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PRÁTICASPOLÍTICAS INCLUSIVAS NA EDUCAÇÃO INFANTIL: brincar como resistência e invenção de mundos

INCLUSIVE POLITICALPRACTICES IN EARLY CHILDHOOD EDUCATION: playing as resistance and invention of worlds

PRÁCTICASPOLÍTICAS INCLUSIVAS EN LA EDUCACIÓN INFANTIL: el juego como resistencia e invención de mundos

Maria Riziane Costa Prates
Universidade Vila Velha, Brasil
Marcia Marques Teixeira
Sin institución, Brasil
Camila Junca Stefenon
Universidade Vila Velha, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 16, núm. 3, 2023

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 31 Outubro 2023

Aprovação: 05 Dezembro 2023



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v16i3.68464

Resumo: Apresenta problematizações a partir de práticas inclusivas no contexto educativo de um Centro Municipal de Educação Infantil da cidade de Serra no Estado do Espírito Santo, Brasil. Objetiva visibilizar e debater possibilidades de conversas por entre educação infantil, cuidado, realidade social, aprendizagem e bem-estar das crianças, frente a um momento em que existe uma crescente ampliação do número de crianças chamadas, neste tempo, de atípicas. Investiga a partir de redes de conversações e as pesquisas com os cotidianos; modos de resistência como experimentação estética de viver as infâncias na sua mais alta potência no contexto escolar. Tece abordagens com as intercessões teóricas de Deleuze (2006, 2010), Freire (2000, 2005), Kohan (2004), dentre outros que problematizam a educação como invenção de mundos e resistência. Aposta em composições afetivas, a partir de uma escuta atenta e sensível às infâncias e aos contextos experimentados com os cotidianos escolares, na invenção de mundos possíveis que possam afirmar a vida e a aprendizagem como força, frente às vulnerabilidades sociais.

Palavras-chave: Infâncias, Aprendizagens, Equidade.

Abstract: It presents problematizations based on inclusive practices in the educational context of a Municipal Center for Early Childhood Education in the city of Serra in the State of Espírito Santo, Brazil. It aims to make visible and debate possibilities of conversations between early childhood education, care, social reality, learning and children's well-being, at a time when there is a growing increase in the number of children called, at this time, atypical. It investigates from networks of conversations and research with everyday life; modes of resistance as an aesthetic experimentation of living childhoods in their highest potency in the school context. It weaves approaches with the theoretical intercessions of Deleuze (2006, 2010), Freire (2000, 2005), Kohan (2004), among others that problematize education as an invention of worlds and resistance. It invests in affective compositions, based on an attentive and sensitive listening to childhoods and the contexts experienced with school daily life, in the invention of possible worlds that can affirm life and learning as a strength, in the face of social vulnerabilities.

Keywords: Childhoods, Learning, Equity.

Resumen: Se presentan problematizaciones basadas en prácticas inclusivas en el contexto educativo de un Centro Municipal de Educación Parvularia de la ciudad de Serra, en el Estado de Espírito Santo, Brasil. Su objetivo es visibilizar y debatir las posibilidades de conversaciones entre la educación infantil, los cuidados, la realidad social, el aprendizaje y el bienestar de los niños, en un momento en el que se produce un aumento creciente del número de niños denominados, en estos momentos, atípicos. Investiga desde redes de conversaciones e investigaciones con la vida cotidiana; modos de resistencia como experimentación estética de infancias vivas en su máxima potencia en el contexto escolar. Teje enfoques con las intercesiones teóricas de Deleuze (2006, 2010), Freire (2000, 2005), Kohan (2004), entre otros que problematizan la educación como invención de mundos y resistencias. Invierte en composiciones afectivas, basadas en una escucha atenta y sensible de las infancias y los contextos vividos con la vida cotidiana escolar, en la invención de mundos posibles que puedan afirmar la vida y el aprendizaje como fortaleza, frente a las vulnerabilidades Sociales.

Palabras clave: Infancia, Aprendizaje, Equidad.

1 PRÁTICASPOLÍTICAS INCLUSIVAS E EQUIDADE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

A infância não é um tempo, não é uma idade, uma colecção de memórias. A infância é quando ainda não é demasiado tarde. É quando estamos disponíveis para nos surpreendermos, para nos deixarmos encantar. Quase tudo se adquire nesse tempo em que aprendemos o próprio sentimento do Tempo. A verdade é que mantemos uma relação com a criança como se ela fosse uma menoridade, uma falta, um estado precário. Mas a infância não é apenas um estágio para a maturidade. É uma janela que, fechada ou aberta, permanece viva dentro de nós (COUTO, 2009, p. 103-104).

Ainda que do ponto de vista biológico a infância seja reconhecida como etapa da vida, em uma perspectiva atemporal, a infância é a produção a partir da relação com o mundo, através de experimentações com uma cultura, um sistema político, econômico e com uma realidade social específica. Talvez fosse mais apropriado falar em condição social da criança.

A educação infantil como primeira etapa da educação básica, tem se desafiado a experimentar diferentes maneiras de produzir com as crianças, realidades outras nos contextos escolares, frente a uma existência histórica de uma infância pobre, desprotegida, que, por vezes, chega nas escolas públicas e adentram em nossas casas pelas mídias, com cenas nas quais as crianças se tornam notícia por sofrerem as mais variadas formas de violência e negligência, dentre elas: a criminalidade, o abandono e convívio nas ruas. São infâncias que desfiguram a imagem produzida socialmente da criança inocente que precisa ser protegida. São infâncias que, por destoarem da linha tênue traçada por uma dada realidade histórico-econômico-social, são tomadas como crianças diferentes ou atípicas.

As crianças chamadas de atípicas têm desafiado os contextos escolares no sentido de lançarem questões pertinentes às possibilidades de aprendizagem(FERRAÇO, 2008), aos sentidos da educação, aos sentidos da escola e aos modos de relação com o mundo no contexto do século XXI. A despeito das muitas respostas, o Estado, os professores, os pesquisadores são compelidos a criarem práticaspolíticas inclusivas[1], que atenuem tais efeitos sociais enquanto políticas públicas e, ao mesmo tempo, possam inventar outras maneiras de experimentar o encontro com o conhecimento e as aprendizagens nos cotidianos escolares. Tais buscas por respostas, obrigam a indagar o sentimento de infância já apontado por Ariès (1981), em seus estudos datados dos séculos XVI e XVII, em que, não existia, no mundo ocidental, tal diferenciação entre crianças e adultos nos contextos sociais.

No Brasil, data do início do século XX essa preocupação com o destino da infância, a partir de um atendimento assistencialista e higienista, iniciado após 1930, como proteção para superação das mazelas sociais. Atualmente, consideram-se algumas conquistas no campo das infâncias e da educação infantil, pelo reconhecimento do direito constitucional das crianças, independentemente de raça, etnia, gênero, credo, nacionalidade, local de moradia, situação socioeconômica e cultural. Acrescenta-se, ainda, o atendimento em instituições de educação infantil públicas, gratuitas, laicas e inclusivas.

Algumas políticas inclusivas e de Educação Especial têm sido elaboradas como indagação às possibilidades curriculares como o documento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), que compreende a educação especial como uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, com o Atendimento Educacional Especializado (AEE), nas turmas comuns de ensino regular.

O Público Alvo da Educação Especial (PAEE), de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Nº9.394/1996 (BRASIL, 1996), são os alunos com deficiência física, intelectual, mental, sensorial; alunos com transtornos globais do desenvolvimento (alterações no desenvolvimento neuropsicomotor, comprometimento nas relações sociais, na comunicação ou estereotipias motoras, autismo clássico, síndrome de Asperger, síndrome de Rett, transtorno desintegrativo da infância - psicoses e transtornos invasivos sem outra especificação) e altas habilidades ou superdotação (aqueles que apresentam potencial elevado e grande envolvimento com as áreas do conhecimento humano, isoladas ou combinadas: intelectual, liderança, psicomotora, artes e criatividade). O que fazer diante de tais políticas instauradas, embora nem sempre implementadas?

Para Certeau (2008), as práticas como, maneiras de fazer, vão se constituindo em meio às relações de forças sociais, visto que, na opressão e vulnerabilidades apontadas com/no sistema, somos obrigados a pensar em alternativas ou possibilidades para invenção de cotidianos em que seja possível tornar-se sujeito da própria história.

Assim, acreditando que o modo como produzimos educação, conhecemos e aprendemos, interfere na forma como somos afetados a aprender e a nos comunicar e expressar na sociedade, este texto aponta um acompanhamento do cotidiano vivido com crianças, público alvo da educação especial, de um Centro Municipal de Educação Infantil (CMEI) na cidade da Serra, Espírito Santo, objetivando atender às demandas surgidas a partir de intervenções pedagógicas realizadas pelas professoras, como possibilidade de invenção de mundos no espaço escolar, em uma produção de práticaspolíticas inclusivas.

O atendimento ao público alvo da educação especial na educação básica e, mais especificamente na educação infantil, é realizado em sala de aula regular pelo professor especialista em educação especial, em parceria com os professores regentes, na promoção de posturas inclusivas com adaptação de materiais, recursos e ferramentas que possibilitem o atendimento colaborativo ou, em sala de recursos multifuncionais no contraturno, com estratégias e instrumentos pedagógicos como possibilidade inclusiva.

Quando a escola não possui uma sala de recursos multifuncionais e as crianças demandam uma atenção diferenciada em alguns momentos, pela saturação da possibilidade de compor coletivos na sala de aula regular, a professora especialista em educação especial, realiza algumas atividades específicas com essas crianças, em espaços improvisados nos corredores da escola, como apontado na imagem a seguir.

Atividades em diferentes espaços do CMEI
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Atividades em diferentes espaços do CMEI
Fonte: arquivo pessoal – CMEI 2023

A Lei Brasileira de Inclusão, Lei nº 13.146/2015 (BRASIL, 2015), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, tem como objetivo assegurar e promover a garantia dos direitos básicos dos indivíduos em igualdade de condições, exercício dos direitos e liberdade à pessoa com deficiência, visando à inclusão social e à cidadania. No artigo 2º, tal lei expressa que

Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas (BRASIL, 2015, p.2).

Enquanto a educação especial nas escolas preconiza o AEE, a educação inclusiva abrange um conceito mais amplo, que compõe “[...] uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando sem nenhum tipo de discriminação” (BRASIL, 2008, p.11). A educação inclusiva traduz, assim, o acolhimento e a composição com a diferença, com o que aproxima a prática ao direito de liberdade, autonomia, criticidade e protagonismo da própria vida, como sugere Freire (2005, p.70), “a educação como prática da liberdade, ao contrário daquela que pratica a dominação, implica na negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado no mundo, assim também na negação do mundo como uma realidade ausente dos homens”. Freire (2005) traduz como possibilidade de aprendizagem, o direito à equidade aos alunos que sejam ou não PAEE, pela aposta de que toda diferença seja acolhida, respeitada e conduzida ao direito à liberdade de convivência em sociedade, sem nenhuma forma de segregação.

O conceito de equidade, ainda que não seja tratado no documento da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (BRASIL, 2008), surge no Decreto 10.502/2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (BRASIL, 2020), apontando no seu artigo 2º, inciso III a política educacional equitativa como:

conjunto de medidas planejadas e implementadas com vistas a orientar as práticas necessárias e diferenciadas para que todos tenham oportunidades iguais e alcancem os seus melhores resultados, de modo a valorizar ao máximo cada potencialidade, e eliminar ou minimizar as barreiras que possam obstruir a participação plena e efetiva do educando na sociedade (BRASIL, 2020, p.1).

A equidade de condição portanto, aparece como garantia do direito à diferença, ao acesso às práticas que garantam o pleno exercício de aprendizagem e participação efetiva a todos os educandos, pela valorização das suas potencialidades.

2. APRENDIZAGEM, BRINCADEIRAS E INVENÇÃO COMO RESISTÊNCIA

Fica decretado que agora vale [...] a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira. Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, tem o direito a converter-se em manhãs de domingo. Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança (MELLO, 2006, p.10).

Painel a várias mãos na
entrada do CMEI
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Painel a várias mãos na entrada do CMEI
Fonte: Arquivo pessoal – CMEI 2023

Com esse painel da imagem acima, tecido a várias mãos com as crianças do CMEI, na porta de entrada, indagamos: de que maneiras a aprendizagem, as relações tecidas nos diferentes espaçostempos das escolas, podem funcionar como manhãs de domingo como aponta Mello (2006), como alegria ou como resistência às tantas vulnerabilidades sociais em que se encontram algumas crianças? Para tal indagação, mobilizam-se diferentes caminhos pós-críticos para tecer uma escrita junto da coragem de uma autoria, que, ao engajar-se com os sujeitos dos cotidianos de um centro municipal de educação infantil da cidade da Serra, deseja corresponsabilizar-se, pela produção de um mundo outro, em que todos possam aprender, em uma mútua afetação, cooperação, pesquisa e produção de si. Acreditamos, com a poetisa Judite Hertal que, como as aves, as pessoas são diferentes em seus vôos, mas iguais no direito de voar.

O ponto de partida dessa discussão são situações escolares que versam sobre os desdobramentos da produção de uma educação inclusiva, enquanto direito e possibilidade de aprendizagem, que acontece em meio às vulnerabilidades sociais. O CMEI de atuação docente das autoras dessa escrita, encontra-se em uma região da periferia da cidade da Serra, com desdobramentos que indagam os cuidados básicos das crianças, não somente pela ausência de uma atenção à saúde e diagnósticos psicopedagógicos, bem como da ausência de cuidados com a alimentação e aos cuidados de instauração social de modos brincantes com as famílias e na relação com os contextos sociais mais amplos. Percebe-se, nas práticas escolares, que a escola, por vezes, torna-se, para algumas crianças, o único espaço tempo de possibilidades brincantes, ou ainda de possibilidades de exercitarem uma infância como potência e invenção.

Nesse sentido, a escola como realidade social, coloca-se como força impulsionadora de uma vida que pode; que compartilha ideias, encontros, arranjos vitalizantes que podem contribuir para pensar com mais alegria as relações consigo e com o mundo. A escola, assim como as forças sociais de vulnerabilidades vão produzindo forças discursivas, silêncios ou apontamentos de linhas de convivências, como exclusão, no trânsito entre o que ressoa ou distoa nos contextos coletivos. Tais redes discursivas vão produzindo as ditas deficiências. Carvalho (2009) chamou tais redes discursivas de forças em relação que perpassam pelas redes de conversações, envolvendo as produções curriculares e atribuindo sentidos aos cotidianos escolares, pela adesão ou resistência a certos padrões discursivos.

Sendo assim, como dissolver a ideia de anormalidade e deficiência na escola e na sociedade? Amaral (1998, p.03) já apontara a importância de desconstruirmos a conotação pejorativa de algumas palavras, como “[...] diferente, divergente, desviante, anormal, deficiente”, para pensarmos nos padrões, modelos e parâmetros que as produzem, para assim, nos debruçarmos sobre tais critérios empregados por uma determinada realidade social. Como pensar a escola e a educação de uma outra maneira? Kohan (2004, p.66), aponta que:

Talvez consigamos pensar a educação de outra forma. Quiçá consigamos deixar de nos preocupar tanto em transformar as crianças em algo distinto do que são, para pensar se acaso não seria interessante uma escola que possibilitasse às crianças, mas também aos adultos, professoras, professores, gestores, orientadores, diretores, enfim, a quem seja, encontrar esses devires minoritários que não aspiram a imitar nada, a modelar nada, mas a interromper o que está dado e propiciar novos inícios.

A ideia de propiciar novos inícios e encontrar devires minoritários, talvez contribua com professores e crianças na educação infantil, com toda a sua incompletude e singularidade, a partir de outras possibilidades de entrarem em relação com o cotidiano escolar e com os saberesfazeres produzidos nesse contexto. Propiciar novos inícios, talvez perpasse pela educação como prática de liberdade apontada por Freire (2000), como exercício político e contínuo de aprendizagens mútuas, em que crianças e professores possam colocar saberesfazeres em constante movimentação, para que um possa aprender com o outro, novas formas de vida, novos inícios pelas possibilidades e forças de cada contexto. Com Freire (2000, p.25), compreendemos que:

Educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a “sede do saber”, até a “sede da ignorância” para “salvar”, com este saber, os que habitam nesta. Ao contrário, educar e educar-se, na prática da liberdade, é tarefa daqueles que sabem que pouco sabem por isto sabem que sabem algo e podem assim chegar a saber mais, em diálogo com aqueles que, quase sempre, pensam que nada sabem, para que estes, transformando seu pensar que nada sabem em saber que poucos sabem, possam igualmente saber mais.

As aprendizagens e invenções talvez possam funcionar como resistência aos contextos de vulnerabilidade social, quando enredamos os fazeres nas escolas, a partir das indagações cotidianas das crianças que habitam esse contexto e não pela tentativa de colocar os estudantes em um ritmo tido como ideal de educação. Cabe lembrar que nesse contexto educativo de pós pandemia da covid-19, muitos foram os inícios, como apontara Kohan (2004), pelas diferentes possibilidades de relação e compreensão do que se passou, não somente com os cotidianos escolares da educação infantil, mas com os contextos experimentados pelas famílias neste tempo, que refletem nos modos de movimentação das crianças nas escolas.

Nesse contexto, tornou-se mais difícil compreender quem é o estudante público-alvo da educação especial, dadas as mazelas sociais deste tempo, como os atrasos na fala das crianças, pelo isolamento social que causou uma diferença nos modos como as crianças articulam suas oralidades e nos modos como se relacionam com os colegas, com os brinquedos, brincadeiras, com o conhecimento e com os espaços tempos da escola. Nesse cenário, profissionais da educação são convocados a criarem novos inícios (KOHAN, 2004), a entrarem em relação com os cotidianos escolares de outra maneira.

Diante da necessidade de práticas cada vez mais inclusivas, que atendam à diversidade vital que povoa a escola, profissionais são instigados a pensarem alternativas de ensinoaprendizagem como possibilidade inclusiva, a partir de uma escuta sensível aos contextos, criando, outras possibilidades de encontros.

Prates (2020) já apontara a partir de Deleuze, Parnet, Espinosa, que possibilitar encontros e movimentar pensamentos que podem se nomadizar e produzir diferença; talvez seja a função política das práticas curriculares na escola.

Promover encontros e produzir com a diferença que habita os contextos da educação infantil, exige compreender o universo brincante desse nível de ensino, em que “o aprender diz respeito essencialmente aos signos. [...] Tudo que nos ensina alguma coisa emite signos. Todo ato de aprender é uma interpretação de signos [...]” (DELEUZE, 2010, p.4). Aprender com as infâncias, portanto, exige um olhar curioso, uma escuta atenta como exercício de (des) aprendizagem das obviedades para inventar novas possibilidades, novos mundos que se conectam ao infinito por indagações a serem criadas.

Como inventar mundos, como entrar em relação com as crianças nas suas especificidades, como resistir às vulnerabilidades sociais? Deleuze (2006, p.237) já apontara que, “nunca se sabe de antemão como alguém vai aprender [...]. Não há método para encontrar tesouros nem para aprender [...]. Mas a cultura é o movimento de aprender, [...] com todas as violências e crueldades necessárias”, como já dizia Nietzsche.

2.2 Brincar...Inventar...resistir...

A aprendizagem como invenção e a produção de uma educação inclusiva nos contextos escolares talvez perpasse pela produção da diferença como ritmo, “[...] como resposta dos meios ao caos, mas com o cuidado e prudência de não trazê-lo como a medida, o ideal, afinal, importa a potência das suas desigualdades, a desigualdade constituinte do ritmo” (PRATES, 2020, p.210). Ritmos que podem abrir conexões com o ainda não pensado na educação.

Em meio à vida que pulsa nos contextos escolares, o mês de setembro, intitulado de setembro verde ou mês da inclusão, foi tecido por experimentações brincantes no CMEI, como apontado na imagem a seguir. Ressalta-se que tais atividades não acontecem somente no setembro verde, mas no decorrer do ano letivo. A promoção de atividades diversificadas e inclusivas se colocam como resistência, produção sensível e alternativa aos modos que engessam a vida, que delimitam e enquadram a criança da educação especial e a criança que não compõe a educação especial. Afinal, somos todos especiais.

Desfile no CMEI: setembro verde - Todo mundo é especial
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Desfile no CMEI: setembro verde - Todo mundo é especial
Fonte: arquivo pessoal – CMEI 2023

Os contextos brincantes criam mundos na medida em que estabelecem outras possibilidades de relação que extrapolam as lógicas estabelecidas.

A brincadeira é algo bastante sério para as crianças, diríamos que tal procedimento para as crianças, se constitui como uma estética de uma existência que vai se fazendo pela sua participação nos movimentos da escola, da família, do mundo, interferindo, relacionando-se com as culturas e as transformando. As sensações e as aprendizagens das crianças não chegam até nós adultos, somente pela oralidade, mas pelo corpo que “corre o tempo todo, pula e desestrutura a sala”. Como pensar com as crianças e nós enquanto professores, seus processos aprendentes a partir e com esse “corre, corre na sala, essa pulação e esse desassossego” que, por vezes, nosso corpo de “adulto, normalizado” não suporta? (PRATES, 2020, p.154).

Como pensar uma educação em que caibam todos pelas forças brincantes e inventivas, com infâncias expressando suas mais altas potências e não com o que debilita o pensar? Como sair do contexto de patologização do que se apresenta como o diferente, o estranho, pelas suas características ou comportamentos? Como pensar além da medicalização da vida? Sobre esse contexto, Foucault (1984, p.110), aponta:

O privilégio da infância e a medicalização da família. Ao problema "das crianças" (quer dizer de seu número no nascimento e da relação natalidade − mortalidade) se acrescenta o da "infância" (isto é, da sobrevivência até a idade adulta, das condições físicas e econômicas desta sobrevivência, dos investimentos necessários e suficientes para que o período de desenvolvimento se torne útil, em suma, da organização desta "fase" que é entendida como especifica e finalizada). Não se trata, apenas, de produzir um melhor número de crianças, mas de gerir convenientemente esta época da vida.

Produzir contextos de educação como potência vital das crianças, talvez perpasse pelo entendimento das questões que povoam a escola e, por vezes, nós, educadores, não alçamos tal escuta. Talvez o exercício se constitua pela atenção ao que se passa quando nada parece se passar. Que questões afetam as crianças nas experimentações curriculares nos cotidianos escolares? Quais apostas movem as nossas docências e relações com as crianças, para que elas possam exercer o seu mais alto grau de potência e aprendizagem? Quais experimentações temos oportunizado nas práticas curriculares como instrumentos de equidade e intervenções inventivas? Como temos oportunizado a conversa, a escuta e os encontros?

Conversar e encontrar talvez sejam possibilidades que perpassem pelo exercício do brincar como modo de existir na escola, que se coloca como espaço de convivência e respeito mútuo, ao mesmo tempo em que invenções são oportunizadas, pela abertura tecida entre crianças, professores, de brechas como experimentações de vida, experimentações brincantes pelo compartilhamento de culturas, medos e aprendizagens.

Brincadeiras tecidas como força que conecta as crianças a outros modos de vida, não moldados. Exercício brincante como encontro em meio às solidões povoadas, como aponta Deleuze e Parnet (1998, p.14), quando dizem que “[...] não se pode fazer escola, nem fazer parte de uma escola. Só há trabalho clandestino. Só que é uma solidão extremamente povoada. Não povoada de sonhos, fantasias ou projetos, mas de encontros. [...] É do fundo dessa solidão que se pode fazer qualquer encontro”.

Encontros são produzidos na escola, como saídas traçadas por professores e crianças, quando inventam outros modos de habitar os cotidianos escolares e outras maneiras de produção de conhecimentos, como apontado nas imagens 4, 5, 6 e 7 a seguir, com experimentações de modos caseiros de fazer massinha de modelar e bolhas de sabão, nos imbricamentos com as diferentes produções escritas que, pelo cheiro e gosto do kiwi, entram em contato com o universo das letras, palavras, escritas e aprendizagens a partir de todos os sentidos. E como aponta Prates (2020, p.134):

Ora, agenciar transformações, resistir perpassam pela experimentação de outras maneiras de fazer, pela invenção de novos modos de aprender. Experimentar a escola inventivamente se torna, assim, possibilidade de aprender com alegria pela potência da busca, pela sensibilidade dos encontros e pela diferença da composição com os espaços, tempos e coletivos nas vivências experimentadas.

Produção de massinha como encontro e escuta de si
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Produção de massinha como encontro e escuta de si
Fonte: arquivo pessoal – CMEI 2023

Produção escrita e com
massinha
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Produção escrita e com massinha
Fonte: arquivo pessoal – CMEI 2023

A experimentação de kiwi como atitude inclusiva e
possibilidade de aprendizagem
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A experimentação de kiwi como atitude inclusiva e possibilidade de aprendizagem
Fonte: arquivo pessoal – CMEI 2023

Produção de bolhas de
sabão como atitude inclusiva
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Produção de bolhas de sabão como atitude inclusiva
Fonte: arquivo pessoal – CMEI 2023

Produzir possibilidades enquanto atitudes inclusivas, não quer dizer conduzir sujeitos a um modo de atuação na sociedade ou mesmo comportamento na escola. “O que está em questão é enxergar o outro sem reduzi-lo às marcas do seu corpo; às mutilações que sofreu ou às ineficiências que seu organismo expõe quando comparado a outro” (FREITAS, 2013, p.17).

CONSIDERAÇÕES FINAIS, PARA NÃO CONCLUIR...

As práticas inclusivas na educação infantil, talvez perpassem pelos contextos brincantes experimentados, dada a necessidade vital das crianças em inventarem mundos outros para viverem. A brincadeira, a conversa, os encontros podem funcionar como mecanismo de defesa diante das práticas que desejam engessar a vida e segregar grupos e indivíduos. Profissionais da educação e famílias, podem, pelos encontros e possibilidades, saírem de um lugar de negação do outro, ou desconforto diante do estranhamento com esse outro.

Necessário se coloca, problematizarmos o brincar e o entendimento do outro como legítimo outro, na relação e produção de práticas curriculares; pelo enredamento de modos diferenciais de composição com as crianças, entrando em relação com os “corpos que correm, pulam, gritam, sobem, escorregam, cantam, dançam, choram, batem, beliscam, mordem, sorriem, encantam, alegram, criam e se relacionam com prazer com os outros e com a vida” (Prates, 2020, p.155), apesar das tantas vulnerabilidades experimentadas.

A invenção de mundos na educação infantil, traduz-se como força de resistência aos contextos sociais enrijecidos, aos engessamentos curriculares, aos modos como a vida está sendo vivida na escola e nos contextos familiares. A indagação que persiste é como inventar possibilidades de aprendizagens pelas paixões alegres e não tristes? Como experimentar, com as crianças, contextos educativos como questões existenciais e não meramente didáticas ou pedagógicas?

Sair das questões exige uma tessitura micropolítica nas intercessões de afectibilidade, inventividade nas escutas sensíveis. Questões do discurso, do problema da voz, da linguagem e da aprendizagem: o dito, o audível, o cotidiano, a experiência, as sensações latentes com a sonoridade da voz ou sua ausência (PRATES, 2020, p.131).

O investimento na potência das sonoridades das redes de conversações e nos contextos brincantes, talvez possa fazer encontrar a escola, a criança, a aprendizagem, a família, o bem estar de todos como experiência inventiva na relação com o conhecimento, como experimentação estética de viver as infâncias no seu mais alto grau de potência, como invenção de um mundo onde caibam todos, um mundo em que os estereótipos e estigmas não colaborem com a segregação e distanciamento social, um mundo em que seja possível afirmar a vida e a diferença como força.

Freire convida a pensar a diferença como força, à luz de uma política igualitária, que pode habitar todos os espaçostempos educativos, sendo que as práticas pedagógicas podem garantir “o respeito à autonomia e à dignidade de cada um, como imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros [...]. Saber que devo respeitar a autonomia [...] do educando exige de mim uma prática em tudo coerente com este saber” (FREIRE, 2000, p.66-67).

Ser coerente com este saber que inclui, que liberta, exige de nós, educadores, uma escuta sensível aos contextos experimentados pelas crianças, chamadas de crianças problema ou atípicas, bem como todas as crianças de uma escola, quiçá do mundo, para potencializarmos além da garantia do direito à vida, ao sonho, à educação, uma abertura para uma aprendizagem como criação de novos mundos, novas formas de viver a escola, sobretudo a escola inclusiva como experimentação brincante.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] Junção de palavras inspirada em Alves (2003), como potência do meio e tema inspirado em Certeau (2008), como maneira de fazer, força das experimentações políticas nos cotidianos escolares.
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