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PRESSUPOSTOS PARA UM CURRÍCULO LIBERTADOR: pensando o documento a partir de Paulo Freire

ASSUMPTIONS FOR A LIBERATING CURRICULUM: thinking the about the document based on Paulo Freire

SUPUESTOS PARA UN CURRÍCULO LIBERADOR: pensar el documento desde Paulo Freire

Marcos Orso da Fonseca
Universidade Estadual de Maringá , Brasil
Michel Corci Batista
Universidade Tecnológica Federal do Paraná, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 16, núm. 1, 2023

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 12 Março 2023

Aprovação: 15 Abril 2023



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v16i1.66128

Resumo: O Brasil é um país demarcado pela institucionalização do currículo, onde este documento recebe uma importância demasiada, uma das formas de controle da ação das instituições de ensino pelo Estado, assim como da ação docente, não sendo apenas um norteador, mas uma forma autoritária de demarcação do controle do profissionalismo docente. Nesse sentido, alternativas mais democráticas para a formulações dos currículos se mostram como necessárias, e a teoria freiriana da Educação Libertadora se apresenta como uma das possibilidades. Assim, este artigo tem como objetivos apresentar e descrever os pressupostos do currículo dentro da Educação Libertadora. Para tanto, esta pesquisa é de natureza qualitativa, de nível descritivo, com abordagem de pesquisa bibliográfica e de cunho dedutivo. Ao todo, foram encontrados 12 pressupostos necessários à formulação de um currículo libertador. Ainda que alguns critérios possuam uma importância qualitativa maior que outros, todos eles compõem uma mesma práxis político-educativa, não sendo possível sua dissociação ou negligência no processo de formulação do documento. Assim, a democracia radical é o critério que baliza todos os demais, estando ela presente epistemologicamente nos objetivos, nos meios, nas justificativas e todo conjunto teórico-prático que compõe a práxis libertadora.

Palavras-chave: Educação, Democracia, Emancipação.

Abstract: Brazil is a country marked by the institutionalization of the curriculum, where this document is given too much importance, one of the ways of controlling the action of educational institutions by the State, as well as the teacher's action, not only being a guideline, but an authoritarian way of demarcating the control of teaching professionalism. In this sense, more democratic alternatives for the formulation of curricula are necessary, and the Freirian theory of Liberating Education presents itself as one of the possibilities. Thus, this article aims to present and describe the assumptions of the curriculum within Liberating Education. To this end, this research is of a qualitative nature, descriptive level, with a deductive bibliographic research approach. In all, 12 assumptions necessary to the formulation of a liberating curriculum were found. Although some criteria have a greater qualitative importance than others, they all compose the same political-educational praxis, and it is not possible to dissociate or neglect them in the process of formulating the document. Thus, radical democracy is the criterion that guides all the others, being epistemically present in the goals, means, justifications, and the whole theoretical-practical set that makes up the liberating praxis. No truly liberating education along the lines of Paulo Freire can be antidemocratic, antidialogical, segregationist, antidialectic, or banking.

Keywords: Education, Democracy, Emancipation.

Resumen: Brasil es un país marcado por la institucionalización del currículo, donde este documento recibe demasiada importancia, siendo una de las formas de control de la acción de las instituciones educativas por parte del Estado, así como de la acción docente, siendo no sólo una directriz, sino una forma autoritaria de demarcar el control del profesionalismo docente. En este sentido, son necesarias alternativas más democráticas para la formulación de los currículos, y la teoría freiriana de la Educación Liberadora se presenta como una de las posibilidades. Así, este artículo pretende presentar y describir los supuestos del currículo dentro de la Educación Liberadora. Por lo tanto, esta investigación es de naturaleza cualitativa, nivel descriptivo, con enfoque de investigación bibliográfica y naturaleza deductiva. En total, se encontraron 12 supuestos necesarios para la formulación de un currículo liberador. Aunque algunos criterios tengan mayor importancia cualitativa que otros, todos componen la misma praxis político-educativa, y no es posible disociarlos o descuidarlos en el proceso de formulación del documento. Así, la democracia radical es el criterio que orienta a todos los demás, estando epistémicamente presente en los objetivos, medios, justificaciones y todo el conjunto teórico y práctico que compone la praxis liberadora. Ninguna educación verdaderamente liberadora en la línea de Paulo Freire puede ser antidemocrática, antidialógica, segregacionista, antidialéctica, bancaria.

Palabras clave: Educación, Democracia, Emancipación.

1 INTRODUÇÃO

O Brasil é um país demarcado pela institucionalização do currículo, onde este documento recebe uma importância demasiada, uma das formas de controle da ação das instituições de ensino pelo Estado, assim como da ação docente, não sendo apenas um norteador, mas uma forma autoritária de demarcação do controle do profissionalismo docente (SAUL; SILVA, 2011). Isso fica evidente a partir da construção da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), Lei nº 9394/1996 (BRASIL, 1996), visto que a Educação Nacional entrou numa era marcada pelas diretrizes educacionais do estado, como: os Parâmetros Curriculares Nacionais, às Diretrizes Curriculares Nacionais (onde se vê a presença de diversos eixos, como Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, para a Educação Inclusiva, etc.), a Reforma Nacional do Ensino Médio, a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e a elaboração da Base Nacional Comum para Formação de Professores, etc. (CIAVATTA; RAMOS, 2012).

Embora as tendências do espectro político venham trazendo a Educação Nacional cada vez mais para uma educação bancária e de viés ora liberal, ora de direita, entende-se que existem alternativas para a formulação dos currículos. Nesse sentido, Paulo Freire faz críticas ao estilo de política citado, como também apresenta um modelo educacional alternativo e que está do lado oposto da ação política. Ou seja, percebe-se neste teórico uma alternativa ideológica para fundamentar a construção de currículos que estejam alinhados não às classes dominantes, em prol de uma educação bancária, mas voltado à emancipação dos oprimidos, uma educação popular para formação de seres humanos conscientes e em processo constante de libertação (FREIRE, 2021a, 2022a).

Entretanto, pesquisas voltadas ao currículo na perspectiva da Educação Libertadora não são frequentes, ainda que nos últimos anos as produções científicas que abranjam esta corrente pedagógica estejam aumentando consideravelmente (SAUL; SILVA, 2011). Por isso, um dos caminhos da pesquisa científica em Educação e Currículo voltados à Educação Libertadora é evidenciar os critérios, os pressupostos, as categoriais que demarcam um currículo nesses moldes, pois, como o autor indica, a teoria deve iluminar a prática, para ambas comporem uma práxis libertadora (FREIRE, 2022a). Ou seja, faz-se necessária a fundamentação teórica para a aplicação prática de uma corrente de pensamento.

O autor, como pode ser visto em vários de seus escritos, considera indissociável a teoria da prática, onde ambas, juntas, compõe a práxis como unidade coerente necessária à emancipação (FREIRE, 2022a). Assim, nem a teoria se dá em detrimento da prática, nem tampouco esta pode ocorrer sem que a teoria dê luz ao que se faz. Por isso, esta pesquisa deve ser compreendida como um fundamento para a ação libertadora que perpassa o currículo. Portanto, este artigo objetiva apresentar e descrever os pressupostos do currículo dentro da Educação Libertadora.

2 MATERIAIS E MÉTODOS

A pesquisa é de natureza qualitativa, de nível descritivo, com abordagem de pesquisa bibliográfica e de cunho dedutivo.

Este estudo possui natureza qualitativa, pois o fenômeno de estudo e os objetivos da pesquisa caminham no sentido da compreensão e descrição detalhada de um fenômeno social (CRESWELL, 2014). Deste modo, não se torna possível a redução do fenômeno à critérios numéricos, mas sim de uma abrangência complexa, sendo que o todo e suas partes se influenciam mutuamente (ZANELLA, 2011).

A pesquisa descritiva tem como objetivo a apresentação de uma vasta gama de informações para compor um quadro teórico mais próximo possível daquilo que se observa na realidade sensível, ou seja, no evento em si (TRIVIÑOS, 1987). Por isso, demanda que o pesquisador levante uma série de dados, muitas vezes não disponíveis num material contínuo, necessitando a exploração de várias fontes.

Nesse sentido, a abordagem de pesquisa bibliográfica corresponde às necessidades e objetivos aqui apresentados, visto que a constituição dos elementos necessários para a descrição do fenômeno dar-se-á através de materiais diversos, sendo majoritariamente de segunda ordem, ou seja, que já passaram pelas inferências de um autor (SÁ-SILVA, et. al., 2009).

Para tanto, este estudo se debruçou sobre algumas literaturas principais, sendo: Educação como prática de liberdade (FREIRE, 2021a), Pedagogia do oprimido (FREIRE, 2022a), Educação e mudança (FREIRE, 2021b), Direitos Humanos e Educação Libertadora (FREIRE, 2021c), e Pedagogia da Tolerância (FREIRE, 2022b).

O cunho dedutivo da pesquisa se dá pelo fato de evidenciar uma teoria pré-existente como balizadora da compreensão e descrição de um fenômeno (DESCARTES, 2001), respectivamente, a Educação Libertadora como fonte para a criação dos currículos.

3 OS LUGARES COMUNS NA EDUCAÇÃO LIBERTADORA

A corrente pedagógica freiriana se debruçou sobre uma extensa gama de assuntos dentro da Educação, ainda que alguns assuntos tivessem mais significância na teoria do autor, culminando em diversas produções acadêmicas sobre o tema geral da educação. Desta forma, através da sistematização das ideias de Paulo Freire, é possível fazer um apanhado teórico sobre como se dá a visão do autor frente aos lugares comuns da Educação (SCHWAB, 1973): o ensino (professor), aprendizagem (aluno), currículo (conhecimento), meio social (contexto) e a avaliação, (NOVAK; GOWIN, 1996).

Apesar deste estudo se debruçar sobre aspectos do currículo, compreende-se que o currículo não pode se dissociar dos demais lugares comuns da Educação, pois isso seria uma fragmentação do conhecimento e da realidade objetiva, caindo, consequentemente, em equívocos de natureza idealista. Não obstante, existem características indispensáveis à Pedagogia de Freire que merecem devida atenção inicial.

Enquanto concepção de Educação, o autor sempre demonstrou insatisfação por modelos pedagógicos advindos de correntes neoliberais (FREIRE, 2021a; 2022a). Para o autor, o modelo bancário de educação era presente em sistemas neoliberais (mas não estava restrito a estes), dos quais existem diversos desencontros com sua forma de pensar.

O surgimento do neoliberalismo após a Segunda Guerra e sua posterior consolidação a partir da década de 1980 trazem consigo um formidável ataque contra o igualitarismo e a ‘solidariedade coletivista’ em quaisquer de suas formas: desde a aparentemente mais benigna, o ‘Ministério do Bem-estar’ das sociais-democracias européias, até a mais virulenta (a juízo dos ideólogos neoliberais) corporificada no ‘modelo soviético’ vigente na União Soviética e nos países do Leste Europeu. Ambas as variantes, nas palavras de Hayek, se movimentavam em prol de um mesmo objetivo: a construção de uma sociedade de iguais. Eram, por isso mesmo, rotas alternativas que desembocavam em um mesmo desastre civilizatório: a servidão moderna (BORON, 2000, p.55).

Contrariamente, o educador concebia a humanização como forma de ser e agir no mundo, sendo que a essência humana está na transformação e não na submissão. Assim, o primeiro aspecto, e que tange todos os demais, está na Democracia radical como cerne educacional freiriano (LIMA, 2002). Nas palavras do autor, a democracia é

um desses sonhos para que lutar, sonho possível mas cuja concretização demanda coerência, valor, tenacidade, senso de justiça, força para brigar, de todas e de todos os que a ele se entreguem, é o sonho por um mundo menos feio, em que as desigualdades diminuam, em que as discriminações de raça, de sexo, de classe sejam sinais de vergonha e não de afirmação orgulhosa ou de lamentação puramente cavilosa. No fundo, é um sonho sem cuja realização a democracia de que tanto falamos, sobretudo hoje, é uma farsa (FREIRE, 2001, p.25).

Sua concepção de democracia abarca, consigo conceitos adjacentes, como solidariedade, justiça, equidade, tolerância, esperança e uma clara alusão aos direitos humanos como forma para alcançar tais ideias. Com esses pressupostos e uma democracia verdadeiramente atuante, a Educação Libertadora poderia se realizar, inicialmente como uma pedagogia do oprimido, depois como uma pedagogia daqueles que estão se libertando continuamente (FREIRE, 2022a). Todavia, “nós estamos ainda no processo de aprender como fazer democracia. E a luta por ela passa pela luta contra todo tipo de autoritarismo” (FREIRE, 2000, p. 136).

Na linha da democracia de Paulo Freire, o diálogo é a ferramenta pela qual ela se estabelece. O diálogo é parte fundamental para que haja um sistema educacional democrático e, por conseguinte, que desenvolva uma educação para a emancipação, pois uma pedagogia prescritiva, que não ouve os oprimidos, nem faz deles participantes ativos em todo o processo, torna-se apenas mais uma ferramenta da opressão sistêmica (FREIRE, 2022a).

Nessa perspectiva, o diálogo é uma das ferramentas para humanização de todos, educadores e educandos. Isso cria um ambiente no qual todos estão dispostos a ouvir e a falar, não sendo uma disputa retórica pelo ônus do vencedor, mas que se aceitam mutuamente como seres inacabados para, coletivamente, auxiliarem na sua construção em busca de Ser Mais. Isso porque, só se pode “ser mais” quando os outros também o são, pois desumanizar outrem resulta na sua própria desumanização (FREIRE, 2021a; 2022a).

Para além, o diálogo é um meio pelo qual os agentes do processo educativo constroem seus conhecimentos, por isso o autor defende uma pedagogia que fomente a abertura ao diálogo, a pergunta que traz a resposta numa ação dialética de tese-antítese-síntese (FREIRE; FAUNDEZ, 1985). Nesse ambiente propício ao diálogo, educandos e educadores assumem o caráter genuíno de suas humanidades para fomentar no outro interrogações e apresentar informações para coletivamente se educarem uns aos outros (FREIRE, 2021a; 2021b; 2022a).

Traçado o diálogo, torna-se possível o desenvolvimento de consciências críticas naqueles envolvidos no processo educacional. E isso ocorre concomitantemente ao desvelar da ótica oprimido-opressor: aqui se percebe o objetivo primeiro de toda a Educação Libertadora, o desenvolvimento de um senso crítico que possibilite aos educandos sua emancipação, tanto subjetiva quanto na realidade concreta, objetiva. Isso, pois, Freire entende o processo de emancipação como práxis em si mesmo: a tomada de consciência só é verdadeira quando se volta à realidade objetiva, antes disso, torna-se puramente subjetivismo (FREIRE, 2022a). Assim diz Freire:

Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “conivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, da ação, o que nos parece fundamental, é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis (FREIRE, 2022a).

Nesse sentido, existe um caráter iminente de transgressão neste modelo educacional, pois o educador que se compromete com o objetivo supracitado caminha para tal, ainda que explícita ou implicitamente o Estado não o queira. A transgressão é ferramenta da esperança, pois esta só pode ser mantida se aquela existir, já que onde existe submissão a esperança se transforma em espera, passiva. A transgressão tem caráter revolucionário justamente por possibilitar a construção de saberes de contracultura que se voltam a uma práxis de mesmo sentido.

Assim, pode-se chegar aos lugares comuns da educação. De início, tem-se o ensino. Esta é a instância pertencente ao educador, entretanto, Freire defende que a educação não acontece unilateralmente, como doação de quem sabe a quem não sabe, ela acontece de forma dialética, pois não existem saberes absolutos nem ignorâncias absolutas, apenas saberes diferentes (FREIRE, 2021b). Não obstante, o perguntar de quem ensina e de quem aprende é fonte para a construção do conhecimento de outrem, pois a pergunta não apenas evidencia aquilo que o locutor não sabe, mas também os limites do conhecimento do interlocutor (FREIRE; FAUNDEZ, 1985).

Todavia, o educador está num lado do espectro educacional onde lhe é possível sistematizar, sintetizar e traduzir os conhecimentos científicos, entendidos como eruditos pela classe hegemônica. Por isso, o professor atua como sistematizador dos conhecimentos historicamente construídos. Entretanto, sua abordagem não deve iniciar por eles e não ter como fim o conteúdo em si mesmo, mas estes serão o caminho para alcançar a emancipação. Deste modo, o docente se torna o agente que fomenta a conscientização dos indivíduos, ainda que sua libertação só ocorra de forma coletiva.

No campo do ensino, a problematização é marcante dentro da Educação Libertadora, integrada pela Pedagogia da Pergunta. Através da problematização, o educador e os educandos são capazes de se ver como produtores de cultura, onde seus saberes são tão válidos quanto de seus opressores (FREIRE, 2022a). Não diferentemente, Freire defende que o ato educacional parta daquilo que se sabe, da cotidianeidade para os conhecimentos científicos, fazendo com que o processo educativo não seja alienante, de modo que a realidade do outro se torne mais importante que a própria.

Ao passo que diversos autores abordam sobre a afetividade na educação e outros sobre a influência das emoções e sentimentos na aprendizagem humana, Freire alude sobre a influência de temas como o amor e a indignação no ensinar. Não se pode pensar numa educação sem amor, pois é através deste que se materializa a humanização do outro (FREIRE, 2021b; 2022a). É através do amor que se constroem relações democráticas, diálogos genuínos, vivências harmônicas. Não se pode pensar em educação pelo ódio, onde os envolvidos se hostilizam, criando um ambiente de desafetos e desamores. Educação é um ato de amor: amor à vida, à humanidade (FREIRE, 2021a).

Entretanto, sem a indignação, os homens permanecem servis. Uma educação que não fomente esta potência está fadada à compreensão romântica de sua realidade, desenvolvendo uma consciência ingênua que não possibilita a práxis libertadora genuína (FREIRE, 2021b). A indignação é o motor para a revolução, a emancipação. Entretanto, não se deve cair no erro ingênuo de acreditar que a libertação seja deixar de ser oprimido para ser opressor, ao contrário, libertar-se é sair da lógica oprimido-opressor, construindo uma vivência autêntica para a existência fora dos padrões dados pelo sistema de opressão (FREIRE, 2022a).

Sobre o lugar comum da aprendizagem, Freire compreende que ela acontece sobre relações, dos homens entre si mediada pelo mundo (FREIRE, 2021a; 2022a), portanto, uma visão construtivista de como se constrói o conhecimento. Isso porque não é possível, para o autor, educar-se sozinho nem educar numa relação impositiva, doadora de um sobre outro. Não somente, ele compreende que coexistem, simultaneamente, realidades objetiva e subjetiva, e o conhecimento se dá sobre a dinâmica entre as duas. O autor ainda entende que não existe uma distinção entre quem aprende e quem ensina, pois ambos os agentes do processo educativo são educador-educando e educando-educador. Isso porque ambos ensinam e aprendem ao passo que se desenvolvem e constroem coletivamente conhecimento.

Chegando ao currículo, tem-se um dos aspectos mais relevantes a se ressaltar e sobre o qual recai diretamente este estudo. É notável a contribuição de Paulo Freire para construção e fundamentação de um currículo crítico e emancipador (SAUL, 1998; MENEZES; SANTIAGO, 2014). Dentro da teoria de Freire, é possível traçar relações históricas, sociais, políticas e culturais com o currículo. Tais relações vêm ao encontro do que se propõe aqui, deixando explícito que tal temática também foi alvo das inferências do autor. Para este, o currículo é visto como um projeto histórico e social, cujos objetivos devem estar alinhados com a Educação em sua totalidade.

Não diferentemente, uma Educação Libertadora deve comportar um currículo que traga o mesmo viés ideológico, trazendo ao encontro desta, características coerentes em seus conteúdos, métodos e finalidades. Deste modo, e tendo a democracia e o diálogo como bases necessárias a uma educação para a emancipação, o currículo só pode ser pensado como uma construção conjunta entre aqueles envolvidos no processo educativo, não podendo ser uma imposição de outrem. Assim,

o currículo padrão, o currículo de transferência é uma forma mecânica e autoritária de pensar sobre como organizar um programa, que implica, acima de tudo, numa tremenda falta de confiança na criatividade dos estudantes e na capacidade dos professores! Porque, em última análise, quando certos centros de poder estabelecem o que deve ser feito em classe, sua maneira autoritária nega o exercício da criatividade entre professores e estudantes. O centro, acima de tudo, está comandando e manipulando, à distância, as atividades dos educadores e dos educandos. (FREIRE; SHOR, 2008, p. 97).

Nesse sentido, os conteúdos e as singularidades que permeiam o currículo devem ser pensadas pelo coletivo ao qual pertencem, de forma a atender as necessidades locais e a construção de cultura como base para ir além. Portanto, num currículo democrático e não-alienador, a compreensão primeira da própria cotidianeidade é o ponto de partida para a compreensão da totalidade do conhecimento. Isso porque o conteúdo em si mesmo não é a finalidade da educação, ou não deveria ser. Antes disso, os conteúdos são ferramentas para desvelar a realidade objetiva, e isso a serviço da libertação dos homens. Para tanto,

é preciso que a educação esteja – em seu conteúdo, em seus programas e em seus métodos – adaptada ao fim que se persegue: permitir ao homem chegar a ser sujeito, construir-se como pessoa, transformar o mundo, estabelecer com os outros homens relações de reciprocidade, fazer a cultura e a história (FREIRE, 1980, p. 39).

Deste modo, o currículo deve estar em consonância com ensino e aprendizagem, para que através do desenvolvimento de uma consciência crítica, o educando tenha subsídios para refazer sua realidade objetiva, buscando uma saída à lógica oprimido-opressor. E todos os pressupostos do currículo emancipador trazem consigo o contexto como norteador de aspectos fundamentais.

O contexto é de natureza individual, sendo cada contexto diferente entre si, ainda que possam existir aspectos gerais que o caracterizam. Por exemplo, tomadas as dimensões do Brasil, não se pode pensar em uma população homogênea, sendo a única característica que une este povo a jurisprudência dentro de um mesmo cenário político nacional. Raça, classe, gênero, sexualidade, idade, regionalidade, costumes e uma infinidade de aspectos traçam diferenças que distinguem grupos, populações, comunidades, etc. Nem mesmo a língua pode ser tida como unidade para as populações deste país, pois, mesmo sendo o Português a primeira língua segundo o estado, existem as comunidades surdas e tantas etnias indígenas que não se vêem nas distinções eurocêntricas.

Portanto, o contexto é o mediador das aprendizagens. Ele é o mundo particular, o mundo das vivências, o mundo que se materializa frente aos seres reais, corpos conscientes que não se reduzem a números, a experiências genéricas (FREIRE, 2022a). O contexto é um dos fatores que devem denotar o currículo, nunca pode ser deixado como adjacente, irrisório, buscando a compreensão da realidade que pertence aos escolares, não aquela que se dá fora do seu campo sensível.

Por fim, chega-se à avaliação. Esta, antes de ser um mecanismo de repressão, é uma ação que compõe a práxis libertadora, pois “o trabalho de avaliar a prática jamais deixa de acompanhá-la. A prática precisa de avaliação como os peixes precisam de água e a lavoura da chuva” (FREIRE, 1989, p.47). Nesse sentido, avaliar é uma ação voltada tanto ao educador quanto aos educandos, pois a construção coletiva do saber também pressupõe um olhar duplo, pois ambos agentes foram indispensáveis para o fazer cultura.

[...] Não é possível praticar sem avaliar a prática. Avaliar a prática é analisar o que se faz, comparando os resultados obtidos com as finalidades que procuramos alcançar com a prática. A avaliação da prática revela acertos, erros e imprecisões. A avaliação corrige a prática, melhora a prática, aumenta a nossa eficiência (FREIRE, 1989, p.47).

E voltando-se à avaliação estudantil, pode-se alinhar o pensamento freiriano com as correntes mais progressistas de avaliação, visto que sua luta está sobre uma educação pautada na criticidade, assim, a avaliação assume um caráter contínuo e não repressivo. Diz o autor:

Os Sistemas de Avaliação Pedagógica de alunos e de professores vêm se assumindo cada vez mais com discursos verticais, de cima para baixo, mas insistindo em passar por democráticos. A questão que se coloca a nós, enquanto professores e alunos críticos e amorosos da liberdade, não é, naturalmente, ficar contra a avaliação, de resto necessária, mas resistir aos métodos silenciadores com que ela vem sendo às vezes realizada. A questão que se coloca a nós é lutar em favor da compreensão e da prática da avaliação enquanto instrumento de apreciação do que-fazer de sujeitos críticos a serviço, por isso mesmo, da libertação e não da domesticação. Avaliação em que se estimule o “falar a” como caminho do “falar com” (FREIRE, 1997, p.131-132).

4 PRESSUPOSTOS PARA UM CURRÍCULO LIBERTADOR

Através, então, da bibliografia disponível deixada pelo autor e também organizada após sua morte por Ana Maria Araújo Freire (Nita Freire), é possível encontrar os pressupostos que demarcam o currículo na perspectiva da Educação Libertadora. Cada pressuposto elencado deve ser entendido aqui como uma categoria inter e correlacionada com as demais, nunca um elemento independente, isso porque a teoria freiriana é marcada por uma unidade de práxis convergente, harmônica e coerente. Neste sentido, tentar distinguir elementos dela sem inter-relacioná-los com os demais seria cair em erros epistemológicos, ontológicos e conceituais, além de não ser coerente com aquilo que Paulo Freire pensou para a Educação.

No Quadro 1, são apresentados os pressupostos que norteiam um currículo libertador.

Quadro 1
Pressupostos do currículo libertador.
Pressupostos (Categorias) Síntese explicativa
Democrático Formulado por todos em conjunto, não cabendo como um objeto imposto, autoritário.
Crítico-emancipadora Seus conteúdos têm de ser capazes de construir um pensamento crítico, não sendo apenas objetos a serem depositados na consciência dos escolares, fazendo o desnudamento das relações oprimido-opressor.
Direitos Humanos Formulado para todos, não podendo ser mais uma forma de repressão ideológica ou segregação social. Portanto, seus conteúdos têm que dizer respeito a todos, não apenas a grupos sociais específicos.
Cientificidade Formulado com base nos conhecimentos científicos (natureza e humanidades) atualizados, possibilitando a alfabetização científica como ferramenta para atuação crítica e libertadora.
Interdisciplinar Os objetos de conhecimento devem ser vistos como acontecem na realidade objetiva, não fragmentados, contextualizados e coerentes, ainda que cada ciência tenha uma visão particular sobre o fenômeno em si. Isso possibilita que os escolares compreendam a dinâmica do todo e suas partes.
Problematizador Currículo cujos conteúdos se direcionam no sentido de perguntar, questionar, apresentar problemas para sua resolução através dos conhecimentos científicos. Isso implica em conteúdos e direcionamentos que se opõe à educação bancária.
Cotidianeidade Não deve anular as relações que os escolares tenham com seus ambientes de vivência e os fenômenos que lhe são familiares. Ao contrário, possibilite fazer o processo: cotidianeidade à ciência à consciência crítica à emancipação.
Participativo Formulado em conjunto e revistos em conjunto.
Flexível Capaz de se modificar às necessidades históricas do povo, podendo também ser articulado com as diversas cotidianeidades.
Formação integral Currículo para formação humana, não apenas conteúdos abstratos sem fim na realidade objetiva. (A formação científica não possui fim utilitário, justificando-se pelo conhecimento em si, por isso o grifo que ressalta que o currículo não deve ser permeado apenas por tais conteúdos mais abstratos, existe um equilíbrio entre o concreto e o abstrato).
Autonomia O currículo não pode ser um mecanismo de controle das aulas, dos professores, das escolas, dos sistemas de ensino. Cada entidade, incluindo o docente, deve ter autonomia para tomada de decisões frente aos conteúdos e às necessidades dos escolares.
Novas tecnologias O currículo deve integrar os avanços tecnológicos (digitais) em prol do pensamento crítico, reconhecendo também a importância de materiais manuseáveis como forma de impulsionar o processo de ensino e de aprendizagem.
os autores

A democracia foi elencada como primeiro pressuposto devido a importância que ela assume na teoria freiriana, isso porque Freire entendia que não se pode assumir um compromisso de emancipação para, apenas com (FREIRE, 2022a). Isso significa que a democracia radical é um dos elementos indispensáveis para uma educação voltada à libertação dos indivíduos, sendo que existem elementos que a tornam possível, como o diálogo e a participação (FREIRE, 2021c). Se opondo à educação bancária, o autor afirma que:

A ação libertadora, pelo contrário, reconhecendo esta dependência dos oprimidos como ponto vulnerável, deve tentar, através da reflexão e da ação, transformá-la em independência. Esta, porém, não é doação que uma liderança, por mais bem intencionada que seja, lhes faça. Não podemos esquecer que a libertação dos oprimidos é libertação dos homens e não de “coisas”. Por isso, se não é autolibertação – ninguém se liberta sozinho –, também não é libertação de uns feita por outros (FREIRE, 2022a, p. 74).

Nesse sentido, a formulação de um currículo deve estar pautada na democracia, na participação, intervenção e consideração da vontade dos oprimidos, de seus anseios, caso este currículo assuma o compromisso com e para os oprimidos, almejando sua emancipação. Não se pretende cair em devaneios, aqui, inferindo que todos os governos, todas as pessoas estão a favor de uma educação e um currículo com essas finalidades. Entretanto, ao assumir-se em favor das classes dominadas, que seja coerente com o propósito, ao passo que o contrário também ocorra, ou seja, em favor das classes dominantes.

Paulo Freire infere que o que não é aceitável é a incoerência, dizer-se a favor de uma classe, de um propósito, e tomar atitudes que conduzem noutro sentido. Ou seja, se a ideologia de formulação do currículo se fez em prol das classes populares, não se pode utilizar os mesmos métodos para construí-lo que as classes dominantes o fariam (FREIRE, 2021c). Isso porque o autor afirma que a qualidade de uma educação deve ser balizada pelo seu objetivo: enquanto uma educação bancária que atende aos interesses dos grupos hegemônicos deve ter por objetivo ocultar as relações oprimido-opressor, uma educação libertadora deve se direcionar para o desvelamento dessas mesmas relações. Assim, pode existir uma educação competente de ambos os lados, sendo que os sistemas de ensino podem ensinar bem, ocultando ou desvelando essas relações.

Deste modo, o que resta são as relações entre o propósito e o método para definir a coerência de uma educação enquanto ato político (FREIRE, 2021c). A discrepância, então, entre discurso e prática não é aceitável, mas também desvela uma práxis: a necessidade de enganar as classes dominadas através de uma ideologia e usar o Estado para favorecer as classes dominantes. O educador afirma que

Numa visão libertadora, não mais bancária da educação, o seu conteúdo programático já não involucra finalidades a serem impostas ao povo, mas pelo contrário, porque parte e nasce dele, em diálogo com os educadores, reflete seus anseios e esperanças. Daí a investigação da temática como ponto de partida do processo educativo, como ponto de partida de sua dialogicidade (FREIRE, 2022a, p. 143).

Nesse sentido, um currículo democrático é aquele que se abre para a população, para os grupos sociais, entre eles a comunidade científica, escolar, universitária, etc.

Quanto aos conteúdos programáticos, Paulo Freire infere que

Enquanto na prática “bancária” da educação, anti-dialógica por essência, por isto, não comunica, o educador deposita no educando o conteúdo programático da educação, que ele mesmo elabora ou elaboram para ele, na prática problematizadora, dialógica por excelência, este conteúdo, que jamais é “depositado”, se organiza e se constitui na visão de mundo dos educandos, em que se encontram “temas geradores” (FREIRE, 2022a, p. 142).

Considerando a educação bancária, ela se dá no campo oposto, ou seja, permeada pela não democratização do currículo, “daí que a invasão cultural, coerente com sua matriz antidialógica e ideológica, jamais possa ser feita através da problematização da realidade e dos próprios conteúdos programáticos dos invadidos” (FREIRE, 2022a, p. 206). Nessa perspectiva, a democracia se faz necessária para libertação dos indivíduos, e onde ela não está presente, o que existe não é libertação, mas sim invasão cultural, alienação, aculturação. Isso porque todo povo, todas as populações, todos os agrupamentos humanos possuem sua própria cultura, e, ao serem obrigados a abrir mão dela para se encaixarem na escola acabam sofrendo tais processos opressores.

Adiante, o próximo pressuposto está alicerçado sobre os propósitos do currículo, aquilo que se objetiva alcançar. Assim, a categoria crítico-emancipadora tem a ver com a finalidade que Freire entende para sua teoria pedagógica.

Crítica porque, através de um processo não-romantizado ou regido por ideologias que conduzam à consciência ingênua, pretende tornar possível a compreensão dos fenômenos em suas instâncias: a realidade objetiva e a realidade subjetiva. A realidade objetiva é toda aquela estrutura que está fora da mente humana, enquanto a realidade subjetiva é a construção individual acerca da realidade objetiva. Assim, pode (e quase sempre há em algum aspecto) uma dicotomia entre objetividade e subjetividade, pois são realidades coexistentes e por vezes conflitantes. O desenvolvimento do pensamento crítico se dá nesses aspectos, fazendo com que a realidade subjetiva seja cada vez mais convergente com a realidade objetiva. Por isso Freire fala em desvelar a realidade como ela é (FREIRE, 2021a; 2021c; 2022a), visto que existência e consciências dos fatos são eventos independentes, mas que compõem o fenômeno com um todo indissociável.

E emancipadora porque, ao passo que se tem capacidade para compreender a realidade objetiva, deve-se não apenas permanecer no campo idealista, mas voltar-se novamente à realidade concreta para intervir sobre ela. Essa intervenção se dá na lógica oprimido-opressor, fazendo com que, ao perceber essa lógica de poder, possa-se buscar a liberdade, transcendendo, e não se tornando um opressor para oprimir outrem. Entretanto, é necessário ressaltar que o pressuposto foi definido como crítico-emancipadora, pois o autor não desassocia a reflexão da ação, ambas estão contidas na práxis e não existem uma sem a outra para uma verdadeira educação libertadora (FREIRE, 2022a).

Tal pressuposto se insere na lógica do currículo através de sua ideologia norteadora e de sua prática afirmativa. Ou seja, um currículo libertador deve seguir esse pressuposto ao compreender a necessidade de um processo educativo que não apenas possibilite o aprendizado dos conteúdos, suas aplicações práticas, mas também suas aplicações sociais, fornecendo subsídios para o desvelamento das relações oprimido-opressor nas relações sociais, sejam estas dadas através das esferas de classe, raça, gênero, sexualidade, religião, nacionalidade, corporalidade, etc. Não obstante, a compreensão desta realidade ambígua, una, complexa e conflitante deve estar a serviço da transformação das relações sociais, da quebra do status quo.

E tudo isso reflete sobre o próximo pressuposto que trata e recebe a nomenclatura de direitos humanos. A educação freiriana é, como apontado por Nita Freire e Erasto Mendonça, uma educação que reflete em todo o seu corpo o respeito e promoção aos direitos humanos, pois esse tópico se refere a com quem e para quem se destina a educação (FREIRE, 2021c). Ao pensar uma educação com e para as classes populares almejando a libertação das relações oprimido-opressor, o educador não poderia senão pensar uma educação com todos e para todos que fazem parte dessa esfera social.

A classe popular é um conceito abstrato para Freire, pois a educação se dá com as pessoas reais, com nomes, rostos, corpos, vivências, sobrevivências. Pode-se pensar num recorte social de classe, onde a essa educação é voltada para desvelar as relações de opressão operada pelo capital, mas essa não seria uma abordagem condizente com o pensamento complexo do autor. Existem relações de opressão que aludem a outros aspectos da identificação dos corpos, como raça, gênero, sexualidade, idade, etc. E, embora se pense que a luta pelos direitos femininos e LGBTQIA+ está alinhada historicamente com o pensamento de esquerda, logo está contido no pensamento de Paulo Freire, esta é uma construção sintática equivocada.

Como afirma Trevisan (2018), o Partido dos Trabalhadores (partido ao qual Paulo Freire era filiado), principal partido de esquerda no Brasil desde sua criação na década de 80, não tinha em suas pautas as intersecções de raça, gênero e sexualidade no século XX. Em vez disso, utilizava-se de argumentos falaciosos para renegar a homo, bi e transexualidade à direita, como se o recorte de classe sobrepusesse qualquer outro recorte, os tornando ilegítimos (TREVISAN, 2018). Portanto, o que se pretende elucidar aqui é que, embora não fossem pauta corrente entre grupos de esquerda, Freire já incluía em sua educação tais intersecções, como pode ser visto pelos programas de professores ofertados em sua gestão como secretário municipal de Educação de São Paulo (FREIRE, 2021c; SME, 1991).

Por conseguinte, uma educação que oculte problemas sociais, que oculte relações de poder nunca será democrática, crítico-emancipadora ou terá respeito pelos direitos humanos. Nesse sentido, a teoria de Freire se mostra coerente, traçando o oposto daquilo que uma educação conservadora, uma educação neoliberal se propõe. E isso deve ser lembrado: o apagamento de grupos sociais indesejados é comum e recorrente nos movimentos contemporâneos de direita (SETTERINGTON, 2017; TREVISAN, 2018).

Por sobre o pressuposto da cientificidade, considera-se o uso coerente da ciência para a construção do currículo. Ou seja, Freire acreditava que a ciência deve balizar todos os processos de produção cultural, histórica, social e política, fazendo com que o progresso da sociedade e a emancipação das classes ocorressem (FREIRE, 2021c). O conhecimento científico é histórico e socialmente construído, vai evoluindo historicamente, passando por revoluções, numa progressão não-linear, mas sempre tem como objetivo descrever, detalhar e explicar a realidade objetiva, sendo a ciência uma representação de tal realidade, nunca ela em si mesma (KUHN, 2018; FONSECA, 2022).

Utilizar a ciência para construir o currículo não significa apenas estar de acordo com o paradigma vigente, para Freire, mas sim considerar as produções no campo tanto das ciências naturais como das ciências humanas, pois a Educação em si não é uma ciência, portanto, não é autônoma. Ela se nutre de outras ciências como a Psicologia, a Sociologia, a Filosofia, além as ciências das quais versará o ensino, como Física, Matemática, Linguística, Biologia, Química, História, Geociências, etc. (FREIRE, 2021c).

Portanto, desconsiderar os estudos desenvolvidos nas universidades em todos estes campos, além das pesquisas dos programas de Educação é ignorar todo avanço científico contemporâneo em prol de uma política voltada não mais aos interesses dos grupos populares ou da academia.

Quanto à categoria interdisciplinar, Paulo Freire entendia que a Educação não deve ser reducionista, compartimentada, fragmentada, pois ela se volta à construção subjetiva de uma realidade objetiva, e, se a realidade objetiva não comporta tais características, tampouco deve o ato pedagógico fazê-lo. Nesse sentido, a palavra geradora dá o tom no processo de alfabetização, enquanto o tema gerador o dá após a alfabetização, como afirma:

A tarefa do educador dialógico é, trabalhando em equipe interdisciplinar este universo temático, recolhido na investigação, devolvê-lo, como problema, não como dissertação, aos homens de quem recebeu.

Se, na etapa da alfabetização, a educação problematizadora e da comunicação busca e investiga a palavra geradora, na pós-alfabetização, busca e investigação o tema gerador (FREIRE, 2022a, p. 142).

O tema gerador, segundo a teoria do autor, é um elemento que deve ser compartilhado por todos os professores no processo de escolarização, podendo ser regido anualmente, semestralmente, enfim, de acordo com as necessidades dos sistemas de ensino.

É interessante observar que a educação de Paulo Freire não é reducionista aos moldes paradigmáticos mecanicistas de Descartes, nem holístico que considera apenas o todo sem conseguir evidenciar as partes. Assim, a epistemologia freiriana está mais próxima à de Edgar Morin, tanto que a presença de um pensamento uníssono e unificado dos conhecimentos é comum aos dois autores. Morin diz que é necessário superar “um pensamento que isola e separa por um pensamento que distingue e une. É preciso substituir um pensamento disjuntivo e redutor por um pensamento do complexo, no sentido originário do termo complexus: o que é tecido junto (MORIN, 2003, p.89).

Não obstante, Silva e Infante-Malachias (2012) apontam outras congruências entre o pensamento dos autores, das quais destaca-se aqui:

  1. 1. A racionalização da razão: processo de racionalidade que leva ao pensar certo, o movimento dialético da razão voltar-se a si mesma para seu alto análise, impedindo equívocos e certezas absolutas.
  2. 2. O poder da ideologia: compreender como as construções subjetivas influenciam nas ações objetivas dos indivíduos, pensando uma educação que tenha como objetivo emancipação das ideologias opressoras.

Adiante, tem-se o pressuposto problematizador. Esta categoria infere sobre um aspecto subjacente à categoria crítico-emancipadora. Isso se deve à questão do objetivo e do método: para atingir a emancipação através da consciência crítica, utiliza-se da problematização, presente na pedagogia da pergunta. Entretanto, pode haver uma problematização que não atinja o objetivo proposto, uma problematização “espantalho”, pois não se busca emancipar, mas atingir outros fins, como a problematização pela problematização, num viés mais conteudista do processo pedagógico.

Nesse sentido, a problematização está contida no método freiriano, mas pode ser incorporada ao currículo, onde os conteúdos, os objetivos de aprendizagem, ou seja, a organização da educação caminhe no sentido de problematizar os conteúdos a fim de desenvolver uma consciência crítica voltada à emancipação. Problematizar é trazer à tona as discussões que desvelam as relações oprimido-opressor, pois, por trás de todo e qualquer conteúdo escolar existe um: quem disse isso? Por que aprender isso? Para aprender isso o que precisou ser excluído do tempo escolar e do currículo?

Fazendo jus à corrente fenomenológica de onde parte o pensamento do autor, não se pode pensar em relações sociais falando em entes abstratos, pois a abstração busca esconder as relações de poder, busca esconder quem são os responsáveis pelas políticas estatais, o que buscam com isso, o que verdadeiramente buscam. Em vez disso, a problematização busca evidenciar os quem, os quando, os onde, os como, os porquês, os para quê; busca evidenciar que as relações sociais se dão pelas pessoas com as pessoas e para as pessoas, e não da educação abstrata para a sociedade abstrata.

Quanto ao pressuposto cotidianeidade, este diz respeito ao ponto de partida dos processos de ensino-aprendizagem. Freire defende que todo e qualquer processo de ensino que se preste ao desenvolvimento de uma consciência crítica voltada à emancipação dos indivíduos, deve se iniciar pelos elementos comuns da cultura, da vida, da vivência local, e nunca de outro ponto qualquer que seja. Isso porque o autor defende pontos filosóficos, epistemológicos e didáticos que convergem para esta afirmação.

Primeiro: os indivíduos são portadores de conhecimentos, sejam eles científicos, sistematizados, ou do senso comum, portanto, portadores de uma vivência. Isso implica numa ética democrática radical do educador, que nunca pode sobrepujar, negligenciar, desconsiderar a vida e as experiências de quem aprende e ensina com ele. Assim, significa que a docência libertadora deve partir daquilo que é sabido, conhecido, vivenciado pelos escolares, mas não se basta nela: tem início com a cotidianeidade; passa pela construção de conhecimentos sistematizados e aquisição de conhecimentos científicos historicamente construídos, pela compreensão das realidades de outrem; e chega à tomada de consciência crítica para e no processo de libertação constante.

Segundo: desconsiderar a cotidianeidade dos educandos e educá-los através da realidade de outrem é um processo de alienação, pois o indivíduo deixa de tomar consciência de sua própria realidade para ser consciente de uma realidade da qual não habita. Assim sendo, a consciência se desgarra da realidade sensível, uma dissonância entre realidade objetiva e subjetiva, o que, de forma alguma, está alinhada com a construção humana do Ser Mais pretendida pelo autor. Nesse sentido, Paulo Freire assume pressupostos da alienação de Marx, indicando que o educador que desconsidera a cotidianeidade dos escolares lhes priva de conhecer e desvelar os processos pelo qual ela ocorre e se dá dia após dia, portanto, tira dos educandos a possibilidade de se verem como produtores de cultura, produtores e transformadores da realidade, ou seja, os distancia da emancipação.

Terceiro: em termos didáticos, não se pode pensar que a imaginação seja capaz de compreender por si mesma os eventos da realidade objetiva sem o contato com esta. Ou seja, os primeiros processos do aprender se dão pela experiência: não há como saber o sabor de uma uva sem prová-la, ou o formato da Lua sem vê-la, ou a operacionalidade de um telescópio sem manuseá-lo. Por isso, o autor apresenta que os elementos de vivência, da cotidianeidade são subsídios e/ou potencializam o processo de aquisição do conhecimento científico, e isso não se infere pelo campo da idealização, mas pode ser compreendido através de sua experiência na comunidade de Angicos – Rio Grande do Norte, onde o educador alfabetizou 300 adultos em cerca de 40 horas.

Por isso, vale ressaltar que o método de Paulo Freire se inicia pela pesquisa, pois é necessário conhecer os indivíduos, sua realidade, para depois educá-los, transcendendo suas concepções espontâneas, passando pelo conhecimento científico até a emancipação. Entretanto, ainda que se caia em redundâncias, é importante lembrar que Paulo nunca pretendeu que os educandos permanecessem no senso comum, algo que foi acusado ainda em vida, seja por interpretações ora ingênuas, ora dissimuladas e que o autor tanto desmentiu (FREIRE, 2021c).

Assim, um currículo libertador deve ser construído de forma que as vivências sejam consideradas, respeitadas e valorizadas como tendo a importância cultural a dado povo como realmente tem e não meramente no campo do discurso.

O pressuposto Participativo tem relação com o pressuposto Democrático, porém, não possuem o mesmo significado. Enquanto, por vezes, o termo participativo esteja presente na concepção de democracia, assume-se aqui uma distinção que tem a ver com o percurso ideológico apresentado pela gestão de Paulo Freire frente à Secretaria de Educação de São Paulo.

O autor considera que todos os aspectos educacionais (e também de uma sociedade aberta) devem ser pautados pela democracia, ou seja, que respeita o diálogo e a participação, assim, muitas categorias são variantes em algum grau da primeira. Desta forma, faz-se compreender a variação de cada um dos pressupostos frente à Democracia.

Com isso, torna-se mais evidente o que se pretende discutir aqui. Participativo, então, tem relação com a atividade desenvolvida pelos agentes do processo de ensino e aprendizagem, ou seja, da comunidade escolar, frente ao currículo.

Em sua gestão frente à Secretaria de Educação de São Paulo, Freire pretendeu desenvolver gestões democráticas das escolas, onde os diretores fossem escolhidos por meio de votação da comunidade escolar. Isso não se realizou, pois os professores se manifestaram contrários à ideia. Ainda que o autor tivesse uma concepção clara sobre os processos democráticos na escola, ele acatou a decisão dos pares, pois entendia que o cerne estava no processo e não no fim: era mais importante que os docentes escolhessem abrir mão da sua participação na escolha dos diretores que eles escolhessem pelo caminho que seus ideais o conduziam (FREIRE, 2021c).

Nesse sentido, através da democracia, os educadores estavam abrindo mão da participação democrática em certo sentido, embora Paulo quisesse lhes apresentar a possibilidade de tal participação, pois, assim, futuramente a democracia escolar poderia ser ampliada através desta tomada de consciência de como é o processo participativo, ainda que ele resulte em não participação em dado sentido (FREIRE, 2021c).

Portanto, fica claro que nem sempre, para o educador, a democracia caminha para a participação, mas este é um pressuposto que está incorporado e é almejado pela Educação Libertadora. Assim, participar frente ao currículo está no processo ativo de os indivíduos do qual o currículo diz respeito se manifestarem e terem suas considerações validadas para desenvolver o currículo. Não obstante, participativo para modificá-lo, participativo para adaptá-lo, participativo para que os homens, como produtores de sua realidade, não estejam capturados e imobilizados pelo currículo, mas que o façam e refaçam segundo suas necessidades, seus interesses, suas concepções de mundo.

A existência, porque humana, não pode ser muda, silenciosa, nem tampouco pode nutrir-se de falsas palavras, mas de palavras verdadeiras, com que os homens transformam o mundo. Existir, humanamente, é pronunciar o mundo, é modificá-lo. O mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar .

Não é no silêncio que os homens se fazem, mas na palavra, no trabalho, na ação-reflexão (FREIRE, 2022a, p. 108).

O pressuposto seguinte tem breve relação com o anterior, e trata sobre o currículo ser flexível. A flexibilidade tem relação com a adaptação do currículo frente a diversas situações e ambiente. Não obstante, a flexibilidade também recai sobre a possibilidade de o currículo ser modificado para atender as demandas sociais, não estando ele acima da sociedade, mas esta determinante sobre aquele. Não se pode imaginar que tal documento, enquanto manifestação da realidade de um local no tempo tenha características que o transforme num agente burocrático do controle social, em uma perspectiva emancipadora.

Nesse sentido, o currículo jamais poderá ser um agente limitador da educação, mas sim um balizador da organização do meio escolar. Freire percebia na burocratização um elemento desumanizador e cerceador das ações humanas nos departamentos de ação pública, e para uma escola eficiente, pronta a se autorregular para atender as necessidades da comunidade, a se inovar para chamar atenção dos escolares e mantê-los sob sua égide, esta burocratização seria motivo de preocupação. Não se deve pensar, entretanto, em uma educação espontânea, mas sim uma que as pessoas não sejam sufocadas pelo aparato burocrático, ao contrário, sejam, de acordo com sua realidade e suas necessidades, reinventoras do currículo, pois são, antes de tudo, criadoras de sua própria realidade.

Partindo ao pressuposto da formação integral, observa-se que Paulo Freire pensava a educação como muito mais que apreender e reproduzir conteúdos e conceitos científicos, para ele, a educação trata da formação integral dos indivíduos, passando desde o campo psicológico, ao social, afetivo, cultural e atitudinal. A escola é vista como espaço para que os indivíduos se construam, desconstruam e reconstruam num processo contínuo do Ser Mais, natureza ontológica humana. Por isso,

A qualidade dessa escola deverá ser medida não apenas pela quantidade de conteúdos transmitidos e assimilados, mas igualmente pela solidariedade de classe que tiver construído, pela possibilidade que todos os usuários da escola – incluindo pais e comunidade – tiverem de utilizá-la como um espaço para a elaboração de sua cultura. Não devemos chamar o povo à escola para receber instruções, postulados, receitas, ameaças, repreensões e punições, mas para participar coletivamente da construção de um saber, que vai além do saber de pura experiência feito, que leve em conta as suas necessidades e o torne instrumento de luta, possibilitando-lhe transformar em sujeito de sua própria história. A participação popular na criação da cultura e da educação rompe com a tradição de que só a elite é competente e sabe quais as necessidades e interesses de toda a sociedade. A escola deve ser também um centro irradiador de cultura popular, à disposição da comunidade, não para consumi-la, mas para recriá-la. A escola é também um espaço de organização política das classes populares. A escola como um espaço de ensino-aprendizagem será então um centro de debates de idéias, soluções, reflexões, onde a organização popular vai sistematizando sua própria experiência. O filho do trabalhador deve encontrar nessa escola os meios de auto--emancipação intelectual independente dos valores das classes dominantes. A escola não é só um espaço físico. É um clima de trabalho, uma postura, um modo de ser. A marca que queremos imprimir coletivamente às escolas privilegiará a associação da educação formal com a educação não-formal. A escola não é o único espaço da veiculação do conhecimento. Procuraremos identificar outros espaços que possam propiciar a interação de práticas pedagógicas diferenciadas de modo a possibilitar a interação de experiências. Consideramos também práticas educativas as diversas formas de articulação que visem contribuir para a formação do sujeito popular enquanto indivíduos críticos e conscientes de suas possibilidades de atuação no contexto social (SME/SP, 1989, p.7).

Assim, a formação integral, enquanto categoria de análise desta pesquisa, está alinhada com a formação humana oferecida pela escola, e, como não poderia ser diferente, esta formação é abordada no currículo. Isso acontece, pois, na realidade brasileira, pouco se faz no contexto escolar além do que o currículo preconiza, já que é de longa data que o viés conteudista e normativo dos currículos vem impelindo a ação docente no sentido de formar educandos como especialistas em conteúdos que pouco lhes dizem respeito, seja na vida privada ou na vida social. E esse, diga-se de passagem, é um dos males da educação que o autor mais denunciou, chegando a nomear este tipo de educação de educação bancária (FREIRE, 2022a).

Portanto, a escola, e o currículo, devem ser espaços de formação de cidadãos, de concidadãos, espaço para criação o desenvolvimento

Adiante, o pressuposto da autonomia é um elemento importante para fundamentar um currículo libertador. Entende-se por autonomia a capacidade e possibilidade dos agentes envolvidos no processo educacional tomarem atitudes ou pensamentos voluntários autodeterminados, livre de imposições exteriores. E, como já pôde ser constatado por meio dos demais pressupostos, a autonomia é um dos elementos indispensáveis para uma educação libertadora, seja autonomia procedimental ou autonomia ideológica.

Nessa via, podem ser distinguidos dois processos: a autonomia fornecida aos professores e a autonomia possibilitada aos estudantes.

A primeira é alinhada com o processo de escolha e tomada de decisões que um educador possa tomar frente às normativas do currículo. Ainda que existam competências e habilidades mínimas que o docente deve desenvolver com, para e nos educandos, existe uma liberdade para ir além dos conteúdos mínimos, liberdade para escolha das ferramentas, modos e métodos de trabalho, etc. Portanto, ocorre a incidência de autonomia docente frente diversos fatores que permeiam a vida na escola.

A segunda se refere à liberdade de atitudes e pensamentos outorgados aos estudantes, ou seja, aquilo que lhe é de encargo e o que não pode ser. Similar ao que se detalhou sobre a primeira, o documento apresenta conteúdos mínimos a serem aprendidos para o desenvolvimento dos processos de ensino-aprendizagem, entretanto, o percurso até a aquisições dos conhecimentos científicos é livre para tomada de consciência autônoma dos educandos.

A autonomia, para a educação freiriana, é de suma importância, pois ela se dá no ato da pergunta, no processo investigativo em que o educando não só busca aprender um conteúdo, como ensina enquanto aprende. Enquanto a autonomia no campo das ações é necessária para a compreensão, manipulação e realização dos processos científicos, a autonomia ideológica é necessária para se desenvolver o senso crítico, não estando sob os domínios de pensamento de outrem, mas tomando a atitude filosófica como ponto para aprender e aprender ciência.

Ainda, Freire apresenta a falsa dicotomia entre atitudes e pensamentos, pois ação e reflexão, seja para docentes ou para escolares, são ambos objetos de uma mesma práxis. Não existe uma em detrimento da outra, nem em ordem de grandeza, nem em ordem de importância. Ainda que cada época marque uma preferência filosófica ora pela teoria ora pela prática, sendo o tempo atual marcado por um ressurgimento do neo-empirismo que privilegia a ação manipulativa em detrimento da ação cognitiva (NASCIMENTO JUNIOR, 1992), existe uma necessidade de superação entre essa dicotomia.

Não há palavra verdadeira que não seja práxis. Daí que dizer a palavra verdadeira seja transformar o mundo.

A palavra inautêntica, por outro lado, com que não se pode transformar a realidade, resulta da dicotomia que se estabelece entre seus elementos constituintes. Assim é que, esgotada a palavra de sua dimensão de ação, sacrificada, automaticamente, a reflexão também, se transforma em palavreira, verbalismo, blá-blá-blá. Por tudo isto, alienada e alienante. É uma palavra oca, da qual não se pode esperar a denúncia do mundo, pois que não há denúncia verdadeira sem compromisso de transformação, nem este sem ação.

Se, pelo contrário, se enfatiza ou exclusiviza a ação, com o sacrifício da reflexão, a palavra se converte em ativismo. Este, que é ação pela ação, ao minimizar a reflexão. Nega também a práxis verdadeira e impossibilita o diálogo.

Qualquer destas dicotomias, ao gerar-se em formas inautênticas de existir, gera formas inautênticas de pensar, que reforçam a matriz em que se constituem (FREIRE, 2022a, pp. 107, 108).

Por último, um elemento a se considerar e que tem relação histórica tanto social quanto científica é o uso de novas tecnologias. Nessa categoria, como o nome sugere, levanta-se a necessidade de utilizar as tecnologias digitais e os últimos avanços do campo da tecnologia para o ensino, visando o processo de emancipação. Como toda práxis está fundamentada sobre um tempo histórico, faz-se necessário relembrar que a teoria educacional de Freire não se propôs a apresentar verdades que estão além do tempo e do espaço neste campo, nem tampouco ser anacrônica ou atemporal. O próprio autor demonstra a consciência crítica sobre o assunto, inferindo sobre a historicidade humana, a historicidade do conhecimento, da ciência, da tecnologia. E claro, tal historicidade deve ser levada às últimas consequências em todos os pressupostos aqui já discutidos.

Todavia, ainda que óbvio em certo sentido, é importante ressaltar isso, pois os escritos do autor não se debruçam sobre tal aspecto da educação e do quefazer da ação docente. Entretanto, em sua gestão à frente da Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, o educador evidenciou que compreendia as novas tecnologias como uma ferramenta a mais para fomentar o processo de emancipação das classes oprimidas. Neste contexto, o município de São Paulo foi o primeiro do Brasil a ter um projeto de incorporação de tais tecnologias no âmbito educacional, sob a gestão supracitada, de 1989 a 1992 (FREIRE, 2021c).

Isso seria impensável décadas atrás, e ainda que pareça uma realidade e uma necessidade óbvia nos anos em que esta pesquisa ocorreu, a implementação e o uso de novas tecnologias ainda caminham a passos curtos na educação brasileira. Nesse sentido, Freire mostra uma linha de pensamento onde não só o conhecimento produzido em suas vivências pode ser utilizado na educação crítica, mas os conhecimentos futuros e as tecnologias ainda por virem fomentam mecanismos que podem ser incorporados na luta por uma sociedade mais democrática, no processo de libertação dos homens.

Ainda que, conforme novas tecnologias surjam, a sociedade de forma geral veja nelas um problema a ser resolvido, sendo isso um processo histórico quase que permanente, fica implícito na teoria freiriana a compreensão de que as tecnologias não são boas nem más em si mesmas. Ou seja, sendo ferramentas, são seus variados usos que determinam seus propósitos, e não características ontológicas que precedem qualquer manipulação que se faça delas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao todo, foram encontrados 12 pressupostos necessários à formulação de um currículo libertador. Ainda que alguns critérios possuam uma importância qualitativa maior que outros, todos eles compõem uma mesma práxis político-educativa, não sendo possível sua dissociação ou negligência no processo de formulação do documento.

Nesta perspectiva, a democracia radical é o critério que baliza todos os demais, estando ela presente epistemologicamente nos objetivos, nos meios, nas justificativas e todo conjunto teórico-prático que compõe a práxis libertadora. Nenhuma educação verdadeiramente libertadora aos moldes de Paulo Freire pode ser antidemocrática, antidialógica, segregacionista, antidialética, bancária. Assim, tanto os currículos locais, estaduais ou naci0nais que incidam sobre uma educação para todos deve seguir pressupostos de um currículo radicalmente democrático como tal. Mas é importante evidenciar que a ocorrência de algumas das categorias apresentadas não é suficiente para um currículo receber tal alcunha: muito mais que somente ideológico, o currículo também é prático, é vivo e se dá no chão da escola, então é na junção entre estes dois elementos, teoria e prática, que se deve investigar um currículo libertador.

Outro pressuposto que merece destaque é o que alude aos direitos humanos, pois Paulo Freire entende a necessidade da tolerância e da valorização das diversas vivências possíveis, das corporalidades, daquilo que ao passo que difere os seres humanos, não seja motivo de sua segregação. Na atualidade, os currículos do território brasileiro vêm apresentando um apagamento das questões de raça, gênero e sexualidade, principalmente os últimos. Numa perspectiva oposta, o educador forneceu capacitação pedagógica facultativa aos professores da rede de São Paulo para as questões de gênero e sexualidade, além de ter atuado nos processos de libertações de povos africanos e ter influenciado os movimentos indígenas em busca de conscientização e emancipação da visão eurocêntrica e colonizadora.

Quanto aos pressupostos cientificidade, interdisciplinar, problematizador e cotidianeidade, percebe-se uma sequência lógica muito clara, que liga o pensamento do autor a uma corrente complexa do conhecimento. Inicialmente, as vivências dos educandos é o ponto de partida, muitas vezes ligado com o senso comum, algo ressaltado por Freire, já que não existe ignorância absoluta, apenas saberes diferentes (FREIRE, 2022a). Este conhecimento desorganizado servirá de base para a construção de novos saberes, aqueles sistematizados, científicos, organizados, de forma que os educandos alcancem uma modificação de esquemas mentais, chegando à mudança conceitual necessária para a compreensão da ciência enquanto tal. Esta mesma ciência não é objeto desligado da realidade, volta-se sobre o cotidiano dos discentes de forma inter-relacionada com outras ciências, outros conhecimentos, outras formas de compreender a realidade, para fornecer subsídios à problematização que levará à tomada de consciência crítica, e por fim, a práxis libertadora, cheia de teoria e prática para a libertação.

Não obstante, enquanto os pressupostos participativo e flexível estão relacionados com a forma que o currículo assume, os demais, formação integral, autonomia e novas tecnologias tem a ver com o conteúdo destes, ainda que forma e conteúdo, num olhar freiriano, sejam indissociáveis, aspectos correlatos de uma mesma realidade. Participativo e flexível para estar em acordo com os princípios de democracia radical e respeito às múltiplas vivências. Uso de novas tecnologias e desenvolvimento da autonomia pensando todos os demais pressupostos, mas também uma formação integral, que não comporta somente estes, mas principalmente a vida comum, os aspectos afetivos e psíquicos além de apenas cognitivos.

Cada vez mais fica evidente a necessidade de um sistema de educação e um currículo que tenha perspectivas para além da educação padronizada, padronizante e alienante em nível nacional. Lutar contra a educação bancária é lutar contra os ideais neoliberais e buscar por uma educação popular de qualidade. Construir uma sociedade mais igualitária e equânime é algo necessário para a humanização dos oprimidos e dos opressores, é algo necessário para a vida, pois desumanizar é trazer a morte ao campo ideológico, e esta precede o apagamento físico.

REFERÊNCIAS

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