Demanda Contínua
HISTÓRIA E CULTURA INDÍGENA NA BNCC DO ENSINO FUNDAMENTAL: análise das concepções e propostas para o ensino
INDIGENOUS HISTORY AND CULTURE IN THE NCCB[1] OF ELEMENTARY EDUCATION: analysis of concepts and proposals for teaching
HISTORIA Y CULTURA INDÍGENA EN LA BNCC EN EDUCACIÓN PRIMARIA: análisis de las concepciones y propuestas para la enseñanza
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 3, 2023
Recepção: 01 Março 2023
Aprovação: 28 Maio 2023
Resumo: Este artigo objetiva compreender a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino e a aprendizagem da história e cultura indígena no componente curricular de História, nos anos finais do Ensino Fundamental, a fim de ter a compreensão do que deve ser trabalhado nessa etapa da Educação Básica. Trata-se de uma pesquisa do tipo documental e bibliográfica, com abordagem qualitativa e exploratória, tendo os objetos de conhecimento e Habilidades da BNCC de História dos 6º aos 9º anos, relativas aos povos indígenas, como corpus de análise. Acredita-se que apesar da existência de discursos na defesa da diversidade cultural e identitária, bem como em um ensino que promova o conhecimento dos povos indígenas e suas contribuições históricas, sociais, econômicas e culturais, a BNCC, em parte, estrutura o componente curricular de História sob uma perspectiva tradicional e eurocêntrica, dividindo seu ensino de forma quadripartite e colocando os povos europeus na centralidade da narrativa histórica.
Palavras-chave: Currículo escolar, Diversidade cultural, Ensino de História.
Abstract: This article aims to understand the proposal of the National Common Curricular Base (NCCB) for the teaching and learning of indigenous history and culture in the curricular component of History, in the final years of Elementary School, in order to have an understanding of what should be worked in this stage of Basic Education. This is a documental and bibliographical research, with a qualitative and exploratory approach, having the objects of knowledge and Skills of the NCCB of History from 6th to 9th grades, related to indigenous peoples, as the corpus of analysis. It is believed that despite the existence of discourses in defense of cultural and identity diversity, as well as teaching that promotes knowledge of indigenous peoples and their historical, social, economic and cultural contributions, the NCCB, in part, structures the curricular component of History from a traditional and Eurocentric perspective, dividing its teaching in a quadripartite manner and placing European peoples at the center of the historical narrative.
Keywords: School curriculum, Cultural diversity, History Teaching.
Resumen: Este artículo tiene por objetivo comprender la propuesta de la Base Nacional Común Curricular (BNCC) para la enseñanza y aprendizaje de historia y cultura indígena en el componente curricular de Historia, en los años finales del nivel primario (pode ser “enseñanza fundamental”), con el fin de comprender aquello que debe ser trabajado durante esa etapa de la Educación Básica. Se trata de una investigación de tipo documental y bibliográfica, con abordaje cualitativo y exploratorio, teniendo como cuerpo de análisis los conocimientos y habilidades que expone la BNCC para la cátedra de Historia desde el 6to al 9no año en relación a los pueblos indígenas. Se parte de reconocer que a pesar de la existencia discursos en defensa de la diversidad cultural e identitaria, así como también de una enseñanza que promueve el conocimiento sobre los pueblos indígenas y sus contribuciones históricas, sociales, económicas y culturales, la BNCC, en parte, estructura el componente curricular antes nombrado sobre una perspectiva tradicional y eurocéntrica, dividiendo su enseñanza en forma cuatripartita, colocando a los pueblos europeos en la centralidad de la narrativa histórica.
Palabras clave: Currículo escolar, Diversidad Cultural, Enseñanza de Historia.
1 INTRODUÇÃO
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), é uma política nacional de referência obrigatória para a construção dos currículos nas instituições escolares brasileiras, apresentando um conjunto de aprendizagens essenciais que todos os alunos necessitam ter acesso durante o processo de escolarização. Homologada em 2017, a BNCC para o Ensino Fundamental está estruturada em duas partes: uma formação básica comum, com o desenvolvimento de competências e habilidades nas diferentes áreas de conhecimento e componentes curriculares, e uma parte diversificada, visando a inserção de temáticas regionais e locais, de interesse das escolas.
Desde a sua homologação, as equipes pedagógicas e os docentes das instituições escolares de todo o país necessitaram se debruçar e estudar o documento a fim de compreendê-lo e adequar o seu projeto político-pedagógico, bem como os planos de ensino com base nessa política. A primeira autora, docente da rede estadual do Rio Grande do Sul, ministrando o componente curricular de História em turmas dos anos finais do Ensino Fundamental e Ensino Médio, no município de Santo Ângelo, participou desse processo e percebeu a dificuldade de grande parte dos profissionais da educação no entendimento da nova proposta de organização curricular.
Nesta perspectiva, realizar uma pesquisa aprofundada que analisa aspectos constituintes da BNCC pode servir de suporte para a compreensão dos docentes, auxiliando-os inclusive a pensar práticas significativas a serem realizadas com os alunos. No componente curricular de História, que integra a área das Ciências Humanas, há unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades específicas a serem adquiridas, incluindo o aprendizado da história e da cultura dos povos indígenas brasileiros. Mas de que forma ocorreu essa inserção? Como os conteúdos sobre os povos indígenas aparecem na BNCC a fim de serem ensinados em cada um dos anos finais do Ensino Fundamental? Que narrativa histórica e representações sociais acerca desses povos são produzidas pelo texto curricular da BNCC?
Esses são questionamentos que nos mobilizaram na realização dessa pesquisa e justificam-na, tendo em vista que trata-se de uma concepção de História dos povos indígenas, orientada pela BNCC, a ser ensinada nas escolas. Acredita-se que o estudo acerca das populações originárias da América e do Brasil possibilita o rompimento de uma História tradicional, de matriz eurocêntrica, que privilegiava a cultura branca, europeia e excluía os indígenas da narrativa histórica, gerando o preconceito e os estereótipos ainda existentes em nossa sociedade.
Neste contexto, esta investigação tem como tema “A inserção da história e da cultura indígena na Base Nacional Comum Curricular (BNCC): concepções e propostas de ensino e de aprendizagem em História”, e delimitação “História e cultura indígena no componente curricular de História nos anos finais do Ensino Fundamental”. Logo, a problemática central concentra-se em identificar: De que forma a história e a cultura indígena aparecem na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), na forma de objetos de conhecimentos e habilidades a serem trabalhadas no componente curricular de História, nos anos finais do Ensino Fundamental?
Desse modo, o objetivo geral está em compreender a proposta da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) para o ensino e a aprendizagem da história e cultura indígena no componente curricular de História, nos anos finais do Ensino Fundamental, a fim de ter a compreensão do que deve ser trabalhado nessa etapa da Educação Básica. Para alcançar este objetivo, realizou-se a identificação e análise dos objetos de conhecimento e de habilidades específicas do componente curricular de História, em cada um dos anos finais do Ensino Fundamental, que abordam sobre a história e a cultura indígena.
Por conseguinte, a escrita deste artigo foi estruturada e desenvolvida em dois momentos. Inicialmente discorre-se a respeito da importância do currículo escolar, enquanto fundamento e norteador da prática educativa, composto por discursos que influenciam na formação dos sujeitos, incluindo a disseminação de uma narrativa histórica e a construção de representações sociais. Posteriormente, são apresentadas e analisadas as “Habilidades BNCC” do 6º ao 9º anos do Ensino Fundamental, que foram identificadas no documento e se referem aos povos indígenas.
2 METODOLOGIA
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC), especificamente na parte que concerne ao componente curricular de História nos anos finais do Ensino Fundamental (abrangendo turmas de 6º, 7º, 8º e 9º anos), é o corpus de análise desta pesquisa. Cada componente traz unidades temáticas, objetos de conhecimento e habilidades específicas a serem aprendidas pelos alunos. Esta investigação identifica e analisa os objetos de conhecimentos e as “Habilidades BNCC” de História que abordam sobre a história e a cultura indígena nos anos finais dessa etapa da Educação Básica.
Esses dados, utilizados para a pesquisa, encontram-se nas páginas 420 a 433 do documento da BNCC. Cada habilidade está identificada com um código alfanumérico, possibilitando localizá-las no texto curricular. A fim de facilitar a visualização de cada uma das habilidades analisadas, sem ter a necessidade de procurar a versão da BNCC do Ensino Fundamental, os autores optaram por citá-las ao longo do texto do artigo.
Em um primeiro momento, foram identificados os objetos de conhecimento e as habilidades específicas do componente curricular de História, em cada um dos anos finais do Ensino Fundamental, que abordam sobre a história e a cultura indígena. Posteriormente, analisou-se os objetos de conhecimento e as habilidades identificadas, relacionando-as com a unidade temática de História. Por fim, apresentam-se os resultados da análise dos objetos de conhecimento e das habilidades identificadas, tecendo aspectos conclusivos acerca da proposta da BNCC para o ensino e a aprendizagem da história e da cultura indígena nos anos finais do Ensino Fundamental.
Neste contexto, quanto às características, trata-se de uma pesquisa do tipo documental e também bibliográfica, tendo em vista que traz-se a contribuição de teóricos que abordam a respeito da história e da cultura indígena brasileira e do ensino de História na BNCC do Ensino Fundamental para dialogar com os dados coletados do documento. Em relação à abordagem, apresenta-se como qualitativa e exploratória, visando encontrar os sentidos expressos nos discursos que compõem a proposta de ensino e de aprendizagem no componente curricular de História da BNCC, no que diz respeito aos povos indígenas.
O enfoque teórico-metodológico, que ancora nossa concepção central sobre currículo ao longo desse estudo, ampara-se nos escritos de Silva (2004), o qual em sua obra, “Documentos de identidade: uma introdução às teorias do currículo”, nos sugere uma análise do texto curricular, como uma forma de saber, identidade e poder. Trata-se de ter em vista uma articulação complexa entre os enfoques da teoria crítica e pós-crítica do currículo. No caso da primeira, não podemos desconsiderar a necessidade de desenvolver uma análise acerca da “economia política do poder” (SILVA, 2004, p.145). No caso da segunda, trata-se de realizar uma análise textual, identificando os discursos e narrativas que constituem a “realidade” acerca do que deve ser o ensino da história na escola, tendo em vista o modo de como as políticas educacionais estruturam e hierarquizam as culturas, identidades e subjetividades (SILVA, 2004). Uma teoria, nos ensina Silva (2004, p.17), define-se pelos conceitos que utiliza para “conceber a realidade”.
No entendimento de Silva (2004, p.147), “depois das teorias críticas e pós-críticas do currículo torna-se impossível pensar o currículo simplesmente através de conceitos técnicos como os de ensino e eficiência ou de categorias psicológicas”, e isso em nosso caso, significa reconhecer que “o currículo é, definitivamente, um espaço de poder”, uma vez que “carrega as marcas indeléveis das relações sociais de poder”. As teorias críticas do currículo, nos ajudam a entender que o currículo “reproduz – culturalmente – as estruturas sociais” (SILVA, 2004, p. 147). Nos sinalizam também que o currículo é uma construção social, sendo resultado de lutas históricas, o que nos permite compreender porque determinados conhecimentos fazem parte do currículo e outros não.
As teorias pós-críticas do currículo, por sua vez, alargam e modificam os sentidos do que as teorias críticas propõe, uma vez que “continuam a enfatizar que o currículo não pode ser compreendido sem uma análise das relações de poder nas quais está envolvido” (SILVA, 2004, p.148). Sobretudo, os enfoques pós-críticos do currículo, nos desafiam a analisar os discursos, e suas formas de representação acerca das noções de identidade, alteridade e diferença. Com isso, nos possibilitam questionar outras formas de dominação de gênero, raça, etnia e sexualidade. Os estudos que utilizamos sobre currículo na referida análise, amparam-se também nas abordagens feitas por Macedo (2011), a qual em uma abordagem das teorias do currículo evidencia como as questões étnicas e raciais estão em disputa no texto curricular, e se tornam relevantes para compreender a questão dos povos indígenas (originários), e dos povos afrodescendentes.
3 A NARRATIVA HISTÓRICA NO CURRÍCULO ESCOLAR E A SUA INFLUÊNCIA NA CONSTRUÇÃO DAS IDENTIDADES E REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
O currículo é um documento essencial que orienta e estrutura o trabalho pedagógico docente realizado nas instituições escolares, elencando os conhecimentos que necessitam ser desenvolvidos ao longo do ano letivo, em cada etapa da Educação Básica. Este, por sua vez, deve ser construído coletivamente, baseado no projeto político pedagógico escolar e nas demandas que o público-alvo (alunos) e seu contexto apresentam. Trata-se de um documento que não é definitivo e engessado, podendo ser revisto e reestruturado continuamente perante novos objetivos e proposições almejados.
No currículo não há neutralidade, isto é, os discursos que compõem o texto curricular estão carregados de intencionalidades e operações de poder, por parte daqueles que o produziram, que lhe conferem significado. Esses discursos apresentam uma concepção de escola, conhecimento, ensino e aprendizagem, que sustentam as escolhas no processo de seleção dos saberes que irão fazer parte do currículo, e consequentemente, exercem influência na formação da identidade dos sujeitos envolvidos no ato educativo. Silva (2004, p.15), entende que, “no fundo das teorias do currículo está, pois, uma questão de “identidade” ou de “subjetividade”.
Ao escrever acerca do currículo, especificamente do componente curricular de História, Guimarães (2012, p. 61) contribui afirmando que ele “é sempre processo e produto de concepções, visões, interpretações, escolhas, de alguém ou de algum grupo em determinados lugares, tempos, circunstâncias”. Assim, a construção de um documento curricular é composta por tensões e conflitos de interesses, tendo em vista a disputa pela narrativa histórica escolhida para fazer parte do texto e ser ensinada por intermédio dos conteúdos na escola.
Desse modo, os significados presentes no texto curricular precisam ser evidenciados objetivando compreender as reais intenções e propostas do discurso proferido. Isto porque os docentes não devem ser meros assimiladores e corpos reprodutores das disposições contidas nas políticas curriculares, mas gestores e autores do currículo, como profissionais da educação que possuem legitimidade para apropriarem-se dos programas e transformá-los conforme as necessidades do grupo no qual irão trabalhar. Conforme Tardif e Lessard (2005, p.223):
[...] o professor, ao mesmo tempo, interpreta, “decide” e organiza. Ele precisa interpretar os programas e objetivos, ou seja, operar uma série de transformações simbólicas, cognitivas, discursivas, permitindo a passagem entre um discurso codificado, formal, geral, e um “discurso-situado-na-ação”, regido por exigências situacionais do trabalho curricular feito com os alunos (TARDIF; LESSARD, 2005, p.223).
Desde a lei nº 11.645/2008, a qual tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas instituições escolares públicas e privadas de todo o país, as escolas inseriram em seus currículos essa temática, abordando a contribuição desses dois grupos étnicos na formação do povo brasileiro. Apesar da proposta apresentar um viés interdisciplinar e transversal, a História tornou-se o componente curricular que desenvolve com maior ênfase o ensino sobre os povos afro-brasileiros e indígenas, tendo em vista que foram e ainda são sujeitos principais na construção da história do Brasil.
Contudo, que discursos expressos pela BNCC acerca desses povos (neste caso, os indígenas), constituem a narrativa histórica a ser contada aos alunos? É uma narrativa que contempla a diversidade de povos indígenas existentes no Brasil, suas culturas, modos de vida, promovendo o reconhecimento e a importância deles na formação identitária do país? Ou é uma narrativa que compensa superficialmente a marginalização histórica desses grupos que sofreram com a falta de representação nos documentos curriculares?
Vale lembrar que a inserção da História enquanto disciplina escolar no Brasil (ocorrida no século XIX), surgiu diante da necessidade do país independizado em constituir uma identidade brasileira com a qual os habitantes do nascente Estado-nação pudessem se sentir pertencentes. Era uma identidade que privilegiava e apresentava os brancos, de origem europeia e cristãos, como superiores, civilizados, na qual o Brasil devia se inspirar e igualar. Bittencourt (2004, p.79) colabora afirmando que “a história da ‘genealogia da nação’ baseava-se na inserção do Brasil no mundo europeu, e era este mundo a matriz ou o berço da Nação”.
Nessa narrativa histórica, os povos indígenas, assim como afro-brasileiros, eram excluídos, considerados inferiores e tidos até como um problema para o progresso e desenvolvimento brasileiro. Schwarcz (2019) salienta que todas as sociedades elaboram marcadores de diferença, os quais são capazes de produzir estereótipos sociais, que inferiorizam determinados sujeitos e exaltam outros, gerando o preconceito, a discriminação e violência entre os grupos. No caso do Brasil, têm-se os marcadores “como raça, geração, local de origem, gênero e sexo, e outros elementos que têm a capacidade de produzir diversas formas de hierarquia e subordinação” (SCHWARCZ, 2019, p. 175).
A respeito dos povos indígenas, Munduruku (2012, p.211) escreve que ao longo da história, “a orquestração oficial era para que em poucos anos o Brasil se tornasse uma unidade nacional e seus habitantes fossem apenas brasileiros, sendo suprimida a diversidade étnica”. Nesse sentido, o movimento indígena possuiu um papel fundamental, especialmente a partir da década de 1970, revelando à sociedade brasileira a existência da diversidade étnica-cultural e linguística, bem como possibilitando a desconstrução de imagens que constituíam as visões estereotipadas acerca dos indígenas: “atrasado, selvagem, canibal, pobre”.
Atualmente é reconhecida e divulgada, pela comunidade científica, a diversidade de povos e culturas existentes no país, bem como suas contribuições históricas na constituição da identidade brasileira. Por outro lado, os resquícios dessa mentalidade sustentada em discursos etnocêntricos e racistas ainda se fazem presentes, sendo visíveis numa sociedade com desigualdades gritantes. Lopes e Macedo (2011) acrescentam que a relação entre currículo e identidade no Brasil passa por embates raciais que envolvem os afrodescendentes, indígenas e demais grupos socioculturais que não se “encaixam” nos termos identitários clássicos.
Na própria forma de periodização da História, de modelo francês, tradicionalmente quadripartite (Pré-História, Idade Antiga, Idade Média, Idade Moderna e Idade Contemporânea), apresenta-se uma narrativa que põe a história europeia como centro, na qual as dos outros povos apenas se relacionam ou se encaixam em determinado momento histórico. Le Goff (2015, p. 33) já alertava que com a periodização, o historiador formata uma concepção do tempo e simultaneamente oferece uma imagem contínua e global do passado, que acabamos por chamar “história”. Assim, há um julgamento de valor que passa a fazer parte da concepção que se tem acerca da história.
Logo, o conhecimento histórico discursado e aprendido nas instituições escolares possui um papel fundamental na construção das representações identitárias e sociais. O currículo e a prática pedagógica devem pautar-se no desenvolvimento de uma educação para as relações étnico-raciais, a fim de que os sujeitos em formação reconheçam as diferenças inerentes a cada grupo social e sua cultura, e aprendam a respeitar o outro em sua integralidade. Ferreira (2018, p.166), complementa afirmando que há o:
[...] desafio de transformar a antiga escola colonizadora e branqueadora numa escola promotora dos costumes, das línguas, das crenças, das tradições e dos direitos originários dos indígenas em diálogo com outras culturas, conhecimentos e valores. É pensar em uma escola focada no acesso a conhecimentos mais direcionados para a revitalização, a transmissão e a valorização das tradições culturais que identificam o povo indígena, fortalecendo sua identidade como povo diferente. Por outro lado, criando caminhos necessários para o diálogo com os demais conhecimentos.
Todavia, conforme aponta Sacristán (apud SILVA; MOREIRA, 1995), para a efetivação de uma educação multicultural, além das mudanças curriculares, os padrões gerais de funcionamento das escolas necessitarão ser modificados, pois historicamente eles tendem à homogeneização e não ao acolhimento das diversidades culturais e identitárias. Sendo assim, refere-se a um trabalho conjunto a ser realizado pelo coletivo escolar, por uma instituição mais humana, justa e igualitária.
A BNCC foi estruturada em dez competências gerais para a Educação Básica que são balizadoras do ensino nas diferentes etapas de escolarização, e a partir delas, foram elaboradas as competências específicas de cada área do conhecimento e dos seus respectivos componentes curriculares. Essas dez competências podem ser sintetizadas em: 1) Conhecimento; 2) Pensamento científico, crítico e criativo; 3) Repertório cultural; 4) Comunicação; 5) Cultura digital; 6) Trabalho e projeto de vida; 7) Argumentação; 8) Autoconhecimento e autocuidado; 9) Empatia e cooperação; 10) Responsabilidade e cidadania.
Dentre as competências gerais que fazem referência às identidades sociais e relaciona-se com as questões étnico-culturais, destaca-se a nona: “acolhimento e valorização da diversidade de indivíduos e grupos sociais, seus saberes, identidades, culturas e potencialidades, sem preconceito” (BRASIL, 2017). Desse modo, se requer a promoção do reconhecimento da diversidade cultural brasileira, a partir do entendimento das características e manifestações de cada povo, as quais necessitam ser respeitadas, auxiliando através do conhecimento, a desconstrução de visões estereotipadas e ações discriminatórias.
Em relação às competências específicas da área de Ciências Humanas para o Ensino Fundamental que abordam sobre a temática, ressalta-se a primeira e quarta competências. A primeira enfatiza a compreensão de si e do outro como identidades diferentes, reconhecendo a sociedade plural em que se vive, a fim de exercitar o respeito à diferença e promover os direitos humanos. Já a quarta, trata da capacidade de interpretar e expressar seus próprios sentimentos, crenças e dúvidas, bem como aquilo que os outros e as diferentes culturas manifestam, com empatia.
Nesse sentido, as Ciências Humanas objetivam, desde os anos iniciais, desenvolver a consciência dessa inter-relação entre o Eu, o Outro e o Nós. Essas noções passam a ser aprofundadas nos anos finais, com indagações sobre os “grupos humanos, as culturas e os modos de organizar a sociedade; as relações de produção e de poder; e a transformação de si mesmos e do mundo” (BRASIL, 2017, p. 356). Logo, ensejam o entendimento da ação humana nos diferentes tempos, espaços, sociedades, e dentro delas, suas culturas, identidades e relações de poder.
No componente curricular de História, especificamente, salienta-se que no fazer histórico constitui-se inicialmente um sujeito, para posteriormente ter conhecimento do outro, semelhante ou diferente do eu, e por fim amplia-se o estudo de outros povos, considerando o mundo em constante movimento e transformação. Também, aponta-se que conhecer o passado é imprescindível para entender a configuração atual das sociedades, percebendo como os indivíduos, através de diferentes linguagens, criaram as narrativas sobre o mundo, produzindo sentidos e significados acerca dos fenômenos, instituições e organizações sociais. E que essa produção ocorreu com divergências frente aos interesses envolvidos na representação das memórias coletivas.
Das competências específicas de História para o Ensino Fundamental que versam a respeito da diversidade cultural, têm-se a quarta que busca a identificação de interpretações que expressam visões de diferentes sujeitos, povos e culturas em um mesmo contexto histórico, posicionando-se de forma crítica acerca delas. A respeito do processo de ensino e de aprendizagem, a BNCC assevera que o aluno, com a mediação docente, deve assumir uma atitude historiadora frente aos objetos de conhecimento, utilizando processos de identificação, comparação, contextualização, interpretação e análise, tendo contato com várias fontes históricas.
Neste contexto, percebe-se que há diversas competências, das gerais às específicas da área de Ciências Humanas e do componente curricular de História, que referem-se ao estudo da diversidade de povos e culturas do Brasil e do mundo, a fim de promover o reconhecimento de suas identidades, do legado que deixaram/deixam para as sociedades, e o respeito por suas singularidades, sem exaltação ou privilégios de um perante o outro na narrativa. Resta saber se essas competências foram realmente consideradas e incorporadas na organização dos objetos de conhecimento e das habilidades específicas de História.
3.1 Os povos indígenas no componente curricular de História da BNCC do Ensino Fundamental
No componente curricular de História, há diversas Habilidades BNCC do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental que citam os povos indígenas com base nas unidades temáticas a serem trabalhadas em cada ano. No 6º ano, a ênfase do ensino está nas noções introdutórias acerca da História e nas civilizações antigas, havendo apenas um objeto de conhecimento sobre os povos indígenas do Brasil, denominado “Os povos indígenas do atual território brasileiro e seus hábitos culturais e sociais”.
Importante destacar que há um objeto de conhecimento que menciona os povos da antiguidade nas Américas, citando entre parênteses “pré-colombianos”, isto é, refere-se aos Astecas, Maias e Incas. A utilização desse termo, não o próprio nome dos indígenas originários do continente, revela uma concepção eurocêntrica, em que o marcador da história desses povos é o antes e o depois da chegada de Cristóvão Colombo na América, situando-os pela lógica europeia.
No que se refere às Habilidades BNCC para o 6º ano, que se relacionam com os objetos de conhecimento acima referidos, têm-se a (EF06HI07) “Identificar aspectos e formas de registro das sociedades antigas na África, no Oriente Médio e nas Américas, distinguindo alguns significados presentes na cultura material e na tradição oral dessas sociedades” e (EF06HI08) “Identificar os espaços territoriais ocupados e os aportes culturais, científicos, sociais e econômicos dos astecas, maias e incas e dos povos indígenas de diversas regiões brasileiras” (BRASIL, 2017, p.421) , as quais visam a identificação dos modos de vida e organização social dos povos indígenas brasileiros e americanos, distinguindo-os inclusive de outras sociedades antigas da África e do Oriente Médio. Como aspecto positivo, evidencia-se a denominação “povos indígenas”, que diferentemente da designação tradicional “índio”, considera a pluralidade de grupos indígenas existentes e suas especificidades.
Além dessas duas habilidades, há a (EF06HI05) “Descrever modificações da natureza e da paisagem realizadas por diferentes tipos de sociedade, com destaque para os povos indígenas originários e povos africanos, e discutir a natureza e a lógica das transformações ocorridas” (BRASIL, 2017, p.421), que está relacionada ao objeto de conhecimento “As origens da humanidade, seus deslocamentos e o processo de sedentarização”. Nessa habilidade objetiva-se descrever as modificações que diferentes sociedades realizaram no meio ambiente, com destaque aos povos indígenas originários. Desse modo, no 6º ano, os alunos necessitam aprender que existiram, na antiguidade, diversos povos indígenas habitando o território americano e brasileiro, os quais nos legaram contribuições sociais, econômicas e culturais importantes.
Por outro lado, mesmo havendo o objeto de conhecimento que indica os povos indígenas que vivem atualmente no Brasil, não há uma habilidade específica que proponha esse estudo, a fim de realizar comparações, percebendo as mudanças e permanências frente os seus antepassados. É o que Militão (2022, p.14) nos alerta, afirmando que “o teor das habilidades indicadas sinaliza o tratamento dos povos indígenas como artefato da cultura brasileira e não os concebe como povos que criam e recriam suas identidades e culturas”, de modo que aparecem como sujeitos do passado, não havendo um presente.
Em entrevista para Moreira (2022), Ailton Krenak aborda sobre a visibilidade e os papéis desempenhados pelos indígenas nos dias atuais. Diferentemente das imagens construídas, Krenak (2022) explicita que os povos indígenas não estão escondidos nos matos, distantes das cidades, mas presentes nas universidades, nas fábricas e em tantos outros locais, antes só considerados para os “brancos”. Em suas palavras, “índio ou indígena hoje pode ser sinônimo de alguém fazendo uma consultoria para a Comissão de Direitos Humanos da ONU, analisando violações de direitos de populações tribais na Ásia, na Oceania ou na América Latina”.
Já no 7º ano, as unidades temáticas concentram-se em torno do período da modernidade europeia (século XV-XVIII), a partir da sua expansão marítimo-comercial e conquista dos continentes asiático, africano e americano. Nesse sentido, percebe-se novamente que o conhecimento da história da América, do Brasil e dos povos indígenas nele habitantes, ocorre tendo como parâmetro um acontecimento europeu, desta vez a colonização dos territórios. Ou seja, analisa-se as sociedades americanas com e após a chegada dos europeus ao continente. Andreo e Joly (2022, p.52) validam essa observação escrevendo que:
[...] entendemos que ainda faltam elementos que permitam interpretar as diversas sociedades ameríndias a partir de elementos endógenos, assim evitando que se expliquem suas características tomando como parâmetros comparativos as sociedades da chamada “civilização ocidental”, o que consiste em equívoco etnocêntrico frequente [...]. (ANDREO; JOLY, 2022, p.52).
Isto é perceptível na habilidade (EF07HI03) “Identificar aspectos e processos específicos das sociedades africanas e americanas antes da chegada dos europeus, com destaque para as formas de organização social e o desenvolvimento de saberes e técnicas” (BRASIL, 2017, p.423), que requer a identificação das formas de organização social e do desenvolvimento de saberes e técnicas das sociedades americanas antes da vinda dos europeus. Habilidade esta, que desdobra-se do objeto de conhecimento “Saberes dos povos africanos e pré-colombianos expressos na cultura material e imaterial”.
Outros exemplos são as habilidades que se referem às dinâmicas coloniais americanas estabelecidas a partir da conquista europeia e sua relação com os povos indígenas, como a (EF07HI08) “Descrever as formas de organização das sociedades americanas no tempo da conquista com vistas à compreensão dos mecanismos de alianças, confrontos e resistências”, e (EF07HI09) “Analisar os diferentes impactos da conquista europeia da América para as populações ameríndias e identificar as formas de resistência” (BRASIL, 2017, p.423).
Essas habilidades demandam, resumidamente, o entendimento dos impactos da chegada dos europeus para os povos indígenas, os confrontos entre eles e as resistências à colonização. Acredita-se que a utilização do termo “conquista” ao invés de “descobrimento”, recorrente nos livros de História do passado, revela uma mudança de narrativa na qual considera o continente americano já habitado por diversos povos indígenas, não sendo descoberto por Colombo ou Pedro Álvares Cabral.
Também, ao propor a identificação das formas de resistência dos indígenas, mostra-os como sujeitos que não aceitaram passivamente o processo de colonização, sendo marcada por conflitos e luta contra a dominação. Por fim, outra habilidade que se reporta aos povos indígenas é a (EF07HI12) “Identificar a distribuição territorial da população brasileira em diferentes épocas, considerando a diversidade étnico-racial e étnico-cultural (indígena, africana, europeia e asiática)” (BRASIL, 2017, p.423), a qual visa a identificação da população brasileira e sua distribuição no território, em diferentes tempos, conforme as questões étnicas e culturais. Um trabalho que pode ser realizado interdisciplinarmente e é significativo para compreender como os espaços geográficos se relacionam com os aspectos históricos e sociais.
Por sua vez, no 8º ano, em que as unidades temáticas focam nos processos de independência das colônias americanas e na consolidação do império brasileiro, os povos indígenas aparecem nas lutas pela emancipação, de maneira indireta, como na habilidade (EF08HI11) “Identificar e explicar os protagonismos e a atuação de diferentes grupos sociais e étnicos nas lutas de independência no Brasil, na América espanhola e no Haiti” (BRASIL, 2017, p.425), que busca a identificação e explicação das ações realizadas por diferentes grupos étnicos nas independências. Considera-se relevante essa habilidade, pois mostra que houveram outros “heróis”, não somente brancos, que auxiliaram a modificar os rumos da história. Vale lembrar que a maior rebelião indígena da América Latina foi realizada no Peru, sob a liderança de Tupac Amaru II, descendente de um imperador Inca.
Ainda na unidade temática acerca das independências nas Américas, há o objeto de conhecimento “A tutela da população indígena, a escravidão dos negros e a tutela dos egressos da escravidão”, que origina a habilidade (EF08HI14) “Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a participação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, identificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas” (BRASIL, 2017, p.425). Nessa habilidade objetiva-se a discussão da noção de tutela dos povos indígenas com o final do Brasil Colônia, como também a identificação da manutenção de preconceitos, estereótipos e violências contra eles. Na mesma linha, encontra-se o objeto de conhecimento “Políticas de extermínio do indígena durante o Império” com a habilidade (EF08HI21) “Identificar e analisar as políticas oficiais com relação ao indígena durante o Império” (BRASIL, 2017, p.427), a qual propõe a identificação e análise das políticas indigenistas no período imperial brasileiro.
Outra habilidade relativa aos indígenas é a (EF08HI27) “Identificar as tensões e os significados dos discursos civilizatórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários e as populações negras nas Américas” (BRASIL, 2017, p.427), que refere-se aos discursos civilizatórios e racistas do século XIX, os quais impactaram negativamente na vida desses povos, assim como dos negros nas Américas. Através dessa habilidade, os alunos podem compreender as origens do racismo estrutural existente na sociedade brasileira, desconstruindo as ideias que classificavam as pessoas em raças, e promovendo atitudes antirracistas. Segundo Almeida (2021, p.20-21), “o racismo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para a reprodução das formas de desigualdade e violência que moldam a vida social contemporânea”, por isso é fundamental compreender sua gênese.
No 9º ano, as unidades temáticas que abordam a temática indígena relacionam-se aos períodos da história republicana brasileira, como se observa no objeto de conhecimento “A questão indígena durante a República (até 1964)” e sua habilidade (EF09HI07) “Identificar e explicar, em meio a lógicas de inclusão e exclusão, as pautas dos povos indígenas, no contexto republicano (até 1964), e das populações afrodescendentes” (BRASIL, 2017, p.429), que visa a identificação e explicação das pautas sobre os povos indígenas, sejam elas inclusivas ou excludentes, da Primeira República ao fim da República Populista. Do mesmo modo, há o objeto de conhecimento “As questões indígenas e negra e a ditadura”, com a habilidade (EF09HI21) “Identificar e relacionar as demandas indígenas e quilombolas como forma de contestação ao modelo desenvolvimentista da ditadura” (BRASIL, 2017, p.431), que relaciona as demandas dos povos indígenas à contestação na ditadura civil-militar brasileira.
Posteriormente, a menção aos povos indígenas ocorre com os objetos de conhecimento sobre a Constituição Federal de 1988 e a conquista das cidadanias, e a violência contra as populações marginalizadas. Este último desdobrou-se na habilidade (EF09HI26) “Discutir e analisar as causas da violência contra populações marginalizadas (negros, indígenas, mulheres, homossexuais, camponeses, pobres etc.) com vistas à tomada de consciência e à construção de uma cultura de paz, empatia e respeito às pessoas” (BRASIL, 2017, p.431), intentando a identificação e análise das causas da violência contra esses grupos sociais, para a conscientização e construção da cultura de paz, empatia e respeito mútuo.
Destaca-se que a BNCC considera como populações marginalizadas todos aqueles que sofreram algum tipo de exclusão social no decorrer da história, citando inclusive as mulheres, os homossexuais, camponeses e pobres. Contudo, Souza (2019) faz uma reflexão crítica acerca da presença indígena nas habilidades de História, revelando como elas balizam e dão continuidade à reprodução de uma educação colonizadora, mostrando-os como fragilizados e à margem da história e sociedade atual:
Este é mais um símbolo da educação que forma colonizadores: localizamos os povos nativos no passado remoto de uma linha evolutiva humana, conquistamos e enfrentamos a resistência e agora tutelamos; inexiste culturas, saberes, organizações sociais complexas que sejam relevantes para o estudo. Há apenas a sua marginalização, o que de fato reafirma a própria situação dos povos hoje: o indígena que é ensinado exclusivamente como sendo marginalizado segue no imaginário como sendo marginalizado (SOUZA, p.680-681, 2019).
Já numa linha de valorização da diversidade cultural e identitária, há os objetos de conhecimento “Pluralidades e diversidades identitárias na atualidade” e “As pautas dos povos indígenas no século XXI e suas formas de inserção no debate local, regional, nacional e internacional”, tendo como habilidade a (EF09HI36) “Identificar e discutir as diversidades identitárias e seus significados históricos no início do século XXI, combatendo qualquer forma de preconceito e violência” (BRASIL, 2017, p.433). Nessa habilidade, enseja-se a identificação e discussão acerca das diversidades identitárias no mundo contemporâneo, a fim de combater o preconceito e a violência.
Salienta-se a utilização do termo “diversidades identitárias” que demonstra a visão que os autores possuem a respeito da identidade, isto é, que não há apenas uma identidade no singular, ou um povo, uma cultura a ser reconhecida frente às outras, mas identidades. Na contemporaneidade, não há uma identidade fixa, estável, capaz de caracterizar todos os sujeitos, mas um espaço de fluxos que possibilitam autodescreverem-se ou definirem-se e participar de quantas coletividades desejarem. Conforme Giddens (2002), cada sujeito tem que construir-se e encontrar a si mesmo dentro desse universo social global, realizando o chamado projeto reflexivo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este artigo buscou compreender a proposta da BNCC para o ensino e a aprendizagem da história e cultura indígena no componente curricular de História, nos anos finais do Ensino Fundamental. Partiu-se do entendimento de que o currículo escolar é dotado de intencionalidades e a escolha dos conteúdos a serem trabalhados no ensino de História não é feita de maneira aleatória e ocasional, mas proposital e sistemática, conferindo legitimidade a certos saberes perante o tipo de sujeito que deseja-se formar. Logo, faz-se necessário analisar os discursos presentes no documento, a fim de apreender qual a concepção de história e a narrativa a ser contada em sala de aula.
Nosso entendimento, como afirmamos, ancora-se nas teorias críticas e pós-críticas do currículo, SILVA (2004), partindo da ideia de que não há neutralidade na construção do documento curricular, uma vez que ele é uma construção histórica, social e cultural. Logo, a escolha dos conhecimentos “o quê” ensinar em História? está interligada com o que elas ou eles os povos indígenas (originários) devem ser? Afinal, nos esclarece Silva (2004, p.15), “um currículo busca precisamente modificar as pessoas que vão ‘seguir’ naquele currículo”. Desse modo, o currículo ou o texto curricular, não envolve apenas a problemática do conhecimento, sendo também uma questão de identidade e de poder, uma vez que procura constituir um ideal hegemônico, em meio a um território contestado.
Sob este aspecto, após realizar a identificação e análise dos objetos de conhecimento e de habilidades específicas do componente curricular de História, em cada um dos anos finais do Ensino Fundamental, que abordam sobre a história e cultura indígena, pode-se elencar aspectos conclusivos. Nesta perspectiva, constatou-se que o texto curricular da BNCC, especialmente em suas competências gerais e específicas, defende um ensino pautado pela diversidade cultural e identitária, a fim de romper com as representações tradicionais e estereotipadas acerca dos grupos sociais, conscientizando-se das diferenças e aprendendo a respeitar o outro.
Também, verificou-se a intenção de que os alunos aprendam a identificar e valorizar as contribuições dos indígenas em diversos momentos da história, bem como a escrita do documento utiliza termos históricos e sociais mais adequados, como: “povos indígenas” ao invés de “índio”, “conquista” ao contrário de “descobrimento”, e “diversidades identitárias” em oposição à “identidade”. Além disso, propõem-se habilidades que permitem que o aluno reconheça os povos indígenas como protagonistas da narrativa histórica, como nos processos de independência, e na resistência à dominação no período da colonização do continente americano.
Todavia, mesmo com esses destaques, conclui-se que a BNCC estrutura o componente curricular de História sob uma perspectiva tradicional e eurocêntrica, dividindo o seu ensino de forma quadripartite e colocando os povos europeus na centralidade da narrativa histórica. E ainda, faltam habilidades que promovam o conhecimento dos povos indígenas contemporâneos e sua atuação na sociedade brasileira, de modo que não se crie a ideia de que são sujeitos da antiguidade, vivendo de forma primitiva e marginalizados. Desse modo, não basta a defesa de um currículo multicultural, sem uma mudança na concepção de história e se as práticas pedagógicas escolares não comportarem o mesmo discurso.
Portanto, acredita-se que esta pesquisa tenha contribuído para o entendimento da proposta que a BNCC apresenta para o ensino da história e cultura indígena, em História nos anos finais do Ensino Fundamental, através da apresentação de pontos positivos, negativos e lacunas existentes no documento. Novos estudos poderão aprofundar ainda mais a análise dessa problemática, auxiliando os docentes a pensar o seu fazer pedagógico significativamente.
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Notas