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Recepção: 06 Março 2024
Aprovação: 21 Abril 2024
Resumo: Neste artigo, são problematizadas concepções realistas de conhecimento que organizam as decisões pedagógicas e favorecem que a avaliação seja significada como “monstro” que aterroriza os processos de escolarização de crianças, jovens e adultos. Tal discussão é desenvolvida à luz de aportes teóricos pós-estruturais, cuja apropriação tem sido produtiva para a compreensão dos pressupostos teóricos que sustentam certezas e legitimam práticas avaliativas excludentes que alimentam medos e inseguranças nos processos de escolarização. Como referencial teórico, são apropriadas contribuições de aportes pós-estruturais produzidos no campo do currículo em interlocução com reflexões sobre avaliação. Como considerações resultantes dessas reflexões, cabe destacar que a promoção de práticas avaliativas que possam, de fato, contribuir para a realização de uma educação mais democrática e inclusivas pressupõe investimento teórico em reflexões que tornem explícita a contingência de decisões pedagógicas.
Palavras-chave: avaliação, conhecimento, aprendizagem, pós-estruturalismo.
Abstract: In this article, realistic conceptions of knowledge that organize pedagogical decisions are problematized and encourage assessment to be seen as a “monster” that terrorizes the schooling processes of children, young people and adults. This discussion is developed in the light of post-structural theoretical contributions, the appropriation of which has been productive for understanding the theoretical assumptions that support certainties and legitimize exclusionary evaluative practices that feed fears and insecurities in the schooling processes. As a theoretical reference, contributions from post-structural contributions produced in the field of curriculum are appropriate in dialogue with reflections on assessment. As considerations resulting from these reflections, it is worth highlighting that the promotion of evaluative practices that can, in fact, contribute to the realization of a more democratic and inclusive education presupposes theoretical investment in reflections that make explicit the contingency of pedagogical decisions.
Keywords: evaluation, knowledge, learning, post-structuralism.
Resumen: En este artículo se problematizan concepciones realistas del conocimiento que organizan las decisiones pedagógicas y propician que la evaluación sea vista como un “monstruo” que aterroriza los procesos de escolarización de niños, jóvenes y adultos. Esta discusión se desarrolla a la luz de aportes teóricos postestructurales, cuya apropiación ha resultado productiva para comprender los supuestos teóricos que sustentan certezas y legitiman prácticas evaluativas excluyentes que alimentan miedos e inseguridades en los procesos de escolarización. Como referencia teórica, resultan apropiados los aportes provenientes de aportes postestructurales producidos en el campo del currículo en diálogo con las reflexiones sobre la evaluación. Como consideraciones resultantes de estas reflexiones, cabe destacar que la promoción de prácticas evaluativas que puedan, de hecho, contribuir a la realización de una educación más democrática e inclusiva, presupone una inversión teórica en reflexiones que hagan explícita la contingencia de las decisiones pedagógicas.
Palabras clave: evaluación, aprendizaje, conocimiento, postestructuralismo.
Introdução
Neste artigo são desenvolvidas reflexões para justificar por que a avaliação pode ser significada como monstro a partir das diversas concepções de conhecimento que organizam as decisões pedagógicas. Tal discussão é desenvolvida à luz de aportes teóricos pós-estruturais. Cabe observar que não se trata de apresentar uma definição do que é avaliar, mas de expor as contribuições de aportes pós-estruturais que têm sido produtivas para a problematização/desconstrução de certezas sobre a avaliação que se sustentam em pressupostos teóricos epistemológicos que, por sua vez, têm contribuído para o esvaziamento da reflexão sobre a importância e função da avaliação nas escolas, e o que é pior: para alimentar sentimentos de medo e inseguranças que comprometem o compromisso dos estudantes com o aprender.
Este texto é motivado pela percepção de que boa parte das pessoas pensam e relacionam a avaliação como doença, como um diagnóstico do erro, uma percepção que sustenta a necessidade de revisitar as visões sobre conhecimento que afetam o campo curricular e o da avaliação. Buscamos compreender os pressupostos teóricos que sustentam práticas que contribuem para que a avaliação seja significada como monstro a ser temido, como se a atribuição de uma nota conferida de forma arbitrária e contextual pudesse dizer definitivamente sobre o compromisso/envolvimento dos estudantes com o estudo e/ou a aprendizagem.
Em pesquisas que discutem os efeitos aversivos das práticas tradicionais de avaliação da aprendizagem escolar, Leite e Kager (2009) identificaram que os estudantes do 3º ano do Ensino Médio nutriam sentimentos de medo, ansiedade, incapacidade, perda de motivação para estudar, frustração e exclusão em relação a essas práticas em que a avaliação é significada como controle dos estudantes por parte dos docentes, como punição, como exigência de uma memorização que para os estudantes não faz sentido. A prova, significada como armadilha em que só recebem, no máximo, um feedback punitivo, pouco contribui para a compreensão/superação dos erros.
Esses resultados corroboram aquilo que Oliveira (2021) e Pereira (2023), dentre outros, afirmam em seus estudos: a avaliação é subsumida à prova, quando ela apenas é um dos muitos instrumentos avaliativos. Cabe ainda destacar que, nessa perspectiva, a avaliação se resume à ideia de testagem, de aferição daquilo que foi ou não aprendido, sem que necessariamente seja investigada por que não foi ou como alguma coisa não prevista foi apreendida. Afinal, como lembra Esteban (2001), quem erra sempre sabe alguma coisa.
Os dados sugeriram que o processo de avaliação da aprendizagem é um fator da qualidade dos vínculos que se estabeleceram entre o sujeito e os objetos do conhecimento. Com base nos relatos da presente pesquisa, os autores evidenciaram a necessidade de revisão das práticas de avaliação adotadas tradicionalmente e das visões perigosas, porém contingentes de conhecimento.
Alguns dos aspectos citados na pesquisa de Leite e Kager (2009) nos impulsionam a pensar nas práticas que perpassam o chão da escola e soam como convite a analisar a avaliação praticada e sobretudo experienciada. No entanto, é preciso ir além da superfície do problema, como afirma Pereira (2023), investigando os posicionamentos epistemológicos que sustentam práticas avaliativas adotadas tradicionalmente. Ou seja, não basta criticar as práticas avaliativas excludentes. Não basta, como lembra Fernandes (2008), enfatizar adjetivações que apenas se constituem como um continuum de dimensões de avaliação situadas entre dois polos: uma avaliação formativa informal, que ele considera uma espécie de avaliação formativa pura ou ingênua. Ir além implica problematizar os fundamentos ontológicos e epistemológicos que sustentam concepções de conhecimento, com implicações nas práticas pedagógicas. Neste texto, argumentamos que não são fundamentos fixos a priori; pelo contrário, são contingenciais – e essa contingência precisa ser sempre explicitada.
Dessa perspectiva, na primeira parte do texto apresentamos as contribuições de aportes pós-estruturais que têm sido produtivas para o processo de problematização da centralidade que o conhecimento assume no campo do currículo, produzidas, por exemplo, por Costa e Lopes (2022), Pereira e Reis (2022) e Pereira (2023); elas nos auxiliam a pensar as implicações de concepções de conhecimento nas práticas avaliativas.
Trata-se de indagações sobre: como o conhecimento está sendo significado? Quem é o sujeito aprendente? Como se estabelece a relação entre o sujeito que aprende e o conhecimento? Elas precisam sustentar a pergunta sobre qual a função e o que se espera em cada contexto avaliativo. Feito isso, a escolha do instrumento mais adequado é consequência, e ele está realmente a serviço da avaliação sem se confundir com a própria avaliação.
Em seguida, faremos uma breve reflexão sobre a compreensão do processo avaliativo na jornada de um sujeito e como ela pode ser útil no processo de desconstrução da avaliação como punição, como instrumento de medo.
Essas reflexões se complementam com a ideia de feedback defendida por Fernandes (2008, p. 352), um conceito-chave “associado às múltiplas interações sociais e culturais que ocorrem nos processos de ensino e de aprendizagem”. Nesse texto, o feedback não é assumido como solução do problema, mas sim como postura dialógica essencial para estabelecer relações democráticas essenciais para o processo formativo. De docentes e de discentes.
Concepções de conhecimento que organizam as decisões pedagógicas
É correto afirmar que as decisões sobre avaliação vêm sendo tomadas com base em dicotomias "é ou não é”, “certo ou errado", "bom ou mal" e tantas outras do tertium non datur que vêm sendo contestadas ”como estratégias de desenvolvimento cognitivo" (D'Ambrósio, 2018, p. 189). Essa visão de certo e errado, do que pode ser e do que não pode ser categoriza e hierarquiza outras possibilidades de conhecer, de aprender, de existir. São dicotomias que admitem o privilégio de um tipo de conhecimento e de uma forma de conhecer. Dessa perspectiva, o conhecimento tende a ser assumido como “coisa” que precisamos ter para ser alguém (Pereira, 2017).
Para Pereira (2023), a sobrevalorização da avaliação como solução está associada à intensificação das políticas de avaliação significadas como mecanismos garantidores de “qualidade”. Essas políticas produzem efeitos organizacionais na escola, gerando pressão em educadores como avaliadores e nos estudantes como sujeitos que são avaliados. Para a autora, as políticas de avaliação pensadas como tentativas de controle curricular seguem a lógica “sustentada em fundamentos e sentidos realistas de conhecimento que têm contribuído para sedimentar/estabilizar práticas avaliativas” (2023, p. 2).
Não se trata de negar a função e a importância da avaliação; afinal, educar pressupõe o acompanhamento sistemático do trabalho realizado para redirecioná-lo quando for preciso. Por isso, é e será sempre necessário avaliar se admitimos a educação como ação intencional, direcionada e com objetivos (Pereira, 2023). A crítica que fazemos é à expectativa irrealizável de controle total sobre os sujeitos que pretendemos educar, um investimento teórico que fazemos à luz de aportes pós-estruturais, assumindo a partir deles uma perspectiva discursiva de interpretação dos fenômenos sociais para problematizar sentidos realistas/essencialistas de conhecimento, sentidos que pressupõem a possibilidade de acesso direto a um mundo exterior ao pensamento, capaz de ser lido e se tornar inteligível por todos de forma inequívoca, de onde resulta uma concepção de conhecimento como resultado desse acesso possibilitado pela linguagem.
Se o mundo se dá a conhecer inequivocamente, se esse conhecimento é validado por critérios rigorosos que seguem uma pragmática própria, e se, principalmente, esse conhecimento permite aos seres humanos controlar a natureza e realizar coisas até então impensáveis, se reforça a significação desse conhecimento como verdade, sua apropriação é defendida como condição para que as pessoas compreendam, de forma inequívoca, o funcionamento do mundo, podendo intervir nele para direcionar o seu funcionamento para uma direção mais adequada (Pereira, 2023). Essa forma de pensar o conhecimento organiza e põe em funcionamento os processos de escolarização, inclusive as práticas avaliativas.
A centralidade atribuída ao professor e a ideia de erro como algo estranho ao processo de aprendizagem (Esteban, 2001) são algumas dessas consequências que podem explicar a ideia de avaliação como monstro.
Por outro lado, concepções realistas/essencialistas de conhecimento legitimam projetos e visões de mundo totalizantes e com pretensões de universalidade. Operam com a pretensão de que existe algo comum a todos, melhor para todos (Pereira; Reis, 2022), justificando a punição/exclusão daqueles que não se percebem incluídos na ideia de todos. Em nome desse “todos” genérico, práticas padronizadoras e hierarquizações são legitimadas e as diferenças que nos caracterizam como humanos sofrem constrangimentos para se apresentarem como presença (Biesta, 2013).
Pereira e Reis (2022) defendem que os projetos de formação totalizantes e universais que prometem ensinar o mesmo a todos só podem se sustentar em um “comum” e um “todos” ordinários, genéricos. Assim, um modelo fixo de avaliação que só serve para aferir determinado conteúdo preestabelecido, desconsiderando outras coisas, também só poderá sustentar um “comum” e um “todos” genérico. A enunciação/circulação desses sentidos produz a exclusão desse outro que escapa, que não se enquadra no padrão estabelecido como o mais adequado. Isso se reflete na escola, na sala de aula, contribuindo para o apagamento das diferenças, na tentativa de reproduzir inúmeras vezes até conseguir aproximar-se de algo que seria o sujeito ideal.
A definição do lugar do conhecimento no currículo está implicada em disputas pela significação de mundo e das identidades idealizadas que devem ocupar lugar nesse mundo. Costa e Lopes (2022) oportunizam uma discussão sobre a centralidade do conhecimento no campo do currículo argumentando que as disputas pela sua significação se dão desde diferentes perspectivas, mas destacam duas interpretações: a primeira volta-se à afirmação de que um conhecimento precisa ser apropriado, pois seu domínio é essencial à formação de sujeitos adequados para atuar em determinado contexto. A segunda é centrada na ideia de valorização de conhecimentos produzidos pelos sujeitos. Percebe-se então um binarismo estabelecido entre essas duas concepções: de um dado conhecimento objetivo e de um conhecimento decorrente das experiências contextuais.
Para efeito deste texto, vamos considerar autores importantes do campo curricular que se inserem entre aqueles que defendem a primeira interpretação porque ela sustenta o argumento que defendemos.
Na primeira interpretação, Costa e Lopes (2022) localizam Bobbitt (2004), que pode ser considerado um precursor de uma perspectiva administrativa da ciência e que defendia que o conhecimento a ser privilegiado no currículo deveria ser aquele derivado da ciência; um tipo de conhecimento cuja apropriação tornaria as pessoas capazes de reorientar a produção dos sujeitos para a produtividade, uma teoria eficientista.
Mas não são apenas os eficientistas que defendem o privilégio do conhecimento científico no currículo: Michael Young (2011) defende um conhecimento como propriedade a ser assegurada para o alcance de uma leitura confiável do mundo. O autor estabelece uma relação direta entre ciência e conhecimento e afirma a ideia de currículo como seleção de conhecimentos organizados nas diferentes disciplinas que na escola vai receber um tratamento pedagógico para tornar-se “ensinável”. Advoga a favor da centralidade de um “conhecimento rigoroso” no currículo.
No Brasil, Libâneo (1984) é o formulador da teoria crítico-social dos conteúdos em que defende, com Saviani (1984), o privilégio do conhecimento científico no currículo e da escola como lócus responsável por sua transmissão. Trata-se de um projeto educacional emancipador; no entanto, Pereira (2013) afirma que, apesar de assumirem perspectivas teóricas diferentes, esses autores compartilham uma concepção instrumentalizada do conhecimento, concepção em que ele é colocado a serviço de um projeto de formação universal.
Costa e Lopes (2022) afirmam que a defesa da centralidade do conhecimento marca diferentes perspectivas teóricas que circulam, são negociadas e traduzidas em diferentes políticas curriculares. Defendemos que elas produzem impactos nas políticas de avaliação.
Negociações e traduções marcam a produção de políticas educacionais, mobilizam as instituições, o campo acadêmico e os projetos de formação docente. As disputas pela significação do conhecimento que “importa” marcam o dinamismo de um pensamento curricular pautado pela expectativa de controle – controle das coisas, controle de si e do outro. Nesse processo, “o conhecimento e as próprias concepções de currículo mudam no pensamento curricular em função dos contextos e das finalidades sociais projetadas” (Costa; Lopes, 2022, p. 9). Ainda segundo os autores,
os estudos envolvidos com o que aqui entendemos por movimento de emancipação e resistência examinam, em um cenário de regulação e tentativas de controle, as agências, táticas, práticas e releituras levadas a termo pelos sujeitos, apoiados em suas visões de mundo, crenças e conhecimentos produzidos na/pela experiência cotidiana (Costa; Lopes, 2022, p. 18).
Por sua vez, Pereira (2023) contribui para essas reflexões apresentando a lógica do discurso realista, em que a avaliação funcionaria como mecanismo de controle para examinar se o que foi planejado para ser ensinado foi realmente aprendido pelo estudante, na expectativa de que todos aprenderão tudo como foi; afinal, a crença do discurso realista é do acesso a uma “realidade”, desde que tenhamos os conhecimentos e habilidades adequados.
Os diversos argumentos teóricos citados, ainda que distintos, tendem à afirmação de uma propriedade de conhecimento, um conhecimento como coisa para se apropriar como condição “para ser alguém”: alguém “mais eficiente”, alguém “mais emancipado”. Argumentamos que, em maior ou menor grau, trata-se de concepções instrumentalizadas de conhecimento – conhecimento a serviço da formação de uma identidade preconcebida.
Mas os aportes pós-estruturais nos ajudam a problematizar essa pretensão. Para Laclau (2011), não existe fundamento a priori capaz de sustentar a formação de identidades com uma essência autorreferida, capaz de definir a identidade do sujeito. Nenhuma essência é capaz de definir o sujeito a priori de processos de subjetivação (Pereira, 2012).
Essa é uma abordagem discursiva que se contrapõe à ideia de transparência da linguagem, uma crítica ao modelo representacional de linguagem, que adotamos a partir de Derrida (2008), para afirmar que não existe um mundo exterior ao pensamento, capaz de ser lido e se tornar inteligível por todos de forma inequívoca. A linguagem sempre escapa e a inteligibilidade possível é resultado de processos de negociação e tradução que impossibilitam a fixação plena de sentidos.
Essa compreensão impacta concepções realistas de conhecimento. O conhecimento é resultado de interpretações, negociações de sentido que acontecem mediados por ritos de validação e legitimação em um jogo de linguagem próprio. Impacta a pretensão de projetos de controlar a formação de identidades; coloca em questão projetos universalizantes que favorecem as tentativas de controle e normatização da educação (Pereira; Reis, 2022).
Assumimos essa compreensão e concordamos com Pereira e Reis (2022, p. 3) quando destacam que os processos de formação do estudante são da ordem do imprevisível e “as tentativas de controlá-lo terminam, portanto, por criar constrangimentos para que o outro possa se realizar como presença singular em um mundo habitado por diferenças”.
As políticas de avaliação não principiam, mas colaboram para o funcionamento e para a reprodução das lógicas essencialistas e favorecem a circulação de sentidos de conhecimento que colocam em funcionamento uma gramática escolar que se inclina a naturalizar normas e regras (Pereira, 2023).
Toda essa pressão externa e silenciosa de dominação e poder parece ser transmitida para as folhas que imprimem as avaliações, ou melhor, para o conteúdo selecionado que as compõem, quando o aluno se desespera ao não se encaixar naquele padrão solicitado. Nesse ponto, vemos como se dá a avaliação vista de maneira cavernosa, amedrontadora, monstruosa. Acertar as respostas de um exame nacional, a reprodução perfeitamente decorada para reproduzir na resposta exigida, o temor de não atender às expectativas do outro são motivos de tensão e desconforto que marcam a história da avaliação pensada como processo mensurável, calculável e previsível.
A jornada para compreender a avaliação para além de monstros e arrepios
Suor frio, músculos contraídos, dores de cabeça e o sentimento de apreensão tomavam o corpo de uma criança quando a professora anunciava que aplicaria o teste do bimestre. Não tem como falar em avaliação e não rememorar nossas experiências. Ser avaliado pelo olhar de alguém, ser avaliado pelo "x" do vestibular... Talvez aprender a ser avaliado não se ensina na escola. Entre as angústias de ser examinada, a criança ou adolescente recebe sua nota do bimestre: “7”. Um 7 representa o que somos e sabemos? Um 7 é justo? O que é uma avaliação justa?
Compreender a avaliação é uma jornada. Borralho, Cid e Fialho (2019) trazem um pouco da história da avaliação educacional caracterizada por mutações e distinguem quatro períodos que marcaram o processo da avaliação ao longo do século XX. De maneira analógica, podemos conjecturar a partir desses quatro períodos históricos o processo de avaliação de um estudante, de nós mesmos – que, cientes de que monstros só existem debaixo da cama e nas mentes inventivas, nós que compreendemos a avaliação tal como ela de fato é e pode ser, já nos sentimos excluídos.
A primeira geração correspondia à avaliação como medida. Medir por meio dos testes a inteligência e as aptidões (Borralho; Cid; Fialho, 2019). Podemos comparar aos primeiros anos na Educação Infantil, quando ainda no Jardim de Infância um boletim escolar que nossos pais exibiam e transpassavam certa importância nas notas 10, o que significava uma nota "boa" e quão ruim era um boletim com notas vermelhas.
Os autores afirmam que a segunda geração surge pela preocupação em ter uma avaliação mais rigorosa, quando emerge a avaliação como descrição: descrever em que medida os alunos atingem os objetivos educativos definidos. Isso me remete ao Ensino Fundamental 1, ao período de alfabetização, vivendo a pressão de ter que saber ler e escrever. Se a criança não soubesse as quatro formas da vogal ou consoante ela não estaria apta a passar de série, e sortudos aqueles que sabiam domar o monstrinho chamado prova.
Em seguida, os autores apresentam a terceira geração, correspondendo à avaliação como juízo de valor, marcada pela emergência de aspectos que devem facilitar a tomada de decisões que regulam o ensino. É a avaliação para a recolha de informações e apreciação do mérito e do valor de um dado objeto (Borralho; Cid; Fialho, 2019). Para essa fase podemos reviver as experiências do segundo segmento do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, quando eram ministrados "provões" e "simulados", monstros avaliativos maiores, que forçariam crianças e jovens a decorar determinado conteúdo.
Ainda que em diferentes níveis de ensino, ainda persistem práticas avaliativas descontextualizadas e excludentes; é possível localizar movimentos que vão em outra direção, privilegiando “a compreensão dos processos mentais do aluno para além dos resultados obtidos, e o erro ganha valor pelo seu potencial de aprendizagem" (Borralho; Cid; Fialho, 2019, p. 8). Os autores caracterizam esses movimentos como a quarta geração, que está associada a uma avaliação receptiva e construtivista, que considera a capacidade de os alunos ascenderem, sem a mediação do professor, como construtores do seu próprio conhecimento; um processo em que o erro desempenha papel fundamental e é na compreensão da natureza desse erro que se apoia a autorregulação, objetivando a melhoria do ensino-aprendizagem. O erro já não seria mais um monstro que roubava inteligência, mas um processo para a construção do conhecimento.
Por sua vez, ao propor a denominação “avaliar para a aprendizagem”, Fernandes (2008) visa à melhoria das aprendizagens e dessa perspectiva propõe a incorporação do feedback em que os professores se comprometem a comunicar “aos alunos o seu estado em relação às aprendizagens e as orientações que, supostamente, os ajudarão a ultrapassar eventuais dificuldades” (Fernandes, 2008, p. 353). Assim, adotar o feedback pode ser uma medida importante para engajar o estudante no seu processo formativo, pois é uma espécie de mecanismo que deve levar o estudante a uma autoavaliação, por ser uma estratégia avaliativa interativa. O feedback pressupõe um processo de interlocução com os docentes em que são chamados a assumir responsabilidades pelas suas próprias aprendizagens por meio do desdobramento da autoavaliação e do conhecimento das finalidades a se alcançar. Dessa perspectiva, o erro ganha outro significado: é incorporado como parte do processo. É, assim, metaforizando o tema deste trabalho, um processo de desmistificação do monstro em que o percurso de aprendizagem pode ser trilhado com acolhimento, comprometimento e respeito, sem medos e culpas; uma forma de enfrentar aquilo que Leite e Kager (2009) definem como aspecto aversivo à avaliação, que favorece a “deterioração da relação sujeito-objeto”.
Em sua pesquisa, quando os estudantes que vivenciaram experiências negativas com avaliação, desenvolveram aversão pela disciplina em que essas práticas de avaliar eram adotadas, ou seja, não se sentiam pertencentes ou representados por aqueles conhecimentos. A relação entre sujeito e objeto, estudante e conhecimento se desassocia e se torna incompatível.
Toda essa divisão do que serve ou não serve, do útil e inútil dentro do currículo escolar tende a favorecer exclusões, pois favorecem práticas de avaliação desvinculadas da aprendizagem, guiadas pela “mera verificação das aprendizagens realizadas e uma constatação do que o aluno aprendeu ou não aprendeu” (Borralho; Fialho; Cid; 2019, p. 17).
Corroborando os autores, defendemos a avaliação formativa, que representa todo o processo de avaliação, tem por finalidade melhorar o processo de ensino-aprendizagem e recolhe informações que possam auxiliar o estudante a aprender melhor, mas que também sirva para os professores melhorarem seu ensino. Acrescentamos que o processo avaliativo não se reduz a apenas um ato pontual, mas reúne um conjunto de procedimentos que ocorrem continuamente, desde o recolhimento de dados à respectiva interpretação e ao estabelecimento de novos passos na aprendizagem e no ensino. A avaliação é múltipla; é avaliar o oral, o dissertativo, todo o processo formativo. Avaliar é prática, não apenas como instrumento opressor.
Claro que, por um lado, é importante avaliar para aperfeiçoar as aprendizagens dos alunos e, por outro lado, também é importante avaliar para que se possa fazer um balanceamento quanto à qualidade das aprendizagens realizadas pelos alunos em determinado momento ou após um dado período (Fernandes, 2019). Mas isto só é possível a partir da compreensão dos envolvidos, da relação de ensino-aprendizagem, da formação docente etc.
Considerações finais
Há maneiras pelas quais as políticas educativas e de currículo promovem uma articulação e hegemonizam discursos que buscam significar e fixar sentidos. No entanto, Pereira e Reis (2022) afirmam que não há discurso político enunciado mediante um projeto educacional capaz de ocupar o lugar de uma ordem definitiva e cessar definitivamente os processos de negociação, tradução e significação.
A lógica das reedições do currículo como controle, da avaliação como mensuração tenta estabilizar e controlar aquele que difere, e esse estudante é um sujeito que “não se encontra, não está encarnado em um indivíduo; é, porém, momentâneo movimento, resposta, afirmação, decisão” (Costa; Lopes, 2022, p. 18). Essa impossibilidade de controle, essa contingência que grita é um alívio para aqueles e aquelas que um dia se sentiram amedrontados ou deslocados na sala de aula.
Pereira (2023) convida a pensar a avaliação como decisão responsável e ética sobre o outro, acolhido em sua absoluta singularidade, dissolvendo os haveres de uma intervenção pré-programada e com pretensão universalizante. Esse investimento precisa ser constituído de um movimento de busca permanente, de decisões tomadas no terreno do indecidível. O “todos” não existe quando se excluem os “outros”.
Concordamos com Sposito (1998) quando a autora afirma que as concepções de conhecimento e avaliação que marcaram e ainda marcam a vida de crianças e adolescentes geram neles o sentimento de exclusão, de não se sentir ouvido no processo avaliativo, de não se sentir parte da escola, da instituição educativa e até mesmo do currículo.
Por isso, argumentamos que essas concepções aprofundam o esgotamento de um modelo de escolaridade que não só não emancipa como favorece a mesmidade e não contribui para a construção de uma educação democrática, porque exclui e justifica a exclusão daqueles que não conseguem se adaptar, que não alcançam os resultados predefinidos e desejáveis que a avaliação impõe, com isso produz e reproduz sentimentos de despertencimento.
Deixemos os "monstros" para as histórias de ninar. O que importa é que a avaliação esteja orientada para melhorar os processos de aprendizagem e de ensino, incorporando e respeitando as diferentes formas de aprender e de ensinar, entendendo que a avaliação é parte do processo de construção de conhecimento, mediado pelo docente e experienciado pelo estudante com autonomia e responsabilidade pela sua formação que nunca se esgota – é processo, é fluxo, é processo de produção de subjetividades sempre inconclusas, pois sempre há algo a mais a ser conhecido e explorado, já que compreender a avaliação, avaliar e ser avaliado é uma jornada.
Agradecimentos
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), pela bolsa de estudos de mestrado, ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) pelos financiamentos concedidos.
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Notas
Autor notes