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DANÇANDO O CARIMBÓ NA ESCOLA: uma abordagem sobre cultura amazônica e Pedagogias Decoloniais em Dança

DANCING THE CARIMBÓ AT SCHOOL: an approach to Amazonian culture and Decolonial Pedagogies in Dance

BAILANDO EL CARIMBÓ EN LA ESCUELA: una aproximación a la cultura amazónica y a las pedagogías decoloniales en Danza

Verônica Teodora Pimenta
Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Roraima, Brasil
Julia Medeiros Dantas
Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Roraima, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 16, núm. 3, 2023

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 31 Outubro 2023

Aprovação: 24 Novembro 2023



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v16i3.68487

Resumo: Este artigo trata da Dança no currículo formal da Educação Básica, visando à construção de conhecimentos por meio de vivências com Danças Brasileiras, especificamente o carimbó. A metodologia envolveu o projeto interdisciplinar “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável”, com estudantes do 4º Ano do Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Roraima. Partimos do entendimento de Pedagogia de Projeto, com planejamentos de sequências didáticas simultâneas em Língua Portuguesa, Geografia, Dança, Música e Educação Física. Trazemos reflexões sobre a experiência interdisciplinar nos componentes Dança e Educação Física. Foram essas as seguintes etapas de construção do conhecimento: pesquisas envolvendo a história do carimbó e suas características, vivências de roda de carimbó na sala de aula, rodas de conversa, além da experiência performativa, na culminância do projeto fora da sala de aula, com rodas de carimbó com música ao vivo e a presença de integrantes da comunidade escolar, incluindo familiares das crianças. Essa experiência implicou no reconhecimento do carimbó enquanto patrimônio cultural e fruto da resistência de comunidades populares do Pará. Devido à natureza performativa e festiva da roda, o carimbó também foi o ponto de partida para reflexões sobre modelos de inclusão do corpo no espaço escolar. O reconhecimento do carimbó enquanto patrimônio contou, especialmente, com a aproximação afetiva da dança, além da descoberta dessa manifestação como uma resistência afro-ameríndia. Para além de um tradicional Pedagogia de Dança, reconhecemos na memória do carimbó, nos seus elementos festivos e nas influências recebidas da cosmovisão indígena, caminhos para possíveis Pedagogias Decoloniais em Dança.

Palavras-chave: Dança, Carimbó, Pedagogias Decoloniais.

Abstract: This paper approaches dance in the formal curriculum of basic education aiming to build knowledge through experiences with Brazilian dances, specifically carimbó. The methodology involved the interdisciplinary project "Carimbó, Regional Culture and Sustainable Development", with 4th grade students from Colégio de Aplicação, a basic education school of the Federal University of Roraima. We started by understanding Project Pedagogy, with simultaneous planning of didactic sequences in Portuguese Language, Geography, Dance, Music, and Physical Education. We reflected on the interdisciplinary experience in Dance and Physical Education. The construction of knowledge included the following stages: Research on the history of carimbó and its characteristics; experiences of carimbó circles in the classroom; conversation circles; and a performative experience during the culmination of the project outside the classroom, with carimbó circles including live music and members of the school community, including the children's families. This experience led to participants’ recognition of carimbó as a cultural heritage and a fruit of popular resistance of communities in Pará. Due to the performative and festive nature of the dancing circles, carimbó was also the starting point for reflections on inclusion models that aim to integrate the body in school spaces. The recognition of carimbó as heritage was based especially on an affectionate approach to this dance, as well as on a discovery of this manifestation as an Afro-American resistance. Beyond a traditional Dance Pedagogy, we recognize in the memory of carimbó — in its festive elements and its influences from the indigenous worldview — paths for a Decolonial Pedagogy in Dance.

Keywords: Dance, Carimbó, Decolonial Pedagogy.

Resumen: Este artículo trata de la danza en el currículo formal de la educación básica, con el objetivo de construir conocimiento a través de experiencias con danzas brasileñas, específicamente el carimbó. La metodología involucró el proyecto interdisciplinario "Carimbó, cultura regional y desarrollo sostenible", con alumnos de 4º año del Colégio de Aplicação, la escuela de educación básica de la Universidad Federal de Roraima. Partimos de la comprensión de la Pedagogía del Proyecto, con planificación de secuencias didácticas simultáneas en Lengua Portuguesa, Geografía, Danza, Música y Educación Física. Así, reflexionamos sobre la experiencia interdisciplinaria en Danza y Educación Física. La construcción del conocimiento siguió las siguientes etapas: investigación sobre la historia del carimbó y sus características, experiencias de círculos de carimbó en el aula, círculos de conversación, así como la experiencia performativa en la culminación del proyecto fuera del aula, con círculos de carimbó con música en vivo y la presencia de miembros de la comunidad escolar, incluyendo las familias de los niños. Esta experiencia resultó en el reconocimiento por los participantes del carimbó como patrimonio cultural y fruto de la resistencia de las comunidades populares de Pará. Debido al carácter performativo y festivo de la roda, el carimbó fue también el punto de partida para reflexiones sobre modelos de inclusión del cuerpo en el espacio escolar. El reconocimiento del carimbó como patrimonio se basó, en particular, en un acercamiento emocional a la danza, así como en el descubrimiento de esta manifestación como resistencia afroamericana. Más allá de una Pedagogía de la Danza tradicional, reconocemos en la memoria del carimbó, en sus elementos festivos y en las influencias recibidas de la cosmovisión indígena, caminos hacia una Pedagogía de la Danza Decolonial.

Palabras clave: Danza, Carimbó, Pedagogía Decolonial.

1 INTRODUÇÃO

A presença das danças populares brasileiras em currículos da Educação Básica pode ser uma fonte de experiências estéticas enquanto fios condutores do ensino-aprendizagem interdisciplinar e dos seus respectivos meneios entre vivência artística, ato de pesquisa e reconhecimento do patrimônio cultural. O presente artigo traz reflexões sobre a dança carimbó a partir de uma experiência interdisciplinar, realizada entre os meses de julho e setembro de 2023 no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Roraima (CAp-UFRR), onde o currículo abriga o componente curricular Dança, cujo ementário é contido no ensino de Arte, mas também compreende experiências com ritmo e movimento no componente curricular Educação Física. Esse colégio situa-se na cidade de Boa Vista, região que pode ser caracterizada como de fronteira cultural, devido ao seu posicionamento geográfico, mas sobretudo à multiculturalidade decorrente dos processos migratórios. Nesta cidade se encontram representantes de diversos povos da Amazônia, além de outras regiões do País. Tal amálgama é pressuposto do desenvolvimento curricular tomado como base reflexiva do presente artigo e leva a inferir que a ideia de cultura amazônica não pode ser levada em conta monoliticamente.

Destaca-se que Boa Vista e Belém do Pará estão a 3.844,6 quilômetros de distância. Embora ambas as capitais estejam situadas na Região Norte do Brasil, não há, necessariamente, um pertencimento de educandas e educandos de Boa Vista quanto ao espaço simbólico formado pela cultura e pela arte amazônicas. Esta é, portanto, uma questão de desenvolvimento curricular, atendendo ao artigo 26, § 2o da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN), que determina: “o ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório da educação básica”; além do artigo 26 – A, § 1º, que estabelece como obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil (BRASIL, 1996).

Portanto, experienciar a dança carimbó e contextualizá-la no âmbito da cultura amazônica é uma chance de aproximação crítica e estética de saberes tradicionais, se pensarmos a especificidade da Amazônia como uma fonte de experiências e de referências artísticas, além de saberes necessários ao desenvolvimento sustentável e ao conhecimento da formação cultural brasileira. O carimbó representa, notadamente, o estado do Pará, onde essa manifestação se faz presente em todas as sub-regiões do estado, seja por meio de grupos tradicionais ou parafolclóricos (IPHAN, 2014). Há, ainda, registros da existência histórica do carimbó no estado do Maranhão (SALLES; SALLES, 1969; HUERTAS, 2014). Na contemporaneidade, o carimbó vem sendo amplamente divulgado como uma dança brasileira, já fazendo parte das dinâmicas artísticas e de agitação cultural de muitos centros urbanos em todo o País. O presente desenvolvimento curricular vinculou essa prática de dança ao ensino-aprendizagem focado na educação patrimonial para a sustentabilidade. Isso porque, muito antes de se tornar também um fenômeno urbano, o carimbó se estruturou a partir de visões de mundo de comunidades extremamente conectadas com a natureza e com as narrativas locais de encantamento:

O carimbó remete, portanto, às interpretações indígenas e africanas sobre a relação entre ser humano e natureza, que diferem da concepção hegemônica, herdada de uma visão bíblica criacionista de homem dominador do meio e de um projeto iluminista de experimentação e matematização do mundo, além dos ideais de progresso que se tornaram hegemônicos com o processo de colonização e a consolidação do capitalismo. Compreender representações de mundo em que o ser humano é visto como integrado e não contraposto à natureza pode contribuir para o questionamento da visão dicotômica imperante e das ações depredatórias dela derivadas. Neste sentido, acredita-se que o carimbó reflita outras experiências, contra-hegemônicas, relacionadas às ideias das epistemologias do Sul, definidas como um conjunto de saberes e práticas que, ao longo da história, foram produzidos por distintos povos, contextos e culturas que, marginalizados desde o início do processo de colonização até os dias de hoje, foi desqualificado ao longo da história pelo sistema dominante (HUERTAS, 2014, p.95).

Estamos diante de questões sobre sustentabilidade, por exemplo, quando nos encontramos com relatos dos carimbozeiros que envolvem as técnicas utilizadas para extrair a madeira da floresta e fabricar seus instrumentos musicais, além do tipo de couro usado neste processo, se de animal silvestre ou se aproveitamento do couro restante do corte de gado. Também nos encontramos com a sustentabilidade a partir do reconhecimento dos modos de vida desses artistas populares, com os relatos sobre o papel social das festividades, que são manifestações do catolicismo popular miscigenado com narrativas de encantamento. A visão de sustentabilidade também pode estar relacionada ao conhecimento das estratégias de sobrevivência do carimbó. Conforme Salles e Salles (1969), em registros legais do século XIX constava a proibição expressa de batucar e de tocar o carimbó em cidades paraenses. Atualmente, o desencorajamento desta prática segue em alguns círculos sociais. Ante ao avanço do protestantismo e a partir da conversão a religiões pentecostais, certos carimbozeiros abandonaram essa prática cultural em nome da sua nova crença (HUERTAS, 2014). Portanto, na abordagem curricular do carimbó na escola, a noção de sustentabilidade vincula-se tanto à conscientização sobre relações íntimas entre cultura e preservação ambiental quanto ao fortalecimento da coesão das comunidades, bem como a sobrevivência dos grupos tradicionais de dança.

2 METODOLOGIA

Os procedimentos metodológicos envolveram a pesquisa bibliográfica e de referenciais sobre a dança do carimbó, além da observação participante em ações do projeto “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável”. Por meio do recorte da Pedagogia de Projetos, a qual pressupõe o rompimento com pedagogias tradicionais e transmissivas em função de ações cooperativas, contextualizadas e não fragmentadas disciplinarmente (GIROTTO, 2005), buscamos o engajamento das crianças, mantendo o foco central na inclusão de todos os integrantes da turma na prática de dança. Nossa ação interdisciplinar foi desenvolvida com 25 estudantes do 4º Ano do Ensino Fundamental, 14 meninas e 11 meninos. Houve um planejamento de sequências didáticas simultâneas, executadas por duas professoras pedagogas[1] responsáveis pelo ensino de Língua Portuguesa e de Geografia, além das autoras do presente artigo, professoras responsáveis, respectivamente, pelos componentes curriculares Dança e Educação Física. O projeto também contou com contribuições eventuais do professor responsável pelo componente curricular Música, além de três acadêmicos integrantes do Programa Residência Pedagógica da UFRR/Coordenação de Aperfeiçoamento do Pessoal de Nível Superior (Capes), residentes no componente curricular Dança.

As autoras interviram diretamente no projeto por meio da elaboração e do empreendimento de sequências didáticas nas aulas de Dança e de Educação Física, além da organização de uma performance pública com rodas de carimbó formadas por crianças, educadoras, educadores e por integrantes da comunidade escolar. Essas rodas ocorreram no evento de culminância do projeto “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável”, ocorrido no dia 16 de setembro de 2023, dentro edição 2023 Feira de Ciências do CAp-UFRR. Nessa ocasião, participaram das rodas de carimbó os visitantes da Feira, além de integrantes das famílias das crianças. Durante o desenvolvimento curricular não se fez distinção entre o carimbó de raiz e o comercial, sendo acolhidas todas as informações encontradas pelas crianças em suas pesquisas. Por exemplo, na reprodução sonora, nas aulas de Dança, ouviram-se diferentes versões de canções de carimbó divulgadas comercialmente.

Nas aulas do componente curricular Dança, manteve-se a estrutura de roda e o estímulo a improvisações geradas pelo deslocamento circular e pelo relacionamento em pares, pelo contato visual exercitado em duplas, além de improvisações individuais no centro da roda formada pelo coletivo de 25 educandas e educandos. As crianças também realizaram pesquisas escritas, levantamentos de imagens documentais e registros em desenhos. No desenvolvimento curricular de Educação Física, abordou-se o carimbó como cultura corporal de movimento, realizando-se pesquisas sobre a história e características desta dança e suas matrizes culturais. Também foram mediadas rodas de conversa alimentadas pelas palavras-chave “carimbó” e “desenvolvimento sustentável”. Nas aulas do componente curricular Música, as crianças vivenciaram a apreciação e execução do ritmo carimbó por meio de instrumentos percussivos. Nas aulas de Geografia, estudaram-se os relevos brasileiros com destaque para os da região amazônica. Entre as metodologias ativas, destacou-se a modelagem por meio de maquetes de papelão, além da elaboração tridimensional de relevos brasileiros com massinha de modelar caseira fabricada pelas próprias crianças. Com essas ações, trabalhou-se diretamente os 3 Rs da Sustentabilidade: reutilização, reciclagem e redução do desperdício. No componente curricular Língua Portuguesa, foi mediado o contato das crianças com a letra Mãe Amazônia, de pé! de Silvan Galvão. Apresentando-se a mensagem deste músico ligado à cena nacional de carimbó, visou-se inspirar o respeito à biodiversidade amazônica, destacando o engajamento da prática artística com a causa da preservação da floresta.

Chegamos ao entendimento de dança como patrimônio cultural por meio das ações de contextualização dos conhecimentos sobre a dança carimbó que, como já deixamos claro acima, envolveram a pesquisa sobre o ambiente em que vivem os sujeitos originariamente produtores desta cultura, bem como a sua relação cotidiana com elementos desses meios em que vivem. Por fim, a noção de sustentabilidade foi trabalhada por meio da seleção dos objetivos 4, 11 e 15 dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). O primeiro, “Educação de Qualidade”, foi interpretado através da meta 4.7, que se refere à formação de habilidades e à produção de conhecimentos necessários à promoção do desenvolvimento sustentável, levando-se em conta a diversidade, além das contribuições do campo da cultura para tal modelo de desenvolvimento. Dentro do objetivo 11, “Cidades e comunidades sustentáveis”, adotou-se como referência a meta 11.4, que se refere ao fortalecimento de esforços para proteger e salvaguardar o patrimônio cultural e natural. No caso brasileiro, a meta cita claramente a salvaguarda ao patrimônio material e imaterial do País, o que inclui o carimbó. Adotou-se, ainda, o ODS 15, que se destina ao uso sustentável dos ecossistemas terrestres, incluindo a preservação das florestas e a contenção da perda da diversidade (ONU, 2023).

Na culminância do projeto, as crianças do 4º Ano montaram uma sala ambiente, a fim de apresentar o seu projeto ao público da Feira de Ciências do CAp-UFRR. Nesta sala, foram expostos e defendidos oralmente os trabalhos orientados pelas quatro professoras integrantes do projeto “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável”, tais como as maquetes, as pesquisas sobre o bem cultural carimbó e cartazes confeccionados pelas crianças. Elas também distribuíram mudas de plantas originárias da Amazônia, especificamente do Lavrado. Nesta mesma sala ambiente, aberta à visitação, foram realizadas rodas de carimbó, com execução de música ao vivo, em referência aos seguintes elementos constitutivos da manifestação cultural: cantadores e cantadeiras, tocadores e dançarinas e dançarinos. Já em referência aos relatos sobre os salões onde ocorrem as festas tradicionais de carimbó (SALLES; SALLES, 1969; IPHAN, 2014), foi oferecida uma degustação de iguarias da Amazônia, como paçoca e açaí. A indumentária dos meninos foi formada por calças e blusas neutras. Já o figurino das meninas foi caracterizado por saias longas, rodadas, estampadas e intencionalmente referenciadas nas saias de carimbó. Tal visualidade remete às questões memoriais, desperta múltiplos significados e elementos simbólicos referentes às performatividades da dança carimbó, além de serem uma referência à exuberância à flora do Pará (COSTA; OLIVEIRA, 2022). Em suma, as saias remetem à festividade do carimbó enquanto prática social e são fundamentais para a estruturação da presença cênica das dançarinas e dançarinos.

3 O CARIMBÓ

3.1 A dança carimbó como patrimônio imaterial

O carimbó é uma dança de origem popular desenvolvida provavelmente no período entre os séculos XVII e XVIII (IPHAN, 2014). É uma manifestação cultural de maior incidência na região conhecida como Salgado Paraense, embora, como já dito, seja representativa em todo o estado do Pará. As origens desta dança remontam ao processo de colonização e, consequentemente, a hibridizações culturais referentes à dinâmica histórica de ocupação do território amazônico. Conforme Huertas (2014) os elementos musicais e de movimentação dançada do carimbó reúnem referenciais indígenas, ibéricos e africanos, podendo ser essa hibridização considerada um exemplo do processo histórico da miscigenação cultural brasileira. A permanência desta dança até os dias atuais demonstra a sua relevância social e cultural.

O carimbó foi declarado patrimônio imaterial brasileiro em 11 de setembro de 2014 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A nomenclatura carimbó vem da língua tupi, curi (pau oco) e m’bo (furado, escavado), em referência aos tambores, instrumentos que produzem a sonoridade típica dessa manifestação, a qual aglutina festividades e manifestações no canto, na formação instrumental e na dança (IPHAN, 2014). A dança carimbó é atualmente transmitida por grupos familiares, comunitários, além de grupos artísticos e agentes culturais. A ideia de patrimônio cultural, portanto, delimita o carimbó para além das possibilidades espetaculares da dança, mas sobretudo como modo de vida.

O carimbó pode ser dançado em roda ou em pares. Ainda há a possibilidade de organização de desenhos relativos à dança teatral/cênica, quando se considera a atuação por grupos não tradicionais, os quais geralmente se apresentam por meio de coreografias organizadas previamente (HUERTAS, 2014). Mesmo com essa diversidade de manifestações do carimbó na contemporaneidade, torna-se pouco provável falar deste bem cultural sem reconhecer que se trata de um universo de saberes tradicionais, originalmente transmitidos por mestres e mestras da cultura popular, gente que também atua como liderança em seus grupos (SALLES; SALLES, 1969).

O carimbó pode ser associado tanto a práticas seculares como a religiosas, essas vinculadas em boa parte ao catolicismo popular. As narrativas orais coletadas no trabalho de salvaguarda deste bem cultural relacionam as origens do carimbó a práticas de sociabilidade negra, como festas de São Benedito e as do ciclo natalino. Além de manifestações de fé, o carimbó se insere em momentos de lazer e, ainda, de reforços de laços sociais. Boa parte dos seus cantadores, cantadeiras, dançarinas e dançarinos são, sobretudo, pessoas do povo. Seus mestres e praticantes eram, originalmente, pessoas com profissões operárias como lavradores, pescadores e agricultores (IPHAN, 2014). Esse aspecto da vida profissional dos praticantes de carimbó também se expressa em letras de algumas canções (HUERTAS, 2014). Dessa maneira, o carimbó também pode ser compreendido como prática que se originou de atividades lúdicas e de lazer, geralmente empreendidas após jornadas de intenso trabalho.

Segundo Salles e Salles (1969) o carimbó tem origem africana, partiu do batuque e se configurou em três tipos: praieiro, pastoril e rural ou agrícola. Admite-se, entretanto, que as variações no carimbó paraense se relacionam com dinâmicas próprias de ocupação territorial, além de trocas econômicas. As suas letras e movimentações também podem refletir técnicas de trabalho. Assim, quando se fala de carimbó, seja na perspectiva da dança tradicional ou em suas manifestações contemporâneas, inclui-se diferentes modos de vida, que vão desde a motivação comunitária e, mais recentemente, admitindo-se também a elaboração da dança como um produto cultural, no formato intencionalmente cênico e associado à cadeia econômica do turismo.

A dimensão patrimonial da dança carimbó também abrange o encontro de seus praticantes com lições de resistência e de existência. Relatos sobre a conservação do carimbó ao longo dos séculos mostram que a prática foi marginalizada e até mesmo proibida formalmente, por ser uma dança de pessoas negras e mestiças. No século XIX, o carimbó era considerado a expressão popular do interior que chegava a Belém, mas também tido como uma prática deselegante. Durante o ciclo da borracha, os batuques confrontavam diretamente hábitos da elite referenciada da Belle Époque europeia e que tentava produzir sua hegemonia cultural nos grandes centros urbanos amazônicos (TV BRASIL, 2022). Próximo a centros urbanos, essas sessões careciam, já no século XX, de autorização da polícia para serem realizadas (SALLES; SALLES, 1969). O mesmo processo racista pode ser verificado na invisibilização do batuque negro, central no carimbó. Embora tenha sido destacada a condição híbrida do carimbó neste artigo, estamos conscientes da centralidade da batida negra na caracterização dessa música e dessa dança. Sem os curimbós não há o carimbó, pois sua base são esses tambores (SALLES; SALLES, 1969).

3.2. O carimbó na perspectiva de uma Pedagogia Decolonial em Dança

A inclusão do corpo no espaço escolar considerada na presente abordagem curricular perpassou o ser brincante e o ato de viver a arte da dança enquanto experimentação. Podemos considerar esses aspectos tanto na vivência de algumas movimentações codificadas da dança carimbó, como o passo básico e o estudo de deslocamentos espaciais, assim como nas movimentações mais livres, mas igualmente codificadas, como a soltura de quadris e os jogos performativos com saias, trocas de olhares e sorrisos. Essa experimentação vivencial incluiu os esforços por conhecer a dança com critério e observação de conceitos. Mas também se tratou de uma experiência de afetos, já que a Pedagogia de Projetos prevê o engajamento de educandas e educandos, e esse processo global e complexo de ensino-aprendizagem decorre da sua vivência (GIROTTO, 2005). Assim, podemos dizer que a abordagem do corpo no espaço escolar por meio do carimbó supera uma visão meramente disciplinar ou fisiológica, ou seja, uma definição de corpo como um conjunto de órgãos, tecidos e células, que atuam juntos buscando a homeostase.

Trata-se, aqui, do reconhecimento por cada educanda e educando do próprio corpo em sua concretude, o que ela e ele significam, existencialmente, dentro e fora dos espaços escolares e ao longo do desenvolvimento curricular. Foi essa dimensão do corpo que predominou ao se projetar da Sala de Dança, onde o carimbó foi vivenciado em algumas células de movimento ensaiadas, para espaços comuns da escola, onde já se atuava como corpo brincante, com a intenção de ser visto. E é na improvisação que se manifesta o lado brincante do carimbó, pois ela possibilita o destaque das particularidades dos solistas (SALLES; SALLES, 1969). Por que andar? Por que preservar o hábito de ações como correr? Pular? Respirar conscientemente? Pulsar? E como se faz? É possível levantar diversos questionamentos sobre o corpo e a corporalidade. E o objetivo deste tópico do artigo é expor aproximações de autores que tratam da temática, como Le Breton (2012) que sobre o corpo discorre:

O corpo parece evidente, mas, definitivamente, nada é mais inapreensível. Ele nunca é um dado indiscutível, mas o efeito de uma construção social e cultural. A concepção mais corretamente admitida nas sociedades ocidentais encontra sua formulação na anatomofisiologia, isto é, no saber biomédico. Ela repousa sobre uma concepção particular da pessoa, que faz o ator social dizer “meu corpo”, segundo o modelo de posse (…) corpo o recinto do sujeito, o lugar de seu limite e de sua liberdade, o objeto privilegiado de uma fabricação e de uma vontade de domínio (LE BRETON, 2012, p. 18).

Apesar do vasto campo formado pelos estudos sobre o corpo, o objetivo deste trabalho não é aprofundar-se em tais dilemas. Neste momento, busca-se organizar um diálogo entre autores que tratam do corpo, fundamentando a construção de pensamentos acerca da corporalidade, cerne da construção de pessoa em diversas comunidades. Os estudos propostos encaminham-se para a formulação de contribuições que fundamentem o estudo de comunidades mestiças brasileiras, incluindo as matrizes negras e ameríndias, uma vez que a sociedade em que se insere o grupo foco do presente estudo é composta majoritariamente por crianças e adolescentes descendentes de indígenas ou em relação próxima com essas culturas. É por isso que o boa-vistense, geralmente, se define como macuxi, uma das etnias indígenas presentes no estado de Roraima. E é a construção da noção de pessoa que acaba trazendo o corpo e a corporalidade para o debate. Entretanto, muito antes de qualquer nomenclatura com intenções identitárias, é através do corpo que o mundo é experimentado. Ver, sentir, provar e logo significar. No corpo, a cultura faz morada e através deste ela se expressa. A corporalidade, ou cultura corporal, está presente em toda sociedade, de uma forma ou de outra. O corpo está lá, mesmo em sua ausência. Em algumas sociedades mais marcadamente do que em outras.

Uma das grandes contribuições de Bourdieu (2006) para o debate sobre o corpo foi seu estudo realizado em Béaun, Sudoeste da França, na década de 1960. O pensador analisou a influência do habitus, o modo de agir e assimilar determinados comportamentos relacionados às taxas de celibato de uma sociedade campesina baseada na progenitura, bem como a assimilação da consciência desses corpos como indicadores de posições sociais. Esse estudo pode ser entendido como uma etnografia contendo um apanhado histórico e estatístico sobre como as relações sociais influenciavam o crescimento do celibato naquela sociedade. A questão exposta por Bourdieu (2006) é que as potenciais parceiras destes camponeses, pelo acesso ao ideal urbano de comportamento – desde a aparência até a forma de andar – acabavam por rejeitar o parceiro campesino. E isto, por sua vez, gerou um processo de autorreconhecimento do jovem camponês, que internalizava essa imagem desvalorizada através da percepção do seu próprio corpo, gerando impactos negativos na forma de se relacionar socialmente, dificultando ainda mais o cortejo.

A partir, principalmente da década de 1960, pesquisas como a de Bourdieu sobre o papel do corpo na sociedade, no imaginário coletivo, reforçaram teses como a defendida por Viveiros de Castro, Seeger e da Matta (1979). Esses autores apontaram a necessidade de uma etnologia própria, que levasse em consideração as especificidades ocasionadas pelas estreitas relações entre corpo, cultura e identidade. Os modelos clássicos não se aplicavam em sua totalidade a tais especificidades:

[...] deveríamos voltar nossa atenção para aquilo que é característico das sociedades indígenas sul-americanas. Sugerimos aqui que as noções ligadas à corporalidade e construção de pessoas são algo básico. Isto não é “idealismo”, “linhagem” e “clã” não são mais reais que a ideia de que os corpos são fabricados apenas pelo sêmen. Todas estas ideias são princípios de organização social. Como os que operam na América do Sul são diferentes dos que operam na África (na África dos antropólogos), surgem como simples “ideias” ou “símbolos”. Mas são princípios, que operam e informam a praxis. Nossa tese, portanto, é que a fluidez social sul-americana bem pode ser uma ilusão; que as sociedades do continente se estruturam em termos de idiomas simbólicos que- esta é a diferença para com os símbolos africanos, europeus, etc. não dizem respeito à definição de grupos e à transmissão de bens, mas à construção de pessoas e à fabricação de corpos (SEEGER; MATTA; VIVEIROS DE CASTRO, 1979, p. 10).

Os autores deixaram em evidência que as teorias antropológicas até então desenvolvidas não se aplicavam em sua totalidade à realidade das sociedades indígenas brasileiras, devido ao lugar do corpo dentro dessas culturas. Surgia, para os etnólogos, a necessidade de pensar-se em algo voltado para o real empírico da região, buscando entender a cosmovisão, dentro de uma abstração de um elemento até então concreto em outras sociedades. O corpo era a maneira de externar algo, mas o caminho contrário fora negligenciado: a internalização de conceitos através do corpo, a significação e o simbólico. Podemos, aqui, perceber a preocupação com a temática da corporalidade, que passa a ter uma função articuladora nas significações e cosmologias. O corpo não é mais visto apenas como carapaça para identidade. À medida que compreendemos o papel do corpo na organização destas sociedades, principalmente de indígenas brasileiros, podemos fundamentar o debate sobre a construção de pessoas e de existências.

O encontro dos etnólogos com a cosmovisão indígena pode ser uma produtiva fonte de inspiração para os estudos envolvendo as Pedagogias da Dança na contemporaneidade. A colaboração entre cosmovisão indígena e o pensamento afrocentrado é parte não apenas da cultura amazônica, mas do modo como muitas pessoas no Brasil dançam e pensam a dança em seu cotidiano. O carimbó é uma das faces deste espectro, já que sua estrutura de movimentação comunica a hibridização de culturas ao passo que a festa é uma de suas performatividades. Esse formato de dança diz respeito a valores profundos envolvendo a coletividade, a horizontalidade entre pessoas e, no contexto educativo, incorre também numa liberdade de movimentação e de expressão corporal.

Nas Pedagogias Tradicionais em Dança, prevalece o conteudismo transmissivo ao passo que, nas chamadas Pedagogias Decoloniais, somos convidados a nos centrar em visões de mundo e de ensino-aprendizagem não hegemônicas em nossos contextos. “Na educação indígena, as lições são para dar sentido ao mundo, a partir da ancestralidade e da relação com o território, e a identidade [...] (BALDI, 2023, p.31). Saberes anônimos e transmitidos por comunidades podem ser fontes de uma possível perspectiva para Pedagogias Decoloniais em Dança, na medida em que ela também se nutra, com reverência e sem o ato violento de apropriação cultural, de saberes dos povos originários e escravizados. O universo das Pedagogias Decoloniais se relaciona com esforços de transgredir e subverter a colonialidade no ensino-aprendizagem de Dança, reconhecendo a permanência de valores que resistiram ao processo de colonização ou que sejam anteriores a ele (BALDI, 2023). Nesses espaços formativos, trabalha-se conscientemente com o ensino e as estéticas de dança através de correlações de forças entre saberes e poderes.

A noção de decolonialidade a que nos referimos diz respeito a uma perspectiva teórica e filosófica composta por um conjunto de estudos realizados a partir da década de 1990 e que retomam uma série de problemáticas históricas, anteriormente consideradas encerradas e por meio da qual se articulam produções acadêmicas, científicas, artísticas e de movimentos sociais (QUINTERO; FIGUEIRA, ELIZALDI, 2019). Elas relacionam criticamente o projeto epistemológico da modernidade e a colonização na América Latina, bem como a crítica ao eurocentrismo (QUINTERO; FIGUEIRA, ELIZALDI, 2019). A perspectiva decolonial questiona a assimetria de poder entre países estabelecida na era moderna, especialmente quanto à gestão de formas de trabalho e de produção do pensamento como meios de controle da intersubjetividade. Essa perspectiva teórica e filosófica questiona, portanto, a subalternização dos povos originários do continente americano, assim como a forçada diáspora de povos africanos que integrou esse mesmo processo histórico. A colonialidade, aqui, pode ser entendida como a imposição de um padrão de sociedade e de poder político, com implicações diretas no pensamento estético e na produção artística. No caso da área de Dança, tal perspectiva passa pelo reconhecimento das muitas danças que fazem o Brasil.

A perspectiva decolonial na criação e produção em dança abarca, portanto, diferentes problematizações da colonialidade de saberes e de produção da subjetividade, tais como: a) questionamento do eurocentrismo por meio da emergência de outras poéticas do corpo e da cena; b) questionamento da racionalidade moderna, que nesse caso se identifica com a produção de hegemonias de padrões estéticos corporais e de dança; c) questionamento da apropriação cultural dos povos subjugados e desconsiderados como produtores de arte e cultura , mas muitas vezes estilizados em cena; d) reconsiderar as questões raciais e de gênero na produção e no ensino-aprendizagem de dança, uma vez que a racionalidade moderna colonial hegemonizou a tipologia “homem branco”, em contraposição a todas as demais configurações de gênero e étnico-raciais.

Podemos significar a perspectiva decolonial por meio da recuperação da memória sobre artistas, grupos e coletivos brasileiros que nem sempre se configuraram como mainstream. Falar desta pesquisa enquanto esforço de recuperação das fontes de saber e de corporalidades denota objetivos investigativos relacionados à redescoberta das matrizes culturais indígenas e negras, configurando-se desta maneira uma redescoberta epistêmica. Compreendemos tal requalificação como valorização de outras formas de pensar que não o cogito cartesiano (QUINTERO; FIGUEIRA; ELIZALDI, 2019). Debater a perspectiva de uma Pedagogia Decolonial em Dança envolve, ainda, o reconhecimento de que, no pensamento colonial, vários corpos foram invisibilizados e a eles foi imposta a condição de minoria. É assim com as danças e cantos dos povos originários ameríndios e dos escravos africanos, de pessoas LGBTT e pessoas com deficiência.

Mergulhar no pensamento decolonial, conforme Rufino (2016) significa desestabilizar padrões do pensamento epistemológico moderno, já que nas culturas afrocentradas e indígenas não se seccionam corpo e mente, agir e pensar. Expressões e verbos utilizados por Rufino (2016) para provocar a reflexão sobre esse processo: problematizar, incomodar, deixar que seja inacabado, permitir o conflito como parte da criação artística. Buscar desconstruir hierarquias também. Não há prescrição na perspectiva filosófica decolonial e suas respectivas poéticas. Outra questão é também construir possibilidades de investigação e criação, nas quais o encontro de saberes do corpo seja efetivamente potência de ligação. Isso é: o encontro artístico entre saberes dançados e expressos em corporalidades também é, potencialmente, uma problematização sobre questões envolvendo o racismo, a diáspora africana, a dizimação indígena e a contínua luta pela resistência desses povos.

Aqui, vale considerar o conceito de ecologia de saberes conforme Sodré (2014, p.01), “uma ecologia de saberes consiste no entrelaçamento de todas as fontes possíveis de conhecimento (desde os saberes ágrafos aos escritos) em função do aperfeiçoamento pedagógico das comunidades”. De acordo com o pensador, educar o sensível significa incluir as modalidades do jogo, das artes, ou seja, a sensibilização dos seres humanos para com o diverso. Os movimentos que aprendemos a dançar são também manifestações do ethos. Nesse sentido, pode haver grandes significados entre ensinar e aprender dança promovendo encantamentos conjuntos: pisar, esquivar, gingar, dissimular, seduzir e negar (RUFINO, 2016). Compreendemos que a Pedagogia Decolonial em Dança também se orienta no sentido de uma reeducação antirracista. Também a produção em dança, assim como ato pedagógico, pode vir a ser pensada como um ato de resistência e transgressão. Construir uma perspectiva decolonial na dança envolve, portanto, problematizar as nossas heranças coloniais. E também o respeito ao que é sagrado: nem tudo pode ser apropriado e traduzido em performance cênica, porque tem significação máxima para o outro.

3.3 O ser brincante e a roda no espaço escolar

Devido à natureza performativa e festiva da roda, o carimbó também nos conduziu a reflexões sobre modelos de inclusão do corpo no espaço escolar por meio de trincheiras, ou zonas de não passividade. A roda demonstrou formas simples de se cultivar o comprometimento, pois exigiu de todos os presentes esforços para a manutenção do espaço de dança, além de permitir a horizontalidade entre crianças e adultos. Na roda de carimbó, por meio da alegria, faz-se a integração de corpos. Nos alinhamentos circulares, professoras e professores podem comunicar, com mais facilidade, sua intenção de não de ser o centro do processo de ensino-aprendizagem. Nessa forma, movente e relacional por natureza, todos os presentes são potencialmente agentes protagonistas da educação. As hierarquias se enfraquecem quanto o contato é feito diretamente, olhos nos olhos e compartilhando o suor. A roda está em constante movimento e, portanto, em mudança de foco. Essa situação prática convida ao contato com a dança carimbó muito além da sua concepção enquanto repertório, produto de dança.

A partir do contato com a profundidade dos saberes que a experiência em Dança pode trazer, o seu ensino-aprendizagem passa a ter significados no entrelugar entre pesquisa e vivência. A roda, referência aos elementos festivos contidos na gênese do carimbó reforça, dizemos com Huertas (2014), a dimensão coletiva e anônima em que se insere esse bem cultural. Na roda, quem dança é o público. Por consequência, podemos considera-la como um possível caminho para se rememorar a condição celebrativa do carimbó de raiz/rural. Tal aspecto festivo também contribui no quesito engajamento da totalidade da turma, que foi o norte do objetivo central da ação interdisciplinar de Dança e de Educação Física: uma roda de carimbó em que todas as crianças participassem e fossem ativas no sentido de se divertir e de incluir ouras pessoas na experiência dançante.

Assim como as dançarinas e dançarinos das manifestações tradicionais do carimbó podem ser considerados brincantes (COSTA; OLIVEIRA, 2022) as pessoas educandas se portam na escola como dançarinos brincantes. Devido a este fato, a realização de uma roda de dança de carimbó se significa com um espaço relacional, em que as pesquisas e a experiência em dança, pelas crianças, se transformem numa experiência capaz também de acolher a comunidade participante.

O que na rotina corporal é vivido inconscientemente torna-se uma percepção consciente à medida que se conserva uma atitude de atenção aos movimentos. A atenção ao próprio corpo instaura a percepção do tempo presente não apenas naquele que dança, mas naquele que assiste à dança” (MILLER, 2012, p.140).

A despeito das muitas variações da dança do carimbó, podemos considerar, dentre seus elementos básicos, juntamente com estrutura circular, a organização em pares com ou sem contato físico ou, ainda, a improvisação individual. Esses elementos permitem compreender, na dança carimbó, as interferências das danças sociais, bem como das festividades indígenas e afrocentradas. Tal proposta distingue-se de um estudo prático de dança focado na transmissão de movimentos, que conforme Baldi (2023) podemos associar à pedagogia tradicional da Dança. Também se distingue da pesquisa para a projeção parafolclórica, devido ao foco no estudo da dança enquanto patrimônio cultural. A partir dos procedimentos metodológicos das sequências didáticas já elencados, podemos caracterizar as chamadas Pedagogias Decoloniais em Dança como de cariz relacional e não diretivo, pois nessas a ênfase está nas relações construídas nos espaços de ensino-aprendizagem e as educandas e educandos são tidos como centros do conhecimento (BALDI, 2023)

A abordagem do ensino-aprendizagem de Dança por meio de pesquisa formal e orientada no reconhecimento de dança como patrimônio enfatizou, conscientemente, o entendimento pelas educandas e educandos de que os agentes da dança carimbó na escola se distinguem totalmente dos agentes portadores da tradição. Por outro lado, também se valorizou o conhecimento prévio das crianças no que diz respeito à condição própria desta etapa da vida, as poéticas brincantes. Algumas, por exemplo, associaram a sua prática de dança então em andamento a outras já realizadas no contexto escolar. Outras relataram conhecer a cidade de Belém do Pará, o que conheceram e o que se lembravam de lá. Houve também quem revelou descender de paraenses, embora não conhecessem em detalhes o carimbó. Foram diversos os pontos de partida para o engajamento no projeto.

Esse dançar na escola diz respeito ao desenvolvimento de saberes curriculares por educandas, educandos e professoras, relacionados às suas vivências, preservando o caráter brincante. Nesta perspectiva, inserir qualquer prática de Dança no currículo consiste em ato de pesquisa e de experimentação, seja pelo conhecimento da manifestação artística a partir do recorte dos contextos culturais ou enquanto inspiração para diferentes formas de se movimentar. Tal experiência pede a educandas, educandos, educadoras e educadores o desenvolvimento da consciência de sua presença na escola enquanto corpos moventes. Assim, os espaços curriculares gerados pela vivência brincante e pesquisadora em Dança, mais do que cumprimento de ementas prescritas, orientam-se pela emergência de novos saberes. No caso do carimbó, esse ato cognoscente se refere à busca consciente por estar na companhia das matrizes de pensamento afrocentradas e ameríndias.

Ao longo da experiência com o projeto “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável”, chegou-se à conclusão de que o empreendimento de uma Pedagogia Decolonial em Dança pode ter reverberações para fora do espaço escolar, produzindo um saudável movimento de integração das famílias e da comunidade com os saberes relacionados à produção curricular. Algumas crianças chegaram a verbalizar que o mais relevante da experiência foi a culminância do projeto, pelo fato de poderem dançar junto com os seus familiares e assim compartilharem parte dos seus aprendizados escolares com os parentes. Também gostaríamos de destacar o fato de como a abordagem curricular influencia e educa em cadeia, interferindo não apenas na vida da criança que está todos os dias na escola. Entre os feedbacks, salientamos o de uma família de origem paraense, mas cuja criança desconhecia a existência da dança carimbó, pois os seus parentes estavam há muito radicados em Boa Vista. O mergulho dessa criança na sua cultura ancestral levou toda a sua família a aprender um pouco sobre a manifestação cultural. O processo de feitura da saia também teve repercussões. Uma vez estabelecida a identidade com a dança, a vestimenta feita para a menina virou objeto de desejo entre outras mulheres daquele núcleo, conforme relato do pai da estudante.

Outro ponto de recorte desta experiência de dançar na escola é que a pesquisa escrita, de fontes documentais e de imagens, ainda que orientada pela valorização das poéticas brincantes na vivência de artística, distingue-se por completo da transmissão por oralidade, traço marcante nas comunidades tradicionais e nos grupos de raiz. Reafirma-se, deste modo, que

integrar a diversidade cultural nacional não é apropriar-se das formas exóticas regionais. É procurar entender o imaginário e os valores de cada manifestação cultural, dentro do seu contexto particular, aprender outras possíveis soluções, estabelecer uma relação dialética entre a tradição e a inovação, a assimilação do “outro” com transformação e a manutenção de valores permanentes, criando novas relações estéticas e enriquecendo, assim, o nosso patrimônio (ROBATTO, 2012, p. 53).

Ao dançarem o carimbó em público, estas crianças colocaram em dinamismo os seus conhecimentos por meio da interação com seus pais, mães, demais familiares e amigos. A copresença das pessoas que elas amam em suas danças tornou ainda mais afetiva a experiência de construção do conhecimento. Esta abordagem curricular prevê a condição pesquisadora das pessoas educandas, assim como da/do professor, o qual reflete a pesquisa continuamente no seu fazer (BALDI, 2023). E o afeto é um elemento fundamental da estruturação da Dança como componente curricular da educação formal, exatamente por permitir falar de práticas docentes e de processos de ensino-aprendizagem abertos à experiência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O projeto “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável” partiu do princípio de que o desenvolvimento curricular interdisciplinar pode contribuir para o desenvolvimento sustentável, uma vez que a abordagem abrangente e holística dos desafios ambientais, sociais e econômicos pode relacionar diretamente os conteúdos curriculares com os desafios enfrentados pela sociedade. A abordagem, conforme os ODS, levou à condução de que os estudantes se sentissem estimulados a pensar de forma crítica, desenvolvendo soluções criativas e colaborativas no enfrentamento dos desafios globais. Adotamos a dança carimbó como um ponto de partida para a abordagem de questões sociais e ambientais relacionadas ao desenvolvimento sustentável, sobretudo, mantendo a perspectiva de que se trata de um patrimônio cultural imaterial brasileiro. E preservar o patrimônio significa também preservar o reconhecimento das suas origens. O reconhecimento do carimbó enquanto patrimônio contou, especialmente, com a aproximação afetiva dessa dança pelas crianças, além da descoberta dessa manifestação como uma resistência afro-ameríndia. Para além de um tradicional Pedagogia de Dança, reconhecemos na memória do carimbó, nos seus elementos festivos e nas influências recebidas da cosmovisão indígena e negra, caminhos para uma possíveis Pedagogias Decoloniais em Dança.

REFERÊNCIAS

BALDI, Neila. Pedagogias da Dança. Santa Maria: Editora da Universidade Federal de Santa Maria, 2023.

BRASIL. Lei nº 9394/96, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília: MEC, 1996.

BOURDIEU, Pierre. O camponês e seu corpo. Revista de Sociologia e política, 26, p. 83-92, 2006.

COSTA, Elyane Lobão; OLIVEIRA, Vânia Dolores Estevam. As performatividades das indumentárias do carimbó. Revista Anômalas, v. 2, n. 1, p. 109-123, 2022.

GIROTTO, Cyntia Graziella Guizelim Simões. A (re)significação do ensinar-e-aprender: a pedagogia de projetos em contexto. Núcleos de Ensino da Unesp, v. 1, n. 1, p. 87-106, 2005.

HUERTAS, Bruna Muriel. O carimbó: cultura tradicional paraense, patrimônio imaterial do Brasil. Revista cpc, n. 18, p. 81-105, 2014.

IPHAN. Dossiê do Carimbó. Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC). Ministério da Cultura, 2014. Disponível em: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossi%C3%AA%20de%20Registro%20Carimb%C3%B3(1).pdf. Acesso em 24 set. 2023.

LE BRETON, David. A sociologia do Corpo. Tradução de Sonia Fuhrmann. 6ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes,2012.

MILLER, Jussara. Qual é o corpo que dança? São Paulo: Summus, 2012.

ONU, ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS BRASIL. Objetivos do Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://www.unicef.org/brazil/objetivos-de-desenvolvimento-sustentável. Acesso em: 23 ago. 2023.

QUINTERO, Pablo; FIGUEIRA, Patrícia; ELIZALDE, Paz Concha. Uma breve história dos estudos decoloniais. São Paulo: MASP Afterall, 2019.

ROBATTO, Lia. A dança como via privilegiada de educação. Salvador: Editora Edufba, 2012.

RUFINO, Luiz. Performances Afro-diaspóricas e Descolonialidade: o saber corporal a partir de Exu e suas encruzilhadas. Antropolítica-Revista Contemporânea de Antropologia, v. 1, n. 40, p. p.54-80, 2016.

SALLES, Vicente; SALLES, Marena Isdebski. Carimbó: trabalho e lazer do caboclo. Revista Brasileira de Folclore. Rio de Janeiro: CDFB/MEC, v. 9, n.25, p. 257-282, 1969.

SODRÉ, Muniz. Entrevista à Revista Rizoma. Concedida a Fabiana Piccinin. 3 páginas. Disponível em: https://online.unisc.br/seer/index.php/rizoma/article/view/4619. Acesso em 02 jan. 2022.

TV BRASIL. Caminhos da reportagem: nas batidas do carimbó. Vídeo publicado em 23 ago. 2022. Reportagem de Aline Beckstein, edição de texto de Luciana Góes e edição de imagem de Eric Gusmão. Arquivo digital, cor, 25 min. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jDg0NZ7poWA. Acesso em 29 out. 2023.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo; SEEGER, Anthony; DA MATTA, Roberto. A construção da pessoa nas sociedades indígenas brasileiras. In: OLIVEIRA FILHO, João Pacheco de. Sociedades indígenas e indigenismo no Brasil. Rio de Janeiro: Marco Zero/UFRJ, 1979. p.11-30.

Notas

[1] Nossos agradecimentos às pedagogas Raquel Batista Oliveira e Juliana Cristina Souza com as quais assinamos coletivamente o projeto “Carimbó, cultura regional e desenvolvimento sustentável” e também coletivamente orientamos as crianças na construção de um ambiente para apresentação dos resultados do projeto na edição 2023 da Feira de Ciências do CAp-UFRR. Agradecemos também ao professor de Música Alexander Antony de Oliveira e ao Programa Residência Pedagógica (Capes/UFRR), por meio do qual atuaram os acadêmicos Elyan Silva Santos, Fábio Rafael Cavalcante dos Santos e Matheus Kalio de Oliveira Nascimento, responsáveis pela execução musical para a apresentação de carimbó pelas crianças.
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