Artigos
CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INFANTIL: concepções, legislação e invisibilidades
CURRICULUM AND CHILD EDUCATION: conceptions, legislation and invisibilities
CURRÍCULO Y EDUCACIÓN INFANTIL: concepciones, legislaciones e invisibilidades
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 1, 2023
Recepção: 12 Março 2023
Aprovação: 04 Abril 2023
Resumo: O artigo problematiza o currículo na Educação Infantil à luz do debate sobre concepções, legislações e (in) visibilidades. A discussão acerca de questões curriculares nesta etapa da Educação Básica tem ganhado espaço no movimento histórico da própria constituição da educação institucionalizada de crianças de zero a cinco anos, envolvendo sua função, finalidade, objetivos e organização, ou seja, sua identidade. Apesar desse espaço, não se trata de tema objeto de consenso entre intelectuais, docentes e pesquisadores da área. E isso se dá desde a própria concepção de currículo à sua relação com a Educação Infantil. Também, no âmbito das problematizações, ressaltam-se contextos e sujeitos ainda ausentes desse debate, o que também aponta para a garantia de direitos: as crianças de zero a cinco anos residentes em áreas rurais do país. Em meio às múltiplas teorizações que definem a(s) criança(s), a(s) infância(s) e sua educação, bem como seus desdobramentos em legislações, políticas e orientações para as práticas pedagógicas – que, por sua vez, impulsionam novas teorizações – emergem lacunas, desconhecimentos, invisibilidades – de processos, de contextos, de sujeitos, de práticas.
Palavras-chave: Crianças, Educação Infantil, Direito, Currículo, (In) visibilidade.
Abstract: The article problematizes the curriculum in Early Childhood Education in light of the debate on conceptions, legislation, and (in)visibilities. The discussion about curricular issues in this stage of Basic Education has gained space in the historical movement of the institutionalized education of children from zero to five years old, involving their function, purpose, objectives, and organization, that is, their identity. Despite this space, it is not a topic that is the subject of consensus among intellectuals, teachers, and researchers in the field. This is also the case from the very conception of the curriculum to its relationship with Early Childhood Education. In addition, within the scope of problematizations, it’s worth noting that contexts and subjects are still absent from this debate, which also points to the guarantee of rights: children from zero to five years old living in rural areas of the country. Amidst the multiple theories that define the children, childhoods, and their education, as well as their implications for legislation, policies, and guidelines for pedagogical practices - which, in turn, drive new theories - gaps, unknowns, invisibilities - of processes, contexts, subjects, and practices emerge.
Keywords: Children, Child education, Law, Curriculum, (In)Visibility.
Resumen: El artículo problematiza el currículo en Educación Infantil a la luz del debate sobre concepciones, legislaciones e (in)visibilidades. La discusión sobre cuestiones curriculares en esta etapa de la Educación Básica ha ganado espacio en el movimiento histórico de la constitución misma de la educación institucionalizada para niños de cero a cinco años, involucrando su función, finalidad, objetivos y organización, es decir, su identidad. A pesar de este espacio, no es un tema de consenso entre intelectuales, docentes e investigadores del área. Y esto sucede desde la propia concepción del currículo hasta su relación con la Educación Infantil. Asimismo, en el ámbito de las problematizaciones, se destacan contextos y sujetos aún ausentes de este debate, que apunta también a la garantía de derechos: los niños de cero a cinco años que viven en zonas rurales del país. En medio de las múltiples teorizaciones que definen al(los) niño(s), la(s) infancia(s) y su educación, así como sus consecuencias en la legislación, políticas y lineamientos de las prácticas pedagógicas -que, a su vez, impulsan nuevas teorizaciones- vacíos, desconocimientos, emergen invisibilidades – de procesos, contextos, sujetos, prácticas.
Palabras clave: Niños, Educación Infantil, Bien, Currículum, Invisibilidad.
1 INTRODUÇÃO
O presente artigo integra reflexões elaboradas, originalmente, com o propósito de contribuir para um diálogo sobre o tema do currículo na Educação Infantil articulando concepções, legislações e (in)visibilidades. Essa discussão, por sua vez, teve lugar em um evento acadêmico sobre currículo que assumiu, como mote para os debates, a provocação: “por outros projetos políticos de currículo”, o que demandou, às elaborações acerca do tema, apontar conquistas, desafios e perspectivas para além das existentes.
O tema do currículo na Educação Infantil já vinha sendo objeto de reflexões sobretudo na primeira metade da década de 1990, no movimento de redemocratização do país e reivindicação de direitos humanos, bem como da definição da criança como sujeito de direitos pela Constituição de 1988, mas ganhou centralidade a partir da afirmação, no âmbito da LDB – Lei 9.394/96, da Educação Infantil como primeira etapa da Educação Básica.
A definição de uma função essencialmente pedagógica para as instituições de educação de crianças de zero a cinco anos, além de avançar em relação a perspectivas compreendidas como marcadamente assistencialistas ou escolarizantes, presentes no atendimento institucionalizado à primeira infância, instituiu o caráter intencional e sistemático de seu funcionamento, bem como das práticas cotidianas, assim como sua vinculação a normatizações próprias ao sistema de ensino numa perspectiva de qualidade, respeitando-se as especificidades infantis.
Mas, se a concepção de função social e política própria da Educação Infantil de cuidar-educar como direito das crianças enquanto sujeitos humanos, reconhecidas suas capacidades e necessidades, é reconhecida de modo consensual na área, a discussão acerca do currículo vem se constituindo marcada por discordâncias e dissensos (DANTAS; LOPES, 2020; BARBOSA; OLIVEIRA, 2016) relativos à compreensão do trabalho a ser desenvolvido nas instituições, bem como ao papel de instâncias normativas na elaboração de orientações de cunho curricular e aos seus desdobramentos no trabalho ofertado às crianças.
A tensão que marca a tematização de currículo na Educação Infantil é reconhecida, entre outros autores, por Barbosa e Oliveira (2006) para quem a abordagem do tema é tarefa de natureza complexa por envolver uma multiplicidade de significações nos dois campos de estudo – da educação de crianças e do currículo – o que tem configurado, na atualidade, “dilemas teóricos”, “tensões políticas”, embates e disputas entre diferentes modos de compreensão pertinentes ao trabalho junto às crianças. Ao mesmo tempo, as autoras reconhecem que a discussão é incontornável, visto que “o currículo é um elemento central na constituição da proposta político-pedagógica da escola que guia a formação das crianças”. (BARBOSA; OLIVEIRA, 2006, p. 16).
Ressalta, desse reconhecimento, a compreensão das elaborações pertinentes à educação de crianças e do currículo, seja como concepções teóricas, seja como discursos legais e políticas, como produções discursivas, como produção de significações vinculadas aos contextos históricos, sociais, políticos, culturais e, desse modo, sua natureza de inacabamento, de incompletude, de movimento permanente de (in)definição, de (re)conhecimento, assim como de (in)visibilidade.
Com base em pesquisas de natureza teórica, documental e empírica, buscamos empreender, nesse texto, um exercício de sistematização das reflexões elaboradas no contexto da situação já referida, objetivando contribuir para a discussão sobre o currículo na Educação Infantil tendo em vista o entrelaçamento entre concepções, legislações-políticas e práticas em seus movimentos históricos e discursivos de constituição.
2 EDUCAÇÃO INFANTIL E CURRÍCULO: concepções e legislações como produções históricas e discursivas
Tratar da temática currículo e educação infantil partindo de suas concepções nos convoca a falar sobre a legislação, bem como sobre as invisibilidades, tendo em vista que é quase impossível falar de um aspecto sem mencionar os demais.
Mas iniciaremos destacando as concepções de educação infantil e de currículo e depois onde currículo e educação infantil se encontram, nos debruçando, inicialmente, sobre o que afirmam a legislação e os documentos nacionais sobre o tema.
Nesse sentido, destacamos a própria definição legal da Educação Infantil lembrando o que está presente nos artigos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN). Em seu artigo 21 a LDBEN afirma que a educação brasileira é composta de dois níveis – Educação Básica e Educação Superior –, sendo o primeiro formado por três etapas – Educação Infantil, Ensino Fundamental e Ensino Médio (BRASIL, 1996).
Essa definição, apontada no artigo 21 da LDBEN (1996), indica que a Educação Infantil está nomeada de forma diferente das demais etapas que compõem a Educação Básica; e essa diferença de nomenclatura já indica uma concepção de educação que a diferencia das demais. Essa diferenciação se deve ao fato de que a Educação Infantil é uma etapa educativa que possui especificidades em razão das suas funções e das características das crianças que atende. Especificidade que vai ficando ainda mais evidente quando o artigo 29 define que o objetivo central da Educação Infantil é promover o desenvolvimento integral das crianças, considerando os diferentes aspectos desse desenvolvimento.
Ao fazermos uma leitura comparativa entre esse objetivo com o que está expresso no artigo 32, que se refere ao objetivo do Ensino Fundamental, esse destaca a formação cidadã, tendo como primeiro elemento para a garantia dessa formação “o pleno domínio da escrita da leitura, da escrita e do cálculo”. Esse destaque, bem como outros aspectos apresentados nos demais incisos do artigo 32, vão indicando que o objetivo do Ensino Fundamental foca muito mais no “domínio” de conteúdos, enquanto a Educação Infantil tem como foco o processo de desenvolvimento integral das crianças (BRASIL, 1996).
Outra marca característica da Educação Infantil se refere à nomenclatura das instituições educativas. Sobre isso, a legislação afirma, em seu artigo 31, que as instituições que ofertam a educação às crianças de 0 a 5 anos denominam-se creches e pré-escolas, sendo essas definidas pela faixa etária de crianças que atendem, ou seja, a creche atendendo as crianças de 0 a 3 anos, e as pré-escolas atendendo as crianças de 4 e 5 anos.
Um outro aspecto apresentado na LDBEN e que é preciso destacar é quando nas disposições transitórias, no artigo 89, a lei traz que as creches e pré-escolas existentes, ou as que fossem criadas a partir da promulgação da lei, precisariam passar a fazer parte do sistema de ensino brasileiro. Com esse artigo, a legislação já apontava o fato de que nem todas as instituições existentes no país pertenciam ao sistema de ensino.
Quando revisitamos o histórico do processo de atendimento às crianças fora do lar no Brasil, verificamos que nem sempre esse atendimento esteve vinculado ao sistema educacional. E historicamente as instituições se desenvolveram vinculadas à outras instâncias e não às secretarias de educação. No processo de institucionalização do atendimento das crianças fora do lar as primeiras instituições que a sociedade demandou foram instituições de guarda de crianças órfãs ou abandonadas. E mesmo quando surgiram as primeiras creches, que se caracterizavam como instituições que iriam cuidar e educar as crianças por um período de tempo, essas não surgiram vinculadas ao contexto educacional. As primeiras creches surgiram atreladas ao mundo do trabalho e, tanto em outros países como no Brasil, surgiram como demandas das mulheres a partir de sua entrada no mundo do trabalho.
Nesse mesmo revisitar histórico, aponta-se a diferença em relação ao contexto das pré-escolas, essas sim criadas com uma vinculação ao sistema educacional, se tratando de uma instituição específica ou denominando as turmas de educação infantil que foram instaladas nas escolas. De todo modo, é certo que já surgiram com uma vinculação com o contexto educacional (KRAMER, 2003; OLIVEIRA, 2005).
Desse modo, podemos verificar como a vinculação das instituições de educação infantil ao sistema educacional é recente, e o marco para as mudanças que chegam ao nosso contexto atual é exatamente a LDBEN (1996). Nesse contexto, o que se apresenta nos artigos da lei não apenas definem a educação infantil brasileira, como imprime uma nova concepção para essa etapa educativa. Tal concepção reconhece a criança como sujeito de direitos e a educação infantil como um dos direitos de todas as crianças de 0 a 5 anos. Uma educação que visa promover o desenvolvimento integral dessas crianças e que as reconhecem como produtoras de cultura (BRASIL, 2009).
Essa compreensão da criança sujeito de direitos e produtora de cultura traz uma série de elementos para que se comece a pensar a relação da educação infantil com o currículo. E é importante mencionar aqui que, assim como no que diz respeito à educação infantil tivemos um longo caminhar, no que se refere ao currículo isso não foi diferente.
O desenvolvimento do campo do currículo também percorreu uma longa história, de um contexto em que a escola nem falava que precisava se organizar a partir de um currículo, até porque nem sempre tivemos esse artefato nomeando esse trabalho que a escola fazia; até um contexto mais recente onde uma série de estudos, pesquisas, teorias e definições vão surgindo para explicar o que é o currículo no contexto do sistema educacional (MOREIRA; SILVA, 2008).
Das primeiras teorias que definiram o currículo como elenco de disciplinas e/ou listagem de conteúdos, marca das teorias tradicionais de currículo que o compreendia em uma perspectiva técnica, prescritiva e segundo uma lógica de neutralidade; o campo se desenvolveu, ampliou seus conhecimentos e começou a questionar essa suposta neutralidade. Assim, os estudos foram avançando e construindo outras teorias para explicar esse currículo que questionavam e problematizavam essa lógica prescritiva e técnica do currículo e mostrava que o currículo está imbrincado em complexas relações de poder; e que se define como um artefato social e cultural. É fruto de uma seleção sim, mas essa seleção não é meramente técnica; há uma série de condicionantes (históricos, políticos, sociais, econômicos etc.) envolvidos. Há um recorte de classe que permeia esse currículo, por isso essa seleção é interessada e não neutra. Há interesses específicos dizendo o que entra e o que sai desse currículo. E a partir das contribuições dos estudos culturais, às questões de classe outros elementos como gênero, raça, etnia, sexualidade, questões geracionais, dentre outras; atravessam esse currículo e ampliam a forma de compreendê-lo (AMORIM, 2011).
Importante, também, ter clareza que há diferentes aspectos a serem estudados e conjuntos de teorias que contam essa história do currículo e que não seria possível trazer todos esses aspectos no texto, nem era esse seu objetivo. Mas essa síntese dos desdobramentos do campo é importante para que se compreenda que não existe uma única definição de currículo e que o desenvolvimento desse campo de estudos nos informa que muitas das definições que já estão superadas no campo teórico, ainda se fazem presentes no contexto da prática, refletidas nas concepções de muitas pessoas e profissionais da educação, bem como no âmbito das políticas educacionais (AMORIM, 2011).
Com o desenvolvimento do campo do currículo, é possível começar a entender que o currículo vai sendo definido não apenas como aquele documento técnico, mas vai sendo percebido com um texto, que possui um contexto de produção, e que traz informações que constam nas entrelinhas desse texto. Como afirma Silva (2001), o currículo carrega um discurso, e se constitui como documento de identidade, porque suas escolhas e seleções vai forjando as dos sujeitos envolvidos no processo educativo. E com base nas contribuições de Moreira (1997), enfatiza-se que, para compreendê-lo, é necessário entender que existe, ao mesmo tempo, um currículo formal (que é aquele que está escrito, determinado, estabelecido), um currículo oculto (que não está expresso, mas que está presente e forja as identidades) e um currículo real (que é aquele que se efetiva no contexto da prática).
A partir dessa compreensão de que currículo é algo que se efetiva na prática, se avança no sentido de se compreender o currículo como aquilo que de fato acontece na instituição educativa, o currículo vivido, aquele que está em ação no cotidiano e que começa a ser definido como esse todo significativo que ocorre cotidianamente no contexto das unidades educativas no encontro entre estudantes e professores(as) em torno de experiências de conhecimento (AMORIM, 2011).
Feitas essas considerações a respeito da educação infantil e do currículo de forma separada, precisamos destacar agora onde se encontram. E antes mesmo de iniciar a discorrer sobre o assunto, é preciso ressaltar que esse encontro entre currículo e educação infantil não é um ponto tranquilo, pacífico ou consensual em ambas a áreas. Assim, dependendo das concepções que se tenha a respeito das duas temáticas, as definições sobre a importância de se discutir e elaborar o currículo para a educação infantil será muito diferente. Nesse sentido, destacamos que alguns/algumas pesquisadores/as da área de educação infantil não querem nem ouvir falar sobre currículo; outros/as, embora não sejam contrários a tratar do tema, preferem não o fazer, argumentando que as definições de currículo (e como esse tem se efetivado em nosso país) não se “encaixam” na especificidade da educação infantil; em menor número, estão aqueles/as que resolveram se debruçar sobre a temática.
A partir da compreensão de currículo e de educação infantil anteriormente destacadas, assumimos a compreensão de que há currículo na educação infantil, mas enfatizamos que se trata de um currículo que possui especificidades, tendo em vista as características da própria educação infantil e das crianças envolvidas no processo. Assim, compreendemos que o currículo para a educação infantil precisa ser organizado de modo a respeitar as especificidades educação infantil e as concepções de criança e de infância que foram historicamente construídas na área.
Conforme afirmamos no diálogo com a legislação, entendemos que não foi à toa que a legislação brasileira nomeou a primeira etapa da Educação Básica de forma diferente das demais. Foi exatamente para marcar suas especificidades. Então, o desafio que se coloca nessa relação entre o currículo e educação infantil compreender as especificidades das crianças e como pensar uma educação que respeite suas características e promova seu desenvolvimento pleno e integral, organizando a partir de experiências de desenvolvimento e aprendizagem que garantam esse desenvolvimento.
E esse desafio está posto desde que a LDBEN (1996) definiu a educação infantil como primeira etapa da Educação Básica. Isso porque muitas instituições existentes, principalmente no caso das creches, ainda tinham um perfil predominantemente assistencial e, como afirmamos, muitas delas eram vinculadas a outros setores. No país como um todo, havia creches vinculadas aos órgãos do trabalho, da assistência, da saúde e muitas ainda eram vinculadas às associações filantrópicas (KRAMER, 2003; OLIVEIRA, 2005). E mudar essa realidade não era tarefa fácil. Também não tem sido fácil para muitas pessoas compreender que a organização dessa etapa exige a elaboração de um currículo, quando muitas dessas pessoas ainda compreendem currículo como lista de conteúdos a serem ensinados através de lições. Compreensão que, claramente, se afasta do contexto das práticas a serem realizadas com as crianças menores de 5 anos.
Trazendo novamente as questões referentes à legislação brasileira para dialogar sobre esse ponto, podemos afirmar que quando se tem a educação infantil definida como etapa da Educação Básica na LDBEN (1996), por consequência se compreende que há currículo sim nessa etapa. Pois se um dos elementos que organiza o trabalho pedagógico de uma unidade educativa é o currículo, então por definição há currículo na educação infantil. O desafio, portanto, passa a ser compreender as especificidades desse currículo e como organizá-lo no contexto da educação infantil.
A criança de 0 a 5 anos precisa ser cuidada e educada de maneira indissociável e, nesse trabalho, a dimensão do cuidar envolve uma série de elementos que a dimensão do educar sozinho não dá conta. Por isso é preciso reconhecer que os bebês e as crianças bem pequenas, por exemplo, são dependentes dos outros indivíduos para terem suas demandas atendidas, o que faz do trabalho com essas crianças em um ambiente de educação formal um trabalho diferenciado. Nesse sentido, construir esse currículo envolve pensar essas especificidades e organizar uma proposta que se afaste do espontaneísmo das ações a serem realizadas com as crianças, mas que não caia no extremo oposto de propor atividades de preparação para a escola de ensino fundamental.
Essa preocupação em pensar o currículo para a educação infantil ganha forma no Brasil no contexto da década de 1990, contexto no qual alguns estudos que tratam da temática começam a ser esboçados (AMORIM, 2011). No âmbito da organização do sistema educacional identificamos, em 1996, que o Ministério da Educação organiza uma discussão sobre o tema que culmina no documento “Propostas pedagógicas e currículo em educação infantil: um diagnóstico e a construção de uma metodologia de análise” (BRASIL, 1996). Há outros documentos que poderiam ser citados para se discutir a temática, mas no limite desse texto, destacamos quatro documentos nacionais que tratam do currículo para a educação infantil: o Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (RCNEI), as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), em sua primeira versão (1999) e segunda versão (2009) e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).
Ao analisarmos os dois primeiros, produzidos no final da década de 1990, já percebemos uma questão truncada em relação às políticas curriculares naquele contexto. Porque as Diretrizes curriculares foram publicadas depois de um documento orientador que, teoricamente, deveria ser elaborado após a organização das diretrizes orientadoras daquela área. Não temos como aprofundar essa questão no limite desse texto, mas é necessário enfatizar que isso demonstra os descompassos entre o Ministério da Educação e o Conselho Nacional de Educação da época e as compreensões diferentes em matéria de como o currículo deveria ser organizado no país (AMORIM, 2011).
Em que pese as críticas que ambos os documentos receberam, tanto na área do currículo, como na área da educação infantil, não é possível desconsiderar que ambos representam um movimento de pensar o currículo para a educação infantil. Entendemos que as críticas que as áreas realizaram desses documentos, ao invés de aproximar, parece que afastaram ainda os estudos que tratavam de currículo e educação infantil. Principalmente quando a organização dos âmbitos e eixos de trabalho propostos no RCNEI, por se assemelharem com as áreas de conhecimento do ensino fundamental, foram interpretados como “disciplinas” em alguns contextos municipais.
No final da primeira década dos anos 2000, e em um contexto de indagações sobre o currículo nas políticas e escolas brasileiras (MOREIRA; CANDAU, 2007), houve o processo de revisão das Diretrizes e, em 2009, foram publicadas as novas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil através da Resolução CNE/CEB Nº 5/2009. Fruto de um movimento dialógico com a área e pesquisadores/as da infância, em nosso entendimento, essa Diretriz respeita, de fato, as especificidades da educação infantil e contempla muitas das discussões que estavam presentes no campo teórico. Ela representa um consenso possível construído coletivamente pela área de educação infantil do país. Falamos em consenso possível, porque, conforme afirmamos, as discussões sobre currículo para a educação infantil não são um ponto pacificado. No entanto, como as Diretrizes incorporaram a ideia de proposta curricular construída coletivamente no âmbito da unidade de educação infantil no diálogo entre os diferentes sujeitos que fazem parte da comunidade; e como colocam a criança como centro desse planejamento curricular, muitos passaram a enxergar as Diretrizes “com bons olhos”.
Mas o consenso provisório voltou a ser abalado quando em meados da segunda década dos anos 2000 veio à tona a discussão sobre a elaboração de uma base curricular. Nesse contexto, a discussão sobre currículo para a educação infantil reaparece e reacende as divisões em torno da entrada ou não da educação infantil na BNCC.
Mesmo considerando as críticas feitas por muitos/as estudiosos/as à BNCC, tanto em relação ao processo conturbado de sua elaboração, quanto às ausências em seu conteúdo; no caso específico da educação infantil, não se pode negar que o documento traz as DCNEI (2009) como norte e contempla as questões centrais discutidas naquele documento. Fato que faz com que as críticas, mesmo que pertinentes, não deixem de reconhecer a qualidade do texto referente à educação infantil e reafirmem o quanto ele se diferencia dos textos das demais etapas.
Essas diferenças presentes na BNCC se apresentam exatamente porque o texto específico sobre a educação infantil traz os elementos que estavam postos desde as Diretrizes, destacando a preocupação com o desenvolvimento integral das crianças; o cuidar e educar como ações indissociáveis; e as interações e a brincadeira como eixos estruturantes do currículo. E, em nenhum momento, faz menção de que a organização do currículo seria através de conteúdos, mas sim através dos campos de experiências que visam garantir direitos de desenvolvimento e aprendizagem de bebês, crianças bem pequenas e crianças pequenas.
Na sequência do texto essas questões serão retomadas, mas é preciso destacar que esses dois últimos documentos curriculares citados apontam alguns diferenciais no que se refere à organização curricular na educação infantil. E, como afirmamos, a BNCC se organiza a partir dos pressupostos presentes nas Diretrizes de 2009 e, por isso, afirmamos que não dá para estudar a BNCC (2017) sem estudar as DCNEI (2009).
A compreensão do entrelaçamento entre concepções de criança e de educação com as legislações, especialmente aquelas produzidas com o objetivo de incidir sobre a organização das instituições de Educação Infantil e que repercutem, ainda que de modo não linear, sobre o cotidiano de crianças e adultos que convivem nesses espaços, implica pensar na natureza, tanto das concepções, quanto das legislações, consideradas em sua finalidade e potencial de repercussão nos modos de realização das práticas desenvolvidas para e junto às crianças.
Ao concebermos o currículo como conjunto de práticas oportunizadas-vividas por crianças nas instituições educativas com vistas ao seu desenvolvimento pessoal e social mediante a apropriação da cultura em suas múltiplas manifestações em processo articulado às culturas das quais fazem parte (BARBOSA; OLIVEIRA, 2016; DANTAS; LOPES, 2020), é possível considerar as definições constantes dos documentos oficiais – legais ou orientadores – como políticas curriculares, como modos de inserção das instâncias normativas na organização desses processos nas instituições.
Ao mesmo tempo, é possível reconhecer que as concepções, bem como as legislações-políticas que as assumem em seus textos são significações, atribuições de sentido, produzidos histórica e socialmente e que são, portanto, produções discursivas, marcadas por perspectivas, interesses, visões de mundo que não são unívocas, mas que representam uma parte da multiplicidade de modos de compreender, em cada contexto, as crianças, a finalidade e o objetivos de sua educação, bem como os modos de desenvolvê-la – o que configura as práticas pedagógicas e o currículo.
A compreensão do currículo e de seu lugar na educação de crianças se faz nessa perspectiva, pois a educação é, ela própria compreendida como conjunto de processos e práticas humanas-sociais que visam à (trans)formação de pessoas de cada contexto sócio-histórico. A educação é essencialmente social, relacional e discursiva, pois faz-se em processos mediados pela linguagem – como apropriação de significação, de sentidos – vinculados aos sujeitos, seus contextos históricos e sociais e relações.
De igual modo, currículo e políticas curriculares, enquanto práticas sociais, são também produções discursivas, constituídas com base em signos cujas significações são contextuais, o que lhe confere fluidez, não previsibilidade, não controle, incerteza, indeterminação, multiplicidade de produção em movimento nas relações e contextos – contradições inerentes à própria sociedade e às relações que marcam seus processos de produção em todos os níveis, tempos, espaços (SMOLKA, 2000; BALL, 2001).
Assim, as legislações-políticas curriculares vão sempre incorporar contradições, lacunas. A identidade da etapa em sua função pedagógica se move de modo pendular, ora afirmando, ora negando as especificidades infantis e as necessidades que o atendimento a essas especificidades – vulnerabilidade-dependência, capacidade de aprender e produzir cultura, globalidade (DANTAS; LOPES, 2020) – demanda à formação de profissionais e organização das instituições.
Na relação entre as proposições legais e os desdobramentos nas redes e instituições que operam para a realização da educação, revelações de possibilidades e impossibilidades, dado que a realidade é marcada por desigualdades que marcam as práticas que, em seu movimento de adesão e resistência às normatizações, podem reproduzir as desigualdades de acesso à cultura. Currículos são, portanto, espaços de escolhas, (in)definições, de (im)possibilidades.
Enquanto se avança nas legislações na consideração de humanidade como marcada pela diferença e pela diversidade e constituída em relações de alteridade – com o(s) outro(s), em permanente movimento, apontando-se para a necessidade de reconhecimento, respeito e valorização das singularidades de diferentes grupos sociais e culturais – mesmo dentro de uma mesma classe, contextos, práticas e sujeitos permanecem ao largo dessas significações, dado que as próprias políticas, enquanto práticas discursivas e contextualizadas, se desconfigura, se refaz, se desfaz no âmbito das condições dos sujeitos concretos que as (im)viabilizam.
Ao rememorar os entrelaçamentos teóricos, legais e históricos entre currículo e educação infantil, não podemos deixar de falar das visibilidades e invisibilidades que marcam essa discussão. Sobre a própria temática, a discussão foi em certa medida invisibilizada nas duas áreas de estudo, tendo em vista que não são muitas as pesquisas existentes e nem há muitos/as pesquisadores/as que estudam currículo e educação infantil. E há ainda a discussão sobre as invisibilidades das crianças ao longo da história da educação infantil e do currículo, questões que serão problematizadas no último tópico do texto, particularmente no que diz respeito à Educação Infantil das crianças dos diversos campos do país.
A articulação entre currículo e Educação Infantil, como vimos, é caracterizada por tensões e dissensos, mas, também, por avanços, sobretudo no que diz respeito à legislação brasileira, que vem atentando para as especificidades que envolvem a educação das crianças de zero a cinco anos quanto às concepções, às práticas e ao currículo. Apesar desses avanços, muito há ainda a se caminhar na direção da garantia do direito de todas as crianças brasileiras a uma Educação Infantil que reconheça o que é específico do ser criança e dos contextos nos quais ela vive.
A Educação Infantil das crianças dos diversos campos do país foi problematizada como um caso que ilustra ausências e invisibilidades, inclusive anteriores ao próprio debate sobre o currículo e sua relação com a Educação Infantil, uma vez que o próprio acesso dessas crianças a uma oferta adequada à especificidade da etapa é muito aquém do que é direito delas e de suas famílias. E, mesmo quando esse acesso ocorre, ele se dá negando sua condição de criança e de ter um pertencimento cultural, definido na legislação brasileira como sendo de integrante de populações camponesas. Mas, não são apenas essas crianças e seus contextos que estão ausentes do debate entre currículo e Educação Infantil. Muitas outras crianças e contextos ainda estão à margem da partilha dos direitos que foram conquistados em nosso país na legislação e nas concepções, estando ainda mais distantes de práticas e do currículo que se realiza nas instituições educativas, pois eles não dialogam com suas realidades e seus pertencimentos identitários.
Que novas perspectivas sejam construídas para esses sujeitos e nesses contextos, considerando aquilo que deve ser, ao mesmo tempo, igual, como acesso a uma educação com qualidade, e diferente, como o direito de pertencer a um grupo social e cultural considerado e reconhecido como parte integrante da comunidade escolar.
3 CURRÍCULO E EDUCAÇÃO INFANTIL: sobre a (in) visibilidade das crianças do campo
Nessa sessão, iremos, na continuidade de pensar a relação entre currículo e Educação Infantil, evidenciar aspectos, sujeitos e contextos que ainda permanecem ou pouco tratados ou invisíveis no que diz respeito a direitos e às práticas realizadas no interior das instituições de Educação Infantil. Particularmente, interessa-nos trazer a realidade do acesso à Educação Infantil, considerando desde a creche, das crianças que residem nos vários campos do Brasil.
Importante deixar claro que adotaremos a noção de campo e não de rural como uma categoria político-pedagógica (ROSEMBERG e ARTES, 2012), filiada ao conceito-movimento (LEAL, 2012) Educação do Campo. De acordo com Cavalcante (apud ROSEMBERG e ARTES, 2012, p. 21), “o termo ‘campo’ é resultado de uma nomenclatura proclamada pelos movimentos sociais”, sendo utilizado por instâncias de governo e suas políticas. No entanto, o termo rural permanece ainda como referência ou categoria empírica, que diz respeito à “localização ou situação de domicílio ou da escola indicadas pelos termos rural e urbano” (ROSEMBERG e ARTES, 2012, p. 21).
Assim, os sujeitos e contextos aqui tomados serão localizados do ponto de vista político-pedagógico campo, o que significa considerar não só uma nova forma enxergá-los e compreendê-los quanto à localização, mas de referendar seus modos de vida, suas culturas e suas identidades. Mais especificamente, os sujeitos e contextos aos quais lançaremos o nosso olhar são os bebês e as crianças pequenas, de 0 a 5 anos, que residem nos diversos campos do país, e sua relação com o direito à educação, mais especificamente à Educação Infantil.
Pesquisa nacional realizada em 2012 (BARBOSA et al, 2012) revelou tanto uma expressiva desigualdade no que tange ao acesso dessas crianças a creches e pré-escolas, se compararmos com o acesso de crianças de 0 a 5 anos das cidades, quanto um acesso marcado por precariedades, insuficiências (ROSEMBERG e ARTES, 2012) e violações legais quando este ocorria.
Nesse sentido, embora alguns avanços tenham acontecido do ponto de vista legal em relação à oferta de Educação Infantil nos contextos dos campos brasileiros, verificados em vários documentos legais do país, como a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), a LDBEN ( BRASIL, 1996), as Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo - DOEBEC (BRASIL, 2002) e as DCNEI (BRASIL, 2009), na prática o que se verificou e ainda se verifica é o não cumprimento da lei e uma oferta muito aquém do que está legislado e consensualizado pelas áreas da Educação Infantil e da Educação do Campo.
Do ponto de vista do não cumprimento legal, observa-se que a oferta de creche é insuficiente e muito distante do que prevê o Plano Nacional de Educação (2014-2024), que aponta o cumprimento de, pelo menos, 50% da oferta para crianças de 0 a 3 anos até 2024. Esse não cumprimento é uma realidade na oferta de creche em contextos da cidade e do campo, sendo muito mais expressivo neste.
Ainda na direção de evidenciar a defasagem entre o legal e o real (ROSEMBERG e ARTES, 2012), a pesquisa nacional (BARBOSA et al, 2012) demonstrou que muitas crianças matriculadas na creche frequentavam efetivamente a pré-escola e que esta, muitas vezes, era ofertada no modelo de classes multisseriadas, caracterizadas pela junção de crianças das etapas da Educação Infantil e dos anos iniciais do Ensino Fundamental, o que está impedido do ponto de vista legal, mas esta era a realidade da oferta em escolas do campo de todas as regiões do país.
Do ponto de vista das práticas, também se verificou um não atendimento ao que se espera da oferta de educação para crianças de 0 a 5 anos, considerando a creche e a pré-escola, no sentido de reconhecer suas especificidades, como já tratadas no primeiro momento deste texto. Ou seja, pela pouca presença de creches no contexto do campo e por essas crianças, muitas vezes, apenas terem acesso à escola junto a crianças maiores, muitas delas com idades acima dos 6 anos e matriculadas em classes multisseriadas, as características da oferta do Ensino Fundamental prevaleceram e ainda prevalecem na educação das crianças com idade para frequentarem creches e pré-escolas.
A tônica da escolarização precoce é a que prevalece nos contextos da oferta da educação para crianças de 0 a 5 anos que residem nos vários campos do país, na qual conteúdos e áreas de conhecimento organizam o currículo, e, muitas vezes, esse currículo é igual ao que é realizado no contexto das cidades. São invisibilizados, assim, as especificidades dos sujeitos - crianças de 0 a 5 anos - e dos contextos em que estes constroem suas identidades - os contextos campesinos.
Pensando no contexto do currículo e das práticas, há claramente apontado o reconhecimento dos pertencimentos das crianças de 0 a 5 anos que residem nos campos brasileiros no Art. 8, Parágrafo 30. das DCNEI (2009), que afirma que as propostas pedagógicas da Educação Infantil das crianças filhas das populações do campo devem, dentre outras garantias, reconhecer os modos próprios de vida no campo, considerando a realidade dessas populações, de suas culturas, tradições e identidades.
Esse reconhecimento legal, no entanto, está muito distante do que se encontra nas unidades escolares situadas nos campos brasileiros, muitas delas sequer têm salas adequadas ao atendimento das crianças de 0 a 5 anos. Assim, há, pelo menos, uma dupla tarefa a ser feita na direção de superar esses limites e ela deve ser realizada, sobretudo, pelas duas áreas que têm uma relação direta com essa questão: as áreas da Educação Infantil e da Educação do Campo, na direção de que as mesmas possam incidir nas políticas curriculares e de oferta de Educação Infantil nos contextos campesinos. Historicamente, a primeira área se constituiu tendo como referência a educação das crianças das cidades e, muitas vezes, das grandes cidades, considerando as demandas por creche articuladas à entrada das mulheres no mercado de trabalho, e, a segunda, como um movimento de adultos em luta por direitos pela educação dos povos do campo, sobretudo a partir do Ensino Fundamental, atrelado à luta pelo direito à terra e a um modo de vida. Para Rosemberg e Artes (2012), historicamente, a área da Educação Infantil deu pouca atenção às crianças do campo e a área da Educação do Campo precisa avançar na direção de, ao considerar a oferta, incluir a que diz respeito à Educação Infantil nos contextos do campo.
Outra invisibilidade a ser mencionada diz respeito à pouca produção de conhecimento sobre a oferta, o acesso e a realidade da Educação Infantil das crianças dos diversos campos do país. Silva et al (2012), realizaram ação no âmbito da pesquisa nacional sobre a oferta da Educação Infantil do Campo (BARBOSA et al, 2012) para conhecer o que, no período de 1996 a 2011, havia sido produzido sobre essa realidade. O resultado apontou para uma produção incipiente à época, evidenciando omissão, silenciamento ou falta de interesse verificadas nas fontes consultadas: trabalhos acadêmicos nacionais e em periódicos também nacionais. Embora as fontes tenham sido várias e diversificadas - no total, 12 bases - todas disseram respeito a fontes acadêmicas (SILVA et al, 2012, p. 296). Podemos afirmar que, há uma década, também a academia pouco se interessava pela realidade da oferta de educação Infantil para as crianças dos vários campos brasileiros.
Na perspectiva de realizar nova pesquisa em âmbito nacional que verifique aspectos investigados na pesquisa realizada entre os anos de 2011 e 2012, como o da produção de conhecimento, um grupo de pesquisadoras/es iniciou um estudo que busca verificar como se encontra a gestão e a organização do trabalho pedagógico para as crianças que residem em áreas rurais (VIEIRA et al, 2022), considerando a oferta para as crianças da Educação Infantil. Essa pesquisa busca atualizar a investigação nacional anterior e olhar para outros aspectos e sujeitos não abordados nela, como a escuta das próprias crianças.
Nesse sentido, entre a primeira e a segunda pesquisa teremos a apreciação de como se deu e como tem se dado o movimento de visibilizar os contextos dos campos brasileiros, especificamente no que diz respeito à Educação Infantil das crianças filhas das populações do campo, considerando acesso, práticas, currículo e pertencimentos culturais.
Ambas as pesquisas têm, claramente, um compromisso social com essas populações e buscam incidir sobre a formulação de políticas públicas direcionadas à Educação Infantil das crianças dos diversos campos brasileiros. Tal compromisso, além de contribuir para a produção de conhecimento dessa realidade, ajudando a diminuir a sua invisibilidade acadêmica, insere no currículo das universidades e institutos de pesquisa não só um tema de estudo, mas um conjunto de sujeitos que historicamente estiveram e ainda estão à margem do acesso a direitos, dentre eles o direito à educação.
Esse compromisso revela a compreensão de que o currículo é expressão de discurso, identidade, formalização e vida, entendendo vida como práticas que ocorrem nas relações estabelecidas nas instituições educativas, entre os sujeitos envolvidos. Como dito anteriormente, ele não é neutro e nem meramente um documento técnico, mas se faz e se refaz permanentemente no cotidiano de instituições e relações (AMORIM, 2011).
Quanto às instituições de Ensino Superior, verifica-se que o tema da educação das populações do campo, de um modo geral, e da educação das crianças do campo, desde os bebês, tem sido acolhido no interior do currículo da graduação e da pós-graduação, sendo tema de componentes curriculares e de pesquisas (LEAL e OLIVEIRA, 2019; LEAL, 2016;SOUZA, 2020). Embora se precise avançar nessa direção, nossa hipótese é de que entre a ação da pesquisa nacional sobre a oferta de Educação Infantil do Campo, que evidenciou produção do conhecimento ainda incipiente sobre essa realidade, e a que está em andamento no momento atual, haverá a constatação de que essa realidade e sujeitos estão mais presentes no interior da academia, seja no currículo do curso de Pedagogia, das licenciaturas da Educação do Campo e demais licenciaturas, seja na pós-graduação, sendo objeto de discussões no âmbito de componentes curriculares e de temas de pesquisas.
Compreendemos que esse avanço não tem se dado sem contradições, uma vez que a vida política do país foi alvo de mudanças radicais na forma de conduzir questões caras aos grupos sociais historicamente marginalizados quando se pensa no acesso a direitos - caso das populações camponesas. Desde o golpe parlamentar de 2016, que destituiu uma presidenta legitimamente eleita nos marcos da democracia, à ascensão de um governo de ultra-direita, finalizado do ponto de vista democrático, via eleições diretas, em outubro de 2022, retrocessos e perdas foram observados no que tange à continuidade de políticas educacionais voltadas às populações do campo e, particularmente, às crianças da Educação Infantil do Campo. Debates e ações perderam fôlego e/ou foram feitos de maneira pontual e na esfera dos movimentos sociais do campo e de grupos de pesquisa no interior das universidades brasileiras, sobretudo as públicas.
No novo tempo que se inicia no ano de 2023, boa parte dessas contradições permanecem e merecem especial atenção no que diz respeito às ações necessárias à retomada do movimento de visibilizar sujeitos, contextos e práticas que atendam aos anseios e direitos das populações do campo e avancem na direção da sua garantia. É o que esperamos e pelo que trabalhamos enquanto agentes acadêmicos implicados particularmente com o direito à Educação Infantil que reconheça as especificidades das crianças, desde os bebês, nas cidades e nos campos do país.
REFERÊNCIAS
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