro Nacional de Cursos e Instituições de Ensino Superior – Cadastro e-MEC. Nessa página, buscamos encontrar os cursos de licenciatura voltados à formação de professores da área de Ciências da Natureza os quais buscam proporcionar a vivência da perspectiva interdisciplinar na formação dos estudantes.

Para encontrarmos os cursos, cujos Projetos Político Pedagógicos (PPC) constituem o material de análise deste trabalho, foram utilizados os seguintes filtros: “Curso de Graduação”; “Gratuidade – sim”; “Presencial”; “Licenciatura” e, por fim, “Situação – em atividade”. Tais filtros foram aplicados na busca de todos os cursos da área de Ciências da Natureza que foram avaliados. Ainda dentro desse contexto, vale frisar que foram desconsiderados os cursos de graduação oriundos de Institutos Federais, bem como Licenciaturas do Campo.

Os termos de pesquisa utilizados foram: “Licenciatura em Ciências da Natureza”, “Licenciatura em Ciências”, “Licenciatura em Ciências Biológicas”, “Licenciatura em Biologia”, “Licenciatura em Química”, “Licenciatura em Física” e “Licenciatura em Ciências Naturais”. Após a investigação inicial dos termos, buscamos o site oficial de cada curso apresentado e realizamos um novo levantamento, buscando informações acerca do viés interdisciplinar, ou não, de cada um dos PPCs encontrados.

A busca foi realizada de forma individual em cada PPC, inicialmente no modo de pesquisa no documento, por meio dos termos: “Interdisciplinaridade” e “Interdisciplinar”. Foram selecionados 39 cursos que se enquadravam nos parâmetros mencionados, mas a análise foi realizada em somente 29 documentos, sendo aqueles a que tivemos acesso, conforme consta no Quadro 1. Essa diferença entre selecionados e analisados se deu pelo fato de que os cursos não disponibilizavam o PPC em sua página oficial e/ou não responderam ao e-mail de solicitação do documento.

Quadro 1
Cursos, instituições e codificação dos PPC’s emergentes
Curso Instituição Código
Licenciatura em Ciências da Natureza UNIPAMPA 01
Licenciatura em Ciências Naturais (ênfase em Biologia) UFF 02
Licenciatura em Ciências Naturais (habilitação em Biologia) UEAP 03
Licenciatura em Ciências UFPR 04
Licenciatura em Ciências UNIFESP 05
Licenciatura em Ciências Biológicas UEMG 06
Licenciatura em Ciências Biológicas UEMG 07
Licenciatura em Ciências Biológicas UEMG 08
Licenciatura em Ciências Biológicas UEMG 09
Licenciatura em Ciências Biológicas UEMG 10
Licenciatura em Ciências Biológicas UEMG 11
Licenciatura em Ciências Exatas USP 12
Licenciatura em Ciências Naturais e Matemática UFMT 13
Licenciatura em Ciências Naturais e Matemática – Química UFMT 14
Licenciatura em Ciências Naturais UEPA 15
Licenciatura em Ciências: Química e Biologia UFAM 16
Licenciatura em Ciências Naturais UEMASUL 17
Licenciatura em Ciências da Natureza UNIVASF 18
Licenciatura em Ciências da Natureza UNILA 19
Licenciatura em Ciências da Natureza UNIPAMPA 20
Licenciatura em Ciências da Natureza UNIPAMPA 21
Licenciatura em Ciências da Natureza UNIVASF 22
Licenciatura em Ciências Naturais e Exatas UFABC 23
Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais e Matemática UFCA 24
Licenciatura Plena em Ciências Naturais UFPA 25
Licenciatura Interdisciplinar em Ciências Naturais / Biologia UFMA 26
Licenciatura em Ciências Naturais UnB 27
Licenciatura Integrada em Biologia e Química UFOPA 28
Licenciatura Interdisciplinar em Ciências da Natureza e suas Tecnologias UFSB 29
Fonte: Elaborado pelas autoras, com base nos projetos políticos pedagógicos de cursos de graduação em licenciaturas dentro das áreas das Ciências da Natureza alocados em universidades federais ou estaduais.

No Quadro 1, explicitamos o levantamento que abarca os PPCs de cursos de graduação em licenciaturas, dentro das áreas das Ciências da Natureza, os quais estão alocados em universidades federais ou estaduais. Além disso, são cursos presenciais, à exceção do período de atividades remotas devido ao COVID-19[1], gratuitos e estão em atividade.

Salientamos que o material de análise do trabalho é formado por cursos oriundos de 13 estados brasileiros e do Distrito Federal, conforme mostramos no Quadro 2.

Quadro 2
Detalhamento do material de análise por Estado.
Estado Número de Cursos
AP 3
AM 1
BA 1
PR 2
CE 3
Distrito Federal 1
MA 2
MG 6
MT 2
PA 3
PR 2
RJ 1
RS 3
SP 3
Fonte: Elaborado pelas autoras, com base nos projetos políticos pedagógicos de cursos de graduação em licenciaturas dentro das áreas das Ciências da Natureza alocados em universidades federais ou estaduais.

Dessa forma, o material de análise foi composto por cursos procedentes das cinco regiões de divisão do território brasileiro, sendo: região Sudeste com 10 cursos, Nordeste com 6, Norte e Sul com 5 cursos cada e região Centro- Oeste com 3 cursos. Ressaltamos que os PPCs analisados possuem versões datadas entre os anos de 2009 e 2020.

Os documentos analisados não apresentam uma configuração padrão entre tópicos, já que cada instituição constrói o PPC de acordo com suas particularidades. Desse modo, os resultados apresentados não retratam comparações diretas entre tópicos específicos, mas apontamentos pertinentes aos tópicos que constam na construção desses documentos.

Destarte, ao realizarmos o levantamento, leitura e análise acerca dos documentos aqui citados, atentamos ao ponto de que todos os PPCs, em algum tópico ao longo de sua construção, discorrem sobre interdisciplinaridade. Com base na observação de que todos os PPCs, em algum momento, citam a interdisciplinaridade, emergem duas questões que se tornam norteadoras para a nossa discussão: “Os PPCs apontam definição para interdisciplinaridade?” e “Os PPCs não apontam definição para interdisciplinaridade?” Isto é, todos os documentos, ao menos, citam a interdisciplinaridade ao longo da sua construção, então qual o viés teórico por trás da visão do curso? Como este curso pensa a interdisciplinaridade? Ou ainda, será que este curso aponta para tal direção?

Buscaremos, portanto, responder a essas questões e ampliar a visão acerca da temática e analisar de maneira mais crítica os PPCs de cada curso para trazemos definições da perspectiva interdisciplinar de acordo com diferentes autores, entrelaçados com recortes dos documentos analisados.

Discussão dos resultados

Documentos norteadores sem definição da perspectiva interdisciplinar

Após a análise individual dos PPCs em questão, observamos um ponto em comum entre a maioria dos documentos. Mais especificamente, em 26 dos 29 PPCs analisados, observamos a falta de definição para interdisciplinaridade. Isto é, ainda que esses cursos tragam a temática ao longo da construção de seus documentos norteadores, esses não apontam uma definição de como compreendem e em quem se balizam para formalizar a interdisciplinaridade em seus currículos, como se pode notar a partir de alguns exemplos a seguir:

O Projeto Político Pedagógico (PPP) do Setor Litoral baseia-se na perspectiva interdisciplinar da construção do conhecimento, sem negligenciar a formação humana de seus estudantes (Universidade Federal do Paraná, 2014, p. 7, grifo nosso).

[...] considerando a Resolução CNE/CP 2/2015, exige um profissional que se comprometa com valores inspirados na sociedade democrática, compreenda o papel social da escola, domine os conteúdos a serem socializados bem como seu significado em diferentes contextos e sua articulação interdisciplinar, domine o conhecimento pedagógico, tenha conhecimento dos processos de investigação que possibilitem o aperfeiçoamento da prática pedagógica e gerencie o próprio desenvolvimento profissional (Universidade do Estado de Minas Gerais, 2016, p. 24, grifo nosso).

Nesse sentido, o presente curso se propõe a dar uma formação interdisciplinar tal que o aluno, ao concluir todo o curso, possa atuar como professor de ciências e matemática para o ensino fundamental e Química para o ensino médio, cumprindo assim com sua função social de democratização da educação superior e de desenvolvimento social, cultural e tecnológico, e também com seu papel em qualificar professores em nível superior para o Ensino Fundamental e Médio (Universidade Federal do Mato Grosso, 2020, p. 10, grifo nosso).

Nesse caso, percebemos que nesses documentos a definição de interdisciplinaridade não fica explícita, mas, ao menos em algum de seus tópicos, seja em 04, a dita formação interdisciplinar aparece nos seguintes tópicos: “Orientações fundamentais do PPP do setor litoral”, “Apresentação”, e em algumas ementas de disciplinas, como “construção de projetos de aprendizagem interdisciplinar”, neste caso, sem maiores definições. No documento 06, a interdisciplinaridade é discutida em “Competências e habilidades”, “Prática de formação docente”, “Núcleo docente estruturante”, “Incentivo à docência (PIBID) e em algumas ementas de disciplina, novamente, sem maiores definições. No PPC 14, a interdisciplinaridade é apresentada em “Introdução”, “objetivos do curso”, “Proposta de fluxo curricular”, “Metodologia de ensino e aprendizagem”, nomes de laboratórios, entre outros.

Isto é, observamos que todos eles apontam a interdisciplinaridade na formação dos seus profissionais, porém, sem maiores definições e, como se pode observar, em diferentes tópicos ao longo da construção de cada documento, conforme recortes abaixo. Nesse sentido, uma vez que não fica claro o referencial que baseia a discussão da interdisciplinaridade em seus currículos, questionamos: como seria a formação de um profissional pautado na interdisciplinaridade para esses cursos?

Um dos primeiros autores a discutir a temática em território brasileiro foi Hilton Japiassu, a partir de meados dos anos 70. Em 1976, o autor já expunha em seus escritos a ideia de que a interdisciplinaridade poderia ser definida como uma crítica à compartimentação e às fronteiras vigentes dentro das disciplinas. Com isso, essas discussões já apontavam para uma tentativa de rompimento com a organização tradicional do saber, conforme salienta o referido autor ao afirmar que “[...] o fato é que esta se apresenta, hoje, como uma oposição sistemática a um tipo tradicional de organização do saber, o que constitui um convite a lutar contra a multiplicação desordenada das especialidades e das linguagens particulares nas ciências” (Japiassu, 1976, p. 54).

Ao explorarmos o material de análise, observamos que esses cursos seguem pautados nesse método tradicional a que Japiassu já tecia críticas na década de 70. Explicitamos, em um recorte do PPC do curso 02, que o tópico “organização curricular” traz uma discussão sobre a formação dos acadêmicos em relação aos conteúdos específicos.

A fim de garantir uma sólida formação nos conteúdos específicos é previsto na proposta curricular um núcleo fixo de disciplinas. [...] Esses conteúdos buscam oferecer uma base de conhecimentos que assegure ao futuro professor de Ciências Naturais/Biologia uma formação interdisciplinar, plena e satisfatória, habilitando-o a atuar no segundo segmento do Ensino Fundamental e Ensino Médio (Universidade Federal Fluminense, 2018, p. 13, grifo nosso).

Contudo, ainda que o documento aponte a uma proposta que busca a formação interdisciplinar de professores de Ciências Naturais, na área específica das Ciências Biológicas, o próprio currículo do curso é pautado por disciplinas que não dialogam entre si, com exceção daquelas que são relacionadas a um mesmo tema. Observamos, no documento, que as disciplinas são apresentadas e separadas por “conteúdos de estudos”, como, por exemplo: Física, Química, Biologia, Geociências, Metodologia Científica, Educação em Ciências, Conteúdos Integradores, entre outros. Além disso, o curso 02 está entre aqueles que não conceituam sua visão de como seria esse profissional interdisciplinar, e, tampouco, aponta em suas disciplinas a interdisciplinaridade, citando-a apenas de modo generalizado. Podemos mencionar também os PPCs dos cursos 09, 22 e 23 que, do mesmo modo, não conceituam a interdisciplinaridade.

Nas atividades de planejamento, que antecedem o início do período letivo e nas reuniões do colegiado do curso, realizadas durante o ano, os docentes identificam tópicos que podem ser abordados de forma interdisciplinar, construindo uma visão geral e multidisciplinar de um objeto de estudo. [...] As disciplinas Didática, Oficina Pedagógica para o Ensino Fundamental (séries finais) e Oficina Pedagógica para o Ensino Médio contribuem com a formação do discente por meio da interdisciplinaridade, iniciando o futuro profissional na construção do conhecimento com uma visão do todo, além de possibilitar a aliança entre teoria e prática (Universidade do Estado de Minas Gerais, 2016, p. 98, grifo nosso).

A avaliação, nesse contexto, configura-se como atividade relevante para a realização de um processo educativo pautado na interdisciplinaridade, na multidisciplinaridade, na investigação e na contextualização das atividades e temáticas discutidas (Universidade Federal do Vale do São Francisco, 2012, p.71, grifo nosso).

O formado pelo curso de Licenciatura em Ciências deverá também ser capaz de encarar um objeto de estudo de modo multidisciplinar e de enfocá-lo no contexto de ensino e aprendizagem também de forma interdisciplinar (Universidade Federal do Pará, 2010, p. 23, grifo nosso).

Conforme observamos nesses extratos, além de não apontarem a definição, os documentos ainda não distinguem interdisciplinaridade e multidisciplinaridade, como percebemos nos PPCs 22 e 23. De acordo com Morin (2001), a multidisciplinaridade baseia-se na associação de disciplinas, a partir de um objeto ou projeto que lhes venha a ser comum. Para Zabala (2002), a multidisciplinaridade é a organização mais tradicional das disciplinas, em matérias independentes umas das outras, sem uma manifestação explícita das suas relações. Nesse caso, reunimos os resultados de diversas disciplinas a respeito de uma determinada temática, sem que venha a emergir uma nova concepção sobre. Já a interdisciplinaridade, conforme define Fazenda (2002):

é uma nova atitude diante da questão do conhecimento, de abertura à compreensão de aspectos ocultos do ato de aprender [...] A interdisciplinaridade pauta-se numa ação em movimento. Pode-se perceber esse movimento em sua natureza ambígua, tendo como pressuposto a metamorfose, a incerteza (Fazenda, 2002, p. 180).

Nessa perspectiva, diferente da multidisciplinaridade, em que não se manifesta um novo conceito a partir do diálogo entre duas disciplinas ou mais, na interdisciplinaridade, a partir do momento em que ocorre essa metamorfose disciplinar, vemos aflorar uma nova concepção sobre determinado tema.

Outra ressalva que realizamos se refere-se à maneira como são citadas, tanto a interdisciplinaridade quanto a multidisciplinaridade, sendo que no documento 09 fazem parte dentro dos objetivos do curso, bem como em “forma de realização da interdisciplinaridade”, e, no documento 22, aparecem como uma mescla de conceitos dentro dos processos avaliativos. Destacamos ainda que no PPC 09 são previstas três disciplinas que “contribuem com a formação do discente por meio da interdisciplinaridade”. Todavia, ao retomarmos a leitura do documento, percebemos que nenhuma dessas disciplinas aponta em suas ementas bibliografia pertinente ao tema, ficando implícita a discussão da temática.

Japiassu (1976) salienta que, antes de falarmos em “objetivos” da interdisciplinaridade, devemos falar em “objetos” da interdisciplinaridade. Esses abarcam uma crítica universitária do saber, visando a exploração das fronteiras e zonas intermediárias entre as disciplinas, bem como a busca de uma possível readequação das atividades universitárias às exigências econômicas ou ainda socioprofissionais (Japiassu, 1976). Nesse sentido, a interdisciplinaridade surge a partir das ânsias de como diminuir o distanciamento entre as disciplinas.

Nessa perspectiva, explicitamos fragmentos dos PPCs 12, 16 e 28, que ressaltam os seus objetivos de curso ou, no que tange ao perfil do profissional egresso, aspectos que buscam a interdisciplinaridade, mas sem deixar claro seus entendimentos sobre esse conceito. Além disso, salientamos, em especial, o recorte do PPC 28 que, no mesmo parágrafo em que aponta que seus conteúdos devem promover a interdisciplinaridade, realiza novamente uma separação em disciplinas.

Entende-se que esses objetivos serão atingidos pelos futuros professores se, já no seu curso de formação inicial encontrarem um ambiente de interdisciplinaridade, de transversalidade, de contextualização e de integração das diversas áreas em projetos de ensino (Universidade de São Paulo, 2017, p. 7, grifo nosso).

A formação desse profissional deverá superar as contradições que o educador encontra em seu espaço de ação. A organização curricular de seu próprio curso é a busca por uma visão integralizadora e interdisciplinar do conhecimento humano. O grande desafio mediante a uma proposta de formação que integre competência técnica, humana e compromisso político é a superação das dicotomias teoria e prática, discurso e atuação, conhecimentos cristalizados e interdisciplinaridade (Universidade Federal do Amazonas, 2009, p. 5, grifo nosso).

Dessa forma, os conteúdos curriculares são apresentados de maneira a promover a interdisciplinaridade nesta etapa inicial. Nas etapas seguintes, o profissional a ser formado possuirá diversas competências e habilidades na área das Ciências Naturais, em especial Biologia e Química (Universidade Federal do Oeste do Pará, 2017 p. 27, grifo nosso).

Outro ponto que destacamos se dá quando encontramos a interdisciplinaridade, em diferentes PPCs, dentro do tópico “Competências e Habilidades”, como no caso dos documentos 01 e 11, ou ainda dentro das “competências do NDE”, em que se trata, neste caso, do corpo docente envolvido com o curso, como emerge no PPC 10. Nesses exemplos, de acordo com recortes abaixo, observamos que esses documentos tornam a interdisciplinaridade como uma competência do profissional a ser formado.

Capacitar os saberes de sua área de conhecimento e outras áreas, bem como das tecnologias atuais, sendo capaz de pôr em prática a interdisciplinaridade (PPC 01, 2015, p. 20, grifo nosso).

Capacitar os saberes de sua área de conhecimento e outras áreas, bem como das tecnologias atuais, sendo capaz de pôr em prática a interdisciplinaridade (PPC 01, 2015, p. 20, grifo nosso).

Zelar pela integração curricular interdisciplinar entre as diferentes atividades de ensino constantes no currículo (PPC 10, 2016, p. 103, grifo nosso).

Atuar multi e interdisciplinarmente, interagindo com diferentes especialidades e diversos profissionais, de modo a estar preparado para a contínua mudança do mundo produtivo[...] (Universidade do Estado de Minas Gerais, 2015, p 20).

No tocante a esse fato, Ricardo (2005) salienta essa relação direta que, muitas vezes, ocorre entre competências e a interdisciplinaridade, especialmente dentro dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), conforme observamos a seguir:

Essa visão é reforçada pelas declarações dos autores dos PCN e PCN+, para os quais as competências e habilidades é que irão proporcionar a interdisciplinaridade e que a exploração de uma situação dentro do contexto exigirá ultrapassar os limites das disciplinas, sem as negar (Ricardo, 2005, p. 204).

De modo prático, a interdisciplinaridade e as competências são, na verdade, caminhos um tanto quanto sedutores na busca de soluções para resolver o fracasso escolar (Ricardo, 2005), mas não devem ser confundidas como sinônimos na atividade docente, nem apontadas como possibilidades contrárias às disciplinas. Ressaltamos que as disciplinas não vão e nem devem deixar de existir, porém podem servir como base para o trabalho interdisciplinar e para a busca pelas competências.

Novamente, falando em autores precursores, passamos a dialogar com as ideias de Ivani Fazenda que, desde a década de 70, está à frente de diversos estudos acerca de diferentes perspectivas pedagógicas interdisciplinares. A autora afirma que:

A primeira condição de efetivação da interdisciplinaridade é o desenvolvimento da sensibilidade, neste sentido tornando-se particularmente necessária uma formação adequada que pressuponha um treino na arte de entender e esperar, um desenvolvimento no sentido da criação e da imaginação. A importância metodológica é indiscutível, porém é necessário não fazer dela um fim, pois interdisciplinaridade não se ensina nem se aprende, apenas vive-se, exerce-se e, por isso, exige uma nova pedagogia, a da comunicação (Fazenda, 2011, p.11).

Nessa mesma linha de raciocínio, Trindade (2013) discorre que a prática interdisciplinar pressupõe uma desconstrução e uma ruptura com o cotidiano escolar voltado a tarefas. Tal prática busca um movimento interdisciplinar pautado por atitudes frente ao conhecimento e busca, na sua prática, o “eu” convivendo com o “outro” de forma flexível, com diálogo, compartilhamento, transformações e encontro, ainda assim, sem abrir mão de suas próprias características (Trindade, 2013).

Isso posto, atentamos para a importância da formação adequada à capacidade de um fazer interdisciplinar. Ainda que nenhum profissional seja formado para atuar dessa forma, ele deve ser aberto a essa possibilidade. Aliado a isso, Fazenda (2011) ressalta que existem cinco princípios que servem como norte aos docentes que buscam atuar de forma interdisciplinar: espera, respeito, coerência, humildade e desapego (Fazenda, 2011).

De acordo com a referida autora, o docente em questão deve mobilizar a espera, o tempo da escuta ante aos atos não realizados. Deve incitar respeito pelas pessoas e por si próprio. Precisa estabelecer coerência entre sua fala e sua prática. Necessita agir com humildade ante os limites de seu próprio saber, ante suas limitações e ter visão de que é possível superá-los. E, por fim, deve estar aberto ao desapego de suas certezas, buscando, na troca com o outro, aluno ou professor, a abertura frente a novas possibilidades do pensar e do fazer, tornando possível, assim, a interdisciplinaridade na prática desses docentes.

No que diz respeito à formação acadêmica e científica, Masetto (2018) salienta que ainda seguimos marcados pela dimensão disciplinar. Nossos cursos de graduação e de pós-graduação, independentemente da área de formação, ainda são pautados por disciplinas justapostas de maneira linear, que utilizam de pré-requisitos entre disciplinas e planejamentos nos quais não há dependência entre elas (Masetto, 2018). Ainda que existam cursos que sejam pautados, de fato, no trabalho interdisciplinar, sabemos que esses cursos ainda são uma minoria entre as graduações.

Essa estrutura pautada em disciplinas ainda desconexas é facilmente perceptível dentro dos documentos analisados. Esses não explicitam disciplinas que sejam focadas na interdisciplinaridade, as quais seguem sendo divididas por eixos ou áreas de estudo, conforme PPC 05, que segmentasuas disciplinas entre núcleos formativos, o PPC 13, que as subdivide em núcleos e eixos, e o PPC 30, que as divide em blocos.

Seguindo essa linha de raciocínio, essa formação que segue ocorrendo vai de encontro ao que se espera de profissionais na sociedade contemporânea ou, ainda, ao que buscam as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Básica, quando a mesma aponta que:

Interdisciplinaridade que supere a fragmentação de conhecimentos e a segmentação da organização curricular disciplinar (BRASIL, 2013, p. 230) [...] A interdisciplinaridade, portanto, deve ir além da justaposição de componentes curriculares, abrindo-se para a possibilidade de relacioná-los em atividades ou projetos de estudos, pesquisa e ação, para dar conta do desenvolvimento de saberes que os conduzem ao desenvolvimento do perfil profissional de conclusão planejado para o curso (Brasil, 2013. p. 245).

Ressaltamos que a academia continua atuando, a partir de saberes fragmentados (Masetto, 2018), independentemente se estamos nos referindo a cursos de formação de professores ou não. Considera-se que a linearidade e a independência entre as disciplinas é a mesma. Com isso, percebemos que, mesmo que essas discussões já ocorram há aproximadamente 60 anos no Brasil, ainda continuamos formando profissionais por meio da disciplinaridade.

Destarte, entendemos que a abertura do profissional a atuar de tal forma é tão importante quanto uma formação acadêmico-profissional que seja pautada a partir de um viés interdisciplinar. Aquele indivíduo que se abre ao movimento e ao novo busca sair da linearidade com a qual estamos previamente acostumados a atuar.

Ao partirmos para a análise dos documentos, observamos a falta de diálogo e de definições acerca da interdisciplinaridade. Além disso, ressaltamos a ausência de disciplinas que tragam essa pauta para a construção do percurso formativo docente e de maiores relações entre as disciplinas, mesmo que sejam pautadas em eixos, blocos ou núcleos formativos.

Documentos norteadores com definição da perspectiva interdisciplinar

Como discutimos anteriormente, a maioria dos PPCs analisados não apresentam uma conceituação formalizada em suas escritas a respeito da interdisciplinaridade, de forma a ficar implícita na prática docente. No entanto, observamos que 3 cursos apontaram definições sobre a interdisciplinaridade em seus documentos norteadores.

Destacamos que os PPCs apresentam sua definição de forma distinta na composição do referido documento. O PPC 19 expõe esse conceito dentro da introdução, trazendo diferentes autores que servem como elementos balizadores da construção do documento, conforme observamos no recorte a seguir:

Interdisciplinaridade é a interação de duas ou mais disciplinas. Essas interações podem implicar transferências de leis de uma disciplina a outra, originando, em alguns casos, um novo corpo disciplinar, como, por exemplo, a bioquímica ou a psicologista (Zabala, 2002, p. 33). Interdisciplinaridade se estabelece uma interação entre duas ou mais disciplinas; em que cada disciplina em contato é modificada e passa a depender, claramente, das outras. O enriquecimento é recíproco e acontece uma transformação de suas metodologias de pesquisa e de seus conceitos (Pimenta, 2002, p. 28). (Fazenda, 2002, p. 1).

[...] a interdisciplinaridade aparece como o instrumento e a expressão de uma crítica interna do saber, como um meio de superar o isolamento das disciplinas como uma maneira de abandonar a pseudo-ideologia da independência de cada disciplina [...] bem como superar o fosso que ainda separa a universidade da sociedade (Japiassu, 1976, p. 57; Universidade Federal da Integração Latino-Americana, 2014, p. 6, grifo nosso).

Nesse sentido, observamos que este documento utiliza, em sua definição, autores que apontam para uma abordagem mais instrumental, como Zabala e Pimenta. Lenoir e Hasni (2004) discorrem sobre três diferentes lógicas da interdisciplinaridade e seu uso na educação. A primeira, europeu-francófono, de dimensões epistemológicas, busca os significados, já a segunda, norte-americano anglófono, instrumental, busca a funcionalidade. E, por fim, a mais utilizada em território brasileiro, sob uma perspectiva fenomenológica, é a subjetiva (Lenoir; Hasni, 2004).

Sendo assim, ao levarmos em consideração a lógica instrumental que emerge, o PPC 19 aponta um viés preocupado com a capacidade de atuação sobre o mundo.

[...] o que leva o ser humano à liberdade não está diretamente relacionado ao conhecimento, mas à capacidade de agir no e sobre o mundo, ou seja, educar equivale a instrumentalizar em um duplo sentido: o da prática e o que das relações humanas e sociais (Lenoir; Hasni, 2004, p. 173, grifo nosso).

Nesse contexto, a interdisciplinaridade baseia-se sobretudo nas interações sociais externas, pois é pensada em termos de busca de respostas operacionais às questões colocadas na sociedade. Focada na resolução de problemas sociais, pode-se falar, então, de uma interdisciplinaridade de projetos em que o conhecimento requerido é imediatamente útil e operacional (Lenoir; Hasni, 2004, p. 175, grifo nosso).

Já o PPC 24 aponta uma definição para interdisciplinaridade, porém sem o uso de autores para tal. Percebemos, no recorte realizado, que o curso tenta mostrar como a interdisciplinaridade faz parte da sua construção, mesmo que não seja pautado por um autor em específico.

A interdisciplinaridade se apresenta como instrumento essencial para a promoção de uma formação integrada e em harmonia com a realidade atual. As mudanças sociais, cada vez mais, exigem uma formação cidadã crítica e reflexiva. Nesse sentido, o aspecto interdisciplinar, pressupõe a desfragmentação dos saberes, a refutação das áreas isoladas de produção do conhecimento e, acima de tudo, a desalienação intelectual no campo da pesquisa científica. Trabalhar com interdisciplinaridade é um desafio, pois atribuem para o curso uma formação compartilhada por grupos de pesquisa, redes de saberes, sem desconectar-se dos problemas emergentes. Além de construir novas posturas diante do conhecimento, realizando um trabalho articulado entre as diferentes áreas que compõem o currículo do curso (Universidade Federal do Cariri, 2015, p. 17, grifo nosso).

Compreendemos que, mesmo o PPC 24 não se utilizando de autores para dialogar com a interdisciplinaridade, se mostra presente a lógica subjetiva. Lenoir e Hasni (2004) ressaltam que, no cerne dessa concepção, está a natureza pertencente ao ser humano da interação (Lenoir; Hasni, 2004).

Como visto nos PPCs anteriores, a dimensão instrumental e subjetiva se fazem presentes nas definições apresentadas. No entanto, o PPC 26 expõe sua definição de interdisciplinaridade a dimensão racional, em que se refere ao conhecimento padronizado do sistema de disciplinas, mais comum na Europa francófona. Nesse caso, de acordo com Lenoir e Hasni (2004), observamos que, nessa perspectiva, a ação busca por significado e se relaciona mais diretamente com as disciplinas.

Encontra-se no cerne da perspectiva epistemológica (ou filosófica em certos casos) e refere-se ao sistema de disciplinas científicas. Da mesma forma, a interdisciplinaridade é abordada a partir das interações internas de suas disciplinas (Lenoir; Hasni, 2004, p. 173).

O referido documento traça um paralelo com as ideias de Edgar Morin por meio do pensamento complexo. Salientamos que as discussões sobre interdisciplinaridade a partir dos princípios do pensamento complexo nos remete às reflexões sobre as possibilidades de integração disciplinar da transdisciplinaridade e não da interdisciplinaridade, como feito no documento.

Para Lück (1994, p. 13-14), “a interdisciplinaridade é uma dessas ideias-força que, embora não seja recente, agora se manifesta a partir de enriquecimento conceitual e da consciência cada vez mais clara da fragmentação criada e enfrentada pelo homem em geral e, pelos educadores, em especial, em seu dia-a-dia. Em relação a essa mesma fragmentação rompeu-se o elo da simplicidade e estabeleceu-se a crescente complexificação da realidade, fazendo com que o homem se encontre despreparado para enfrentar os problemas globais que exigem dele não apenas uma formação polivalente, mas uma formação orientada para a visão globalizada da realidade e uma atitude contínua de aprender a aprender. O ensino, sendo ele próprio uma expressão do modo como o conhecimento é produzido, também se encontra fragmentado, eivado de polarizações competitivas, marcado pela territorialização de disciplinas, pela dissociação das mesmas em relação à realidade concreta, pela desumanização dos conteúdos fechados em racionalidades auto-sustentadas, pelo divórcio, enfim, entre vidas plenas e ensino (Universidade Federal do Maranhão, 2013, p. 12, grifo nosso).

No âmbito filosófico, a sustentação do conceito de interdisciplinaridade se dá pelo pensamento complexo que possibilita repensar a prática pedagógica a partir da seguinte questão posta pela teoria da complexidade: quais são as possibilidades ainda não exploradas de complexidade? (Morin, 1999, p. 309). Para o mesmo autor (1999, p. 176), a complexidade não é receita, nem resposta. É um desafio e uma motivação para pensar. Não é completude, mas a incompletude do conhecimento (Universidade Federal do Maranhão, 2013, p. 13, grifo nosso).

No mesmo sentido, observamos que este documento, para além de trazer o pensamento complexo junto ao interdisciplinar, traz o questionamento: “quais são as possibilidades ainda não exploradas de complexidade? (Morin, 1999, p.309)”. Isto é, para além do diálogo entre pensamento complexo e interdisciplinaridade, que não seria exatamente o apontamento correto, o mesmo não aponta maiores definições e discussões sobre o pensamento complexo. Ou seja, a partir de uma abordagem pouco aprofundada sobre as temáticas, o documento talvez necessite de conhecimentos prévios acerca desses temas para ser melhor compreendido.

Dessa forma, salientamos as diferenças de percepção entre cada documento, sendo que cada um deles discorre sobre a interdisciplinaridade de forma independente e utilizando-se parâmetros norteadores distintos: autores base, notas de rodapé ou texto próprio. Embora os cursos citados apresentem definições que servem como princípios norteadores, as disciplinas seguem sendo trabalhadas de forma tal qual apresentadas nos cursos que não apontam essa definição.

Nessa perspectiva, os cursos seguem sendo formatados conforme as palavras de Masetto (2018), de forma fragmentada e divididos em disciplinas. Não que esta seja uma organização considerada negativa, porém, em se tratando de cursos que, em teoria, visam à interdisciplinaridade, essa organização não pressupõe uma efetividade do trabalho interdisciplinar.

Considerações finais

Buscamos compreender como os cursos de formação de professores da área de Ciências da Natureza apresentam a perspectiva interdisciplinar através dos Projetos Político Pedagógicos. Ainda que os documentos tenham sido analisados de forma a diferenciá-los entre aqueles que discutem ou não definições acerca da perspectiva interdisciplinar, percebemos que a presença do conceito no documento não é algo de relevância direta. Significamos esse fato, visto que a composição desses documentos não sofreu grandes diferenciações para além da conceituação de interdisciplinaridade.

No que tange a análise da construção do curso, em ambos os casos, as disciplinas seguem sendo trabalhadas de forma segmentada. Sendo assim, ainda que proponham uma ação interdisciplinar, a organização de seus PPCs não deixa claro uma possibilidade do trabalho interdisciplinar na formação dos futuros docentes. Nesse caso, emerge o presente questionamento: na formação de professores, pautada na perspectiva interdisciplinar, essa definição presente no PPC se faz tão importante? Compreendemos que somente a presença de tal acepção talvez não possibilite uma mobilização no fazer docente de um curso de formação de professores, dado que a efetivação da interdisciplinaridade ocorre por meio de um processo atitudinal.

Ademais, alguns dos documentos analisados podem estar passando por processo de atualização, devido a mudanças curriculares no âmbito nacional ocorridas nos últimos anos. Dessa forma, salientamos a importância da continuidade de estudos que permeiam a construção dos currículos, especialmente daqueles voltados à formação de professores, de modo a se integrar com a realidade da educação brasileira atual.

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Notas

1 Devido à pandemia do Sars-CoV-2, entre os anos de 2020 e 2021, as instituições de ensino passaram por período de aulas remotas. Medida esta que visava preservar a saúde de toda a comunidade escolar/acadêmica, de acordo com as diretrizes de saúde em vigência no período.
Como citar LOPES, Jéssica Blank; ARAUJO, Rafaele Rodrigues de. EMERGÊNCIAS DA PERSPECTIVA INTERDISCIPLINAR EM CURSOS DE LICENCIATURAS EM CIÊNCIAS DA NATUREZA. Revista Espaço do Currículo, v. 17, n.1, e66378, 2024. DOI: 10.15687/rec.v17i1.66378

Autor notes

1 Licenciada em Ciências Biológicas pelo Instituto Federal Sul-Rio-Grandense. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/9577842998180094
2 Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande. Docente na mesma Instituição. Currículo Lattes: https://lattes.cnpq.br/8789624032213816
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