Artigos
PROFESSORES E AUXILIARES DE CRECHE: Refletindo sobre o currículo da Educação Infantil
TEACHERS AND ASSISTANTS: Reflecting on the curriculum of the Early Childhood Education
PROFESORES Y AUXILIARES: Reflexionando sobre el currículo de Educación Infantil
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 1, 2023
Recepção: 01 Novembro 2022
Aprovação: 28 Março 2023
Resumo: O presente artigo problematiza a tensa relação entre professores e auxiliares de turma. Essa divisão de trabalho estabelecida legalmente prejudica o binômio cuidar-educar e impacta consideravelmente a qualidade do trabalho na primeira infância. Sustentar-se-á que existe uma indissociabilidade dessas funções, conforme orienta o currículo referência de Minas Gerais e todos os documentos norteadores da educação infantil. Esta análise documental tem como objetivo investigar o currículo referência de Minas Gerais a fim de apontar suas perspectivas sobre cuidar e educar na educação infantil, sublinhando as funções do professor e do auxiliar na creche. Na primeira parte apresentar-se-á um breve panorama da história da educação infantil e sua luta para legitimação como uma etapa da educação básica. Em seguida, examinar-se-á a realidade de professores e auxiliares de creche no município do sul de Minas Gerais a respeito da divisão administrativa do trabalho, comparando com o que o currículo referência de Minas Gerais considera ideal para a educação infantil. Espera-se encontrar um direcionamento da legislação para o fortalecimento da educação infantil como um direito, onde o cuidar e o educar não estão pautados em filantropia ou assistencialismo, mas em políticas públicas.
Palavras-chave: Currículo, Educação Infantil, Trabalho Docente.
Abstract: This article problematizes the tense ratio between teachers and class assistants. This legally established division of labor undermines the care-education binomial and has a considerable impact on the quality of early childhood work. It will be argued that there is an inseparability of these functions, as guided by the reference curriculum of Minas Gerais and all the guiding documents of early childhood education. This documental analysis aims to investigate the reference curriculum of Minas Gerais in order to point out its perspectives on caring and educating in early childhood education, underlining the roles of the teacher and the kindergarten assistant. The first part will present a brief overview of the history of early childhood education and its struggle for legitimacy as a stage of basic education. It will be studied the reality of teachers and kindergarten assistants in the southern municipality of Minas Gerais regarding the administrative division of labor will be examined, comparing with what the reference curriculum of Minas Gerais considers ideal for early childhood education. It is expected to find a direction of legislation to strengthen early childhood education as a right, where caring and educating are not based on philanthropy or welfare, but on public policies.
Keywords: Resume, Child education, Teaching work.
Resumen: Este artículo problematiza la relación tensa entre profesores y asistentes de clase. Esta división del trabajo legalmente establecida socava el binomio cuidado-educación y tiene un impacto considerable en la calidad del trabajo en la primera infancia. Se argumentará que hay una inseparabilidad de estas funciones, como lo orienta el currículo de referencia de Minas Gerais y todos los documentos rectores de la educación infantil. Este análisis documental tiene como objetivo investigar el currículo de referencia de Minas Gerais para señalar sus perspectivas sobre cuidar y educar en la educación infantil, destacando los roles del maestro y del asistente en la guardería. La primera parte presentará un breve recorrido por la historia de la educación infantil y su lucha por la legitimidad como etapa de la educación básica. Luego, se examinará la realidad de los docentes y auxiliares de párvulos del municipio sureño de Minas Gerais en cuanto a la división administrativa del trabajo, comparándolo con lo que el currículo de referencia de Minas Gerais considera ideal para la educación inicial. Se espera encontrar un rumbo de legislación para el fortalecimiento de la educación inicial como un derecho, donde cuidar y educar no se basen en la filantropía o el bienestar, sino en políticas públicas.
Palabras clave: Reanudar, Educación Infantil, Trabajo docente.
1 INTRODUÇÃO
Por muitos séculos a concepção de infância não foi radicada e a criança que ainda tinha adquirido maturidade e forma física de adultos e já partilhava de seus afazeres e jogos (ÁRIES, 1978) o que torna a infância um conceito da sociedade contemporânea. Com ela, nasce a preocupação com a educação voltado para a criança e a possibilidade de frequentar um ambiente de socialização entre as idades, convivendo e adquirindo diferentes conceitos da cultura com a interação entre seus pares. A educação infantil passa por diferentes momentos, tomando diferentes concepções até se tornar uma modalidade de ensino.
Apesar dos marcos históricos na legislação, a Educação Infantil não tem o início da sua trajetória nas políticas públicas, mas bem antes, baseada em uma política assistencialista promovida por instituições religiosas que se espalharam no Brasil no século XIX (DIDONET, 2001, p. 13). Ela é uma modalidade de ensino que atende estudantes de zero a cinco anos. Esta não era responsabilidade do Estado até 1988, o que é alterado com a tramitação da Constituição Federal. A legislação tornou-se pioneira no Brasil e foi seguida por outros marcos como o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional-[LDB] (BRASIL, 1996) que torna a educação infantil parte da educação básica.
Não obstante em ocupar o mesmo patamar do Ensino Fundamental e do Ensino Médio, ainda não era obrigatória até a Emenda Constitucional nº 59/2009 que a torna obrigatória a educação básica dos 04 aos 17 anos de idade. Incluída na LDB em 2013, a Educação Infantil passa, então, a ser um dever do Estado, obrigatória e reconhecida como direito das crianças.
A aprovação da Base Nacional Comum Curricular (BRASIL, 2017) trouxe para os Estados e Municípios a obrigatoriedade de adequação de seus currículos escolares para o ano letivo de 2020. O currículo referência de Minas Gerais nasce dessa demanda em 2018, a partir da colaboração de Estado e seus oitocentos e cinquenta e três municípios, num processo de análise curricular, de consulta pública on-line e encontros municipais, num esforço imenso de dialogar com as esferas da educação básica, da educação infantil ao ensino fundamental.
O artigo se justifica porque a despeito das incontáveis contribuições teóricas, bem como o avanço na legislação educacional e a mudança radical de paradigma de educação infantil como direito e não como auxílio assistencialista a realidade aponta um amplo desacordo entre o discurso da lei e o cotidiano de muitas escolas infantis, principalmente nas relações entre o cuidar e educar e a função do professor e das auxiliares de creche.
Portanto, esta pesquisa tem como objetivo contribuir para a construção de uma educação infantil que rompa com seu passado assistencialista e promova os direitos garantidos em legislação para as crianças de zero a cinco anos.
2 MATERIAL E MÉTODOS
Este artigo preocupa-se em analisar o papel dos professores e auxiliares de turma na creche e suas respectivas posições entre o cuidar e o educar. Além da abordagem teórica, analisar-se-á sistematicamente o Currículo Referência de Minas Gerais [CRMG]. Portanto, este trabalho adota um foco qualitativo, utilizando-se da observação e da análise documental. A pesquisa qualitativa busca perceber o caminho por qual os indivíduos idealizam significados e tem por propriedade descrevê-los, procurando avaliar os dados com riqueza admitindo ao investigador fazer uso de distintas técnicas para coleta de dados (BOGDAN; BIKLEN, 2003).
Foi fundamentado pela leitura do Currículo Referência de Minas Gerais que é um currículo referência norteador das ações pedagógicas para todo o território estadual.
A análise do CRMG restringiu-se ao capítulo dois, que trata, especificamente, da educação infantil. Está organizado em introdução, trajetória histórica e marcos legais, princípios norteadores, organização curricular, planejamento e experiências, avaliação e registro e estrutura curricular para a Educação Infantil. No tratamento do documento, os itens “princípios norteadores”, “organização curricular”, “planejamento e experiências” e “estrutura curricular para a Educação Infantil” foram privilegiados, pois tocam diretamente no problema central da pesquisa.
Analisou-se também o edital do último concurso público de uma secretaria de educação de um município no sul de Minas Gerais realizado em 2018. Foram avaliados carga horária de trabalho, escolaridade exigida, vencimentos, enquadramento funcional e atribuições dos cargos de professor e auxiliar de desenvolvimento infantil. Esses dados colocam em evidência a disparidade entre as funções acima mencionadas e ajudam na comparação entre o que estabelece o CRMG e o que o município estabelece para as unidades de educação infantil em relação a divisão de trabalho entre professores e auxiliares de turma. Ademais, a opção pela análise do edital se dá por ser um documento público de grande impacto que projeta uma perspectiva de atuação profissional para a educação infantil.
A atuação na educação infantil permite a observação do trabalho realizado no interior das creches e como ele se organiza de fato. As aulas práticas constituem a base empírica da dinâmica escolar desde um ponto de vista específico do trabalho docente. Tais observações in loco contribuem para um exame detido de descompassos e assimetrias entre as normativas da educação infantil e o efetivo funcionamento do referido nível de ensino no município de Minas Gerais.
Assim, o atual estudo é de natureza aplicada e objetivo exploratório, por ambicionar o alcance de informações com a realidade local, propiciando conhecimento e sugerindo a saída da dificuldade examinada (GERHARDT; SILVEIRA, 2009). Considerando esse caminho metodológico, será feita a apresentação e análise do CRMG para de tal modo averiguar o que nele é orientado sobre as perspectivas do cuidar e educar na educação infantil, se sublinha (ou não) as funções do professor e do auxiliar na creche. Com esses dados, realizar-se-á a comparação do que indica o documento com as diretrizes adotadas por uma secretaria de educação quanto a organização da educação infantil.
A secretaria de educação analisada se localiza no sul de Minas Gerais e atende um total de 1439 alunos no ano de 2020, que estão distribuídos em nove unidades escolares entre escolas e centros de educação infantil. Destes, 329 têm entre 1 ano e 7 meses a 3 anos e 11 meses, são classificados pela Base Nacional Comum Curricular [BNCC] como crianças bem pequenas e, logo, atendidas em creches. O CRMG foi adotado por esta administração municipal, pois, o município em questão não tem um regimento e nem currículo próprio e segue as diretrizes estaduais.
O caminho metodológico adotado se justifica pelo cotejamento das fontes jurídico-formais da educação infantil com a prática cotidiana de profissionais de educação infantil no ambiente escolar, a fim de lançar luz sobre sincronias e/ou assincronias entre uma projeção formal de atuação e uma práxis cotidiana eivada de outras determinações no âmbito da sala de aula.
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
No conceito de currículo, Saviani (2000), nos traz que é uma concepção de mundo, de homem e de sociedade. Compreende conhecimentos, ideias, hábitos, valores, convicções, técnicas, recursos, artefatos, procedimentos e símbolos dispostos em conjuntos de matérias/disciplinas escolares e respectivos programas, com indicações de atividades/experiências para sua consolidação e avaliação.
Numa visão crítica o currículo é considerado uma arena política, expressa necessariamente ideologia e relações de poder e está envolvido com os processos culturais. (MOREIRA; SILVA, 2002). Pode-se dizer que nos bastidores de todo currículo estão questões de identidade ou de subjetividade, que forma o que fomos, garantem o consenso e obtêm hegemonia (SILVA, 2020).
O currículo Referência de Minas Gerais é um documento que objetiva oferecer uma educação única, pública com qualidade e equidade, com oportunidade de formação que sejam equânimes a todos os estudantes do estado. Nasceu da colaboração da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação – UNDIME/MG, e das escolas privadas de educação e a Secretaria de Estado de Educação – SEE/MG. É um norteador para que as instituições de ensino possam organizar seus trabalhos, reformularem seus projetos pedagógicos e permitir que os professores reflitam sobre o exercício da profissão por meio de formação continuada e pesquisa. Tem como base os fundamentos da Constituição federal [CF], a LDB, o Plano Nacional de Educação [PNE] e, principalmente, a BNCC que foi homologada em 2018. Na elaboração do documento, formou-se grupos de trabalho com educadores de diferentes regiões do estado para garantir que as particularidades das regiões mineiras fossem agregadas às diretrizes e normativas da BNCC.
O Currículo Referência de Minas Gerais permite abertura à sessão da educação infantil com uma epígrafe de Manuel Bandeira intitulada “O beco”. Essa referência a mudança da visão do professor em relação a prática cotidiana e como isso pode transformá-lo e humanizá-lo, pois na educação está seu espaço de luta. Pode-se entender a visão redentora que está instaurada da escola como um organismo que se mantém restaurado por intermédio da escola (SAVIANI, 2012).
O CRMG define como educação infantil o trabalho de cuidar e educar as crianças de zero a cinco anos em creche e pré-escola. Destaca a função dessa etapa de ensino no parecer nº 20, de 2009, da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação [CNE/CEB], que versa sobre a revisão das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Evidencia a função sociopolítica e pedagógica dessas unidades na promoção de uma sociedade livre, justa, igualitária e ambientalmente responsável, além da redução da desigualdade e a oportunidade de bem-estar a todos, principalmente, no que tange às dificuldades no acesso a creche e as diferenças entre estudantes da zona rural e zona urbana, ricos e pobres, pretos e brancos e diferenças na qualidade do ensino promovido a cada uma dessas categorias.
Para orientar o trabalho pedagógico, o CRMG cita os três princípios fundamentais das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Infantil (BRASIL, 2010): éticos, políticos e estéticos. Para que os princípios éticos sejam efetivados, a prática docente deve estar embasada na promoção da autonomia e formação de vínculos afetivos fortes, combate ao preconceito e respeito aos direitos humanos. Os princípios políticos estão pautados nas práticas do diálogo, onde a instituição e os professores respeitam as opiniões, sentimentos e contestações das crianças e o veem como sujeitos de direitos. Por fim, os princípios estéticos contemplam a valorização de cada produção artística e balizam a expressão por diferentes linguagens (MINAS GERAIS, 2018).
A organização do CRMG está alicerçada na Base Nacional Comum Curricular e apresenta o art.3° da Resolução nº5/2009 para definir o currículo para as crianças na faixa etária de zero a cinco anos: uma junção entre as experiências e saberes das crianças de zero a cinco anos com os conhecimentos socialmente construídos para promover o desenvolvimento integral dos indivíduos (BRASIL, CNE/CEB, 2009). Tendo como apontador esse princípio, o CRMG divide a educação infantil em três grupos etários, bebês (de zero a 18 meses), crianças bem pequenas (de um ano e sete meses a três anos e 11 meses) e crianças pequenas (de quatro anos a cinco anos e 11 meses).
Os direitos de aprendizagem conviver, brincar, participar, explorar, expressar, conhecer-se são alicerce dessas faixas etárias, junto com a interação e a brincadeira. Baseando-se nesses direitos, foram divididos cinco eixos em campos de experiências: O eu, o outro e o nós; Corpo, gestos e movimentos; Traços, sons, cores e formas; Escuta, fala, pensamento e imaginação; Espaços, tempos, quantidades, relações e transformações.
O CRMG enfatiza que essa forma de organização altera a organização tradicional da educação infantil, que, geralmente, baseia-se em datas comemorativas, conteúdo ou componentes curriculares. Essa é uma alternativa para tirar do currículo saberes que são construídos só pelos docentes, deixando espaço para que as próprias crianças deem suas contribuições e experiências, tornando-os sujeitos ativos da aprendizagem, colocando o professor como mediador desse processo de ensino. Nessa perspectiva, a fragmentação dos conteúdos deixa de ser uma realidade da educação infantil, fazendo com que a experiência vivenciada seja produzida no meio vivido e sobre o meio vivido. Essa construção do currículo em rede, proporciona uma melhor compreensão da complexidade do todo (MINAS GERAIS, 2018).
O cuidar e o educar são discussões frequentes no campo da educação infantil, já é consenso entre os educadores e nas legislações oficiais sua inseparabilidade. Esses conceitos foram definidos no Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, que foi um marco importante para a luta por uma educação de qualidade nas creches e pré-escolas. O cuidar está relacionado a auxiliar o outro a se desenvolver como ser humano, cuidar, portanto, é assegurar para que o outro desenvolva habilidades. Envolve mais do que questões simplistas de higiene e alimentação, pois significa entender o que as crianças sentem e as amparar nas suas especificidades. Ademais, é preciso criar vínculos afetivos para perceber esses sujeitos como ativos e capazes que precisam ser ouvidos e respeitados (BRASIL,1998). Kramer (2005) corrobora salientando que o cuidado está pautado no outro, que deve prover todas as necessidades dos estudantes, sendo receptivo e sensível. Essas atividades, segundo ela, necessitam de tempo, empenho e confinidade. Já o educar é definido como proporcionar conjunturas que permitam a brincadeira, o cuidado e as aprendizagens de forma intencional e interligada (BRASIL, 1998). Não é uma transmissão de conhecimentos e envolve os atores infantis como protagonistas de sua própria aprendizagem, colaborando com a obtenção de autonomia. Na educação infantil, o educar está associado ao cuidar e ao brincar, pois não existe nada que não possa ser ensinado por meio do jogo e da brincadeira. Portanto, se um conhecimento não pode ser transformado em um jogo, ele não é necessário à criança (LIMA, 1986).
A indissociabilidade do binômio cuidar e educar é fundamental para uma aprendizagem significativa na educação infantil e acarretará num desenvolvimento eficaz e coeso com a faixa etária. O atrelamento do cuidar e educar depende da vinculação entre o saber e o saber fazer por parte do docente que necessita ter a compreensão sobre as singularidades desse trabalho, dos conhecimentos específicos sobre os aspectos sociais, emocionais, físicos e cognitivos que só um processo de ensino e de aprendizagem baseado nesse binômio pode ofertar (MINAS GERAIS, 2018). Portanto, não há nenhuma habilidade que possa ser desenvolvida na creche que seja desvinculada dos gestos de cuidado (DIDONET, 2003).
O CRMG pretende auxiliar as instituições de educação infantil na montagem de seu projeto pedagógico buscando organizar o trabalho de cuidar e educar crianças complementando a ação da família e da comunidade, enfatizando seu caráter indissociável.
Essa dicotomia nasceu com o surgimento das creches como instituições assistencialistas no século XIX e com a condição da mulher na manutenção da sociedade burguesa. Mészáros (2011) enfatiza que a mulher cumpre uma função social fundamental à educação dos filhos dentro dos preceitos da família monogâmica, assim, eram as mais indicadas para a educação de crianças, pois poderiam conciliar o trabalho doméstico ao profissional. Isso reservou à docência na educação infantil uma ideologia do sacerdócio, construída no imaginário social (ARROYO, 2013). Essa construção do imaginário social remete à epígrafe de abertura da CRMG, que sugere a educação para conservação da sociedade.
Nos princípios norteadores, o CRMG assinala algumas das funções dos professores utilizando a Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, utilizando três princípios fundamentais para orientação do trabalho: Princípios éticos, políticos e estéticos (BRASIL, 2010). Entretanto, para que esses princípios se efetivem na prática faz-se necessário refletir sobre o trabalho docente nas creches, na sua formação inicial e continuada, como a educação infantil está organizada em sua rotina, principalmente quando possui mais de uma profissional trabalhando na sala (professora regente e auxiliares de turma)[1].
Ávila (2002), diz que os professores são reconhecidos por questões ditas pedagógicas e as auxiliares pelas questões do cuidar (alimentação e higiene), o que mostra que o cuidar e o educar ainda são vistos separadamente na rotina da educação infantil. No mundo grego e romano o trabalho manual era tratado como indigno, havia um desprezo da atividade prática e superioridade do teórico sobre o prático. Podemos, então, dizer que o trabalho na creche está divido em trabalho intelectual e manual, conforme salienta Búfalo (1997), onde a função determinada para os monitores está muito próxima ao trabalho doméstico e os professores assumem função de legislar o que é correto ou não para os monitores fazerem, negando-lhes a oportunidade de planejamento de atividades, o que fere o tópico “Planejamento de experiências” do CRMG que salienta que a ação consciente, competente e crítica do professor que transforma a realidade e devem ser orientadas pelas ações de cuidar e educar as crianças.
Mesmo que não haja o discurso no CRMG, é imputado o cuidar para os auxiliares e o educar para o professor, como se essa separação fosse possível. Isso impacta diretamente na imagem que foi construída socialmente sobre o auxiliar, levando-o a uma profissão subordinada a outra mesmo que, geralmente, tenha formação equivalente.
Essa tensa relação não é mencionada no CRMG que trata todos os agentes como profissionais da educação, não levando em conta a disparidade entre esses sujeitos, suas diferenças salariais e as questões políticas, financeiras e de enquadramento funcional, atribuindo a todos a mesma função. Não se pode afirmar que o CRMG não menciona essas relações de forma intencional, mas elas permeiam o currículo, que numa concepção crítica legítima identidades individuais e sociais características, ademais é vinculado a formas particulares e eventuais de arranjo da sociedade e da educação (MOREIRA; SILVA, 2002)
Nessa concepção, encontramos o currículo oculto que é constituído por todos os aspectos que não são referidos no currículo oficial, mas que impactam inteiramente a formação dos indivíduos. (ibid, 2002). Na visão de Oliveira (2008) este currículo é o currículo soberano, pois pode propiciar domínio social e prélios políticos que podem impactar em mudança social.
Silva (2020) salienta que as condições de trabalho, a disposição da sala de aula, as relações de autoridade estabelecidas no ambiente, meios de recompensa e punição e divisão e organização do tempo ensinam e moldam os discentes a se adaptarem às contradições e injustiças da sociedade capitalista. Pode-se dizer, então, que as relações de trabalho e as relações sociais mostram para cada indivíduo seu lugar social, ligadas a seu papel de subordinação ou dominação. As crianças da classe trabalhadora aprendem atitudes próprias de seu papel: conformismo, obediência, individualismo. Através dos rituais das creches, da divisão de mais capazes e menos capazes, trabalho intelectual e trabalho manual e deste papel de subordinação que é imputado a todo momento às auxiliares de classe transmite-se uma mensagem.
Pode-se colocar essas questões como participantes do currículo oculto, pois recaem diretamente sobre a aprendizagem na educação infantil e corrobora a separação do cuidar e o educar. Pensar essas questões é uma operação indispensável da análise sociológica, porque esses processos sociais moldam a subjetividade da profissão docente na educação infantil diariamente e refletir sobre eles permite alguma possibilidade de mudança.
No último concurso público para a educação numa secretaria municipal de educação de Minas Gerais realizado em 2018, a formação exigida para professores era normal superior ou licenciatura em Pedagogia, com carga horária de 23 horas semanais, abarcando o 1/3 da jornada de planejamento como definido pela lei nº 11.738/08. Já a formação exigida para o cargo de auxiliar de creche é de 40 horas semanais e a formação exigida é magistério de nível médio. A diferença salarial e de carga horária é insofismável, enquanto o professor recebe $18,40 a hora/aula o auxiliar de sala recebe $8,02.
Não existe nesta secretaria de educação um documento que regulamenta as ações que devem ser executadas habitualmente pelos docentes e auxiliares de classe. Na Tabela 1 é apresentada uma comparação das tarefas propostas aos docentes e auxiliares, essas informações constam no edital do concurso de 2018.
Auxiliares de desenvolvimento infantil | Professores da educação infantil ao 5° ano |
Orientar e auxiliar as crianças no que se refere à higiene pessoal; | Participar na elaboração da proposta pedagógica da escola |
Auxiliar as crianças na alimentação; | Zelar pela aprendizagem dos alunos; |
Observar a saúde e o bem-estar das crianças levando-as quando necessário, para atendimento médico e ambulatorial; | Participar integralmente dos períodos dedicados ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento profissional; |
Ministrar medicamentos conforme prescrição médica; prestar primeiros socorros, cientificando o superior imediato da ocorrência; | Colaborar com as atividades de articulação com as famílias e a comunidade; |
Orientar os pais quanto à higiene infantil, comunicando-lhe os acontecimentos do dia; | Incumbir-se das demais tarefas indispensáveis ao atendimento dos fins educacionais da escola e do processo de ensino-aprendizagem; |
Auxiliar no recolhimento e entrega das crianças, acompanhando-as na entrada e saída deles, zelando assim pela sua segurança. | Zelar pelo cumprimento do Regimento Escolar |
Na análise do quadro comparativo há uma discrepância entre o que o município regula e o que o CRMG propõe. Em seu tópico “ser professor na educação infantil” defende que há uma particularidade em trabalhar na educação infantil, pois se torna uma tarefa complexa que compreende saber e saber-fazer, o que significa integrar o cuidar e educar, uma dimensão não pode se sobrepor a outra. Nas atribuições dos dois cargos, essa separação é colocada mais uma vez em evidência.
Problematizando essa relação levando em consideração a história do Brasil, Kramer (2003) chama atenção para a ideia equivocada de cuidado relacionado com atividades manuais, que tem como fundo uma sociedade escravocrata que não enxerga as atividades básicas de conservação da vida ligadas às atividades de cognição. Só uma sociedade que teve durante anos a separação de casa grande e senzala, uma expressão máxima de desigualdade, poderia separar o cuidar e o educar na instrução de crianças pequenas.
Uma outra questão a respeito da divisão de trabalho paira sobre uma secretaria municipal de educação de Minas Gerais: o trabalho realizado apenas pelas auxiliares no período vespertino, que são as únicas responsáveis pela sala de aula. Esse período totaliza seis horas diárias que estão sem acompanhamento e parceria, o que configura um paradoxo para a própria gestão, pois não são remuneradas como professores, mas podem exercer essa função por seis horas.
Esses dados vão salientar o pensamento de que a persistência da figura do auxiliar é uma maneira de burlar a requisição de formação, porque mesmo sendo requisitado, este profissional custa mais caro. A objeção não é contratar profissionais habilitados e sim pagar seus salários (CRAIDY apud ARRAIS E LAZARETTI). Além de terem seus salários menores, manter a figura da auxiliar garante a oneração desse profissional em outros benefícios garantidos pela Lei de Diretrizes e Bases da educação nacional (1996), art. 67, que especifica os pilares da valorização docente: formação profissional continuada com licença remunerada; progresso funcional baseado na titulação; período reservado a estudos, planejamento e avaliação incluído na carga horária de trabalho e condições adequadas de trabalho. Ademais, a nomenclatura diferenciada também traz outras perdas como a não comprovação de tempo de atuação como professor, que acarreta avaria em provas de título, a meia entrada em atividades culturais, desconto em eventos acadêmicos, inscrição em programas de formação continuada específicos para o magistério. Portanto, o enquadramento funcional diferente vai afetar diretamente as condições de trabalho e, portanto, as condições de vida (CONDE, 2018).
Tal fato se configura numa contradição, uma vez que a própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB/1996) não reconhece a categoria de auxiliar, pois estabelece que para trabalhar com crianças pequenas a titulação mínima exigida é a oferecida em nível médio na modalidade normal, portanto, esse profissional é o professor.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta pesquisa refletiu sobre as contradições existentes entre a prática pedagógica de professores e auxiliares de creche, a divisão do trabalho desses profissionais e o estipulado no currículo referência de Minas Gerais. A análise documental mostrou a importância da reflexão sobre a prática profissional, já que a separação das funções dos professores e dos auxiliares inviabilizam a existência do binômio cuidar-educar na prática. Essa organização administrativa corrobora para uma desvalorização da profissão docente e para uma perspectiva que pende para o assistencialismo. Esse imbróglio tem comprometido o trabalho na educação infantil e necessita de análise e discussões, sobretudo entre gestores da administração pública, professores, auxiliares de sala e estudiosos da educação. Coloca-se a bidocência como uma solução para a melhoria do trabalho com a primeira infância, que atende as prerrogativas legais apontadas no currículo de referência. A reflexão sobre essas questões pode ser um caminho para garantir a legalização desse modelo, viabilizando que os profissionais possam prosseguir por meio da militância em prol da educação infantil da rede.
REFERÊNCIAS
ARRAIS, L. F. L., LAZARETTI, L. M. Formação Do Professor Da Educação Infantil: os dilemas e as perspectivas da universidade. In: Didática e prática de ensino na relação com a formação de professores. 1 ed. Fortaleza: UECE, 2014. p. 3598 Disponível em: http://www.uece.br/endipe2014/ebooks/livro2/FORMA%C3%87%C3%83O%20DO%20PROFESSOR%20DA%20EDUCA%C3%87%C3%83O%20INFANTIL%20OS%20DILEMAS%20E%20AS%20PERSPECTIVAS%20DA%20UNIVERSIDADE.pdf. Acesso em: 10 jun. 2022.
ARIÈS, P. História social da criança e da família. Tradução: D. Flaksman. Rio de Janeiro: LCT, 1978.
ARROYO, M. Ofício de mestre: imagens e autoimagens. 15ª ed. Petrópolis: Vozes, 2013.
ÁVILA, M. J. F. As professoras de crianças pequenininhas e o cuidar e educar: um estudo sobre as práticas educativas em um CEMEI de Campinas/SP. Campinas, 2002. Dissertação. (Mestrado em educação). Faculdade de educação. Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002.
BOGDAN, R.; BIKLEN, S. A investigação qualitativa em educação: uma introdução às teorias e aos métodos. 12 ed. Porto: Porto Editora, 2013.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília, 2018.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretrizes curriculares nacionais para a educação infantil / Secretaria de Educação Básica. – Brasília: MEC, SEB, 2010.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.
BRASIL. Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei nº 9.394/ 1996, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. Diário Oficial da União. Brasília, DF, 23 dez. 1996.
BRASIL. Ministério de Educação e do Desporto. Referencial curricular nacional para educação infantil. Brasília, DF: MEC, 1998.
BRASIL. Estatuto da Criança e do Adolescente. Lei 8.069/90, de 13 de julho de 1990.
BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação.Câmara De Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Para a Educação Infantil. Resolução CNE/CEB 5/2009. Diário Oficial da União, Brasília, 18 de Dezembro de 2009b, Seção 1, P. 18.
BÚFALO, J. M. P. Creche: lugar de criança, lugar de infância: um estudo sobre as práticas educativas em um CEMEI de Campinas. 1997. Dissertação (Mestrado)—Faculdade de Educação, Unicamp, Campinas, SP.
COSTA, F. N. A. C. O Cuidar e o Educar na Educação Infantil. In: ANGOTTI, M. (Org.). Educação Infantil: para que, para quem e por quê? Campinas, SP: Alínea, 2008. 2 ed. p. 61-86.
CONDE, S. F. As condições de trabalho dos professores de educação infantil em Santa Catarina, Brasil. Nuances: estudos sobre Educação, v. 29, n. 3, 2018.
DIDONET, Vital. Creche: a que veio... para onde vai. Em aberto, v. 18, n. 73, 2001.
DIDONET, Vital. Não há educação sem cuidado. Revista Pátio de Educação Infantil, v. 1 n. 1, 2003.
GERHARDT, T. E.; SILVEIRA, D. T. Métodos de pesquisa. 1 ed. Editora da UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil, 2009.
HADDAD, L. A creche em busca de identidade. São Paulo: Loyola, 1991.
KRAMER, Sonia. Direitos da criança e projeto político pedagógico de educação infantil. In: BAZÍLIO, L. C.; KRAMER, S. Infância, educação e direitos humanos. São Paulo: Cortez, 2003, p. 51-81
KRAMER, S. (org.). Profissionais da Educação Infantil: gestão e formação. São Paulo: Ática, 2005.
LIMA, A. F. S. O. Pré-escola e alfabetização, uma proposta baseada em P.Freire e J. Piaget. 9a ed. Petrópolis: Vozes. 1996.
MÉSZÁROS, I. Para além do capital. Campinas: UNICAMP; Boitempo, 2011.
MINAS GERAIS. Currículo Referência de Minas Gerais. Secretaria de Estado de Educação de Minas Gerais – SEE/MG, 2018.
MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. Sociologia e teoria crítica do currículo: uma introdução. In: MOREIRA, A. F.; SILVA, T. T. (Orgs.). Currículo, cultura e sociedade. São Paulo: Cortez, 2002.
NUNES, M. F. R.; CORSINO, P.; DIDONET, V. Educação infantil no Brasil: primeira etapa da educação básica. Brasília: UNESCO/MEC/SEB/Fundação Orsa, 2011.
OLIVEIRA, Z. M. F. CURRÍCULO: um instrumento educacional, social e cultural. Rev. Diálogo Educ., Curitiba, v. 8, n. 24, maio/ago, 2008.
SAVIANI, D. Pedagogia histórico-crítica: primeiras aproximações. 7ª ed. São Paulo, Cortez/Autores Associados, 2000.
Saviani, D. Escola e democracia. 42ª ed. São Paulo: Autores associados, 2012.
Silva. T. T. Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo. 3ª ed. São Paulo: Autêntica, 2020.
Notas