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CURRÍCULOS, HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E INFÂNCIAS: movimentos aprendentes que dão língua aos afetos que pedem passagem
CURRICULA, COMIC BOOKS AND CHILDHOODS: learning movements that give language to the affections that ask for passage
CURRÍCULOS, CÓMICS E INFANCIAS: movimientos de aprendizaje que dan lenguaje a los afectos que piden passo
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidad: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 3, 2023
Recepción: 31 Octubre 2023
Aprobación: 24 Noviembre 2023
Resumen: Afirma la fuerza del encuentro entre currículos, historietas e infancia para potenciar movimientos de aprendizaje que abren otras posibilidades para pensar y vivir la Educación. Se presenta como un campo problemático: ¿qué efectos produce el encuentro de los niños con las historietas, instigando movimientos de pensamiento, aprendizaje y movimientos inventivos “dando lenguaje a los afectos que piden paso”? ¿Cómo invitan los cómics a los niños a crear historias, provocando que otros planes de estudio adopten movimientos de aprendizaje inventivo? Utiliza la cartografía como metodología de investigación, siguiendo los encuentros de niños de dos clases de 4to año de una escuela pública municipal con los signos, vibraciones, intensidades, inventos y experimentos, en definitiva, las composiciones basadas en la vida que palpita en las rutinas escolares. . Sostiene que el encuentro con las historietas puede obligar a pensar en diferentes procesos de creación de aprendizaje-enseñanza, en movimientos inventivos que fabulan otros currículos, otras enseñanzas, otras estéticas, otras formas de vida posibles. En conclusión, señala que el encuentro con los cómics puede: invitar a los niños a crear historias, suscitando conversaciones, preguntas y la creación de otros mundos; y mejorar los planes de estudio y la enseñanza en los movimientos de aprendizaje, cambiando sus significados, significados y resignificaciones, afirmando la vida en su poder.
Palabras clave: Currículus, Cómics, Movimientos de aprendizaje.
Resumo: O artigo afirma a força do encontro entre currículos, histórias em quadrinhos e infâncias para potencializar os movimentos aprendentes que abrem outros possíveis para pensar e viver a Educação. Problematiza os efeitos que o encontro das crianças com as histórias em quadrinhos produz, instigando movimentos do pensamento, movimentos aprendentes e inventivos “[...] dando língua aos afetos que pedem passagem”, além de questionar o modo como as histórias em quadrinhos convocam as crianças à fabulação, provocando outros currículos em movimentos aprendentes inventivos. Utiliza a cartografia como metodologia de pesquisa, acompanhando, nos encontros das crianças de duas turmas de 4º anos de uma escola pública municipal com os signos, vibrações, intensidades, invenções e experimentações, enfim, composições a partir da vida que pulsa nos cotidianos escolares. Tal encontro pode forçar o pensamento em diferentes processos de criação do aprenderensinar, em movimentos inventivos que fabulam outros currículos, outras docências, outras estéticas, outros possíveis de vida. Aponta que o encontro com as histórias em quadrinhos pode convocar as crianças à fabulação, instigando conversas, indagações e criação de mundos outros; pode potencializar os currículos e as docências em movimentos aprendentes, deslocando sentidos, significações e ressignificações, afirmando a vida em sua potência.
Palavras-chave: Currículos, Histórias em quadrinhos, Movimentos aprendentes.
Abstract: Affirms the strength of the encounter between curricula, comic books and childhood to enhance learning movements that open other possibilities for thinking and living Education. It presents as a problematic field: what effects do children's encounter with comic books produce, instigating movements of thought, learning and inventive movements “giving language to the affections that ask for passage”? How do comic books invite children to create stories, provoking other curricula into inventive learning movements? It uses cartography as a research methodology, following the meetings of children from two 4th year classes at a municipal public school with the signs, vibrations, intensities, inventions, and experiments, in short, the compositions based on the life that pulsates in school routines. It argues that the encounter with comic books can force thinking in different processes of creating learning-teaching, in inventive movements that fable other curricula, other teachings, other aesthetics, other possible ways of life. In conclusion, it points out that encountering comic books can: invite children to create stories, instigating conversations, questions, and the creation of other worlds; and enhance curricula and teaching in learning movements, shifting their meanings, meanings, and resignifications, affirming life in its power.
Keywords: Curricula, Comics, Learning movements.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo foi sendo delineado em um processo de experimentação, em meio ao que tem nos afetado, atravessado, potencializado e está impregnado em nós... São movimentos pulsantes engendrados pelos encontros que compõem uma pesquisa-experimentação realizada em duas turmas de 4º ano de uma escola pública. Como compromisso ético-estético-político de afirmar a vida em sua multiplicidade, entendemos que uma pesquisa-experimentação-escrita é composição, é agenciamento com muitos, nomináveis e inomináveis. É um espaço de encontros, desencontros, intensidades, arroubos, irrupções, dissonâncias e, por isso, é espaço de vida. Somos multiplicidades... E, nessa composição, uma pesquisa-experimentação-escrita “[...] é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-se, e que extravasa qualquer matéria vivível ou vivida. É um processo, ou seja, uma passagem de Vida que atravessa o vivível e o vivido” (DELEUZE,1997, p. 11).
Pesquisamos-experimentamos-escrevemos a partir dos (des)territórios pelos quais habitamos, passamos e deixamos passar, pelas redes que criamos, pelos acontecimentos, agenciamentos, daquilo que nos faz fabular, desmanchando mundos e criando outros possíveis a partir dos encontros com o outro, com os signos, com as infâncias, com as histórias em quadrinhos, com os currículos que pulsam nos cotidianos da escola. Pesquisamos-experimentamos-escrevemos a partir da experiência de vida na/da/com a escola que nos atravessa, nos passa, nos movimenta e nos transforma; das relações que potencializam e engendram movimentos, fabulações, lembranças e vivências nos corredores, no pátio, na quadra, no refeitório, em todos os espaçostempos[1] cotidianos da escola.
Habitamos o território-escola como professoras e pesquisadoras e aprendentes e, no encontro com as crianças, experienciamos a vida que pulsa nos seus cotidianos. Assim, este artigo compõe uma vida que tem sido tecida junto a uma pesquisa, que afirma a força dos encontros: crianças, histórias em quadrinhos, currículos, movimentos aprendentes que dão língua aos afetos que pedem passagem (ROLNIK, 2016, p. 23).
Somos atravessadas pelos efeitos que as infâncias — no encontro com as histórias em quadrinhos — produzem nos movimentos aprendentes, nos movimentos curriculares, nas docências. Algo que nos instiga, nos provoca e nos impulsiona é compor com as infâncias movimentos inventivos, outros mundos possíveis para fazer jorrar a vida que pulsa e produz afetos, afecções, fabulações, indagações, escutas e diálogos instigados a partir dos encontros das crianças com as histórias em quadrinhos.
Em meio a esses movimentos, apresentamos, como campo problemático desta pesquisa-experimentação-escrita as seguintes indagações: que efeitos o encontro das crianças com as histórias em quadrinhos produz, instigando movimentos do pensamento, movimentos aprendentes e inventivos “dando língua aos afetos que pedem passagem”? De que maneira as histórias em quadrinhos convocam as crianças à fabulação provocando outros currículos em movimentos aprendentes inventivos? Argumentamos que o encontro com as histórias em quadrinhos pode forçar o pensamento em diferentes processos de criação do aprenderensinar, em movimentos inventivos que fabulam outros currículos, outras docências, outras estéticas, outros possíveis de vida.
Utilizamos a cartografia como metodologia de pesquisa, pois objetivamos deixar-nos guiar pelos afetos e pelas afecções, sem percursos padronizados, sem categorizações para abrir-nos às experimentações, às criações e às produções de sentidos com as crianças. Procuramos, nos encontros com as crianças e os signos, vibrações, intensidades, invenções, experimentações para cartografar as composições a partir da vida que pulsa nos cotidianos escolares.
Nesse percurso cartográfico com as crianças, buscamos acompanhar os efeitos que as histórias em quadrinhos provocam convocando as crianças à fabulação e instigando conversas, indagações e criação de mundos outros; acompanhar os percursos aprendentes, seus sentidos, suas significações e ressignificações, seus deslocamentos e emaranhados, que são produzidos com as crianças, assim como, também, propiciar experiências estéticas na criação de histórias em quadrinhos.
Não tivemos o interesse em procurar aquilo que já está dado, em focar nas normas linguísticas padronizadas, mas percorrer os trajetos feitos pelas crianças em suas significações, encontrando o que se produz em meio à formação de subjetividades. Nossa intenção foi entrar em relação com o devir-criança, mergulhar nas experimentações, nas linguagens crianceiras, embarcar em mundos outros fabulados pelas crianças, abrindo outros possíveis para pensar e viver a alegria em Educação (CORAZZA, 2013, p. 19).
2 CARTOGRAFIA COMO MOVIMENTO DE CRIAÇÃO DE MUNDOS
A potência provocada na criação de uma história em quadrinhos leva-nos a problematizar as enunciações infantis produzidas pelas afecções surgidas a partir dos encontros com esse signo em sua multiplicidade. As crianças falam não apenas usando a linguagem oral, mas com seus desenhos e suas narrativas, criados para as histórias em quadrinhos, e apresentam ao mundo seus anseios, afetos e suas afecções na constituição de outros/novos sentidos para os currículos, as infâncias e as aprendências.
Nesse processo de pesquisa-experimentação-escrita, tivemos o interesse em acompanhar os movimentos inventivos, criados a partir das produções diferenciais das crianças, pensando a infância como potência para nos distanciarmos de uma certa linearidade, e abrirmo-nos às suas fabulações e à produção de sentidos. Assim, essa escrita convida a acompanhar as produções crianceiras, engendradas nos signos artísticos, em meio aos atravessamentos tecidos junto aos agenciamentos coletivos de enunciação.
No percurso metodológico, procuramos acompanhar as produções curriculares inventivas experienciadas junto às crianças na relação com as histórias em quadrinhos. A cartografia como metodologia, diferente das ideias de representações cartográficas que associamos aos conteúdos geográficos, tem o interesse em arriscar-se pelos caminhos experimentados nos encontros tecidos em meio às redes educativas, lançando-se ao desconhecido, permitindo-se vivenciar os voos e trajetos curvos junto aos afetos e às afecções.
Almejamos cartografar as invenções das crianças nos movimentos de agenciamentos curriculares que se criam nos cotidianos escolares, quando são expostas às provocações dos signos artísticos. Com isso, não buscamos respostas prontas ou definitivas para aquilo que nos movimenta, nos indaga, nos violenta e nos inquieta, mas interessa-nos pensar e apostar em outros possíveis. Procuramos, nos/com os questionamentos, tensionar as redes de conversações que se tecem em meios aos processos aprendentes, que nos provocam e rasgam a nossa linearidade, que subvertem as lógicas e se imbuem das subjetividades crianceiras e seus atravessamentos.
Diante disso, quando apostamos na cartografia como método de pesquisa, objetivamos trilhar caminhos outros, percorrendo as múltiplas camadas e as variadas conexões que compõem os territórios complexos e movediços que permeiam a escola e a vida. Não vamos coletar dados pelo trajeto, seguimos em busca das trilhas, dos rastros para compor a pesquisa-experimentação-escrita e almejamos fabular enquanto cartografamos. Pensamos as crianças a partir da afirmação da diferença e compomos com elas, pois elas são cartógrafas:
Cartógrafas porque exploram os meios das aulas, escolas, parques; fazem trajetos dinâmicos pelas vizinhanças das ruas, campos, animais; traçam mapas virtuais dos currículos, projetos político-pedagógicos, em extensão e intensão, os quais remetem uns aos outros; e que elas superpõem aos mapas reais, cujos percursos, então, são transformados (CORAZZA, 2013, p. 20).
Assim, queremos, junto às crianças, criar outros modos de aprenderensinar, em movimentos de experimentação para fazer irromper mapas, percursos, aberturas, rasuras... Outros currículos, outras docências... Fabular... Um barco a navegar... Uma criança a fabular (Imagem 1):
As crianças experimentam a realidade a partir de suas fabulações, elas transitam entre os mundos, criando conexões inimagináveis e dando sentido, língua, vida, pulsão aos seus devaneios fabuladores. E dessa maneira, seguimos pensando a partir de infâncias e currículos que nos afetam, fazendo assim um movimento outro de pensar a vida, pois, como diz Corazza (2013, p. 187), “[...] ao formar uma imagem de infância e de currículo, ou ao deslocar-se dramaticamente de uma à outra, cada pesquisador começa a pensar de novo; isto é, volta a formular o que seja pensar a infância e o currículo”.
Seguimos repensando nossas imagens, até porque “[...] a imagem não é só trajeto, mas devir” (DELEUZE, 1997, p.77), um devir que percorre as páginas a partir das calhas[2], pulando de cena em cena, abrindo espaço para novas indagações, questões, enunciações. As crianças se mostram assim fabulando a partir dos afetos, das enunciações, compondo com seus atravessamentos e com o mundo que os cerca das mais variadas maneiras. Seus espaços de fabulação e de vida são tão complexos e rizomáticos que, ao adentrar esse espaço, não se sabe mais responder o que é e o que se tornou. “À sua maneira, a arte diz o que dizem as crianças. Ela é feita de trajetos e devires, por isso faz mapas, extensivos e intensivos (DELEUZE, 1997, p.78)”. As histórias em quadrinhos podem ser como os mapas em Deleuze; elas remetem a trilhas, caminhos, percursos, fabulações, devires e, quando as crianças entram em relação a elas, no encontro com o signo artístico, elas se abrem ao devir.
Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de devir, e através das quais devimos. ‘É nesse sentido que o devir é o processo do desejo’ (DELEUZE, 1997, p. 64).
O devir abre caminhos para a fabulação, engendra caminhos, linhas, fluxos que se dividem, bifurcam e experimentam outras formas. As crianças estão em um constante movimento de fabulação com o devir. Concordamos com Paoliello (2016, p. 48), segundo a qual “[...] a criança é a própria invenção. Pode muito mais a criança na sua potência inventiva e criadora que a criança em sua despotencialização escolarizada, aprisionada, tratada nos moldes e modelos professorais”.
Nossa pesquisa-experimentação-escrita, então, objetiva compor com esse devir-criança em sua potência inventiva e criadora, pois “[...] inventar é da ordem do devir” (LINS, 2009, p. 14) e, assim, intentamos experienciar juntos os movimentos de potência de vida para destacar as situações em que a vida escapa, pulsa e flui... E se abre à fabulação, à artistagem (CORAZZA, 2013), aos bons encontros que produzem currículos inventivos em sua relação com os signos das histórias em quadrinhos.
3 CURRÍCULOS INVENTIVOS PRODUZIDOS NO ENCONTRO COM OS SIGNOS DAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS
Ao criar uma história em quadrinhos, as crianças inventam com as complexas conexões entre a escola e seus processos de subjetivação. Há um encontro que produz afetos/afecções e movimenta o pensamento. Para Zourabichvili (2016, p. 71), “[...] um encontro é um afeto, ou, dito de outro modo, um signo que põe em comunicação os pontos de vista e os torna sensíveis enquanto pontos de vista. O signo força o pensamento, conecta-o com novas forças”. Esse encontro entre as crianças e as histórias em quadrinhos oferece a possibilidade de fabular, pois produz uma violência ao afetar e ser afetado e convoca o pensamento a se movimentar.
O pensamento é estimulado pelo fora, pelos signos que, em sua violência atravessam os corpos e o território-escola com sua força avassaladora, e muitas vezes chegam sem a menor pretensão daquele que é impactado. Para Deleuze (2003), é o encontro com o signo que força o pensamento e “[...] provoca uma ruptura, uma quebra, uma brecha, um deslocamento, forçando, impelindo e engendrando a experimentação de um novo pensamento, um novo percurso, um novo traço” (DELBONI; MELO; 2022, p. 313).
O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro; mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento (DELEUZE, 2003, p. 91).
Acompanhamos os movimentos no território-escola, com as crianças em sua relação com as histórias em quadrinhos, seja nos momentos de criação do desenho, seja nos momentos de leitura e observação de diferentes histórias, a fim de cartografar a força que desloca o pensamento e assim transforma uma história em quadrinhos em um signo.
As crianças vibram e fazem vibrar o cotidiano, são praticantes nesse território que é a escola. Nós, então, procuramos acompanhar a potência das crianças em suas enunciações, suas produções em meio às experimentações e criações com as histórias em quadrinhos. Inspiradas por Corazza e Tadeu (2003), intentamos compor com elas, com as histórias em quadrinhos e com a fabulação um “currículo-problemático”:
Verdadeiro currículo-aprendizado, formula o problema do aprender e opera como uma experiência de problematização, que não fornece condições empíricas do saber, não faz uma transição ou prepara passagens do saber ao não-saber, nem é solução para uma falta de saber, nada tem a ver com a correta aplicação de um método, nem com perguntas sobre a verdade ou a essência das coisas, mas que só aprende a partir de um encontro com os signos, os quais deve decifrar e interpretar, e que o forçam, constrangem, obrigam a pensar e a inventar problemas, realizando, assim, uma aprendizagem de novidades sempre imprevisíveis, envolvendo a transposição de todos os limites, levando todos os seus viventes a não reconhecerem mais nada do que até então conheciam, impedindo-os de pensar e como antes e de prosseguir sendo os mesmos (CORAZZA; TADEU, 2003, p. 27-28).
Um “currículo-problemático” (CORAZZA; TADEU, 2003) é uma experiência que violenta o pensamento. E do pensamento vêm a potência e o poder de criação. O pensamento carrega a força da afirmação da diferença, o pensamento em sua potência escapa das normatividades e vai ao encontro das aprendizagens inventivas. Diante disso, Deleuze (2003) considera que, para chegar a um movimento de aprendizagem, é preciso que algo force o pensamento, o abale e o arraste numa busca, provocando um encontro no qual o pensamento seja colocado em movimento para produzir a diferença. Segundo o autor, os signos artísticos são aqueles que possibilitam o pensar, produzem diferença e despertam sentidos e aprendizagens nos encontros.
Assim, entendemos as histórias em quadrinhos como um dos signos da arte que pode ser força inventiva de pensamento, movimentando sentidos outros e criando outras materialidades. As histórias em quadrinhos possibilitam a criação de mundos outros, mundos (con)fabulados (GONÇALVES, 2019) pelas crianças em suas experiências crianceiras, onde criação e realidade podem coexistir sem distinção. Em meio às histórias em quadrinhos, buscamos encontrar conexões inventadas, (con)versações crianceiras, movimentos de (re)criação, movimentos de resistências entre as linhas de fuga que permeiam os signos artísticos. A partir das relações, dos afetos e das afecções, compartilhados mediante os processos de criação, é possível perceber a produção de currículos inventivos que acontece em meio às criações cotidianas das crianças.
Encontrar outros sentidos de vida a partir de movimentos, sensações e fabulações experienciados por meio dos encontros com os signos proporciona conexões que se embrenham junto às crianças e junto a nós. Saímos dos habituais processos de aprendizagem dicotômicos de “ensinar e aprender” que estão presentes na maior parte do tempo nas escolas em seus processos de aprendizagens tradicionais de controle em que alguém detém o poder e ensina, e outro apenas “retém” passivamente.
Tais processos se baseiam no pensamento cartesiano, que desacredita e descredibiliza a potência da infância, silenciando seu tempo presente, suas fabulações e priorizando a sua formação futura como adultos que elas serão. Dessa maneira, as crianças são ensinadas de forma repetitiva, tendo um caminho traçado a priori, para atingir o que é considerado ideal, de uma única forma. Esses mapas de infância padronizam os percursos como se todas as crianças fossem iguais, aprendessem da mesma maneira e interagissem com o mundo da mesma forma; como se todas as crianças produzissem os mesmos conhecimentos, a partir das mesmas linguagens.
Movimentos aprendentes com os signos brotam a partir dos encontros, das relações e das conexões entre os sujeitos e o mundo que os cerca, gerando processos de reinvenção, problematização e afecção. A partir do encontro com o outro, com o signo e com o mundo, há a possibilidade de movimentar o pensamento, de fabular e reinventar outros possíveis.
Os encontros com os signos artísticos provocam as crianças, pois irrompem os muros que cercam o espaço-escola: são músicas, cheiros, paisagens e encontros que acontecem no pátio, no refeitório, nos corredores, pelas cercas que circundam o espaço-escola e estão na sala de aula. Os encontros irrompem a partir das histórias em quadrinhos e de todas as possibilidades de pensar sobre esse e outros signos artísticos. Dessa maneira, os signos artísticos se constituem como disparadores de novos movimentos aprendentes, despertam práticas de linguagens crianceiras, escapam dos planos lineares de aprendizagem do sistema de escrita e se formam como potência para a produção de um “currículo-aprendente” (CORAZZA, 2013, p. 31). Afinal não se sabe ao certo como alguém pode aprender, mas a arte do encontro propicia experiências que movimentam o pensamento e despertam aprendizagens.
Com outros signos artísticos que intentam violentar, provocar, inquietar, as crianças fabulam, inventam, criam, (re)criam histórias, contextos, desfechos, sentidos. Dessa forma, o signo artístico pode convocar-nos a fabular, pensar, falar, desenhar, ler, criar, experimentar, problematizar, em um constante movimento de inquietação, afastando-nos de um conforto conceitual.
Afinal, um currículo não deve ser imposto, embora linhas duras estejam presentes na escola tentando domesticar o território-escola e fazer ali uma reprodução de um currículo prescritivo. A vida pulsa na escola à medida que os encontros são produzidos, criando um emaranhado de significações que criam e recriam currículos que muitas vezes chegam presos em “caixinhas”, mas que irrompem a vaguear para compor uma história em quadrinhos ou uma enunciação; se reinventam de forma subjetiva e singular a partir do encontro com os sujeitos que habitam o território-escola.
4 HISTÓRIAS EM QUADRINHOS, AFECÇÕES E FABULAÇÕES NA ESCOLA
Não temos a intenção, em nossa pesquisa-experimentação-escrita, de encontrar respostas, nem mesmo criar roteiros, receitas de como se trabalhar com as histórias em quadrinhos em sala de aula. Afinal o que temos aqui não é um “como trabalhar” e sim uma composição, um emaranhado, um rizoma que vai se tecendo em movimentos aprendentes inventivos que se cruzam, criam, esbarram e atravessam uns aos outros de forma incessante e incansável, são frenéticos...
Seguimos pelo território-escola onde fluxos, linhas de fuga e movimentos engendram o currículo que escapa, se mistura e se (re)cria, desorganizando os espaços, rompendo os modos homogêneos de pensar a escola, o currículo, a docência, as histórias em quadrinhos e a aula. A aula — e nossos momentos de encontros durava o “tempo” cronológico de uma aula — é vista como um território de resistência frente ao currículo prescrito, frente aos processos avaliativos, frente à dominação e à docilização dos corpos.
A cada encontro, deparamos com movimentos molares e moleculares a serem percorridos e cartografados que atravessam os corpos. Os encontros com as crianças, as formas e as forças como elas criam, desenham e ressignificam percorrem mundos de formas singulares e em devires, provocam-nos e deslocam o nosso pensamento para os diferentes mundos tecidos nos cotidianos escolares.
4.1 Ninguém leu para mim...
Assim, fomos criando a nossa pesquisa com as histórias em quadrinhos, entrando em relação ao encontro, ao movimento do pensamento, ao devir, à fabulação... Enquanto organizávamos os livros na biblioteca, uma turma do 4º ano entrou com seu professor, para devolver e pegar novos livros para leitura de final de semana. Antes de guardar, ele perguntou o que as crianças tinham achado dos livros. Todas falavam ao mesmo tempo, empolgadas; rindo, bebendo água, mãos levantadas para ir ao banheiro… todas querendo contar um pouco das suas histórias, a maior parte dizendo que algum familiar ajudou na leitura ou leu o livro. Percebemos um menino quieto olhando seu livro com mais atenção e passando as páginas com muito cuidado.
Uma criança que, aos 10 anos, ainda não se apropriou da leitura na escola, produziu outros sentidos a partir dos afetos criados no encontro com aquele livro. “É preciso compreender os afectos, então, como um processo de atualização que coloca em jogo as forças do fora, assim como um sentir diferentemente" (NASCIMENTO, 2013, p. 68). A partir do encontro com as imagens, aquela criança produziu novos sentidos do que é a leitura criando a sua própria versão da história. Cabe ressaltar aqui um dos motivos que pode ter contribuído para que essa criança não tivesse se apropriado da leitura: no ano de 2020, aconteceram no Brasil os primeiros casos de Covid-19 e teve início a pandemia que forçou as escolas a fecharem e se reinventarem com aulas pela internet ou apenas com atividades impressas entregues aos estudantes, de acordo com a realidade da comunidade escolar. Diversas crianças dos 4º anos do ensino fundamental estão ainda sofrendo e sentindo os impactos da pandemia, pois, quando iniciaram no 1º ano do ensino fundamental, muitos não conseguiram ter nem um mês de aulas presenciais e essa pandemia fez perdurar as aulas remotas durante todo o ano de 2020 e 2021. O ano de 2022 iniciou com as aulas semipresenciais e do meio para o final do período letivo voltaram as aulas presenciais. Isso tudo impactou na aprendizagem da leitura e da escrita. A turma dessa criança em questão tem menos da metade dos estudantes considerados totalmente alfabetizados.
Nesse momento, o professor perguntou se não tinha ninguém para ler em casa e o aluno falou que procurou, mas ninguém quis ler. Então, como ele não sabia ler as palavras, tentou contar a história com os desenhos.
A força da fabulação daquele menino, em meio à sua leitura das imagens do livro, mostrou para nós, pesquisadoras, o quanto as crianças entram em relação com as imagens e como a leitura se dá, à sua maneira, em meio aos atravessamentos cotidianos da escola. Entrando em relação com a fala do menino “Ah, não tinha ninguém pra ler pra mim, aí eu olhei os desenhos e fiz a história assim”, perguntamo-nos: afinal, o que é ler? Seria apenas decodificar as letras impressas em uma superfície? Fabular com as imagens de um livro é ler? A leitura deve ser igual para todos? A criança, no encontro com as imagens do livro, desencadeou devires? A criança, com a força do pensamento, fez irromper a fabulação, produzindo uma outra leitura e um novo sentido para além do que é entendido e valorizado em sua formalidade nas escolas.
A fabulação consiste na invenção de uma língua menor, em devir e está diretamente ligada ao que ainda não é, da ordem do porvir. O termo fabulação está entrelaçado a um devir revolucionário, a uma quebra de paradigmas, de ouvir as minorias, aos que resistem em meio a idealismos velados, fixos. Abrir-se ao devir para escapar de uma forma dominante (BARIN, 2019, p. 14).
4.2 O que você está desenhando aí?
Na semana seguinte, entramos em relação com a outra turma do 4º ano. Quando chegamos à escola, essa turma estava também na biblioteca com sua professora e, para não atrapalhar aquele momento, sentamos em um canto da biblioteca. Como a pedagoga havia combinado, naquela turma ficaríamos da segunda aula até o horário do recreio e ela iria ficar na sala, pois disse que algumas crianças “certamente” teriam dificuldades de se expressar com os desenhos. Eles estavam deitados no chão, desenhando sobre o livro que haviam levado para casa, para sua leitura de final de semana. Diferentemente do movimento que observamos na semana anterior, a biblioteca estava silenciosa. No chão, deitadas, as crianças desenhavam sobre uma folha de papel a parte que mais gostaram da história; elas ainda precisavam escrever o nome do livro e o próprio nome para supervisão da professora, que estava sentada observando aquele movimento.
A professora vez ou outra perguntava o que eles estavam fazendo e do que falava o livro. As crianças apenas olhavam curiosas para o colega que era indagado a responder e não se manifestavam, mas os pequenos murmurinhos aconteciam. Próximo ao momento de voltar para a sala, a professora observou que um menino desenhava e ria muito mostrando sua arte para os colegas mais próximos.
Então, ela perguntou sobre o que era o livro dele, e a resposta foi:
“Eu esqueci o livro em casa e não consegui ler”.
E ela, incrédula perguntou: “Mas, então, o que você está desenhando aí?”
O menino disse: “Ah, professora, bandeiras de alguns países”.
O menino entrou em relação com aquela folha de papel de maneira diferente daquela que a professora esperava. E a resposta da professora foi: - “Mas a folha não é para isso, eu dei a folha para vocês desenharem a parte que mais gostaram da história do livro. Você acha que pode fazer o que quiser com a folha?”.
Quando o menino fez que sim com a cabeça, a professora recolheu a folha com o desenho abruptamente. Ficamos curiosas para ver o desenho, mas achamos prudente não pedir. Aquele momento nos inquietou e colocamo-nos a pensar sobre os desenhos que são recolhidos, guardados e descartados porque não atendem ao que se pede. Pensamos nos processos inventivos que acontecem cotidianamente no território-escola. O que pode um desenho? Até que ponto nos propomos a compreender e fabular com as crianças sobre suas produções infantis e as respeitamos como criações que expressam algum afeto/afecção? Como docentes, estamos apostando no devir-leitura, que abre para intensificar as fabulações ou podando a forma de expressão das nossas crianças? Seria real a visão dicotômica entre a educação infantil ser o espaço do desenho e o ensino fundamental, o lugar da escrita?
Muitos questionamentos nos atravessaram naquele momento. Ao chegar na sala, nos apresentamos para aquelas crianças que nos viram (ou não) momentos antes na biblioteca. Perguntamos se eles conseguiam imaginar o que iríamos fazer na escola e as crianças responderam em coro: - “Ensinar quadrinhos”.
4.3 Produção de sentidos: a lua e o sol
A professora certamente já havia conversado com eles. Entregamos uma folha e falamos sobre como os primeiros seres humanos se expressavam nas paredes das cavernas através dos seus desenhos. Desenhamos no quadro enquanto contamos essa história.
A turma, a princípio, estava tão silenciosa que tivemos dificuldade de ficar à vontade. Explicamos que a ideia seria eles se expressarem dando língua aos afetos que pedem passagem (Rolnik, 2016, p. 23) através da história em quadrinhos, que poderia ter ou não os balões da fala. Depois de um tempo, eles começaram a falar e alguns até se levantaram das carteiras para mostrar aos colegas as suas criações. Algumas disseram não saber o que fazer, mas, no fim, falaram que o mais difícil foi pensar em uma história que fizesse sentido.
Indagamos a elas: - “Mas o que é sentido?”.
Todas tentaram responder: - “Sentido é algo que faz a gente entender a história”.
E retrucamos: - “Mas a gente precisa entender a história?”.
E eles disseram que sim. Ninguém, segundo eles, ia querer uma história sem sentido.
Fomos provocadas mais uma vez a nos questionar: o que é sentido? Como se faz uma história? Toda história tem sentido? O que produz sentido em mim produz sentido nos outros?
Jamais encontraremos sentido de alguma coisa [...] se nós não sabemos qual é a força que se apropria da coisa, que dela se apossa ou se exprime nela. Um fenômeno não é uma aparência, nem mesmo uma aparição, mas um signo, uma sintomatologia, que encontra seu sentido numa força atual (DELEUZE, 1976, p.3).
Todo ser humano que pensa é um atribuidor de sentidos, que interpreta à sua maneira diversos signos e forças, sendo essa experiência de pensar que produz o sentido (DELEUZE, 1976). Observamos como as crianças se colocaram a partir de suas produções artísticas, nem sempre falavam de histórias pessoais, na maior parte das vezes elas preferiram experienciar os desenhos e as escritas com narrativas fabulatórias, criando redes de afetos, momentos de conversas entre as histórias de formas singulares, porém plurais, quando todos estavam ao mesmo tempo criando suas indagações e ouvindo as dos outros: o tempo como intensidade, abertura ao inesperado.
O tempo que buscamos, ao provocar as crianças nas suas criações estéticas de quadrinhos, é o aión, que é um tempo-devir, que já é, mas também pode ainda não ser; um tempo flutuante em relação ao tempo chrónos. São formas distintas de perceber e sentir o tempo presente na escola, o tempo do bom encontro que cria reverberações e o tempo do sinal que marca a troca de sala ou a hora da saída. A força da criação das histórias em quadrinhos não está no tempo de escrever, desenhar, pintar, mas no deslocamento de pensamento que isso implica, na experimentação que isso provoca, nos agenciamentos e o que provoca esses agenciamentos e dispara as experimentações, violentando o pensamento. Esse deslocamento e essa experimentação são os signos.
Como o signo não surge de uma simples possibilidade natural de pensar e acarreta a violência do pensamento provocada pelo encontro, implicando a relação e a experimentação, entendemos aqui que o ato de criar uma história em quadrinhos a torna um signo artístico. Afinal as crianças nos apresentam que a parte mais difícil da criação de um quadrinho é pensar sobre o que se cria. Às vezes, a criação leva tempo; em outros momentos, ela é simples de expressar; as velocidades e as intensidades dependem dos atravessamentos que perpassam cada um.
Os jogos de poder aos quais as crianças estão expostas e os que elas mesmo praticam entre si podem ser percebidos entre quadrinhos e modos de ser/estar na escola. Quando uma criança nos perguntou sobre o que ela podia desenhar respondemos que ela podia pensar em uma história sobre algo que conhecia e podia ser uma história simples (Imagem 2). Esta foi a resposta da criança à nossa proposta:
Percebemos a força da fabulação nesse signo, que usa “simplicidade” para burlar uma “atividade” que naquele momento não era tão interessante para a criança, mas que ela também não queria deixar de fazer, uma história que não tem a intenção de prometer “nada”(?) ao primeiro olhar, mas que entrega “tudo” com microexpressões que dão mais potência à história. Voltamos aos questionamentos que fizemos anteriormente: como se faz uma história? Toda história tem sentido? O que produz sentido em mim produz sentido nos outros?
4.4 Tempo, tempo, tempo...
As crianças são atravessadas pelo tempo cronológico na escola durante todo o tempo. Apesar da vontade de potência das crianças, o tempo cronológico acelera ou poda o que elas fazem, deixando movimentos inacabados. O momento na turma e sua interação com as folhas em que elas criaram suas histórias em quadrinhos foram vividos em sua intensidade por um tempo determinado. Afinal tínhamos horários a seguir. Esse tempo não foi suficiente para todas as crianças terminarem suas experimentações em quadrinhos naquele momento. Muitos contaram oralmente para nós suas histórias, alguns queriam poder fazer mais, desenhar mais, escrever mais, pintar mais; já outros tinham tanta coisa a desenhar que quando terminou o tempo estavam apenas nos primeiros requadros (Imagem 3).
Fluxos, rizomas, linhas de fuga, movimentos... O currículo que escapa, se mistura e se (re)cria, desorganizando os espaços, rompendo os modos homogêneos de pensar a escola, o currículo, as histórias em quadrinhos e a aula. A aula — e nossos momentos de encontros que duravam o “tempo” de uma aula, 50 minutos — tornou-se um território de resistência frente ao currículo prescrito, frente aos processos avaliativos e frente à dominação e à docilização dos corpos.
Em um outro encontro com a turma do professor do 4º ano, as crianças vibraram com a ideia de desenhar uma história em quadrinhos, mas, no momento de organizarem sua expressão estética, se alongaram e se prenderam a fazer requadros perfeitos com a régua. Ficamos nos perguntando quem havia pedido para fazer requadros simétricos com o uso da régua. Afinal, explicamos que elas deviam se expressar livremente para produzirem a sua história. Elas pensaram muito sobre o roteiro, o enredo, o sentido das suas histórias e, nesse processo, alguns desvirtuaram a ideia que os outros tinham sobre como fazer um requadro para a história, usando formas triangulares, por exemplo, para esse fim.
O momento de produção, pensamento e fabulação com a criação da história em quadrinhos é algo que movimentou a turma de muitas maneiras e, embora saibamos a importância da produção criativa das crianças sobre suas próprias histórias em quadrinhos, somos atravessadas pelo tempo chrónos na escola: mas o que fazemos com esse tempo? O que fazemos com a limitação de tempo que nos foi imposta? Sentimo-nos vencidas na escola pelo tempo que atravessa nossas produções? Ou produzimos sentidos outros, a partir da relação com aquele momento produzindo outras possibilidades?
Propusemos outras estratégias para propiciar as experimentações estéticas em sala de aula com o tempo que tínhamos e, após os primeiros encontros, acompanhando os movimentos inventivos, mudamos para uma folha com 4 requadros colados, nos quais as crianças podiam desenhar e organizar as histórias à sua maneira. Essa mudança foi importante para que o tempo aión pudesse ser mais intensificado.
As crianças nos apresentaram uma multiplicidade de possíveis da existência com suas diversas experiências vividas, sentidas ou imaginadas. Fomos atravessadas por esses mundos outros que as compõem, que atravessam seus corpos e chegam até nós por suas produções em quadrinhos.
A paixão por jogos de celular e computador também é perceptível nas produções estéticas dos meninos. Felipe nos apresentou sua história inspirada em Among Us, um jogo eletrônico online de sobrevivência, onde uma tripulação (na qual cada personagem tem uma cor) está em uma plataforma no espaço e uma pessoa entre os tripulantes é um assassino, que tem a vitória se exterminar a tripulação sem ser notado. Os tripulantes vencem se encontrarem o impostor e o jogarem para fora. Nessa história, ele apresenta uma estética que lembra a tela do jogo apresentando um placar com a quantidade de jogadores “vivos 5”, “mortos 17” e o tempo da partida 4 minutos.
Conversando com as crianças sobre suas produções estéticas, percebemos as singularidades de pensamento, assim como os agenciamentos coletivos. Entrávamos na fabulação com as crianças ao ouvir suas histórias, observando seus olhares atentos à folha onde expressavam suas histórias em quadrinhos. Algumas não apresentavam um balão, mas tinham muito a dizer com seus traços, quadros, desenhos e cores. Outras continham informações tão detalhadas que percebemos o quanto aquela arte produzia mundos outros que se abriam à invenção. O signo artístico das histórias em quadrinhos entrava em relação com os corpos das crianças movimentando o pensamento e violentando-o na prática de pensar e criar outros possíveis. Os desenhos potencializavam currículos inventivos com força problematizadora sobre temáticas diversas como bullying, futebol, vida após a morte, violência doméstica, games, cotidianos.
O que pode o encontro das crianças com as histórias em quadrinhos na escola? Pode movimentar os corpos a se agruparem deitados no chão? Pode criar uma algazarra por leituras escondidas dentro dos livros? Pode movimentar pensamentos e gerar indagações que não precisam ser vividas fisicamente para serem sentidas? Pode gerar gargalhadas e tristezas? Pode nos convidar a reinventar um mundo...
Nossos momentos na escola, no pátio, na biblioteca, mas na maioria das vezes na sala de aula — espaço que conseguimos negociar para estar — eram compostos por crianças que, mesmo tendo algumas histórias em quadrinhos na biblioteca da escola, disputavam aquelas que levávamos para ler, reler ou fabular com. Nas visitas à biblioteca, o chão era o espaço da leitura. Deitados no chão de tatame, as crianças liam sozinhas ou em grupo, observando as imagens e entrando (ou não) em relação com as revistinhas.
Desenhos, quadrinhos, histórias… arte... experiências estéticas, um misto de forças e sensações, que ressignificam os modos de ser e estar na escola, modos de fazer quadrinhos, modos de se ler e não ler, outros sentidos. Para Lazzarato (2006, p.17), “[...] o mundo é virtual, uma multiplicidade de relações, de acontecimentos que se expressam nos agenciamentos coletivos de enunciação (nas almas) e criam o possível”. Mas não existe apenas um possível real, existem diversos possíveis que se atualizam o tempo todo, modificando-se à medida que são criados.
As expressões estéticas que provocam as narrativas fabulatórias permitem que as crianças se deixem levar pelas fabulações que os transpassam. O ato de desenhar uma história em quadrinhos não a torna um signo, mas sim o resultado dos agenciamentos que aquele encontro produz. As crianças, em suas fabulações e criações, a partir das histórias em quadrinhos arrastavam-nos para o “Fora”. Para Deleuze e Guattari (2012), o Fora é o lugar do nômade, um devir, uma outra maneira de pensar que não seja capaz de fechar sobre si, uma dobra sobre o pensamento.
Através dos signos que as crianças criam nesse encontro, o movimento de forçar o pensamento para criar uma história e para dar língua às enunciações fabulatórias violenta nossas formas de compreender o que pode uma história em quadrinhos, o que pode uma aula, uma docência, uma pesquisa.
MOVIMENTOS (IN)CONCLUSOS: A EXPANSÃO DA VIDA
As fabulações produzidas pelas crianças ao entrar em relação com o signo das histórias em quadrinhos produziram outros modos de ver, sentir, aprenderensinar expandindo a vida. Os movimentos aprendentes se dão a partir dos acontecimentos em processos de subjetivação; afinal as aprendizagens, a produção de conhecimento e a significação são diversas, de modo que não há como pré-determinar quais caminhos cada um traça nos seus processos inventivos, pois produzimos dobras e redobras à medida que entramos em relação com diferentes afetos, afecções e experiências.
Nos processos de subjetivação e no encontro com os signos aprendentes, cada criança viverá o encontro com um signo em seu corpo intensivo, e isso movimentará o seu pensamento em processos de diferenciação aprendente, produzindo dobras que caminham da virtualidade para a sua atualização e realização (GONÇALVES, 2019, p. 22).
É um equívoco dizer que todas as crianças se afetam pelas mesmas situações, e o encontro com as criações estéticas das histórias em quadrinhos deixam isso bem evidente. Ao entrarem em relação com o signo da história em quadrinhos, as crianças nos apresentam mundos possíveis, virtuais, singulares e com infinitas dobras. Apesar de estarem na mesma sala de aula, vivendo na mesma comunidade, cada criança apresenta o que lhe afeta de maneira diferente. Há aquela que evidencia a questão da violência doméstica — um assunto tão expressivo para algumas crianças de forma que as enunciações fabulatórias apresentam essa temática —, enquanto há aquelas que apresentam outros tipos de conflitos pelos quais se interessam para explanar e registrar.
Um mundo envolve já um sistema infinito de singularidades selecionadas por convergência. Mas, neste mundo, constituem-se indivíduos que selecionam e envolvem um número finito de singularidades do sistema, que as combinam com aquelas que seu próprio corpo encarna, que as estendem sobre suas próprias linhas ordinárias e mesmo são capazes de reformá-las sobre as membranas que colocam em contacto o interior e o exterior (DELEUZE, 2007, p. 113).
A religiosidade, os jogos, as brincadeiras, as histórias infantis, o bullying e a solidão que muitas crianças sentem também são temas que não estão propriamente prescritos no currículo formal, mas acabam entrando na escola, pois os corpos que são atravessados por esses movimentos anseiam por entender melhor a si e ao mundo que os cerca. Durante esses momentos, ao sentirmos os atravessamentos, acompanhamos com mais atenção as crianças em seus processos de criação e de devir, em que elas apresentavam tanto histórias prontas quanto incompletas, que despertaram em nós uma vontade de inventar, criar, produzir com elas outros sentidos. Ao andarilhar pelos espaços de criação, percebemos que as histórias em quadrinhos que não conseguiam ser terminadas eram uma oportunidade de fabular outros mundos e criar outras significações.
Corpos infantis se dobram, criando outras dobras que se redobram, criando possibilidades, com dobras, redobras e desdobras (GONÇALVES, 2019). Em meio ao encontro com o signo artístico das histórias em quadrinhos, surgem diversos mundos possíveis que criam currículos outros, modos diversos de ver a realidade e formas outras de ensinar e aprender, dentro e fora da escola.
Ao entrarmos em relação com as fabulações infantis, conversando com as crianças sobre suas produções e seus anseios, criamos currículos que provocam o pensamento a fluir a partir da arte e suas diversas estéticas, produzindo agenciamentos. Mas o que essas composições e fabulações nos provocam a pensar? É possível afirmar que currículos estão sendo produzidos a partir da produção e da leitura de histórias em quadrinhos ou de seus desenhos? Que outros mundos são produzidos a partir da leitura de uma história em quadrinhos? Que devires a criação estética desperta em nós?
Com esta pesquisa-experimentação-escrita, intentamos vivenciar movimentos de experimentação e criação de outros possíveis, caminhando por fluxos, por intensidades, por agenciamentos. Nesses movimentos, as crianças se colocam, apresentam medos, alegrias, sonhos e fabulam outros currículos, outras escolas, povoando aprendizagens, dando língua aos afetos que pedem passagem.
REFERÊNCIAS
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CORAZZA, Sandra. O que se transcria em educação? Porto Alegre: Doisa, 2013.
CORAZZA, Sandra; TADEU, Tomaz. Composições. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
DELBONI, Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera; MELO, Carlos Pereira de. Os signos artísticos do cinema movimentando sentidos outros de currículos e docências. In: CARVALHO, Janete Magalhães; SILVA, Sandra Kretli da; DELBONI, Tânia Mara Zanotti Guerra Frizzera. (org.). Currículos e artistagens: política, ética e estética para uma educação inventiva. Curitiba: CRV, 2022. p. 313-328.
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Tradução de Aurélio Guerra Neto, Ana Lúcia de Oliveira, Lúcia Cláudia Leão e Suely Rolnik. Rio de Janeiro: Editora 34, 2012. v. 3.
GONÇALVES, Camilla Borini Vazzoler. As fabuloinvenções das crianças nos agenciamentos dos currículos. 2019. 155 f. Dissertação (Mestrado em Educação) − Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2019.
LAZZARATO, Maurízio. As revoluções do capitalismo. Tradução de Leonora Corsini. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
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NASCIMENTO, Roberto Duarte Santana. Dimensões políticas da teoria deleuziana dos signos. In: GALLO, Silvio Donizette de Oliveira; NOVAES, Marcus; GUARIENTI, Laisa Blancy de Oliveira (org.). Conexões: Deleuze e políticas e resistências e... Petrópolis, RJ: DP&A; Campinas, SP: ALB; Brasília, DF: Capes, 2013. p. 7-36
PAOLIELLO, Juliana. O devir-docência das "pessoas grandes", agenciado pelos devires-menores do povo-criança. 2016. 165 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2016.
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Notas