Artigos
CURRÍCULO E FORMAÇÃO DOCENTE MULTICULTURAL EM TEMPOS (PÓS)- PANDÊMICOS
CURRICULUM AND MULTICULTURAL TEACHER TRAINING IN (POST) PANDEMIC TIMES
CURRÍCULO Y FORMACIÓN MULTICULTURAL DEL PROFESORADO EN TIEMPOS DE PANDEMIA (POST)
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 1, 2023
Recepção: 07 Novembro 2022
Aprovação: 19 Março 2023
Resumo: O presente artigo baseia-se em estudos anteriormente realizados (IVENICKI, 2021 a, b, c), bem como em palestra recente no X Colóquio Internacional de Políticas Curriculares/VI Seminário Nacional do Grupo de Pesquisa Currículo e Práticas Educativas/III Simpósio da Região Nordeste sobre Currículo, realizado na Universidade Federal da Paraíba, em setembro de 2022, abordando a temática em tela. O objetivo central é o de contribuir para se desvendar contradições e desafios dos contextos educacionais que lidam com a pluralidade cultural, desafios estes que ainda ficaram mais expostos com o surgimento da pandemia de Coronavírus COVID-19, que eclodiu no mundo em 2020. O artigo aborda, em primeiro lugar, os significados das perspectivas multiculturais (IVENICKI, 2018, 2019, 2020) e interseccionais na educação e no currículo, apontando para suas possibilidades em contextos desiguais e multiculturais. Em seguida, delineia uma visão das políticas educacionais brasileiras voltadas para a mitigação do impacto da pandemia COVID-19 no sistema educacional brasileiro e seus impactos. Conclui, apresentando considerações para se pensar em currículos multiculturais e interseccionais em período (pós) pandêmico, de modo a se vislumbrar uma educação que busque superar desigualdades e o apagamento das diferenças.
Palavras-chave: Multiculturalismo, Currículo, Cenários (pós) pandêmicos.
Abstract: This article is based on previous studies (IVENICKI, 2021 a, b, c), as well as on a recent lecture at the X International Colloquium on Curricular Policies/VI National Seminar of the Research Group Curriculum and Educational Practices/III Symposium of the Northeast Region on Curriculum, held at the Federal University of Paraíba in September 2022, addressing that theme. The central objective is to contribute to the unveiling of contradictions and challenges of educational contexts that deal with cultural plurality, challenges that were even more exposed with the emergence of the COVID-19 Coronavirus pandemic, which broke out in the world in 2020. The article deals, firstly, with the meanings of multicultural perspectives (IVENICKI, 2018, 2019, 2020) and intersectional perspectives in education and curriculum, pointing to its possibilities in unequal and multicultural contexts. Next, it outlines a vision of Brazilian educational policies aimed at mitigating the impact of the COVID-19 pandemic on the Brazilian educational system and its impacts. It concludes, presenting considerations to think about multicultural and intersectional curricula in a (post) pandemic period, in order to envision an education that seeks to overcome inequalities and the invisibility of differences.
Keywords: Multiculturalism, Curriculum, (Post) Pandemic Scenarios.
Resumen: Este artículo se basa en estudios previos (IVENICKI, 2021 a, b, c), así como en una conferencia reciente en el X Coloquio Internacional de Políticas Curriculares/VI Seminario Nacional del Grupo de Investigación Currículo y Prácticas Educativas/III Simposio de la Región Nordeste sobre Currículo, realizado en la Universidad Federal de Paraíba en septiembre de 2022, abordando el tema en pantalla. El objetivo central es contribuir a la develación de las contradicciones y desafíos de los contextos educativos que tienen que ver con la pluralidad cultural, desafíos que quedaron aún más expuestos con la aparición de la pandemia de Coronavirus COVID-19, que estalló en el mundo en 2020. El artículo trata, en primer lugar, de los significados de las perspectivas multiculturales (IVENICKI, 2018, 2019, 2020) y las perspectivas interseccionales en la educación y el currículo, señalando sus posibilidades en contextos desiguales y multiculturales. A continuación, esboza una visión de las políticas educativas brasileñas destinadas a mitigar el impacto de la pandemia de COVID-19 en el sistema educativo brasileño y sus impactos. Concluye, presentando consideraciones para pensar en currículos multiculturales e interseccionales en un período pandémico (post), con el fin de vislumbrar una educación que busca superar las desigualdades y el pago de diferencias.
Palabras clave: multiculturalismo, currículo, escenarios (post) pandémicos.
1 UM OLHAR MULTICULTURAL E INTERSECCIONAL SOBRE EDUCAÇÃO E CURRÍCULO
Pensar multiculturalmente sobre o currículo no contexto da escolaridade e do ensino superior, incluindo a formação de professores, implica reconhecer seu potencial para promover a valorização da diversidade cultural e desafiar o racismo, as desigualdades, os preconceitos e o silenciamento de vozes de grupos subordinados em face de caracteres identitários de raça, etnia, gênero e outros marcadores de identidade (BANKS, 2004; IVENICKI, 2018; 2019; 2020, 2021 a,b,c; CANDAU; MOREIRA, 2008; RIBEIRO, 2022). Nessa perspectiva, as possibilidades de diálogos curriculares são buscadas em um horizonte curricular concebido multiculturalmente como um espaço de diferenciação e de valorização da alteridade. Nesse horizonte, o conceito de interseccionalidade tem sido utilizado em perspectivas multiculturais e é considerado relevante para se considerar a complexidade da construção das identidades plurais e as formas de se combater o preconceito e o silenciamento das mesmas. Segundo Coleman (2019), a interseccionalidade foi popularizada pela primeira vez por Kimberlé Crenshaw que, em um artigo escrito em 1991 chamado "Mapeando as Margens", em que explicou como os sujeitos se apresentam como mulheres e também pessoas de cor, marginalizadas por discursos que, embora bem intencionados multiculturalmente, são estruturados para responder a um ou outro marcador de identidade, sem a necessária visão articulada de gênero e identidade étnico-racial. Tais considerações partem da ideia de que vivemos vidas complexas, interseccionadas, no interior de sistemas de privilégio e opressão.
Traduzir tais considerações para o currículo multicultural pode, neste sentido, passar por temas multiculturais orientados a partir das histórias de vida e das perspectivas de identidades culturais interseccionais marginalizadas, como as identidades de gênero e étnico-raciais. Tais temáticas, articuladas, também, a assuntos mais convencionais ligados às áreas curriculares escolares e pedagógicas, na formação de professores, podem contribuir para que se perceba formas alternativas de se trabalhar o currículo. Isso porque, além do foco nas identidades, ilustrado acima, a questão do conhecimento é outro aspecto relevante na área curricular. Neste caso, experiências curriculares narradas, com sensibilidade multicultural, recorrem a formas em que o conhecimento é "multiculturalizado".
Nesse horizonte, que enfatiza o conhecimento multiculturalizado, Boaler e Sengupta-Irving (2012) trazem tal dimensão das experiências curriculares multiculturais para o contexto do ensino de matemática, uma disciplina normalmente associada a perspectivas "universalistas" e pretensamente desprovida de gênero. Esses autores mostram que a forma tradicional de ensinar matemática, por meio de demonstrações e, em seguida, através da prática e memorização, acaba perpetuando o fracasso das identidades de gênero plurais, que não estão representadas em tal método. As evidências da pesquisa citadas por Boaler e Sengupta-Irving (2012) demonstram que tal forma de apresentar a matemática de forma abstrata e descontextualizada acaba por ser mais "alienante" para as identidades femininas do que masculinas, por exemplo, e para as culturas minoritárias do grupo identitário citado, perpetuando a desigualdade de gênero, particularmente nas notas mais avançadas. Esses autores propõem, portanto, que o conhecimento matemático seja usado como disciplina discursiva e contextualizada.
Stein (2017) aponta para a necessidade de incorporar visões críticas pós-coloniais e decolonias, que permitam problematizar o acesso a processos históricos e diferenciais de poder acumulados nas formas pelas quais o conhecimento institucional hegemônico se perpetua em contextos educacionais no âmbito da educação superior. Tal visão mais crítica pode ser incentivada no que Stein (2017) chama de perspectiva curricular multicultural de "inclusão espessa" (STEIN, 2017). Nessa perspectiva, o currículo na formação docente e no contexto do ensino superior teria como objetivo incentivar os alunos a constantemente problematizar as "boas intenções" do currículo e incorporar tradições não ocidentais e não hegemônicas na abordagem curricular. Essa perspectiva crítica, no entanto, segundo Stein (2017), ainda desenvolve o multiculturalismo curricular no âmbito do próprio currículo dominante, embora avance em relação à perspectiva anterior.
No âmbito do currículo internacional, Stein (2017) aponta que predominaram essas visões multiculturalistas de inclusão curricular fraca ou forte, juntamente com outras que defendem a interdisciplinaridade e instituições alternativas, que o autor aponta como não favorecendo formas emancipatórias de promover visões hegemônicas alternativas do currículo. Sugere, nesta linha de argumento, visões pós-coloniais e decolonias em uma abordagem que ela chama de "abordagem ecologia de saberes". Tal visão seria constituída pelo desafio à universalidade defendida pelo pensamento ocidental, articulando- se, à crítica desse pseudo-universalismo, o estudo do conhecimento deslegitimado pelas perspectivas colonialistas. Nessa perspectiva, Stein (2017) argumenta que uma gama de conhecimentos pode coexistir em contextos curriculares específicos, sem a intenção de mostrar a capacidade que esse conhecimento tem de representar "objetivamente" a realidade em todos os contextos. Nessa ecologia do conhecimento em visões postais e decolonias, múltiplos saberes não lutam pela hegemonia curricular, uma vez que cada um é parcial, provisório e vinculado a contextos específicos, sempre promovendo respostas problemáticas e "incompletas", em sentido semelhante ao que defendem autores com o olhar sobre o currículo em lentes pós-estruturalistas e discursivas (LOPES, 2018; MACEDO, 2006; RIBEIRO, 2022).
Ao mesmo tempo, autores como Vargas e Sanhueza (2018) apontam que é importante desenvolver pesquisas que busquem aprofundar estratégias curriculares de gestão e atenção à diversidade que possam ir além de suas práticas de reconhecimento, mas que envolvam uma problematização crítica das desigualdades legitimadas e reproduzidas nos espaços educacionais, através de modelos multiculturalistas de formação docente que superam a preparação exclusiva em habilidades técnicas relevantes para as áreas de estudo. Nesse sentido, a categoria de identidade é "desessencializada”, o que, segundo essa perspectiva, poderia ajudar professores, futuros professores e alunos a entender a relevância de desafiar abordagens dicotômicas que acabam congelando "eu" e o "outro". Pelo contrário, essas abordagens defendem que a diferença deve ser entendida como vinculada a processos de colonização que subestimam o conhecimento dos "colonizados". Tais processos, nesse ponto de vista, ainda seriam inerentes no currículo e na formação de professores e, portanto, poderia ser desafiado em perspectivas pedagógicas de experiências curriculares multiculturais orientadas com sensibilidades críticas, pós-coloniais e descolonias.
Nesse sentido, pesquisa desenvolvida por Almeida et al. (2018) no Brasil confirma a relevância das abordagens multiculturais e interseccionais para a educação, sinalizando formas em que as categorias raça e etnia estão frequentemente entrelaçadas com outras configurações sociais, como classe, gênero e sexualidade. Os autores citados enfatizam a importância de reconhecer tal sobreposição para a formulação de estratégias de ensino e aprendizagem voltadas à compreensão e ao respeito à diversidade cultural e ao combate à desigualdade no Brasil.
Considerando essas visões no contexto do início do COVID-19, Tate IV (2020) argumentou que uma pandemia mais infecciosa vem acontecendo há muito tempo entre nós, a "pandemia de segregação", ou seja, uma ideologia da biologia racial que vem "infectando" o mundo, causando uma doença – racismo – que se espalha globalmente, inclusive o Brasil, o que reforça a necessidade de perspectivas multiculturais e interseccionais na educação.
2 POLÍTICAS EDUCACIONAIS EM TEMPOS PANDÊMICOS: visão retrospectiva, multicultural e interseccional
Como podemos derivar lições multiculturais a partir do processo pandêmico, em períodos esperançosamente (pós) pandêmicos?
Para discutir tais questões, neste ponto é interessante analisar o processo que precedeu a adoção de políticas educacionais voltadas para a mitigação dos efeitos do COVID-19 sobre a educação no Brasil. No início do COVID-19 no Brasil, o CNE emitiu diretrizes a serem tomadas nos tempos de pandemia por todas as instituições públicas de ensino (CNE, 2020). O processo que precedeu a emissão dessas diretrizes teve a ver com o fato de que a crise do COVID-19 resultou no fim das aulas nas escolas e universidades, afetando mais de 90% dos alunos no mundo. Além disso, em 20 de maio de 2020, após forte pressão de acadêmicos e estudantes, o Ministério da Educação decidiu adiar o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM). No momento em que a pandemia apareceu, o Ministério da Educação decidiu emitir políticas educacionais que deveriam orientar o sistema público de ensino a lidar com a situação extraordinária.
Embora os cursos online distantes no Brasil aparentemente tenham aumentado, o documento da CNE (CNE, 2020) afirmou que ainda careciam de uma cobertura mais difundida. Em seguida, ressaltou a importância de ampliar a oferta de cursos de ensino superior on-line distantes e oferecer condições para que o acesso a plataformas tecnológicas de computador pudesse ser bem sucedido, embora não esclarecesse como isso poderia ser feito. O documento referiu-se especificamente, à importância dos mecanismos híbridos e passou a se referir à pandemia COVID-19 e à Portaria nº 345/2020 (CNE, 2020), que autorizava as instituições de ensino superior a mudarem as aulas no local por outras que utilizam tecnologias digitais, incluindo disciplinas teóricas de Medicina, com exceção de laboratórios e disciplinas de ensino.
Além disso, o referido documento recomendou que as instituições de ensino superior substituíssem as aulas presenciais por aulas de aprendizagem remotas e distantes por meio de tecnologias digitais, incluindo práticas de avaliação, bem como que organizassem a formação de professores de forma a prepará-los para lidarem com elas. Entre essas medidas, havia também a recomendação de que a seleção de ingresso dos alunos fosse feita de forma digital e que as instituições de ensino superior deveriam usar mídias sociais como WhatsApp, Facebook, Instagram etc. para fomentar e supervisionar estudos e projetos.
Nota-se, a partir de uma visão crítica multicultural, que houve uma predominância da dimensão técnica dentro da ênfase na aprendizagem online que permeou essas regulamentações. Seria importante, a partir do argumento aqui defendido, que tais medidas fossem acompanhadas de perspectivas multiculturais que pudessem assumir as dimensões emocionais, afetuosas e culturais dos alunos. Isso é indiscutivelmente crucial, considerando-se o contexto altamente multicultural do Brasil, bem como o início peculiar e complexo da pandemia COVID-19. Numa perspectiva crítica, multicultural e interseccional, tais diretrizes poderiam articular as orientações de aprendizado online a perspectivas curriculares que levam a desigualdade e a diversidade cultural a bordo. Os extratos desse documento na última seção pareciam apoiar esse argumento.
De fato, a pandemia COVID-19 evidenciou obstáculos que têm afetado o sistema educacional público brasileiro, incluindo as crianças e os estudantes jovens e adultos que o frequentam. Em termos dos desafios do acesso aos artefatos digitais, é importante ressaltar que a aprendizagem online foi o foco principal das políticas educacionais emitidas como resposta ao surgimento do COVID-19 no Brasil. No entanto, uma análise multicultural e interseccional aponta que a desigualdade deve dificultar o sucesso desse foco de aprendizagem digital. De fato, o Brasil tem enfrentado desafios semelhantes aos de outros países do BRICS (STEYN et al., 2018). Por exemplo, em grandes cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, Portanto, entende-se que o início do COVID-19 e as medidas para garantir o distanciamento social e a lavagem das mãos tiveram problemas em muitos desses locais.
No entanto, por outro lado, foram lugares onde iniciativas de ajuda e sentimentos das comunidades também floresceram, como uma série de iniciativas das próprias comunidades e de outras agências que ajudaram as pessoas, com a distribuição de álcool em gel, alimentos e outros suprimentos. Dessa forma, ao focar quase exclusivamente na aprendizagem online, o documento analisado pela CNE acima parecia silenciar a diversidade cultural, social e econômica, bem como questões de desigualdade. De fato, enquanto as escolas privadas poderiam desenvolver aulas online, as públicas lutaram para fazer isso, particularmente considerando a desigualdade de acesso digital pelos alunos. De fato, as notícias brasileiras têm apontado consistentemente que a maioria dos estudantes no Brasil, incluindo estudantes adultos, não têm tido acesso à aprendizagem digital. Algumas escolas desenvolveram formas de distribuir materiais impressos para os alunos, mas a formação de professores e a formação continuada de professores também devem ser indiscutivelmente parte do pensamento interseccional sobre o desenvolvimento curricular multicultural e digital. Embora muitos dos docentes das escolas se esforçassem para entender como usar meios digitais, a maioria não tinha treinamento adequado e salários compatíveis para ter meios digitais para operar aulas online.
Esse acesso desigual a artefatos on-line e digital também foi sentido no próprio nível de ensino superior. A panaceia pela qual a aprendizagem digital foi percebida nas políticas educacionais sofreu uma verificação da realidade. A falta de acesso às tecnologias digitais para poder frequentar aulas online de ensino superior também provocou a decisão da maioria das universidades públicas brasileiras de suspender o calendário acadêmico de 2020 em vez de continuar as aulas por meio de estratégias de aprendizagem online e digital. A partir de agosto de 2020, soluções multiculturais e interseccionais parecem ter sido apresentadas pelas universidades públicas na medida em que questionários foram distribuídos a professores, funcionários e alunos, a fim de medir o tipo de acesso digital que todos tinham. Após essa medida, as universidades públicas forneceram a distribuição de modems de internet e apoio financeiro para os necessitados, e aulas virtuais, remotas e online começaram em setembro para estudantes de graduação e pós-graduação. Um período experimental foi definido on-line entre setembro e novembro de 2020. Então o primeiro semestre de 2020 foi desenvolvido totalmente online de novembro de 2020 até março de 2021, o segundo acontecendo de lá até junho de 2021. Isso significa que o calendário acadêmico correspondente ao ano de 2021 foi decidido de forma a minimizar a interrupção das atividades acadêmicas e do calendário acadêmico.
Por outro lado, o segundo aspecto a considerar seria, a partir de nosso olhar, o da necessidade de práticas curriculares multiculturais serem consideradas. Isso significa incluir a diversidade cultural e seu potencial de desenvolvimento curricular transformador no texto de políticas educacionais voltadas para mitigar os efeitos do COVID-19. De fato, as perspectivas multiculturais devem, sem dúvida, ser voltadas para o foco nos potenciais dos alunos por meio de diálogos com suas origens culturais plurais para proporcionar um aprendizado significativo para todos. Além disso, tal perspectiva educacional multicultural (IVENICKI, 2018; 2019; 2020) deve ser relevante na forma de combater o racismo, o sexismo e outros preconceitos, elevando os alunos de origens marginalizadas e privilegiadas para respeitar e valorizar a diversidade cultural.
Recomendações para melhoria ou consideração por elaboradores de políticas semelhantes em países multiculturais deveriam, sem dúvida, incluir sugestões de formas que possam aprofundar estratégias curriculares de gestão e atenção à diversidade, por meio de modelos multiculturalistas de formação docente que possam: superar a preparação exclusiva em habilidades técnicas relevantes para as áreas de estudo; incorporar visões críticas pós-coloniais e decolonias, que permitam problematizar o acesso a processos históricos e diferenciais de poder acumulados nas formas pelas quais o conhecimento institucional hegemônico é perpetuado; ilustrar maneiras pelas quais o currículo mais tradicional pode vir a ser articulado preocupações multiculturais, discutindo seu impacto na valorização dos conhecimentos decoloniais (IVENICKI, 2018; 2019; 2020; WARREN; CANEN, 2012; BOALER; SENGUPTA-IRVING, 2012; STEIN, 2018); e descobrir como o COVID-19 impactou a vida dos alunos ao incluir suas histórias de vida nas atividades de desenvolvimento curricular e ajudá-los a lidar positivamente com esses desafios.
Embora o início do COVID-19 em 2020 tenha feito uma marca surpreendente em todo o mundo, semelhanças e diferenças entre os países mostraram que uma pandemia não significa apenas o ataque de uma epidemia, mas também revela desafios que já estavam presentes de forma semelhante ou peculiar em diferentes sociedades.
É interessante notar que autores como Rafalow e Puckett (2022) afirmam que, mesmo em sociedades como a norte-americana, onde o acesso a tecnologias digitais é relativamente positivo para toda a camada populacional, ainda persistem desigualdades por outros mecanismos como, por exemplo, o fato de que muitas instituições de ensino superior categorizam as “pegadas digitais” dos alunos em suas redes sociais como parte de um processo informal para avaliá-los e classificá-los. Os autores citados afirmam que tais instituições de ensino operam como “máquinas de triagem”, pois tais classificações levam a desfechos econômicos desiguais, bem como a diferentes chances de vida para os alunos, “previsivelmente ao longo das linhas de raça-etnia, classe, gênero e outros status sociais" (tradução livre, p. 277).
Em termos de pedagogia, parece estar claro que conceitos de aprendizagem e aprendizagem digital devem ser desenvolvidos de mãos dadas. O fato de professores e professores de ensino superior terem sido convidados a desenvolver materiais digitais sem terem sido preparados para isso deveria ser seriamente considerado. Além disso, como argumentado por Araujo et. al. (2020), quando as escolas reabriram novamente, estratégias como o aumento do tempo de estudo ou o uso de tecnologias deveriam ter impacto na realização dos alunos. Eles sugerem que algumas medidas como fazer uso mais eficiente do tempo, com tutoria intensiva focada em alunos marginalizados, deveria ser mais eficiente.
Afirmamos que duas lições podem ter sido aprendidas com o tempo da pandemia, no que diz respeito ao aprendizado digital ao longo da vida e ao ensino superior. Em primeiro lugar, essa aprendizagem digital é principalmente sobre aprender, propriamente dito. Nesse sentido, é fundamental esclarecer o que significa aprendizagem significativa no contexto da aprendizagem ao longo da vida e até que ponto os professores estão equipados, tanto com as tecnologias digitais, quanto com as estratégias curriculares e pedagógicas que visam fomentar esse tipo de aprendizagem.
O segundo aspecto refere-se às políticas educacionais de equidade e justiça social que devem ser consideradas nos contextos locais onde se desenvolve a aprendizagem. Esse aspecto deve ser considerado em um paradigma multicultural e orientado à equidade na aprendizagem ao longo da vida. Nesse sentido, é fundamental problematizar até que ponto as políticas educacionais visam o acesso heterogêneo à tecnologia, particularmente em sociedades altamente desiguais.
Em relação ao primeiro aspecto referente à aprendizagem, numa perspectiva multicultural, autores como Candau e Moreira (2008) e Ivenicki (2018, 2019) chamam a atenção para a necessidade de compreender os contextos e identidades culturais plurais dos alunos adultos para que uma aprendizagem efetiva possa acontecer. Moreira et. al. (2017) ilustram essa necessidade, ao expressar como as culturas e modos de vida dos alunos adultos impactaram seriamente o resultado do curso digital on-line distante que eles organizaram para professores de ensino superior. Eles mostraram que uma das fraquezas mais relevantes foi a falta de tempo para fazer as atividades e, especialmente quando um equilíbrio deveria ser alcançado entre trabalho, responsabilidades familiares e outros negócios diários e os requisitos do curso, aspectos que estiveram presentes durante o período de pandemias do COVID 19 em várias casas onde as famílias foram isoladas em todo o mundo. Além do aspecto temporal, outra fraqueza encontrada foi a de que algumas das ferramentas digitais foram percebidas como difíceis de usar, embora os estudantes adultos fossem um grupo formado por professores de ensino superior, o que levou os autores a considerarem contextos e significados culturais para que a aprendizagem digital fosse bem-sucedida na aprendizagem ao longo da vida – aspecto que também foi fortemente sentido durante a pandemia do COVID 19 em todo o mundo.
A formação de professores multiculturais deve, sem dúvida, melhorar o papel dos professores na valorização da diversidade cultural e perspectivas inclusivas no processo de ensino e aprendizagem (CANDAU; MOREIRA, 2008; IVENICKI, 2018, 2019). Como postulado por Lopes et. al. (2018), o currículo deve incluir lugares para a discussão de questões de identidade, como gênero e sexualidade, que não podem mais ser silenciadas. Na mesma linha, Macedo (2006) sugere que o currículo não deve ser pensado como um conceito universal, mas sim como um conjunto de discursos provisórios que devem abraçar narrativas de identidades plurais.
Na aprendizagem ao longo da vida, a abordagem de Paulo Freire para a educação de adultos e a alfabetização de adultos tem inspirado o pensamento multicultural, na prática de destacar a centralidade de fornecer ensino baseado em temas generativos ligados à vida dos adultos para o sucesso do desenvolvimento curricular e da competência de alfabetização. Tal abordagem para a aprendizagem deve ser susceptiva de capacitar as identidades dos alunos de gênero, classe, raça, etnia e outros. Deve problematizar narrativas e discursos hegemônicos que essencializem os conhecimentos em detrimento do respeito e da construção dos contextos e origens culturais dos alunos adultos plurais. Tais ideias devem, sem dúvida, transformar o currículo de ensino superior para que ele seja mais flexível e culturalmente relevante, sendo adaptado tanto para o aprendizado on-line no local quanto para o aprendizado on-line digital, em abordagens transformadoras para os alunos ao longo da vida.
Nesse contexto, a ligação entre mudança cultural e aprendizagem digital parece ser central para que o aprendizado ao longo da vida aconteça através da aprendizagem digital. Nesse sentido, a aprendizagem digital deve ser objeto de aprendizagem, mas também dos meios pelos quais o fortalecimento das identidades culturais individuais e coletivas deve acontecer. Aprendizagem eficaz digital ao longo da vida é indiscutivelmente impulsionada quando o ensino leva em conta as diferenças culturais locais e fornece o fortalecimento das identidades dos adultos. Nesse sentido, o papel dos professores é destacado à medida que eles continuam sendo centrais no planejamento e desenvolvimento de estratégias curriculares que devem permitir que o pensamento crítico, as sensibilidades multiculturais e a aprendizagem significativa ocorram.
De forma construtiva, a eclosão da pandemia de COVID 19 deve nos dar a oportunidade de pensar em alternativas transformadoras para que o ensino superior possa repensar o currículo e as pedagogias, no Brasil e no mundo. A formação docente e a aprendizagem ao longo da vida não devem, portanto, limitar a aprendizagem digital a um meio, mas também mudar o conteúdo curricular e transformá-lo em uma nova forma de aprendizagem. Isso deve ser feito tanto no caso de cursos presenciais quanto de modelos de aprendizagem digital distantes, para que o ensino superior e o aprendizado ao longo da vida mudem, positivamente, para enfrentar um novo mundo.
De forma construtiva e positiva, afirmamos que esses desafios trazidos pela COVID-19 poderiam servir como um incentivo para melhorar as áreas em que a desigualdade educacional e as deficiências de desenvolvimento curricular têm sido generalizadas.
CONCLUSÕES: Período (pós) covid e possibilidades
O presente artigo abordou os conceitos de abordagens curriculares multiculturais e interseccionais como lente para a análise de estratégias e políticas educacionais emitidas por ocasião da eclosão da pandemia de COVID-19 em 2020 e para sugerir possíveis caminhos para o currículo (pós) pandêmico, multiculturalmente orientado.
A análise mostrou que as políticas educacionais mencionadas pareciam destacar a necessidade de aprendizagem digital. No entanto, em uma abordagem multicultural e interseccional, parecia claro que conceitos de aprendizagem e aprendizagem digital deveriam ser desenvolvidos lado a lado. Dentro de um quadro multicultural, a aprendizagem digital não deve se limitar a questões tecnológicas. Além de fornecer meios para que grupos social e culturalmente diversos tenham acesso à aprendizagem digital, outras medidas devem ser seriamente consideradas em futuras políticas educacionais em países multiculturais. Dessa forma, para que ocorra uma aprendizagem efetiva, parece haver necessidade de apoiar professores e professores universitários para uma mudança cultural nas estratégias de aprendizagem. Em uma perspectiva multicultural, isso significa valorizar a diversidade cultural e promover formas de usar a aprendizagem digital para apoiá-la.
O multiculturalismo e a interseccionalidade revelam desigualdades, racismos e preconceitos que impedem estudantes e funcionários de aproveitarem, ao máximo, seus potenciais, resultando na segregação e marginalização das identidades culturais nas linhas de raça, etnia, gênero e intersecção de outros marcadores de identidade. Em termos curriculares, perspectivas multiculturais decoloniais e pós-coloniais revelam os conhecimentos hegemônicos selecionados e a necessidade de colocar culturas marginalizadas na vanguarda, de modo a promover a educação democrática e potencializadora de todas as identidades plurais.
Uma outra ordem de considerações no que se refere ao período pós-pandêmico refere-se, como discutimos (Ivenicki, 2021c), à relativização das críticas exacerbadas ao ensino remoto, que acabou por levar ao reconhecimento de sua importância, sem desmerecer o valor inestimável do ensino presencial. A possibilidade de realização de bancas de exames de qualificação, de defesas de teses, de dissertações e de monografias com membros externos das mais diversas partes do Brasil e do mundo, assim como as lives, contando com renomados pesquisadores nacionais e internacionais, dentre outras oportunidades da vida acadêmica, foram aspecto positivo, mostrando que o ensino remoto apresenta perspectivas promissoras de intercâmbio.
Uma outra possibilidade pós-pandêmica refere-se à possibilidade de um currículo que indague sobre as formas de relação com a natureza para mitigar os efeitos do aquecimento global e a interferência humana nas cadeias ecológicas, de modo a reverter o desequilíbrio das espécies e a intensificação das pandemias. Nesse sentido, a sabedoria dos povos indígenas e dos guardiões das florestas passa a ser valorizada, em uma perspectiva multicultural de diálogo com a pluralidade de saberes e de desafio a preconceitos que acabam por reproduzir saberes coloniais em detrimento daqueles produzidos pelos grupos locais.
Espera-se que o presente artigo possa contribuir para discussões que possam desafiar a desigualdade educacional no presente e no tempo pós-pandemia, em direção a um futuro educacional mais promissor e multicultural para todos.
REFERÊNCIAS
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