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INFÂNCIA E CIDADANIA EM UMA ESCOLA PÚBLICA DE SÃO MIGUEL DOS CAMPOS/AL: Prova Brasil e governamentalidade

CHILDHOOD AND CITIZENSHIP IN A PUBLIC SCHOOL IN SÃO MIGUEL DOS CAMPOS/AL: Prova Brasil and govenmentality

INFANCIA Y CIUDADANÍA EN UNA ESCUELA PÚBLICA DE SÃO MIGUEL DOS CAMPOS/AL: Prova Brasil y gubernamentalidad

Karla de Oliveira Santos
Universidade Estadual de Alagoas, Brasil
Laura Cristina Vieira Pizzi
Universidade Federal de Alagoas, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 16, núm. 1, 2023

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 11 Março 2022

Aprovação: 13 Julho 2022



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v16i1.62514

Resumo: Esta investigação é de caráter qualitativa, desenvolvida em uma escola pública com o maior Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB) municipal, situada na zona urbana do município de São Miguel dos Campos, Alagoas. Participaram da pesquisa, crianças de duas turmas do 5º ano do Ensino Fundamental em um ano de realização da Prova Brasil. Nosso objetivo foi observar como as crianças vão sendo orientadas/guiadas por uma lógica de desempenho, promovida por ações, estratégias e discursos performativos, que visam manter um IDEB elevado na escola, trazendo implicações para a formação da sua cidadania, marcada pela governamentalidade. Os resultados apontam que a concepção de cidadania das crianças, limita-se ao controle de suas condutas no cumprimento de deveres e auto responsabilização pelos resultados da Prova Brasil, enredando e cooptando a vida na escola e fora da escola, numa disputa por direitos, formando subjetividades das crianças para atender a uma racionalidade política do estado governamentalizado, alinhadas aos fins do ranqueamento do IDEB.

Palavras-chave: Cidadania, Prova Brasil, Governamentalidade.

Abstract: This is a qualitative investigation, developed in a public school with a highest municipal Basic Education Developed Index (IDEB), located in an urban area of the São Miguel dos Campos city, Alagoas. Children from two classes of the 5th year of Elementary School participated in the research, in a year of realization of Prova Brasil. Our goal was to observe how children are guided by a logic of performance, promoted by actions, strategies, and performative discourses, which aim to maintain a high IDEB in school, bringing implications for the education of their citizenship, marked by governmentality. The results show that the children’s conception of citizenship is limited to the control of their conduct in the fulfillment of duties and self-responsibility for the results of the Prova Brasil, entangling and co-opting life at school and outside school, in a dispute for rights, educating children’s subjectivities to meet a political rationality of the governmentalized state, aligned with the purposes of the IDEB ranking.

Keywords: Citizenship, Prova Brasil, Governmentality.

Resumen: Esta investigación es de carácter cualitativo, desarrollada en una escuela pública con el mayor Índice de Desarrollo de la Educación Básica (IDEB) municipal, ubicada en el área urbana del municipio de São Miguel dos Campos, Alagoas. Niños de dos clases de 5º grado de la Escuela Primaria participaron en la investigación en un año de Prova Brasil. Nuestro objetivo fue observar cómo los niños están siendo guiados por una lógica de desempeño, promovida por acciones, estrategias y discursos performativos, que buscan mantener un alto IDEB en la escuela, trayendo implicaciones para la formación de su ciudadanía, marcada por la gubernamentalidad. Los resultados indican que el concepto de ciudadanía de los niños se limita al control de su conducta en el cumplimiento de los deberes y la auto-responsabilidad por los resultados de la Prova Brasil, enredando y cooptando la vida escolar y extraescolar, en una disputa de derechos, formando subjetividades de los niños para atender a una racionalidad política del Estado gubernamentalizado, alineada a los propósitos del ranking del IDEB.

Palabras clave: Ciudadanía, Prova Brasil, Gubernamentalidad.

1 INTRODUÇÃO

A redemocratização do país, no final da década de 1980, do século XX, consolida na agenda política nacional, debates em torno da cidadania, autonomia, participação e democracia, principalmente nos aportes legais, através da Constituição Federal de 1988, considerada a Constituição mais cidadã da história brasileira. As repercussões desse novo contexto democrático, insere novos sujeitos nos marcos legais, como as crianças, e amplia suas conquistas também para as políticas públicas educacionais, agora tornando-se um sujeito detentor de seus próprios e específicos direitos, ou seja, um cidadão. Nessa mesma direção, o Estatuto da Criança e do Adolescente, foi lançado no ano de 1990.

Ambas as legislações proporcionaram uma nova configuração dos sujeitos infantis, que agora têm seus direitos ampliados como cidadãos, sendo influenciadas pela Declaração dos Direitos das Crianças de 1959 e da Convenção dos Direitos das Crianças em 1989, no qual o Brasil é signatário. A afirmação da cidadania foi a tônica, tanto na Carta Magna de 1988, quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996. Tratava-se e trata-se de garantir as condições para vivermos numa sociedade em que direitos e deveres sejam garantidos, preservados, exercitados. (GALLO; ASPIS, 2010).

O conceito de cidadania é complexo, polifônico, pelas várias interpretações que pode apresentar, sendo uma construção social, que não é, portanto, universal. A cidadania não é unicamente um conceito do campo jurídico-legal, mas um fenômeno histórico-social e político, vinculado aos diferentes modelos de democracia.

A noção moderna de cidadania, a partir da filosofia das Luzes e da configuração política que as revoluções democráticas do século XVIII atribuíram aos estados modernos, a cidadania foi sendo entendida como o estatuto legal da «identidade oficial» dos membros de uma comunidade com capacidade soberana de autogovernação. A cidadania corresponde, por definição, a um estatuto político, confinado ao espaço nacional, embora o cidadão veja reconhecida a sua pertença à comunidade não apenas pelo vínculo que com ela estabelece e que lhe permite o usufruto de direitos cívicos e políticos, mas também em consequência da sua própria condição individual, que lhe atribui direitos individuais de natureza social (proteção, alimentação, educação, saúde, etc.). O estatuto de membro da comunidade impõe, ao mesmo tempo, obrigações e deveres do cidadão para com a comunidade. (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007, p.186).

Contudo, é importante destacar que considerar as crianças sujeitos de direitos é afirmar a cidadania da infância, que ocasionou a criação de obrigações públicas por parte do Estado, que são cumpridas por meio de políticas ou programas, em especial os direitos básicos de saúde e educação. (NASCIMENTO, 2021). A cidadania das crianças, tem sido reafirmada predominantemente como algo que será dado futuramente, quando se tornar um adulto, como uma espécie de “devir”, de vir a ser. Assim, a criança se tornará um cidadão no futuro e não no tempo presente, mesmo que o ordenamento jurídico a considere como cidadã desde o nascimento.

Há explícita a crença de que um sujeito mais educado faz um cidadão melhor, como também, o reconhecimento de que ninguém nasce com habilidades e aptidões de cidadania, cabendo à educação este papel. Cidadania, nesse sentido, envolve um processo de aprendizados, no qual o sistema formal de ensino possui um papel destacado. Reunir as noções de cidadania e educação foi um subproduto dos processos iniciais de institucionalização de nações-estados como democracias, uma visão de qual tipo de subjetividade é desejada, bem como do que é inaceitável. (FISCHMAN; HAAS, 2012), o que para nós, implica em uma cidadania imóvel, passiva, receptora, em que a participação ativa das crianças na vida pública está geralmente ausente. Sua presença é invisibilizada nas decisões políticas, desconsiderando os efeitos das políticas públicas sobre elas, o que tende a destituir e assujeitar sua importância em favor dos adultos. Em uma sociedade governamentalizada, predomina a percepção na qual, a formação cidadã parte da compreensão de um sujeito que precisa ser bem-educado e ajustado às normas e padrões sociais, através do controle e da disciplina.

De acordo com Trevisan (2012), torna-se importante considerar questões de acesso ao estatuto de cidadania a partir de diferentes pontos de vista, que possam incluir grupos e pessoas excluídas. É aqui, então, que as crianças são majoritariamente incluídas na discussão, uma vez que têm acesso aos direitos sociais de cidadania, mas permanecem sem acesso por exemplo, a direitos políticos, nomeadamente de participação e de processos de co-decisão.

Arroyo (2011) destaca que, a escolarização, como condicionamento do reconhecimento da cidadania, termina ocultando a história real do seu reconhecimento a uns e da negação aos Outros, no entanto, ainda permanecem distantes de serem cidadãos plenos, diante das reprovações, segregações, humilhações e desigualdades, que expõe a fragilidade dos discursos que prometem cidadania pela educação.

A escola, como instituição com a missão de preparar para a cidadania é o:

Espaço institucional onde cabem todas as utopias igualitárias, tanto quanto os processos mais refinados de dominação, a escola foi sendo historicamente tematizada pela modernidade como o lugar da formação de jovens cidadãos, plenos de direitos, capacidade e competência, para competirem e/ou se solidarizarem numa sociedade com igualdade de oportunidades. Não é necessário recordar aqui o modo como a linearidade do raciocínio que suporta o projeto escolar enquanto «fábrica de cidadãos» originou tantos equívocos e fez desperdiçar tantas energias efetivamente mobilizadas na construção de uma cidadania plena. (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007, p.187-188).

A escola se inscreve nessa zona de disputa de projetos de cidadania, que transitam entre um modelo solidário e igualitário e um modelo competitivo e de dominação, dependendo da correlação de forças dos modelos dominantes de educação.

Para Arroyo (2018, p.30), “não existem concepções únicas, universais de humano, de humanidade, de humanização quando o padrão de poder, de saber, de ser, sacrifica os Outros desde a infância como sub-in-humanos”. Para o autor, é preciso primeiro libertar a infância do adultocentrismo. (ARROYO, 2018). A infância foi pensada historicamente pelo aspecto determinista do que ela pode vir a ser, ou não, quando crescer. Portanto, sempre pensada visando a vida adulta e não a partir de si mesma, na urgência do presente.

Para Bujes (2002), a infância é um campo privilegiado de intervenção social, de controle e regulação, de exercício de poder e saber, para a fabricação do sujeito infantil. Gallo (2018) reafirma essa perspectiva, destacando que no Brasil contemporâneo, a biopolítica opera na ordem de uma governamentalidade democrática, onde somos todos subjetivados como cidadãos, para que possamos ser devidamente governados e controlados. É nesse contexto que se pode entender a figura do “pequeno cidadão”, esse ser de direitos, alvo das ações de governo desde a tenra idade.

Nessa perspectiva, governar a infância significa educá-la, moldá-la, normatizá-la para que as crianças se tornem úteis socialmente e economicamente. Conforme complementa Veiga-Neto (2015), governa-se a infância com o objetivo de conduzi-la para determinados lugares numa cultura, para determinadas posições numa sociedade e para determinadas formas de vida já partilhada por aqueles que já estavam aí.

O corpo e a mente das crianças são inseridos em uma maquinaria governamental, a exemplo da escola, para ser submetido às técnicas, saberes e discursos de disciplinamento e controle infantis, que estabelecem parâmetros para uma determinada perspectiva de cidadania. Lemos (2015) acrescenta que as crianças já devem aprender na escola, nos primeiros anos de vida, a serem produtivas, dóceis, obedientes, submissas, investidoras e microempresárias em tudo o que fazem e pensam, sentem e vivem. Esse discurso da cidadania é uma forma de racionalidade política liberal que tem como um dos seus objetivos integrar os indivíduos à sociedade.

O sujeito infantil é agora visto como um cidadão, com direitos à proteção social e à educação e que tem de aprender seus deveres sociais, suas obrigações, com responsabilidade social, como contrapartida. (BUJES, 2002). E ainda, “no Estado de Bem-Estar, o aparelho estatal é responsável igualmente por gerar um conjunto de tecnologias de governamento para socializar cada indivíduo/cidadão, mas também para regular a vida econômica em nome da segurança e da tranquilidade coletiva.” (BUJES, 2002, p.260). Há um investimento no sujeito infantil, a partir de estratégias e táticas de governamento que garantem o controle e governo sobre as infâncias, capturando as subjetividades infantis e suas capacidades de participar e atuar ativamente na sociedade, para além dos espaços escolares e do seio familiar.

A nova configuração da infância, rompe com o paradigma da criança frágil, inocente, dependente e incapaz, dando lugar à concepção da criança rica, forte, poderosa e competente, co-construtora de conhecimento, identidade e cultura. A criança é reconhecida como um sujeito que aprende e constrói conhecimentos no processo de interação social. (KRAMER, 2012).

Nesse sentido, a criança é um sujeito potente, atores e construtores de seus percursos, com saberes e voz, distanciando-se de uma perspectiva aprisionadora da infância, que a compreendia como os sem fala.

A participação ativa das crianças, possibilita que sua voz seja verdadeiramente ouvida nas esferas públicas e privadas, para que possam tomar decisões que afetam sua vida pessoal, mas também a coletividade infantil. “Mas a ação política das crianças é realizada de acordo com as culturas de infância, isto é, com o modo próprio de interpretar, agir e interagir na realidade que decorre da alteridade da condição geracional da infância.” (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS, 2007, p.203).

É necessário e urgente pensar os espaços de participação infantil, que contribuam para a emancipação do pensamento crítico e da garantia do direito de participação nas decisões políticas, que lhes afetam diretamente, pois qualquer política pública criada e seus impactos sociais não se distanciam das crianças, e sim, extrapolam os limites do direito à educação e das relações familiares, ainda visto como únicos e prioritários para os infantis.

Por outro lado, conforme Trevisan (2012), a voz política das crianças tende a ser vista como ilegítima e desinteressante, quando toca em assuntos políticos. Há a ausência de espaços e estruturas onde essas vozes possam ser ouvidas e, por isso, legitimadas.

É importante ressaltar que apesar de todo arcabouço legal, há um paradoxo entre as legislações e a implementação de políticas públicas que garantam a efetivação de seus direitos sociais e a concretude da cidadania infantil, que ainda tende a ser marcada por uma perspectiva adultocêntrica, universalizante e única. Essa espécie de colonização da infância, revela as formas pelas quais o adulto constrói uma espécie de mundo infantil, desqualificando os saberes e as culturas infantis, com pouca escuta e olhar para o que sentem, sabem, imaginam, inventam. (SANTOS, 2018).

A invisibilidade da infância é também uma forma de exclusão. As crianças são o grupo geracional mais afetado pela pobreza, pelas desigualdades sociais e pelas carências das políticas públicas e sua exclusão da ação política direta caminha a par do efeito simbólico da sua invisibilização política. (SARMENTO; FERNANDES; TOMÁS,2007).

Para Fisschman e Hass (2012), reduzir a noção de cidadania a um conjunto de dispositivos, habilidades, práticas e ideais que podem ser oferecidos e então realizados por sujeitos puramente racionais conscientes em instituições que muitas vezes não estão nem mesmo democraticamente organizadas, ignora as tensões provocadas pela governamentalidade.

A partir desta exposição inicial, temos como finalidade observar como as crianças estão imersas nesta governamentalização do Estado, que tende a atuar menosprezando as formas de cidadania, em particular a infantil, por sua participação ser definidora nos resultados propostos pelas políticas de avaliações oficiais, a exemplo da Prova Brasil, que enfatizam a responsabilização, a performatividade e o ranqueamento entre as escolas, trazendo implicações para a formação da sua cidadania.

A pesquisa é de cunho qualitativo, a partir do estudo de caso, desenvolvido em uma escola pública da zona urbana do município de São Miguel dos Campos-Alagoas, que apresentava no ano de 2017, o maior IDEB municipal. A pesquisa de campo se deu entre abril e dezembro do ano de 2017 em duas turmas do 5º ano do ensino fundamental no turno matutino, com entrevistas semiestruturadas com 11 crianças, com idades entre 10 e 11 anos, buscando compreender os fenômenos sociais, políticos e educacionais que afetam as crianças envolvidas com a aplicação da Prova Brasil e a sua formação e o seu exercício para a cidadania, compreendo-as como sujeitos de direitos

Para a participação nas entrevistas, as crianças assinaram o Termo de Assentimento, fizeram a escolha por seus nomes fictícios e seus responsáveis legais assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido[1] . O espaço físico onde ocorreram as entrevistas com as crianças foi a Sala de Leitura da escola. Este espaço ficava ocioso durante o turno matutino e era silencioso, sem muitas interferências externas.

Ao realizar uma pesquisa deste caráter com crianças, nos orientamos pelo seu reconhecimento como atores afirmativos e de direitos, possibilitando as mesmas uma participação mais ativa e uma voz mais direta na produção dos dados, sendo uma questão nodal no campo epistemológico adotado.

Segundo Souza (2007, p.7), “a criança é sujeito social, investigado, observado e compreendido a partir de perspectivas investigativas e teóricas distintas”. Ressaltamos que as temáticas sobre a criança e a infância, estão hoje em destaque, não como pano de fundo, uma vez que elas aparecem na relação do dia a dia das crianças com seus pais, nos discursos deles, nas análises discursivas, nas reflexões teóricas de perspectivas da antropologia, da história, da filosofia, da sociologia, da arquitetura, da psicologia, e emergem dos olhares e lugares que os adultos assumem quando se referem aos infantis.

2 APONTAMENTOS SOBRE A GOVERNAMENTALIDADE E A PROVA BRASIL NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA

Inicialmente, recorremos ao que Foucault (2008) nomeia por governamentalidade. Seria,

1) o conjunto constituído pelas instituições, procedimentos, análises e reflexões, cálculos e táticas que permitem exercer esta forma bastante específica e complexa de poder, que tem por alvo a população, por forma principal de saber a economia política e os instrumentos técnicos essenciais os dispositivos de segurança. 2) a tendência que em todo Ocidente conduziu incessantemente, durante muito tempo, à preeminência deste tipo de poder, que se pode chamar de governo, sobre todos os outros – soberania, disciplina etc. – e levou ao desenvolvimento de uma série de aparelhos específicos de governo e de um conjunto de saberes. 3) o resultado do processo através do qual o Estado de justiça da Idade Média, que se tornou os séculos XV e XVI Estado administrativo, foi pouco a pouco governamentalizado. (FOUCAULT, 2008, p. 143)[2].

O conceito de governamentalidade é apresentada na aula do dia 1º de fevereiro de 1978, em seu Curso no Collège de France e depois publicada em sua obra Segurança, Território e População no mesmo ano. Foucault elabora uma tese de que o Estado utilizará mecanismos, táticas, práticas, saberes, procedimentos, análises, cálculos para exercer um poder específico sobre a população, o que em termos simples seria a “arte de governar”. Ou seja, “a população vai ser objeto que o governo deverá levar em conta nas suas observações, em seu saber, para chegar efetivamente a governar de maneira racional e refletida.” (FOUCAULT, 2008, p. 140).

Essa arte de governar é capaz de governar cada um e todos, empreendendo formas de individualizar e normalizar os sujeitos, formando suas subjetividades e guiando as suas condutas, através da observação, dos discursos, da vigilância e do exame, o que culminará na regulamentação da população.

Neste mesmo Curso de 1978 no Collège de France, Foucault propõe traçar uma história da governamentalidade, ou um que também podemos denominar de racionalidade governamental, descoberta no século XVIII e que permitiu ao Estado governar a população, inclusive garantindo a sua sobrevivência até hoje. Nas palavras de Foucault (2013), gerir a população significa geri-la em profundidade, minuciosamente, em cada detalhe.

Para tal estratégia, é preciso conhecer de maneira sutil a população, analisar os detalhes, os gestos, os gostos, os desejos, por isso que o exercício do poder disciplinar é atualizado na governamentalidade, envolvendo uma série de racionalidades (exames, estatísticas, cálculos, análises) sobre a população, para que o Estado esteja apto a governá-la. (TEMER, 2013).

Afirmamos que a governamentalidade é um esforço por parte do Estado em produzir sujeitos governáveis, através de tecnologias e dispositivos que tentam controlar, normalizar e moldar a conduta da população. Essa gestão da sociedade é realizada de forma detalhada, calculada, sofisticada e minuciosa através de uma racionalidade política: o neoliberalismo. De acordo com Avelino (2016):

No neoliberalismo não é o indivíduo que pensa sua conduta, e com esse gesto reflexivo, se fortalece enquanto sujeito da vontade; ao contrário, ele é pensado: objetivado pelas verdades da economia que estruturarão sua liberdade, isto é, seu campo de ação, para constituí-lo como sujeito econômico. (AVELINO, 2016, p. 164).

Para Bujes (2002), o que a governamentalidade neoliberal põe em ação, são novas técnicas de governamento, mais sutis, que atuam tanto direta quanto indiretamente e que pretendem que cada um se torne, o mais amplamente possível, responsável por si mesmo, desenvolva suas competências e seja capaz de fazer escolhas. Contribuindo com a discussão, Veiga-Neto (2013) aponta que a governamentalidade neoliberal intervirá para maximizar a competição, para produzir liberdade, para que todos possam estar no jogo econômico.

Sendo assim, o neoliberalismo torna a população infantil, principalmente das camadas populares, suscetíveis às tecnologias de governo, controle e assujeitamento, sendo a educação uma estratégia válida para tal empreendimento.

Ao analisarmos as políticas educacionais implementadas no Brasil no fim do século XX e início do século XXI, tomamos o conceito de governamentalidade como uma ferramenta potente para investigar as tecnologias governamentais, apropriadas por tais políticas neoliberais, especificamente as relacionadas às avaliações em larga escala, para fabricar subjetividades infantis e consequentemente produzir o sujeito cidadão afinado com um estado governamentalizado.

Nesse sentido,

a educação escolar, transformando a criança em aluno, configura-se como estratégia de governamento que se articula ao modelo de sociedade que se instaura, de maneira que o indivíduo, a criança-aluno, acaba sendo o instrumento e a própria condição para a realização do governo da população naquilo que se espera da infância em face da efetivação do projeto social escampado pela Modernidade. (RESENDE, 2015, p. 134).

Podemos observar que a escola se torna um mecanismo específico de governo da população infantil e de interesse do neoliberalismo, na qual as crianças são submetidas a uma série de táticas, que recebem especial incremento através das políticas de avaliações em larga escala, que maximizam o seu potencial cognitivo, disciplinando os seus corpos, responsabilizando-as por resultados, para que sejam úteis, produtivas e validem essa perspectiva de qualidade educacional, associada a escores quantitativos e padronizados.

O exame torna-se um elemento importante na condução das crianças nas escolas. Para Foucault (2013, p. 177), “o exame combina as técnicas de hierarquia que vigia e as da sanção que normaliza. É um controle normalizante, uma vigilância que permite qualificar, classificar e punir. Estabelece sobre os indivíduos uma visibilidade através da qual eles são diferenciados e sancionados”. De acordo com Danelon (2015), esse saber – o exame – produz um saber sobre as crianças que as define como pessoa, permitindo à escola classificar e ordenar, definindo seu lugar e seu espaço.

Estas avaliações estandizardas, que tem ganhado espaço cada vez maior nas políticas educacionais das últimas três décadas, implicam na extração máxima das forças e do tempo das crianças, utilizando táticas diárias de cooptação dos sujeitos, regulando seus corpos, suas mentes e seus gestos. Essa maquinaria escolar desenvolve processos contínuos de governo, normalização, regulação, condução e controle.

Há um investimento sobre as crianças dos 5º anos do ensino fundamental, sendo transformadas em máquinas eficazes e produtivas, envolvidas em saberes e discursos de conformação da infância, que provoca a produção de uma subjetividade infantil moderna, tornando-as dóceis, eficientes e utilitárias, atendendo a padrões e comportamentos desejáveis e normalizadores para a sua formação, inclusive sobre o seu exercício para a cidadania.

Corroborando com a discussão, Popkewitz (2011), apresenta que:

a moderna criança escolar é a pessoa que aprende a ser um cidadão, que tem responsabilidades abstratas relacionadas ao governo do Estado, que tem potencial como trabalhador, que aprende habilidades e sensibilidades culturais para uso futuro e que é automonitorada em seu desenvolvimento afetivo e cognitivo (POPKEWITZ, 2011, p. 178).

Assim sendo, ser aluno é uma condição social de viver a infância, o que implicará no papel primordial da escola para a formação cidadã, intervindo e dirigindo a vida das crianças, para uma força de trabalho desejável que atenda aos ditames do Estado governamentalizado, que centrará suas ações nesta instituição que exerce de forma eficiente a política do detalhe, controlando a vida, as almas, os corpos e as liberdades infantis.

A partir do exposto, temos observado no Brasil a centralidade que as avaliações em larga escala têm ganhado nas políticas educacionais atuais, subordinadas por organismos internacionais, a exemplo do Banco Mundial (BM) e da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que tem reorientados as políticas públicas, seguindo os imperativos da racionalidade econômica e trazendo impactos para a educação brasileira.

Sob a influência do Programme for International Student Assessment (PISA) nas políticas de avaliação da educação brasileira, temos observado a proliferação de avaliações oficiais em todos os níveis da educação e a criação demasiada de sistemas de avaliação em âmbito estadual e municipal por todo o país. De acordo com Oliveira (2020), o PISA tem sido a principal referência na atualidade para analisar o contexto educativo mundial e no Brasil, único país sul-americano que participa desde a sua primeira aplicação no ano 2000, sendo utilizado como instrumento de regulação da educação.

A Avaliação Nacional do Rendimento Escolar (ANRESC), também chamada de Prova Brasil, foi criada em 2005, através da Portaria nº 931/2005, após uma reestruturação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB), tendo como objetivo avaliar de forma censitária e homogênea os estudantes dos 5º e 9º anos do Ensino Fundamental, nas disciplinas de Língua Portuguesa e Matemática, produzindo resultados sobre a qualidade do ensino.

Nesse ínterim, em 2007 é criado o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), através do Decreto nº 6.094/2007, estabelecendo metas a serem alcançadas pelas escolas públicas a partir de parâmetros que definem a qualidade da educação. Este indicador analisa o fluxo escolar e as médias de desempenho nas avaliações. É calculado com base no desempenho dos estudantes no SAEB/Prova Brasil e em taxas de aprovação e reprovação. Conforme ressalta Oliveira (2020), o IDEB se constitui como parâmetro para a formulação de políticas voltadas para a educação básica pública, sendo o PISA referência para a metodologia adotada por este indicador.

Destacamos que o IDEB possui um prazo de término no ano de 2022, quando será publicizado os resultados da Prova Brasil aplicada no ano de 2021. Quando criado em 2007, o discurso governamental é que até 2022, bicentenário da Independência do País, a “qualidade” da Educação Básica estaria garantida para todos os brasileiros. No entanto, afirmamos as incertezas sob a permanência ou não do IDEB enquanto política educacional, devido a ação do governo Bolsonaro, que tem tirado a educação das prioridades governamentais.

Observamos, portanto, o reducionismo da qualidade da educação a aspectos meramente quantitativos relacionados às avaliações estandizardas, e neste caso da pesquisa, a Prova Brasil; desconsiderando os contextos e cotidianos escolares, alinhando currículo e avaliação, controlando resultados obtidos pelas escolas públicas, estabelecendo escores, produzindo ranqueamentos e estimulando a competividade e performances.

Contudo, precisamos problematizar o tipo de sujeito-cidadão que se pretende formar neste predomínio de um projeto educacional neoliberal, que tem colocado as crianças do ensino fundamental, e aqui especificamente do 5º ano, como objeto de políticas que almejam governar suas condutas, fabricar subjetividades e determinar formas de ser, estar e viver na sociedade.

3 A FORMAÇÃO DA CIDADANIA INFANTIL E OS IMPACTOS DA PROVA BRASIL

A escola é lugar que dá sentido a muitas lutas por lugares de produção e de vida digna e justa. Mas carrega uma força simbólica de direito aos outros lugares em disputa por cidadania, justiça e dignidade. (ARROYO, 2011).

Segundo Pizzi (2015), as crianças do ensino fundamental ao ingressarem na escola, ingressam numa grande maquinaria institucional de discursos e práticas cuja intenção é prepará-las para a vida adulta, para serem futuros trabalhadores e cidadãos decentes, negando a infância. Nesse sentido, mesmo a escola podendo ser considerada uma instituição de “sequestro”, também tem sido um espaço onde circulam práticas e discursos que a relacionam como instrumento de ascensão social e promoção da cidadania, concorrendo para dar um sentido mais progressista à educação. O grande questionamento é que tipo de cidadania é essa, que expõe as crianças, principalmente oriundas das camadas populares a segregações, humilhações, reprovações e insucesso escolar.

Quando perguntamos às crianças entrevistadas, o que era cidadania, a grande maioria das crianças demonstrou dificuldades em formular suas hipóteses e conceitos. No entanto, as crianças abaixo conseguem se expressar, de forma muito rica, sobre seu entendimento.

Pra mim cidadania é (pausa) é os cidadãos vivendo em harmonia. Pra mim, nada de violência, todos obedecendo às leis, tudo mais. (Menina Natália)

Cidadania! Sim eu já ouvi uma vez, mas parece que faz umas duas semanas, eu não me lembro muito bem qual é o significado. Pra mim cidadania é uma pessoa cidadã, que cuida da sua cidade, ou mais um bairro, cidadania é essa coisa, cuidar da cidade, aí todos cuidam da cidade, pra mim isso é cidadania, cuidar do lugar que você vive, para todos terem uma vida melhor. (Menino Lucas).

Assim, eu já ouvi as pessoas falarem, mas eu não entendo muito o significado. Eu acho que tem a ver com cidade e cidadão, é isso que eu sei. (Menina Eva).

É (pausa) como é! É solidariedade, é ajudar as pessoas, e ser um bom cidadão, cuidar da cidade. (Menina Azul[3])

Acho que é (pausa), cidadania é uma cidade grande com pessoas unidas. (Menino Júnior).

As falas dessas crianças que responderam, demonstram entender intuitivamente algumas noções importantes do que seria a cidadania. Fizeram relação com o conceito, deduzindo da palavra cidade, que sugere uma forma de viver coletivamente em sociedade, como também viver harmoniosamente em sociedade. Uma forma simples e direta de nos lembrar que, para além de indivíduos, somos um coletivo, vivendo num lugar que precisa ser cuidado por todos, unidos, para termos uma vida boa. Cidadania, assim colocada, seriam os sujeitos concretos, ativos e participativos na vida coletiva democrática , como sujeitos úteis à cidade. A dificuldade em dar voz às crianças, sobre temas coletivos relevantes é uma limitação adulta e tendo a escola dificuldades em proporcionar ou ampliar espaços de participação das crianças em decisões que atingem o seu grupo social, perdem uma chance importante de elevar o entendimento de cidadania para esferas políticas, a partir desse entendimento fundamental por eles/as apresentados.

A escola possuía o grêmio estudantil, enquanto instância colegiada e de deliberação para a tomada de decisões, no entanto, as crianças não participavam, apenas os estudantes do 6º ao 9º ano do ensino fundamental. As demais crianças participantes da pesquisa afirmaram não saber ou nunca ter ouvido falar sobre o assunto. No momento de realização da entrevista na Sala de Leitura, tentamos incentivá-las a falar, apontando para um livro que estava na prateleira próxima a nós com o título “Cidadania”, inclusive perguntamos se elas já tinham lido aquele livro e as crianças responderam que não.

Apesar das manifestações de apenas cinco crianças sobre o tema, percebemos que a grande maioria não conseguiu criar o seu próprio entendimento do que seria cidadania, demonstrando a ausência de estímulo de sua capacidade inventiva, e de seus modos de viver, agir e compreender o mundo, muitas vezes limitada pela própria escola: “Parece que a gente foi vê um vídeo lá em cima (referindo-se à sala de recursos multimeios), parece que foi, mas não era cidadania, era uma coisa parecida com cidadania.” (Menino Júnior).

De acordo com Biesta (2017), as escolas são claramente lugares onde é extremamente difícil agir e ser um sujeito democrático. Podemos observar nas falas das crianças, quando há um entendimento difuso propagado sobre direitos e deveres dos cidadãos, limitado a uma cidadania com mais deveres que direitos, e com caráter punitivo, que tem sido uma forma histórica das escolas de controlar e disciplinar as condutas adequadas para se ter na escola:

Ela (Professora) sempre trabalhou que se tinha um dever que se a gente não fizesse, eu tinha que ter tipo, sem recreio, porque a gente tinha que cumprir os nossos deveres e direitos. (Menina Natália).

Na escola eles imprimiram uns papéis e colocaram na sala, que a gente não podia ficar correndo pelos corredores toda hora, eles colocaram meio que umas regras pra gente. Só falaram essas regras básicas, que não pode vim sem farda, que não pode vim de short, é isso. (Menina Eva).

A importância das regras e punições como um padrão de projeto educativo escolar, reflete diretamente um tipo de cidadão configurado na formação ofertada pela escola pesquisada. Há um claro distanciamento em compreender a assumir as crianças como partícipes da vida em sociedade desde a infância, em favor de um entendimento da necessidade de maturação do sujeito para a vida adulta, nos quais as regras e punições jogam um papel central. Para Pizzi (2015, p.12): “a cidadania, portanto, não pode ser considerada como mera função implícita da escola, mas como um dos maiores objetivos de todo o sistema educacional no mundo ocidental”.

De acordo com Arroyo (2011), nas escolas públicas populares não chegam cidadãos exigindo o direito à educação, à produção cultural, intelectual, ética, política, chegam civilizáveis, conscientizáveis para passarem à condição de cidadãos. E ainda aponta, que para serem reconhecidos como cidadãos, terão que passar por condicionantes que impõe ser educados, ordeiros, cultos, civilizados, racionais, letrados, conscientes e críticos. Conforme exposto pelas crianças:

Eles incentivam a gente a ser um bom cidadão. Os nossos deveres, estudar, ser um bom aluno, respeitar os professores, e os outros funcionários. (Menina Azul).

Depois da Prova Brasil, eu era muito responsável, mas depois da Prova Brasil eu me tornei mais responsável ainda, mas responsável do que eu era, com as minhas coisas. (Menina Gabriele).

O bom cidadão desta escola passa em primeiro lugar, pelo disciplinamento e a responsabilidade, valores importantes para a sociedade e muito caros para a escola. Segundo Bujes (2002), o discurso da cidadania é uma das pedras de toque da racionalidade política liberal que tem como um de seus principais objetivos integrar os indivíduos à sociedade. O sujeito infantil é agora visto como um cidadão, com direitos à proteção social e à educação e que tem de aprender, que sua cidadania significa acima de tudo, cumprir seus deveres sociais, suas obrigações, com responsabilidade social, como contrapartida.

Assim, a escolarização vai sendo atrelada ao exercício de uma certa perspectiva limitada de cidadania, em detrimento de uma perspectiva mais complexa, política, e ainda inacessível para a realidade das escolas públicas voltadas para as camadas populares. Conforme afirma Dornelles (2011), há uma regulação sobre os corpos das crianças, seus gestos, sua postura, suas atitudes, sua alimentação, suas brincadeiras, etc., possibilitando a fabricação de sujeitos dóceis e úteis para os desígnios do governo. A cidadania “ensinada” nas escolas, seria aquela que visa formar “homens de bem”, responsáveis, educados, cumpridores de suas obrigações e ajustados às normas sociais. E mais, alinhados ao desejo de punir todos aqueles que não cumprem essas regaras.

A Prova Brasil, enquanto política educacional, reforça claramente essa noção, quase associando-se a uma ideia de obediência e submissão, visando atingir uma meta coletiva, considerada como positiva para a comunidade escolar. Assim, as professoras dos 5º anos desenvolveram estratégias de engajamento das crianças e suas famílias para atendimento aos desígnios da Prova, como por exemplo: grupo de WhatsApp, cronograma de afazeres externo à escola com horários definidos, inclusive para se alimentar, dormir e brincar, exibição de vídeos explicando o que era IDEB para as famílias, entre outras táticas. Reforçando a necessidade de estarem ativamente engajados, como algo benéfico e que teria várias compensações nisso.

A escola desenvolveu um ritual diário de condução das condutas das crianças, que não estava apenas relacionada aos aspectos cognitivos, mas também, produzindo discursos diários propagados em um microfone no pátio da escola antes de entrar em sala de aula, reforçando a necessidade da dedicação infantil para a Prova Brasil e responsabilização do IDEB da escola, instrumentalizando as crianças para que se tornem cidadãos adequados e educados.

Para Arroyo (2011, p. 366): “prometer-lhe a cidadania pela escolarização é um engano. Uma forma não apenas de ocultar, mas de legitimar os reais processos históricos de produzi-los como subcidadãos”. O autor aponta que passamos mais de três décadas defendendo educação para a cidadania, no entanto, o reconhecimento das minorias presentes nas escolas públicas, como cidadãos plenos, de direitos está longe. Mais escolarizados, porém subcidadãos. Estes mesmos sujeitos, devem contribuir na produção da riqueza nacional pelo trabalho, conforme aponta a fala do menino Lucas:

Para se ter um futuro melhor e para ter um trabalho, nós precisamos de estudo principalmente, ter relação, assim, na profissão que nós queremos, temos que saber agora desde a infância, mas assim, quando as pessoas crescerem e essa profissão não acontecer, vai se tentando outra que também goste. (Menino Lucas).

Apesar dessa perspectiva ainda limitada no contexto escolar, para Muller (2007), a criança cidadã é uma conquista em vários sentidos, até na lei, entretanto, falta muito para que todas as crianças passem a exercê-la e conquistem concretamente uma vida digna. Contudo, a escola passa a ser o lugar de reconhecimento do exercício da cidadania e da ocupação de outros espaços sociais, que garantirão uma vida digna, com equidade e justiça social.

Um ponto importante e que merece destaque neste trabalho é o brincar. As crianças associaram a cidadania ao direito de brincar. Um elemento primordial nas formas de aprender, ser criativo, se desenvolver, de participar da vida social e de produção de suas subjetividades, é ter o direito de brincar.

A gente brinca bastante na hora do recreio, a gente conversa, ao mesmo tempo que a gente também faz o dever, que é importante, muito importante. Direito de brincar, dever, fazer a tarefa, se comportar, quando a professora está explicando uma tarefa. Direito de (pausa), fazer as coisas que a gente gosta na escola, dever, não jogar o lixo no chão, jogar na lixeira, plástico, vidros, papéis e metal, não jogar os copos em lugares que não for na cantina. (Menina Jack).

Brincar é um direito e nesse contexto de Prova Brasil, se torna uma contraconduta, pois o tempo de brincar é invadido pelas atividades e tarefas voltadas para o exame, mesmo com as determinações burocráticas para o alcance de indicadores e o governo sobre as suas condutas para performances satisfatórias, as crianças resistem. No entanto, algumas crianças demonstraram certo conformismo com o fato de que deveriam renunciar ao brincar, algo muito importante para suas vidas, para se dedicarem à Prova Brasil. Assim as crianças percebiam seu envolvimento: “Mas na Prova Brasil a gente parou de brincar. É porque é uma prova importante, né? E não pode brincar numa prova importante.” (Menino Júnior).

Durante o ano letivo de aplicação da Prova Brasil, as professoras criaram um grupo de WhatsApp da turma com os responsáveis legais das crianças. O objetivo era socializar vídeos informativos sobre o IDEB com as famílias e delimitar horários extraescolares a serem seguidos rigidamente. Em um quadro elaborado pelas professoras, o tempo de brincar ficou restrito ao horário das 16h às 17h30, já que as crianças estudavam no turno matutino. Percebe-se uma clara intenção de invadir a vida privada, pondo em funcionamento práticas de governamento sobre as crianças e suas famílias: “A minha mãe só deixava eu sair [para brincar] quando eu estudava. Só quando era na prova do IDEB, mas depois ela deixa.” (Menino Ronaldo).

Na escola, o brincar tinha uma relação intrínseca com o IDEB, objetificando as crianças para uma racionalidade governamental que regula as políticas de avaliações oficiais, seguindo aparatos de controle para gerir as vidas dos infantis:

Sempre tinha vídeos falando, sempre tinha algo pra descontrair, mas sempre focando no Ideb. (Menina Natália).

A professora sempre fazia brincadeiras, envolvendo a matemática e o português, sempre fazia, tipo, é... (pausa), muitas brincadeiras, aí a gente ficava tranquila. Até na educação física, a professora fazia brincadeiras que envolvia matemática e português. (Menina Bianca).

De acordo com o depoimento das crianças, a escola promovia gincanas com os descritores de Língua Portuguesa e Matemática, simulados aos sábados letivos, premiações, exibição de vídeos informativos sobre o IDEB, inclusive do prefeito da cidade desejando boa sorte na prova , reforço escolar exclusivo para os estudantes que fariam a Prova Brasil, produção de apostilas, entre outras ações, como por exemplo, a utilização de um tapete vermelho para os estudantes dos 5º anos entrarem na escola no dia da aplicação do exame, ao som de um repertório religioso protestante.

A cidadania necessita ser pensada como pertencimento a um território político, cultural, identitário. Pertencimento este, à diversidade de espaços, inclusive a escola e os currículos, com reconhecimento de sua existência frente à inexistência a que foram condenados. (ARROYO, 2011).

Ressaltamos também que foi possível observar um certo grau de protagonismo infantil e o exercício de emancipação do pensamento das crianças nas ações desenvolvidas pela escola, mesmo tendo uma postura institucionalizada, focada em metas educacionais, principalmente durante o ano letivo de aplicação da Prova Brasil: “teve um projeto literário, cada um tinha que fazer uma fábula, aí a gente ia fazer duas, aí eu dei a opinião, de fazer a tartaruga e a lebre, até que eu fui narrar essa história.” (Menina Natália).

Destacamos que a participação das crianças dos 5º anos em projetos pedagógicos era restrita aos que de alguma forma se relacionassem aos descritores da Prova Brasil, a contação de história semanal por exemplo, era uma ação cotidiana e planejada na escola, mas especificamente estas crianças eram excluídas de participar, mesmo sendo algo prazeroso para elas, conforme nossa observação e conversas informais.

A infância (pobre), seu governo e seu controle se exercitam primordialmente por meio de políticas, programas e projetos assistenciais, socioeducativos e culturais, que a coloca, em grande medida, numa posição suscetível a esta forma de construção de um tipo de cidadão, que muitas vezes se distancia de uma concepção de sujeitos de direitos afirmativos e políticos, comprometendo sua formação para o exercício de sua cidadania plena.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A discussão sobre cidadania da criança é recente na história nacional, pois tem a sua gênese a partir do arcabouço legal que é promulgado no Brasil ao final da década de 1980, sob a influência da Declaração Universal dos Direitos da Criança, em 1959 e da Convenção Mundial dos Direitos da Criança, em 1989, que foram premissas ao ideário da cidadania da infância.

Nessa conjuntura, a criança passa a ser considerada cidadã plena de direitos sociais e institucionais, deixando de ser objeto de tutela, com garantia de direitos de proteção, provisão e participação. No entanto, o projeto neoliberal de sociedade possui um discurso de igualdade, que encobre as profundas desigualdades sociais, na qual são vitimizadas milhares de crianças no Brasil, construindo uma normatividade da infância que ignora a sua diversidade.

As políticas públicas educacionais têm se preocupado com a formação de uma criança cidadã ajustada, normalizada e útil para a economia global. Neste sistema globalizado, de racionalidade política, a criança é um ser histórico social e cultural, mas principalmente consumidora e futura classe trabalhadora.

Na contemporaneidade, a concepção de cidadania necessita ser problematizada para entender como estes processos são constituídos nas escolas públicas brasileiras, principalmente as que atendem prioritariamente as camadas populares dos interiores deste país. Uma cidadania na qual relaciona qualidade da educação, com sucesso de resultados, responsabilizando as crianças como definidoras de resultados universais e padronizados, tendem a limitar politicamente os sujeitos, que acabam sendo sujeitados, tendo suas subjetividades controladas e limitadas desde tenra idade. Objetivam engajar os estudantes infantis em discursos e atividades que visam apenas atender às regras de um estado governamentalizado, cujos resultados não seriam o de elevar de fato a qualidade do ensino.

A partir do estudo realizado, observamos com preocupação a falta de uma compreensão mais ampla das crianças sobre o que é cidadania, ou ainda, limitações em formular conceitos, para além daqueles relacionados ao cumprimento de deveres e direitos, sendo os deveres predominantes em detrimento de seus direitos, para assim se tornarem cidadãs ajustadas, educadas e úteis para a sociedade. É importante frisar que uma provável limitação na concepção de cidadania, se deva à ausência desta discussão no currículo da escola e à imposição de uma conduta normalizadora fortemente orientada para o alcance dos indicadores educacionais, ainda que não possa ser generalizada para os anos em que a Prova Brasil não é aplicada.

Por outro lado, o direito de brincar foi mencionado, por ser algo que eles resistem em renunciar, pelo valor que dão a essa atividade nas suas vidas. As crianças demonstraram entender o brincar como um direito e a valorização de sua capacidade inventiva e com seus tempos e lógicas próprias. Brincar se tornou um tema em disputa cidadã real, frente à imposição governamental orientada para os resultados esperados na realização da Prova Brasil, tanto dentro da escola, quanto fora dela, na medida em que até mesmo quando estão em casa, seus tempos livres até então destinados para brincar, precisam ser negociados com as lições e estudos extras, orientados para o ranking do IDEB. E talvez nesse momento, a disputa pelo tempo e o direito de brincar, se revele a cidadania em ação na vida familiar e escolar das crianças, uma vez que entendemos que cidadania, nas sociedades liberais, são disputa, são luta.

Esta pesquisa nos suscitou um alerta. Precisamos observar se essa forma de organizar a escola e a conduta das crianças em torno do seu desempenho na Prova Brasil, não acabe invadindo o cotidiano da escola, as estratégias de gestão e as atividades didáticas docentes, para além dos anos em que a Prova é de fato aplicada. A lógica governamental tende a ser totalitária e invadir todos os domínios, tempos e espaços em que atua.

Finalizamos, afirmando que relacionar cidadania a direitos de aprendizagem, compreendidos pelas políticas educacionais atuais como aquisição de habilidades e competências de Língua Portuguesa e Matemática para a Prova Brasil, intimamente relacionadas aos ranqueamentos internacionais, ou ainda, associá-la ao cumprimento de direitos e deveres, de forma autoritária e punitiva, não evidencia a educação como emancipadora, democrática, inclusiva e potencializadora da formação cidadã das crianças, mas sim, como produção de cidadãos dóceis e governáveis.

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Notas

[1] A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de Alagoas, em Reunião Plenária do dia 20 de janeiro de 2015, sob o processo nº 38534814.1.0000.5013.
[2] O conceito de governamentalidade é apresentado por Michel Foucault em sua aula do dia 1º de fevereiro de 1978 no curso no Collège de France, nos anos de 1977-1978 e posteriormente se transformaria na obra Segurança, Território, População (1978). A escolha teórica em apresentar o conceito, parte do entendimento de problematizar as práticas de governo sobre as crianças que conduzem suas condutas para determinados lugares e finalidades.
[3] Azul foi o nome fictício escolhido por uma menina participante da pesquisa por ser sua cor preferida. Durante a coleta de dados da pesquisa ela estava com os cabelos longos cacheados pintados de azul.
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