Artigos
“DA TERRA SAI UM CHEIRO BOM DE VIDA E NOSSOS PÉS A ELA ESTÃO LIGADOS”: amefricanizando o currículo
“FROM THE EARTH COMES A GOOD SMELL OF LIFE AND OUR FEET ARE CONNECTED TO HER”: amefricanizing the curriculum
“DE LA TIERRA VIENE UM BUEN OLOR A VIDA Y NUESTROS PIES ESTÁN LIGADOS A ELLA”: amefricanizando el currículo
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 1, 2023
Recepção: 12 Março 2023
Aprovação: 18 Março 2023
Resumo: Trata-se, nesse ensaio, de mobilizar a categoria de “amefricanidade”, criada por Lélia Gonzalez, para reposicionar os debates sobre políticas curriculares e a produção dos currículos nos cotidianos de práticas educativas comprometidas com as lutas contra as desigualdades e discriminações raciais. A análise, que tem por esteio os processos de resistência à colonialidade em Améfrica Ladina e os enfrentamentos levados a cabo pelo Movimento Negro, desdobra as implicações da concepção amefricana do currículo, em consonância às Leis 10.639/03 e 11.645/08, tematizando limites, desafios e possibilidades decorrentes desse dispositivo jurídico e político-epistêmico. Busca-se, desse modo, refletir como a “descolonização dos currículos” impõe redimensionar o vocabulário, os imaginários e as práticas que se refletem em sua construção política, além do modelo parametrizado por categorias que não expressam a realidade dos territórios e das experiências dos sujeitos racializados na diáspora.
Palavras-chave: Amefricanidade, Descolonização curricular, Relações étnico-raciais.
Abstract: This paper seeks to mobilize the category of “Améfricanity”, created by Lélia Gonzalez, to reposition the debates on curriculum policies and the production of curricula in everyday educational practices committed to the struggles against racial inequalities and discrimination. The analysis, which is based on the processes of resistance to coloniality in Améfrica Ladina and the confrontations carried out by the Black Movement, unfolds the implications of the African conception of the curriculum, in line with Laws 10.639/03 and 11.645/08, discussing the limits, challenges and possibilities arising from this legal and political-epistemic device. It seeks to reflect on how the “decolonization of curricula” imposes the need to resize the vocabulary, the imaginaries and the practices that are reflected in its political construction, beyond the model parameterized by categories that do not express the reality of the territories and the experiences of racialized subjects in the diaspora.
Keywords: Amefricanity, Curricular decolonization, Ethnic-Racial Relations.
Resumen: Este ensayo busca movilizar la categoría de “Améfricanidad”, creada por Lélia Gonzalez, para reposicionar los debates sobre las políticas curriculares y la producción de currículos en las prácticas educativas cotidianas comprometidas con las luchas contra las desigualdades raciales y la discriminación. El análisis, que se basa en los procesos de resistencia a la colonialidad en Améfrica Ladina y en las confrontaciones llevadas a cabo por el Movimiento Negro, despliega las implicaciones de la concepción africana del currículo, en consonancia con las Leyes 10.639/03 y 11.645/08, discutiendo los límites, desafíos y posibilidades que surgen de este dispositivo jurídico y político-epistémico. Busca reflexionar sobre cómo la “descolonización de los currículos” impone la necesidad de redimensionar el vocabulario, los imaginarios y las prácticas que se reflejan en su construcción política, más allá del modelo parametrizado por categorías que no expresan la realidad de los territorios y las experiencias de los sujetos racializados en la diáspora.
Palabras clave: Amefricanidad, Descolonización curricular, Relaciones étnico-raciales.
Embora pertençamos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de dominação é o mesmo em todas elas, ou seja: o racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação, cuja presença é uma constante em todos os níveis de pensamento, assim como parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades.
Lélia Gonzalez, A categoria político-cultural de amefricanidade
1 PARA INÍCIO DE CONVERSA
O título desse ensaio toma de empréstimo dois versos de Noturno[1], poema de Ariano Suassuna, de 1945, publicado no Jornal do Comércio, veículo no qual o escritor paraibano estreou publicamente na literatura. Em duplo movimento, as primeiras palavras que abrem caminho a essa intervenção retomam também a categoria político-cultural de amefricanidade, da filósofa Lélia Gonzalez (1988a), para, na travessia diaspórica e nordestina, pensar ins/urgências curriculares em pretuguês, a um só tempo, poéticas, pedagógicas e políticas. Insurgências que vêm sendo gestadas também em meu diálogo com uma intelectual amefricana, a professora doutora Thula Pires, a quem dedico esse texto.
Iniciar a conversa com um poeta e uma professora, ou melhor, um professor-poeta e uma escritora-professora não é opção casual. Nesse X Colóquio Internacional de Políticas Curriculares[2], com o X que encruzilha caminhos, o convite à reflexão é atravessado por uma força que lança e convoca à teimosia. Ainda, projeta nesse arremesso poético a outros projetos de currículo, a força das infâncias, daquelas que correm, cambaleiam e enfrentam, faceiras, a chama de espingardas impiedosas, em riste, para que passem as boiadas. É preciso, então, dar nome aos bois. “Perturbar as cruzes”, diz Suassuna (1980) noutro poema “O mundo do sertão”, para ser “até o fim, desnorteado”, em nome da justiça por vir – tão bem representada no evento pela Deusa da Justiça do artista paraibano Clóvis Junior, que, seguindo a “mulher do fim do mundo”, a cantora Elza Soares, afirma: “Deus é mulher”. E preta.
Brado por justiça, especialmente nesses últimos dois anos (2020-2022), por quase setecentas mil pessoas desaparecidas, vitimadas pelo vírus pandêmico que não se extirpa com vacina e com o “novo normal”. A norma, aqui, é o patológico, não nos enganemos (REIS, 2021). E o contexto ainda é de violação sistemática de direitos, fome, torturas, chacinas e desaparecimento de sujeitos transformados em alvos diletos de múltiplas formas de violência, institucionais, sistêmicas e institucionalizadas – “nem bala, nem fome, nem covid”[3]:
A pandemia do novo coronavírus evidenciou o que já estava, há muito, explicitamente colocado. Não haverá normalidade enquanto ela coincidir com um sistema-mundo baseado na estratificação e na desigualdade social, ancorado na lógica das iniquidades racial, sexual e socialmente produzidas em uma sociedade para a qual a metáfora da doença mais se avizinha ao eufemismo (REIS, 2021, p. 272).
Aqui nesse chão paraibano, lançados ao por vir, sonhamos, sentimos e forjamos o que ainda não conhecemos. Recusamos, no entanto, a ordem do discurso do mundo, fatalismos, fascismos e servilismos, que definem posições, papéis e destinos, segundo estereótipos que naturalizam “o que não tem governo, nem nunca terá”. Cismados, entendemos que o necessário fim de um mundo impõe que reconfiguremos relações, proposições e percepções acerca das instituições educativas, das políticas curriculares e das práticas pedagógicas. Esse sismo é também o que treme o chão de territórios curriculares e epistêmicos. O que transborda na tessitura da vida, dos cotidianos, dos territórios atravessados por suas especificidades, seus tempos e desafios. É preciso, então, “contar mais uma história” (KRENAK, 2019, p. 13) para adiar o fim. Para empurrar o céu, respirar e “construir paraquedas coloridos” (KRENAK, 2019, p. 15) capazes de refrear o ímpeto de destruição e morte que transmuta existências e direitos em cifras, cinzas e sangue.
Com os pés na terra, aterrados e entranhados nos veios do lugar, o que tem nos ensinado a travessia dos currículos praticadosvividos nas periferias, nos grotões e nesse nosso grande sertão paraibano? Sabedoria de jagunço e de mãe preta: a necessidade de deslocamento. E deslocar é desconjuntar, remexer, reposicionar, desautomatizar, para compreender onde nos situamos, como nossos corpos produzem discursividades e sentidos, e de onde enquadramos o mundo da vida. Ao lado da Doutora Carolina Maria de Jesus (2021, p. 29) , aquela que afirmou em seus diários, em 1960, que “a fome também é professora”, questionamos papéis, os papéis da história e a história dos papéis que documentam a tintas indeléveis, ausências retintas nos currículos oficiais.
Cantamos, sem leis nem reis, a toada daquelas que, em sua vozes-mulheres (EVARISTO, 2017), tantas vezes silenciadas, não deixam de gestar, com sua presença e pertença, o que irrompe em meio a disputas acirradas de projetos de mundo que, farsescamente, tomam a forma mercante de “projetos de vida” institucionalizados, planificados, em currículos que fazem circular os valores “de um future-se” compulsório: competição, individualismo, autoempresariamento, eficiência, moralização do sucesso/fracasso, meritocracia. E todas as cracias que, a golpe de força explícita ou sutil, seguem produzindo “ismos” e “cídios” devastadores, que nos vilipendiam.
Esse futuro anunciado pressupõe intocadas as bases que sustentam as heranças coloniais brasileiras: capitalismo cisheteropatriarcal, colonialidade do poder, escravismo/racismo e eurocentrismo. A necropolítica extrativista, predatória e aniquiladora, não poupa nada: carne, sangue, ossos, saberes e sabores – tempos plurais reduzidos à monocultura latifundiária do tempo linear e do progresso desenvolvimentista do ocidente; ao retrocesso que só mira o próprio lucro: terra arrasada. Como conta, nesse cenário asfixiante, a pesquisa curricular que não se permite passar incólume ao seu contexto, ao seu entorno, ao território tenso dos conflitos que indagam a geografia da razão ocidental?
Se as faces privatistas e policialescas do projeto de gestão militarizada do social não arrefecem, tampouco o elitismo, o sexismo e o racismo deixam de pavimentar os pilares que sustentam as políticas conservadoras e neoliberais levadas a cabo na educação, sobretudo após o golpe midiático-parlamentar que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Pois o ataque às instituições públicas de ensino tem alvos bem definidos. Especialmente nos últimos anos, em face dos avanços democráticos promovidos pela implementação da Lei nº 12.711/2012, que dispõe sobre as cotas raciais e sociais no ingresso às universidades e instituições federais de ensino técnico de nível médio; das ocupações de escolas em todo Brasil, em 2015/2016; da mobilização estudantil e das ações de coletivos/as de estudantes negros/as, LGBTTQIA+, periféricos/as, cujas lutas tornam indissociáveis o conhecimento, o compromisso social e a vida. A luta pela vida daquelas que subvertem o cis-tema e tem seus corpos violados à luz do dia.
Com a Pele da cor da noite, a educadora baiana, pedagoga e Ìyá Egbe Vanda Machado (2017), tensionando esse estado de coisas vigente nos convoca a pensar os currículos referenciados por vivências comunitárias em territórios da diáspora negra. Que memórias e valores os currículos se veem instados a (re)produzir? E que memórias são apagadas nesse processo em que, reiteradamente, diferenças são convertidas em desigualdades? Se currículo em sua organização de experiências nas instituições educativas forja o sujeito escolar, memória apagada é identidade amputada. Ancestralidade, oralidade, práticas comunitárias, circularidade, corporalidade, axé... Valores que perfazem identidades não hegemônicas e não homogêneas são desconsiderados e deslegitimados epistemicamente, por não serem enquadrados no padrão de “cientificidade” eurocêntrico, com todas as suas “claras” e “distintas” normatizações. O desafio, nesse contexto, é “fazer a cabeça” e “legitimar espaços escolares como possibilidades polilógicas, polissêmicas e polifônicas”, onde o saber vivido “não se opõe ao que é puramente intelectual” (MACHADO, 2017, p. 25-26).
2 AMEFRICANIZANDO O CURRÍCULO
Ao chamar Lélia Gonzalez (1988a) à conversa e mobilizar a categoria político-cultural de Amefricanidade, entendo a relevância nesse debate das experiências indígenas e negras em diáspora, contrapostas à universalização das narrativas civilizatórias brancocentradas, monoepistêmicas, que seguem colonizando nossos imaginários educacionais e acadêmicos. A amefricanidade rearticula culturas em diáspora tomando as resistências e as teimosias como elementos de agregação, de comunidade, de criação de possibilidades e de luta contra desumanização em face da empresa colonial e seus binarismos.
As implicações políticas e culturais da categoria amefricanidade (“Amefricanity”) são, de fato, democráticas; exatamente porque o próprio termo nos permite ultrapassar as limitações de caráter territorial, linguístico e ideológico, abrindo novas perspectivas para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta: A AMÉRICA e como um todo (Sul, Central, Norte e Insular). Para além do seu caráter puramente geográfico, a categoria de Amefricanidade incorpora todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas) que é afrocentrada, isto é, referenciada em modelos como: a Jamaica e o akan, se modelo dominante; o Brasil e seus modelos yourubá, banto e ewe-fon. [...] Seu valor metodológico, a meu ver, está no fato de permitir a possibilidade de resgatar uma unidade específica, historicamente forjada no interior de diferentes sociedades que se formaram numa determinada parte do mundo. Portanto, a Améfrica, enquanto sistema etnográfico de referência, é uma criação nossa e de nossos antepassados no continente em que vivemos, inspirados em modelos africanos. [...] Embora pertençamos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de dominação é o mesmo em todas elas, ou seja: o racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação, cuja presença é uma constante em todos os níveis de pensamento, assim como parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades (GONZALEZ, 1988a, p.76- 77).
Trata-se de racializar para politizar as discussões, na perspectiva do antirracismo, do antissexismo, da experiência encarnada, para repensar documentos curriculares e práticas educativas situadas desde o território – compreendido aí também o que a historiadora Doutora Beatriz Nascimento (2018) chama de corpo-documento.
Amefricanizar o currículo não significa centrá-lo exclusivamente em torno de uma matriz racial-referencial. Significa, antes, recusar identidades essencializadas e hierarquias, aquilo que Frantz Fanon (2008), ele mesmo alvo do racismo colonial francês, chama em Pele negra, máscaras brancas, de “epidermização da inferioridade”. Isso é, identificar como o epistêmico e epidérmico se espelham quando racializamos os debates científicos e educacionais, já que o projeto moderno colonial estrutura um modelo hierarquizado e opositivo entre sujeitos racionais (civilizados) e os selvagens, identificados racialmente com os signos da negritude. Esse esquema dicotômico, ao tempo que afirma a humanidade do Ser, desumaniza tantas/os outras/os que fogem de seus modelos referenciais.
A categoria político-cultural de amefricanidade destaca, de outro lado, como, na diáspora, são produzidas resistências, protagonizadas, sobretudo, por mulheres racializadas, e como a práxis negra recodifica relações, institutos e práticas sociais no enfrentamento a todas as formas e figuras das violências cotidianas. Segundo Lélia Gonzalez, “[...] já na época colonial escravista, ela se manifestava nas revoltas, na elaboração de estratégias de resistência cultural, no desenvolvimento de formas alternativas de organização social livre” (GONZALEZ, 2020b, p. 153). Resistência ativa à dominação e exercício que aponta para necessidade de interseccionalizar análises e perspectivas, bem como os sujeitos que as produzem. Amefricanidade, assim, pode ser entendida como uma aposta de repactuação político-epistêmica da cultura e do currículo, com acento nos legados e nas dinâmicas interculturais indígenas, europeias e africanas.
Concordo com Angela Davis (2016), Audre Lorde (2019) e bell hooks (2019) quando, junto ao movimento de mulheres negras estadunidenses, fazem ecoar que, para quem tem seu corpo racializado/genderificado, o “pessoal é político”. Amefricanizar, nesse sentido, é também entender histórias de vida, individuais e coletivas, narrativas de si ou escrevivências, com Conceição Evaristo (2009), como elementos fundamentais dos currículos – incluso aí a linguagem, os silêncios, as intencionalidades, as formas de expressão e valores que eles ratificam e (re)produzem.
A descolonização curricular proposta pela experiência amefricana não é um produto, mas um processo permanente de disputa e de tensionamento, em nome da autoinscrição (MBEMBE, 2001) de grupos e sujeitos cuja agência foi – e segue sendo – negada por um sistema-mundo racialmente estratificado:
A experiência amefricana tem muito a contribuir para a redefinição dos direitos humanos, com a teimosia e criatividade que permitiu a subsistência do povo negro em diáspora por séculos de opressão. Essas reorientações têm por objetivo responder ao mundo herdado, e não ao mundo idealizado pelas declarações de direitos humanos. A categoria da amefricanidade, informada pela denúncia do mito da democracia racial e das políticas públicas de branqueamento aporta um sofisticado letramento racial para pensar o contexto de disputa política a que estamos submetidos (PIRES, 2018, p. 73).
São a partir dessas reverber/ações e desse letramento racial que penso o cumprimento do que está disposto nas legislações antirracistas que tratam de políticas curriculares e práticas educativas. A lei 10.639/03, cujos artigos 26-A e 79-B modificam a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), dispõem sobre a obrigatoriedade do estudo da História e Cultura Afro-brasileira nos estabelecimentos de Ensino Fundamental e Médio. Alterada em 2008 pela lei nº 11.645, indica em seu Artigo 1º: que:
O conteúdo programático incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil (BRASIL, 2008).
Como os currículos universitários na formação docente têm viabilizado o cumprimento dessa determinação? Como têm acionado aquilo que nos faz pensar a professora doutora Nilma Lino Gomes (2017), em O Movimento Negro Educador – saberes construídos nas lutas por emancipação, quando recorda que os movimentos sociais têm sido os principais educadores coletivos das relações étnico-raciais no país, construindo pedagogias/epistemologias a partir dos saberes construídas nas lutas. Como consta no Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação para as Relações Étnico-raciais (BRASIL, 2009), a aplicabilidade das regulamentações necessita ser expandida nos sistemas de ensino, pois:
[...] as instituições devem realizar revisão curricular para a implantação da temática, quer nas gestões dos Projetos Políticos-Pedagógicos, quer nas Coordenações pedagógicas e colegiados, uma vez que possuem a liberdade para ajustar seus conteúdos e contribuir no necessário processo de democratização da escola, da ampliação do direito de todos e todas a educação, e do reconhecimento de outras matrizes de saberes da sociedade brasileira (BRASIL, 2009, p. 37).
Não penso aqui, portanto, a inclusão e a revisão curriculares como concessão, “dar voz a”, ou apenas como celebração de datas comemorativas. Em bom pretuguês(GONZALEZ, 2020), é preciso que haja co-implicação e comprometimento radical com agendas permanentes que tratem das questões raciais, imbricada com o enfrentamento a todas as formas de violência e opressão. Trata-se de disputar direitos inegociáveis – à memória, à história, ao conhecimento culturalmente situado, à vida.
Mas, como já disse antes, é justamente a consciência objetiva desse racismo sem disfarces e o conhecimento direto de suas práticas cruéis que despertam esse empenho, no sentido de resgate e afirmação da humanidade e competência de todo um grupo étnico considerado “inferior”. A dureza dos sistemas fez com que a comunidade negra se unisse e lutasse, em diferentes níveis, contra todas as formas de opressão racista (GONZÁLEZ, 1988a, p. 74).
Amefricanidade designa esse processo histórico de intensa dinâmica intercultural de adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas (GONZALEZ, 1988a, p. 76) – em que gênero, sexualidade, território, classe e raça, na perspectiva interseccional, redesenham os contornos da formação de identidades de afirmação coletiva. Crítica de alta voltagem à colonialidade e às estratificações sexuais/raciais vivenciadas nos cotidianos, já que, segundo Lélia Gonzalez (2020, p. 131-132):
[...] uma vez estabelecido, o mito da superioridade branca demonstra sua eficácia pelos efeitos de estilhaçamento, de fragmentação da identidade racial que ele produz: o desejo de embranquecer (de “limpar o sangue”, como se diz no Brasil) é internalizado, com a simultânea negação da própria raça, da própria cultura.
Temas e dilemas contemporâneos; dissonâncias ancestrais. Dissensos que precisam ser criticamente exercitados, discursivamente elaborados, nomeados e (res)significados, em diálogo com sujeitos coletivos que reorientam projetos de sociedade e de mundo, proposições educativas e concepções teórico-metodológicas que partem das ciências do vivido. Clamar por justiça nos “becos da memória”, pela justiça epistêmica e curricular, pela justeza do que nos faz indagar os sistemas de opressão – de gênero, raça, classe, religião, sexualidade, etarismo, capacitismo – tem sido a bandeira histórica de luta dos movimentos sociais e, especialmente, do movimento negro e de mulheres negras, com suas “insubmissas lágrimas”. Que a educação tem operado como ferramenta de manutenção do sistema de posições das hierarquias sociais e da colonialidade do saber/poder, isso não é novidade. Talvez o que as resistências no campo da educação tenham feito emergir, nas últimas décadas, é a importância da disputa de uma gramática e de uma linguagem que informe, positivamente, em carne viva, as experiências e os modos de vida amefricanos.
Embora pertençamos a diferentes sociedades do continente, sabemos que o sistema de dominação é o mesmo em todas elas, ou seja: o racismo, essa elaboração fria e extrema do modelo ariano de explicação cuja presença é uma constante em todos os níveis de pensamento, assim com parte e parcela das mais diferentes instituições dessas sociedades. [...] o racismo estabelece uma hierarquia racial e cultural que opõe a 'superioridade' branca ocidental à 'inferioridade' negroafricana. A África é o continente 'obscuro', sem uma história própria (Hegel); por isso, a Razão é branca, enquanto a Emoção é negra. Assim, dada a sua “natureza sub-humana”, a exploração sócio-econômica dos amefricanos por todo o continente, é considerada “natural” (GONZALEZ, 1988a, p. 77).
As lutas, comunitariamente, repactuam epistemologias, metodologias e tantas outras logias, logicamente, obliteradas pela história oficial. Elas se fazem em nome – e na luta pelo nome – da pluricultura, do currículo, do acesso à terra e ao direito às infâncias, ao que nos situa, envolve e encanta, quando o monocromatismo das pedagogias ameaça esbranquiçar o arco-íris da vida e desbastar os paraquedas coloridos. Mas, o arco verga, como o berimbau, e da tensão emerge o que contagia. À flor da pele, as pedagogias antirracistas e da descolonização, à contra-pele, colocam-se no front das batalhas. Recusam a ordem de morte-em-vida que, desde a educação infantil, silencia e planifica mundos com o tom de uma única “cor de pele”.
Cabe recordar que os contínuos processos de resistência coexistem às práticas de captura, violência e subjugação, em um campo atravessado por relações tensas e estratégias múltiplas que se nutrem da força dos coletivos, das comunidades e dos grupos que se recusam a negociar com os ditames do capital – financeiro e racial – e dos capitães. Como destaca Lélia Gonzalez, “[...] foi dentro da comunidade escravizada que se desenvolveram formas político-culturais de resistência que hoje nos permitem continuar uma luta plurissecular de liberação” (GONZALEZ, 1988b, p. 138). Lutas que, em distintos territórios, epistêmicos, pedagógicos, políticos e culturais, adquirem os contornos do enfrentamento por justiça, vida e memória:
Sobretudo se pensamos naqueles que, num passado mais ou menos recente, deram o seu testemunho de luta e de sacrifício, abrindo caminhos e perspectivas para que, hoje, nós possamos levar adiante o que eles iniciaram. Daí a minha insistência com relação à categoria de amefricanidade, que floresceu e se estruturou no decorrer dos séculos que marcam a nossa presença no continente (GONZALEZ, 1988a, p. 79).
A descolonização das memórias, dos conhecimentos e currículos não se limita a reconhecer diferenças e a “tolerar” o que seja, mas aciona estratégias de combate às desigualdades nas comunidades de aprendizado (hooks, 2013), no chão de cada território. Os currículos seguem, no entanto, majoritariamente brancos, eurocentrados e masculinos. Oficiais ou ocultos, espanta a subrrepresentação, a amnésia, a afonia, a ausência de representações culturalmente relevantes, para além de estereótipos aprisionadores e naturalizantes, que reduzem as culturas negro-brasileiras e indígenas aos temas da escravidão, das mitologias e do folclore. Processo permanente de epistemicídio, como nomeia a filósofa Sueli Carneiro (2005) em diálogo com Boaventura de Sousa Santos, que fere de morte, desde as infâncias, existências, experiências, saberes e possibilidades, por meio do dispositivo de racialidade. A sistemática aniquilação subjetiva e epistêmica de sujeitos asfixiados pelas tramas coloniais respalda-se na persistente “produção da inferioridade intelectual ou da negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais” (CARNEIRO, 2005, p. 97), que culmina por alicerçar uma hierarquia de dominação de base escravagista/colonial, que naturaliza a conversão de diferenças epidérmicas em desigualdades epistêmicas.
Por aí se vê que o barato é domesticar mesmo. E, se a gente detém o olhar em determinados aspectos da chamada cultura brasileira, a gente saca que em suas manifestações mais ou menos conscientes ela oculta, revelando, as marcas da africanidade que a constituem. (Como é que pode?) (GONZALEZ, 2020, p. 78).
Daí o convite à amefricanização dos currículos e de práticas educativas “até o fim desnorteadas”, como na poesia de Suassuna, com mediações didáticas que efetivem o disposto nas legislações antirracistas e nas lutas plurisseculares dos grupos subalternizados pela sanha colonial.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Se currículo remete ao transcurso do tempo, ele trata também de espaço de vida, criação, rasura e insubordinação. E talvez seja a vitalidade, a vida e os/as viventes que precisem ser reavivados nesse chão, entendido como ente gerador de vida, como me ensinou o filósofo-lavrador Antonio Bispo dos Santos (2018), o Nêgo Bispo. Trata-se, seguindo as trilhas do filósofo, de se pensar o envolvimento tanto quanto o desenvolvimento curricular. De tomar como fundamento da educação o que afeta, o corpo, as múltiplas trajetórias de pessoas que atravessam os espaços formativos com distintas heranças, marcas e narrativas.
Como a própria infância sertaneja, no reino do poeta Suassuna (1999), a “sonhar e a cantar, sem lei nem Rei!”. Com a vitalidade daquelas/es que instabilizam a arrogância das lógicas coloniais que, em nome da razão todo-poderosa ocidental, descartam seres humanos, deslegitimam cotidianos, experiências e cosmossensibilidades amefricanas, que emergem dos encontros interculturais, do chão e do imponderável e que dão forma, com suas existências, à liberdade.
Se “o sertão é do tamanho do mundo”, como enuncia Riobaldo em Grande sertão: veredas, e “o real se dispõe para a gente é no meio da travessia” (ROSA, 2015), as travessias curriculares, culturalmente situadas, impõem também a ultrapassagem de toda determinação fatalista, para ganhar, tomar corpo e pujança, no lugar, na conjuntura: “Viver – não é? – é muito perigoso”. Diante do perigo que ronda por todo lado, e confluindo na direção de outros projetos políticos de currículo, em disputa, no coração dos nordestes e de Améfrica Ladina, finalizo o ensaio ritualizando também o aprendizado ancestral das congadas: a reconhecer a realeza de coroa crespa daquelas/es que, como Chico Rei e a Rainha Nzinga de Angola, são reconduzidas/os, simbolicamente, ao seu lugar de honraria, para afirmar a subversão do lugar dos corpos negros na ordem colonial. Enlevadas/os, a guerra e dança movimentam os corpos, ao som do caxambu, zabumba, marimbas e canzás. A festa popular é aposta de afirmação das vidas, plurais, das possibilidades de vida, pensamento e existência, desde o chão[4], apontando ao sol – e ao Sul –, de onde e para onde somos arremessados e arrebatados pela força das proposições curriculares sonhadasvividas nesse colóquio. Com a “teimosa esperança”, caminhamos, porque “da terra sai um cheiro bom de vida e nossos pés a Ela estão ligados” (SUASSUNA apud Victor & Lins, 2007, p. 50). É a vida e à vida que cantamos. Axé!
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei 10.639, de 19 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.639.htm. Acesso em: 27 nov. 2022.
BRASIL. Lei 11.645, de 10 de março de 2008. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, modificada pela Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 27 nov. 2022.
BRASIL. Lei 12.711, de 29 de agosto de 2012. Dispõe sobre o ingresso nas universidades federais e nas instituições federais de ensino técnico de nível médio e dá outras providências. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12711.htm. Acesso em: 27 nov. 2022.
BRASIL. Ministério da Educação. Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana. Brasília: MEC, 2009. Disponível em: https://etnicoracial.mec.gov.br/images/pdf/diretrizes_curric_educ_etnicoraciais.pdf. Acesso em: 27 nov. 2022.
CARNEIRO, Sueli. A construção do Outro como não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Trad. Heci Regina Candiani. São Paulo: Boitempo, 2016.
EVARISTO, Conceição. Poemas da recordação e outros movimentos. Rio de Janeiro: Malê Editora, 2017.
EVARISTO, Conceição. Depoimento cedido durante o I Colóquio de Escritoras Mineiras, realiza- do em maio de 2009, na Faculdade de Letras da UFMG. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autoras/188-conceicao-evaristo. Acesso em: 27 nov. 2022.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad. Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 92/93, jan./jun., 1988a.
GONZALEZ, Lélia. Nanny: Pilar da amefricanidade. In: LIMA, Márcia; RIOS, Flávia (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020b, p. 153.
GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afrolatinoamericano. Revista Isis Internacional. Santiago, v. 9, p. 133-141, 1988b.
GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: LIMA, Flávia Rios e Márcia (Org.). Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. p. 75-93.
HOOKS, Bell. E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Trad. Libanio Bhuvi. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2019.
HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. diário de uma favelada. São Paulo: Editora Ática, 2021.
LORDE, Audre. Irmã outsider. Trad. Stephanie Borges. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019.
MACHADO, Vanda. Pele da cor da noite. Salvador: EDUFBA, 2017.
MBEMBE, Achille. As Formas Africanas de Auto- inscrição. Estudos Afro-asiáticos 23, n. 1, 2001, p. 171-209.
NASCIMENTO, Beatriz. Transcrição do Documentário Orí. In: NASCIMENTO, Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e intelectual: possibilidade nos dias da destruição. 1 ed. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018. p. 326-340.
PIRES, Thula. Racializando o debate sobre direitos humanos. Sur - Revista Internacional de Direitos Humanos, v. 15, n. 28, 2018, p. 65-75.
REIS, Diego dos Santos. Pensamentos pós-coroniais. In: Pandemia crítica: Inverno. Coord. Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes. São Paulo: edições SESC; n-1 edições, 2021. p. 269-272.
ROSA, João Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2015.
SANTOS, Antonio Bispo. Somos da terra. PISEAGRAMA, Belo Horizonte, n. 12, p. 44-51, 2018.
SUASSUNA, Ariano. Dez Sonetos com Mote Alheio. Recife: edição manuscrita e iluminogravura pelo autor, 1980.
SUASSUNA, Ariano. Poemas. Seleção e notas de Carlos Newton Júnior. Recife: Editora Universitária da UFPE, 1999.
VICTOR, Adriana; LINS, Juliana. Ariano Suassuna: um perfil biográfico. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 2007.
Notas