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ITINERÁRIOS DA (DES) OFICIALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO SEXUAL NOS ANOS INICIAIS: uma perspectiva histórica

ITINERARIES OF THE OFFICIALIZATION OF SEXUAL EDUCATION IN THE EARLY YEARS: a historical perspective

ITINERARIOS DE LA (DES)OFICIALIZACIÓN DE LA EDUCACIÓN SEXUAL EN LA PRIMERA INFANCIA: una perspectiva histórica

Aline Malagi
Sin institución, Brasil
Iône Inês Pinsson Slongo
Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 16, núm. 2, 2023

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 03 Novembro 2022

Aprovação: 22 Novembro 2022



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v16i2.64726

Resumo: A pesquisa relatada teve por objetivo realizar uma análise histórica sobre as iniciativas legais e os movimentos de institucionalização da Educação Sexual na escola básica, com recorte para os anos iniciais. Caracterizou-se como pesquisa documental e bibliográfica, que possibilitou identificar os principais fatores sociais, políticos, econômico e educacionais que contribuíram para que a área fosse institucionalizada e, recentemente, suprimida nos anos iniciais. O estudo foi realizado a partir de um conjunto de legislações brasileiras e currículos oficiais da Educação Básica, publicadas pela esfera federal. O texto mostra um percurso controvertido, que envolve as lutas sociais protagonizadas por diferentes atores, em favor do direito ao estudo e aos conhecimentos sobre a sexualidade, no âmbito dos anos iniciais. Os dados apontam que o tema segue sendo negado, como é o caso da recente política curricular nacional, a BNCC, que silencia quanto à oferta deste aos anos iniciais.

Palavras-chave: Documentos normativos, Sexualidade, Educação Sexual escolar, Anos Iniciais.

Abstract: The research reported aimed to conduct a historical analysis of legal initiatives and institutionalization movements of Sexual Education in elementary schools, with approach for the initial years. It was characterized as documentary and bibliographic research, which made it possible to identify the main social, political, economic, and educational factors that contributed to the institutionalization of the area and, recently, suppressed from the initial years. The study was carried out from a set of Brazilian legislation and official curricula of Basic Education), published by the federal sphere. The text presents a controversial path, which involves the social struggles carried out by different actors, in favor of the right to study and knowledge about sexuality, in the scope of the initial years. According to Ribeiro and Monteiro (2019), actions and omissions in the exercise of power are highlighted. The data indicate that the theme continues to be neglected, as is the case of the recent national curriculum policy, the BNCC, which is silent about the offer of the theme in Elementary School I.

Keywords: Sexuality, School sex education, Initial Years.

Resumen: La investigación relatada tuvo como objetivo realizar un análisis histórico de las iniciativas legales y los movimientos de institucionalización de la Educación Sexual en las escuelas primarias, con foco en los primeros años. Se caracterizó como una investigación documental y bibliográfica, que permitió identificar los principales factores sociales, políticos, económicos y educativos que contribuyeron a la institucionalización del área y, recientemente, reprimidos desde los años iniciales. El estudio fue realizado a partir de un conjunto de legislación brasileña y currículos oficiales de Educación Básica), publicados por el ámbito federal. El texto muestra un camino polémico, que involucra las luchas sociales protagonizadas por diferentes actores, a favor del derecho al estudio y al conocimiento de la sexualidad, en el ámbito de los años iniciales. Según Ribeiro y Monteiro (2019), se destacan las acciones y omisiones en el ejercicio del poder. Los datos indican que la temática sigue siendo desatendida, como es el caso de la reciente política curricular nacional, la BNCC, que guarda silencio sobre la oferta de la temática en la Enseñanza Básica I.

Palabras clave: Sexualidad, Educación sexual escolar, Años Iniciales, Políticas educativas.

1 INTRODUÇÃO

A demanda pelo estudo da Sexualidade, especialmente na Educação Básica, dada sua contribuição relevante à emancipação dos sujeitos, tem feito do tema um objeto prioritário de inúmeras investigações, a partir dos diferentes tempos e espaços curriculares, como também, de diferentes abordagens e propostas educacionais, como mostra o estudo de Miranda (2021). Estes estudos têm contribuído para redimensionar aspectos legais, epistemológicos, educacionais e didáticos-pedagógicos, tornando, cada vez mais, a Educação Sexual Escolar uma prioridade, desde as primeiras infâncias.

Este artigo traz uma leitura crítica do período que vai dos anos 1960 aos dias atuais, explicitando alguns fatores que contribuíram decisivamente para que a Educação Sexual Escolar, enquanto um direito da infância, fosse um tema negado, mais tarde promovido e desenvolvido curricular e pedagogicamente e, mais recentemente, novamente silenciado. A análise teve como foco documentos normativos vigentes no recorte temporal, orientada por pressupostos teóricos relevantes, relativos à temática em foco.

Para a construção deste percurso se fez necessário revisitar a história da educação brasileira, com destaque para os principais fatores sociais, educacionais, políticos e econômicos que geraram impactos no objeto de investigação, causando modificações no seu desenvolvimento. Para os objetivos deste artigo, o período histórico analisado foi dividido em cinco momentos: anos 1960, 1970, 1980, 1990 e 2000. Neste percurso extraiu-se da legislação vigente e da produção histórica sobre o tema, os elementos indicativos da presença ou ausência do debate sobre a Sexualidade e Educação Sexual nos anos iniciais do ensino fundamental, com destaque para suas finalidades e razões da sua presença ou ausência nos projetos formativos, em cada período.

2 OS ANOS 1960 E A AUSÊNCIA DA EDUCAÇÃO SEXUAL EM ÂMBITO ESCOLAR

A década de 1960 foi tomada como marco neste estudo, dada sua relevância para diversos aspectos sociais, como, a política, a economia, as lutas sociais e educacionais, entre outras. Neste cenário, o tema em foco, sexualidade e Educação Sexual, ganharam força no país, em especial pelo alcance e influência exercida pelo movimento feminista, como também, pelo “nascimento” da pílula anticoncepcional. Foi justamente neste período, tido como o mais cruel e repressor que o país viveu devido a ditadura que se instaurava, que valores e comportamentos foram revolucionados. Isto não quer dizer que, anteriormente à década de 1960, não se falasse sobre sexualidade. Segundo Rosemberg (1985), tratava-se de um tema com veiculação controlada, por um discurso específico que se pautava nas diretrizes repressoras da Igreja, por tratar-se de algo sujo e pecaminoso, cuja função deveria limitar-se à reprodução humana. Neste contexto repressivo e de controle, Gagliotto (2014) afirma que a sexualidade foi vista como algo negativo, que deveria ser vigiado e controlado.

Segundo Ribeiro (2004), com a chegada dos anos 1960, atores sociais, como médicos, padres, professores e até membros mais esclarecidos da sociedade civil, passaram a demonstrar interesse por questões ligadas à sexualidade e uma possível Educação Sexual fora institucionalizada. Algumas escolas chegaram a implementar programas de Educação Sexual, encorajados pelas transformações culturais, políticas e sociais da época. Portanto, esta importante expressão humana, a sexualidade, passou a ter alguma visibilidade no país na primeira metade da década de 1960, repercutindo, ainda que de forma esporádica, em alguns espaços escolares. Escolas dos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, ousadamente organizaram e implementaram programas de orientação sexual[1] para seus alunos, mesmo em um período marcado por forte instabilidade em diferentes setores sociais e de repressão político-militar crescente no país. Segundo Gagliotto (2014), à época, prevaleceu uma abordagem biologicista que, apesar disto, representou significativa inovação[2] e avanço para a

Na análise de Guimarães (1995), a década de 1960 foi um período favorável à renovação de experiências pedagógicas, e nesta ambiência, surgiram várias tentativas de implantação da orientação sexual em âmbito escolar. Mesmo às vésperas do golpe de 1964, a imprensa vivia um clima de liberdade, o movimento estudantil, entre outros movimentos sociais, possuía forte representatividade. A cultura do período era influenciada pelo fenômeno da década, o rock’n’roll, um movimento com conteúdo intenso e crítico. Os movimentos sociais, feministas e de jovens, questionavam os padrões sociais estabelecidos, contribuindo para a liberdade sexual crescente no país, reforçada pela segurança oferecida pela criação científica inaugurada no início da década, a pílula anticoncepcional.

É neste contexto que a década de 1960 representa um marco histórico na construção de uma mentalidade favorável à Educação Sexual. Porém, a trégua foi provisória. O golpe de 1964, que instaurou a ditadura no país, produziu, nos anos que se seguiram, um contexto de perda das liberdades individuais que vinham sendo conquistadas, incluindo, portanto, as manifestações, discussões e estudos sobre a sexualidade. Este fato produziu retrocessos em diversas áreas, incluindo a educação e o debater sobre a sexualidade, escolas foram fechadas e professores denunciados pela sua ousadia, de continuar com seus projetos na área da orientação sexual.

Em meio a muitas disputas sociais, políticas e econômicas que o país passava, foi aprovada a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Lei n. 4.024/1961 (BRASIL, 1961), que reorganizou o sistema de ensino no território nacional. Dentre outras mudanças, a nova Legislação incluiu a educação pré-primária para crianças de até 7 anos e estabeleceu a Educação Básica em ensino primário (1ª a 4ª série), obrigatória para crianças a partir dos 7 anos, tendo por finalidade o “[...] desenvolvimento do raciocínio e das atividades de expressão da criança, e a sua integração no meio físico e social” (BRASIL, s/p, 1961). Na sequência, estabeleceu a educação de grau médio (ensino médio), em prosseguimento àquela ministrada na escola primária, destinada à formação do adolescente e desenvolvida em dois ciclos, o ginasial e o colegial, abrangendo, “[...]cursos secundários, técnicos e de formação de professores para o ensino primário e pré-primário” (BRASIL, s/p, 1961).

Com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1967 (BRASIL, 1967) e a Emenda Constitucional de 1969 (BRASIL, 1969), o ensino dos 7 aos 14 anos passou a ser obrigatório para todos e gratuito nos estabelecimentos oficiais de ensino. Para Gagliotto (2014), nessa década, apesar dos avanços legais, a educação para a infância seguiu em plano secundário, assim como, a orientação sexual. O foco esteva no desenvolvimento do raciocínio lógico das crianças e nas formas de expressão, através da leitura, escrita e aritmética.

Nesse cenário, o crescente interesse pelo tema entre as camadas mais esclarecidas da sociedade não foi suficiente para promover políticas públicas que incluíssem a orientação sexual das crianças e dos estudantes em geral. Os dois principais ordenamentos legais, LDBEN Lei n. 4.024/1961 e na CF de 1967 silenciaram o assunto e sua ausência refletiu nos currículos escolares em geral, bem como, nos cursos de formação de professores.

3 OS ANOS 1970 OFICIALIZAM A ABORDAGEM DA SEXUALIDADE EM ÂMBITO ESCOLAR

Neste período, o mundo viu a ciência e a tecnologia impulsionarem as chamadas economias periféricas e o capitalismo crescente foi muito hábil em fazer a conexão entre os avanços científicos e o mercado. A humanidade experimentou um progresso material sem precedentes na história. A existência humana foi sofisticada, acompanhada “[...] pelo mundo dos sentidos, da inteligência, do lúdico, da rebeldia juvenil e o espírito humano e toda natureza que lhe é exterior, tornaram-se produtos colocados à venda, viraram objetos apropriados pelo capital” (ESPINDOLA, 1998, p. 80).

Nesta senda, cresceu a demanda pela educação, que passou por reformas, influenciadas pelo pensamento educacional norte-americano, em especial pelas propostas advindas da United States Agency for International Development (USAID), através do acordo com o Ministério da Educação (MEC), MEC-USAID, firmado a partir do Golpe Militar, em 1964. O acordo objetivava implantar o modelo universitário norte-americano nas universidades brasileiras, através de uma reforma universitária para superar a crise da educação superior (ROMANELLI, 2006). Na esteira destas mudanças é proposta nova Lei de Diretrizes e Bases para a Educação (LDB), Lei n.º 5.692/1971 (BRASIL, 1971). A Reforma Universitária foi prevista na Lei n. 5.540/1968 (BRASIL, 1968), que fixava as normas para a reorganização da educação superior brasileira. Segundo Schwacz e Starling (2015), nos diferentes níveis de ensino, o prevalente ensino tecnicista intencionava, além de formar mão-de-obra qualificada para o sistema produtivo, superar as discrepâncias existentes no sistema educacional nacional, que produzia resultados abaixo da expectativa.

Com o decreto do Ato Institucional n.º 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968 (BRASIL, 1968), o início da década de 1970 foi marcada por um recrudescimento e a formalização do período de exceção política no país. De acordo com Rosemberg (1985), o Ministério da Justiça foi encarregado de censurar todo “texto contrário a moral e os bons costumes”. A sexualidade, ainda muito associada à “subversão”, passou a figurar como uma questão polêmica e alvo de repressão e investigações, principalmente quando vinculada à educação de crianças e adolescentes.

Assim, no contexto da Ditadura Militar e vigência do AI-5, a publicação da Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para o ensino de primeiro e segundo graus, Lei n.º 5.692/1971 (BRASIL, 1971), tornou obrigatória a inclusão de uma disciplina intitulada “Programas de Saúde”, “[...] será obrigatória a inclusão de Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde nos currículos plenos dos estabelecimentos de lº e 2º graus [...]”, (BRASIL, s/p, 1971). Tal obrigatoriedade, mesmo que de forma implícita e não admitida oficialmente, possibilitava a inclusão da sexualidade no ensino de primeiro e segundo graus, uma perspectiva que, apesar de discreta, comedida, representou uma inovação curricular no seu tempo. Sem ter a pretensão de minimizar a ousadia deste ato em seu contexto histórico, questiona-se o teor da orientação sexual promovida, uma vez que esta convivia com diretrizes que orientavam banir discussões que promovessem “desvios de padrões de normalidade” (BUENO; RIBEIRO, 2018).

Segundo Nunes (2006), mesmo neste contexto político pós-golpe, os projetos de orientação sexual seguiam eclipsados, orientados pela perspectiva médico-biologicista e associados ao ensino de Ciências. Esta abordagem da sexualidade, embora representando um avanço, contemplava apenas a descrição das funções procriativas, centrada nas características e funções do aparelho reprodutor masculino e feminino.

Embora o ensino da Sexualidade tenha sido contemplado, ainda que de forma incipiente, pela LDB, Lei n.º 5.692/71 (BRASIL, 1971), esta permaneceu excluída dos currículos oficiais da educação básica, ausência que mais uma vez reverberou nos currículos dos cursos de formação de professores (LORENZI, 2017; BUENO; RIBEIRO, 2018).

É a partir de 1978, marco da abertura política do país e, consequentemente, do afrouxamento da censura imposta pela ditadura militar, que estudos e debates sobre Sexualidade começaram a emergir em diferentes lugares do país. Segundo Ribeiro (2004), as intervenções sobre orientação sexual, neste período, passaram a ser responsabilidade de órgãos públicos, que elaboraram projetos para as instituições de ensino do país e, não mais elaboradas pelos professores, como ocorreu na década anterior.

Outro episódio importante, que cabe destacar nesta trajetória, foi a realização do I Congresso de Educação Sexual nas escolas, ocorrido em 1978. Para Rosemberg (1985), a realização do evento foi decisiva à abertura de espaço para o debate público sobre sexualidade em âmbito escolar. O fato contribuiu para que o tema ganhasse espaço na mídia, atendendo a uma demanda crescente da população, de falar e ouvir sobre sexualidade. Assim, o final da década de 1970 trazia consigo um cenário de mudanças de comportamento e de liberdade para questionar sobre tabus, preconceitos e posturas conservadoras relacionadas à sexualidade, ou seja, de liberdade para dialogar, perguntar e abordar o tema.

4 ANOS 1980: estudo da sexualidade ou o controle das infecções sexualmente transmitidas?

Na década de 1980, o Brasil vivia um processo de redemocratização, após mais de duas décadas de Governo Militar (1964-1985). O período ficou conhecido, por fazer triunfar um discurso cheio de euforia e liberdade, sufocado pela censura vivida durante a ditadura militar.

Segundo Schwarcz e Staling (2015), em decorrência dos acontecimentos políticos e sociais que vinham marcando o país, desde o início do governo militar, a sociedade, descontente com o cenário autoritário e repressor imposto, intensificou os processos participativos em diferentes instâncias e direções, levando a década a culminar como o estabelecimento de uma Assembleia Nacional Constituinte e a aprovação, pelo Congresso Nacional, da Constituição Federal (CF) de 1988 (BRASIL, 1988). A lei previu a diluição de regimes autoritários, o fortalecimento do compromisso com a democracia e a elaboração de dispositivos legais entre os estados da nação, a partir da elaboração de políticas públicas específicas.

Neste contexto, a Nova Carta Constitucional (BRASIL, 1988), apontou para a necessidade de leis específicas, orientativas para o sistema educacional brasileiro, com a intencionalidade de formar sujeitos mais críticos e participativos nas decisões e rumos da nação. Entraram em cena a defesa de ideais pautados no combate ao racismo, na necessidade da reforma política, na defesa dos direitos trabalhistas, no acesso e posse à terra para os indígenas, entre outras conquistas sociais. Consequentemente, nesse processo de redemocratização do país, a educação passou a ser vista como direito de todos e uma via imprescindível à construção e pleno exercício da cidadania. A Lei deixou explícito que todo cidadão tem direito à educação, sendo esta, “[...] direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, s/p,1988).

Um dos elementos considerados inovadores da CF de 1988 (BRASIL, 1988) assenta-se na valorização da Educação Básica gratuita como um direito de todos, uma vez que as constituições anteriores ora promoveram avanços, ora retrocessos em relação ao direito ao acesso à educação básica.

No contexto de inovação nas diferentes esferas sociais que vinha desenhando desde a década de 1970, Pinheiro (1997), argumenta que apesar do clima que se tinha para o que se chamava de “liberdade sexual”, os jovens da década de 1980 encontravam-se “perdidos” e em conflito diante da recente liberdade conquistada e que possibilitava falar, estudar e debater sobre os temas relativos à sua sexualidade, afinal, certa postura conservadora insistia em permanecer.

Instalava-se, portanto, nos anos 1980, um sentimento paradoxal quanto às questões ligadas à sexualidade. Ao mesmo tempo, em que a sociedade brasileira experimentava uma fase de abertura política, fundada na participação social, na busca por liberdade e igualdade, persistiam valores relativos ao controle dos comportamentos sexuais.

De acordo com Werebe (1998), entre as décadas de 1960 a 1990, a Educação Sexual estava ligada ao crescimento demográfico do país, uma das grandes preocupações dos países do terceiro mundo, associado à crescente urbanização e industrialização desses países. Havia o propósito de controle dos comportamentos sexuais dentro do matrimônio, no planejamento familiar e nos índices de aumento das Infecções Sexualmente Transmissíveis/IST’s, principalmente o Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS).

Com o aumento no número de infectados pelo vírus Vírus da Imunodeficiência Humana (HIV) e o crescente número de mortes associados a ela, a sociedade foi convocada a repensar o estudo da sexualidade, enquanto uma questão social e humana prioritária. Esta foi então reinserida no sistema educacional básico, tendo sido abordada não por educadores, mas por profissionais da saúde, que privilegiaram, mais uma vez, a perspectiva biologicista do corpo, centrando a Educação Sexual, nos aspectos biológicos dos aparelhos reprodutores feminino e masculino, no correto uso dos métodos contraceptivos e na prevenção das IST´s (NUNES, 2006; GAGLIOTTO, 2014; LORENZI, 2017).

Portanto, até o final da década de 1980, ainda não contávamos com legislação específica, que transformasse a Educação Sexual em conteúdo escolar, isto é, curricular, em uma perspectiva mais integradora e emancipatória, nos diferentes níveis de ensino. Neste cenário, a Educação Sexual seguia dependendo de iniciativas individuais, quase sempre esporádicas, cujo foco limitava-se aos seus aspectos biológicos.

5 A DÉCADA DE 1990 INSTITUI OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS: a orientação sexual é tratada como tema transversal

Ao adentrar os anos 1990, o cenário político brasileiro adotou um conjunto de ideais neoliberais que se destacavam em âmbito internacional. Tais políticas eram vistas como alternativas para a superação da crise das economias mundiais e seus princípios advogavam a participação mínima do estado nas atividades socioeconômicas, a privatização de empresas estatais e a abertura do mercado para empresas multinacionais, sob a lógica do livre comércio (ANDRADE, 2018).

A década foi marcada por inúmeras reformas políticas que influenciaram a construção de diversos projetos relacionados à educação. Os princípios constitucionais da CF de 1988 deram guarida à proposição de uma nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para a educação nacional, a Lei n.º 9.394, de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL, 1996). No horizonte deste movimento esteve a ampliação do acesso da população à escola, bem como, a melhoria do seu financiamento, a promoção do pensamento crítico e da cidadania, pela participação do sistema educacional brasileiro, em uma sociedade em pleno desenvolvimento em suas esferas social, política e econômica.

A partir dos anos 1990, a perspectiva de formação humana, pautada no exercício da cidadania e na valorização dos direitos civis e políticos, influenciaram a inserção de categorias como cultura e pluralidade nas políticas públicas educacionais. Entre os temas priorizados, ganhou espaço nas políticas curriculares da educação básica, o estudo da sexualidade, agora, em sua multidimensionalidade. Esta decisão, conforme explicitaremos, gerou importante consequência, nos currículos da Educação Básica.

Deste modo, tanto na CF de 1988, quanto na LDB de 1996, observa-se a enfática importância de construir uma educação pautada no pleno exercício da cidadania, na garantia à participação das novas gerações no presente e no futuro do país (BRASIL, 1988; BRASIL, 1996). Especificamente o texto da LDB, quando versa sobre os princípios e fins da Educação nacional, nos Art. 2º e 3º, assim dispõe:

Art. 2º. A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.

Art. 3º. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios:

I- Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;

II- Liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber;

III - Pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas;

IV - Respeito à liberdade e apreço à tolerância;

[...]

XI - Vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as práticas sociais (BRASIL, 1996, [s/p], grifos nosso).

As expressões, “pleno desenvolvimento do educando”, “pluralismo de ideias”, “respeito a liberdade, apreço à tolerância” e “vinculação da educação escolar com as diversas práticas sociais” (BRASIL, 1996), possibilitam interpretar que o Documento acolheu a necessidade e importância de reflexões acerca de questões que extrapolam os tradicionais conteúdos disciplinares. Para tanto, desde a LDB de1996, há indicativos, embora implícitos, de que a educação básica, precisa buscar tal aproximação e empreender esforços formativos nesta direção.

As discussões sobre as diversidades que formam a sociedade brasileira, foram gradativamente intensificadas, incorporando ao debate à importância da Educação Sexual, a fim de promover reflexões sobre sua importância na formação integral do sujeito, desde as primeiras idades. Ou seja, não mais uma Educação Sexual reduzida às questões biológicas ou da prevenção de doenças e da gravidez, mas que, sem prescindir destas, vai além, busca o desenvolvimento pleno do ser humano e sua cidadania.

Na efervescência da década de 1990, segundo Ribeiro (2004; 2013), houve um aumento expressivo de publicações, projetos, eventos e grupos de estudo com foco na sexualidade e na importância de transformar o tema em conteúdo escolar. Portanto, em contexto favorável, em 1997, em sintonia com a recém aprovada LDB, Lei n.º 9.394/1996, o MEC anunciou os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) (BRASIL, 1997). Estes representaram uma medida educacional para cumprir os compromissos assumidos, nacional e internacionalmente, pelo governo brasileiro, contendo um conjunto de diretrizes orientativas para a educação básica nacional.

A proposta, que contou com ampla crítica, discussões e contribuições dos envolvidos em organizações representativas do universo educacional, definiu elementos básicos comuns que objetivavam, segundo Saviani (1996), constituir-se em uma espécie de “base comum nacional” enquanto uma proposta de reforma curricular para a educação básica brasileira. O Documento, alinhou-se à CF, que orienta, através de seu artigo 210, fixar conteúdos que assegurem uma formação básica comum e inclua o reconhecimento e respeito a valores culturais e artísticos, em âmbito nacional e regional (BRASIL, 1988). Neste sentido, os PCN representaram a tentativa de promover a qualidade da educação básica, bem como, congregar as iniciativas que vinham sendo realizadas por estados e municípios, no sentido de promover reformas curriculares.

Além de constituir-se um conteúdo da área de Ciências, o estudo da Sexualidade foi abordado de modo específico, no Volume 10 dos PCN, intitulado “Pluralidade Cultural e Orientação Sexual: temas transversais” (BRASIL, 2001). O Documento apresenta um conjunto de pressupostos que concebem a realidade social como algo constituído por diferentes grupos e classes sociais e, sendo assim, contraditória, plural e polissêmica. Neste sentido, defende um currículo escolar flexível e aberto, onde diferentes temas podem ser priorizados e contextualizados, de acordo com as realidades locais e regionais, portanto, capaz de contribuir para promover a desejada transformação social.

Com estes contornos, o conteúdo da sexualidade foi, enfim, assumido curricularmente, sob a denominação de “Orientação Sexual” –termo utilizado pelos Parâmetros Curriculares Nacionais/PCNs (BRASIL, 1997) para designar a prática educativa sobre Sexualidade em âmbito escolar. Em item específico, o documento explicita a concepção de sexualidade com a qual dialoga:

A sexualidade tem grande importância no desenvolvimento e na vida psíquica das pessoas, pois, além da sua potencialidade reprodutiva, relaciona-se com a busca do prazer, necessidade fundamental das pessoas. Manifesta-se desde o momento do nascimento até a morte, de formas diferentes a cada etapa do desenvolvimento humano, sendo construída ao longo da vida. Além disso, encontra-se necessariamente marcada pela história, cultura, ciência, assim como pelos afetos e sentimentos, expressando-se então com singularidade em cada sujeito. Indissociavelmente ligado a valores, o estudo da sexualidade reúne contribuições de diversas áreas, como Educação, Psicologia, Antropologia, História, Sociologia, Biologia, Medicina e outras (BRASIL, 1998, p. 11).

Neste sentido, o PCN concebe temas como ética, saúde, meio ambiente, cultura e orientação sexual, como transversais, isto é, que não devem ser abordados necessariamente em disciplinas específicas, mas, atravessar todos os campos do conhecimento. Esta é a alternativa utilizada pelo PCN, para tratar estas temáticas sociais complexas, sem restrições à abordagem de uma área ou à abordagem escolar, uma vez que são tratadas em diferentes espaços da sociedade, entre eles, a escola. Nesta, os PCN não indicam uma ‘voz autorizada’ ao estudo e ao debate, através de uma área do conhecimento, mas, a pluralidade de ‘vozes’, isto é, de áreas do saber humano.

Gagliotto (2014), ao analisar a presença dos PCN na realidade educacional brasileira, chama a atenção para uma importante dificuldade enfrentada pela perspectiva transversal. Embora a autora reconheça os avanços promovidos pelos PCN para a inclusão da temática no ambiente escolar e na formação inicial e continuada de professores, aponta que, na prática, a iniciativa esteve em desacordo com a perspectiva transversal que deu origem ao Documento oficial, especialmente porque não demonstrou ter contribuído para a criação do espaço-tempo curricular para a Educação Sexual. Quanto à abordagem metodológica, os PCN (BRASIL, 2001), enfatizaram a vivência do método científico, o desenvolvimento do pensamento reflexivo, orientando para a centralidade do estudante no processo de conhecimento e em sua participação ativa ao longo de todo o processo educacional.

Portanto, apesar das sintonias e desacordos, em 1997 os PCN constituíram-se num primeiro grande marco na institucionalização da Orientação Sexual no âmbito da Educação Básica (FIGUEIRÓ, 2006; GAGLIOTTO, 2009, 2014; LORENZI, 2017). Este Documento, em diálogo com as propostas curriculares dos estados, orientou a educação básica nacional por mais de duas décadas, gerando um contingente de estudos que fizeram vigilância crítica ao seu potencial curricular.

Ainda conforme os PCN, o professor e seu aluno, assumem expressões próprias da sua sexualidade, traduzidas na forma de crenças, valores, opiniões e sentimentos, que são de ordem particular. Portanto, para que o professor pudesse conduzir um trabalho educacional sobre a sexualidade, conforme concebido pelos PCN, necessitava receber formação sobre o estudo da Sexualidade e a Orientação Sexual em espaços escolares. Assim, ao entrar em contato com questões teóricas, leituras e discussões específicas sobre o tema, estaria ressignificando e transformando suas próprias compreensões, valores e (pré)conceitos, uma vez que “[...] é necessário então que o educador tenha acesso à formação específica para tratar de sexualidade com crianças e jovens na escola, possibilitando a construção de uma postura profissional e consciente no trato desse tema” (BRASIL, p. 123, 2001).

Este é o caminho fundamental da formação crítica, continuada e sistemática, que a abordagem da Sexualidade emancipatória em âmbito escolar exige de educadores e educandos. A aposta nesta perspectiva funda-se na promoção da autonomia e senso crítico para identificar os valores presentes na sociedade, analisá-los, realizando escolhas, respeitando a diversidade e promovendo a emancipação humana (NUNES, 2006).

Para Figueiró (2006), a intencionalidade dos PCN constituiu-se como possibilidade de diminuir os danos da dispersão com que o tema historicamente vinha sendo trabalhado, sempre relegado a iniciativas pontuais, com tendência para as questões biológicas, de transmissão de conhecimentos técnicos, biologicistas e higienistas, ou de iniciativas pontuais de educadores e pesquisadores. Assim, ao defender o tratamento curricular da Sexualidade em âmbito escolar, o Documento aponta a necessária correspondência que o desafio traz para a formação de professores. Defende, pois, a inclusão da disciplina de Educação Sexual nos currículos da formação de professores que vão atuar junto às crianças.

6 2018: a BNCC retrocede e exclui o debate da sexualidade nos anos iniciais do ensino fundamental

Com a chegada dos anos 2000, a sociedade brasileira continua a lidar com as profundas mudanças de normas e padrões culturais que se iniciaram nos anos 1980. A década é marcada por inúmeras reformas políticas que influenciaram a construção de diversos projetos na área da educação. É importante destacar que nesse período, as pesquisas sobre a Sexualidade e Educação Sexual avançaram muito, tanto quantitativa, quanto qualitativamente, dado o processo de expansão da pós-graduação no país, tendo agregado a este movimento dados fundamentais relativos aos avanços promovidos.

A perspectiva de formação humana, ganhou força na sociedade brasileira, pautando-se no exercício da cidadania e na valorização dos direitos civis, previstos na CF de 1988 e que influenciaram profundas mudanças nas normas e padrões culturais ligados também à sexualidade. A sociedade passou a conviver e promover os estudos de gênero e colocou em pauta a necessidade de compreender diferentes formas de lidar com as sexualidades e as diversidades emergentes. Ações governamentais foram promovidas para efetivar o desenvolvimento de projetos e programas que se pautassem na igualdade de gênero, no respeito à diversidade e no combate à homofobia.

No entanto, a partir de 2010 um discurso antissocial e conservador entra em cena, orientado por um fundamentalismo religioso cristão, que se coloca abertamente contra atitudes, comportamentos, manifestações e discursos a favor das diversidades emergentes (LORENZI, 2017). A igualdade de gênero, diversidade sexual, liberdade de expressão e promoção da cidadania, passaram a ser temas acossados por setores mais conservadores da sociedade brasileira, ainda que, plenamente sintonizados com a Constituição Cidadã de 1988 (BRASIL, 1988).

Neste contexto, a educação escolar brasileira, ancorada nos PCN (BRASIL, 1997), passou por um intenso debate sobre as concepções de homem, sociedade e mundo que passariam a sustentar o novo Plano Nacional de Educação (PNE), que regeria a educação brasileira na década vindoura (2011-2020). Porém, em uma ambiência conservadora que se fortalecia, ganhou espaço um intenso movimento de proporção nacional, pela supressão do termo “gênero” dos documentos oficiais que orientavam a educação nacional. O termo foi suprimido e, com ele, conquistas de décadas foram fragilizadas.

As mudanças políticas ocorridas em 2012, associadas ao baixo crescimento do país e à recessão econômica que se fazia sentir, levaram a um atraso no encaminhamento da proposta do PNE para o decênio em curso. O debate do projeto no Congresso Nacional ocorreu sob forte dissenso quanto a investimentos e metas de desempenho do sistema educacional e, o novo Plano, que deveria ser colocado em vigor em 2011, veio a termo somente em 2014 (Lei 13.005, de 25 de junho de 2014 – atualizado em 01 de dezembro de 2014). O documento inicial, elaborado pela Conferência Nacional de Educação (CONAE) e que fundamentaria o novo PNE, trazia o debate sobre gênero e diversidade sexual, e visava “[...] introduzir e garantir a discussão de gênero e diversidade sexual na política de valorização e formação inicial e continuada dos/das profissionais da educação nas esferas federal, estadual, distrital e municipal, visando ao combate do preconceito e da discriminação [...]” (BRASIL, 2010, p. 145 - 146).

No entanto, o ano de 2015 foi palco de diversas discussões. Além do descontentamento com o governo, notadamente no âmbito das medidas econômicas que vinham sendo tomadas e que justificavam manifestações populares desde 2013, diversos grupos foram se articulando, entre eles, grupos de religiosos, com repercussões nas bancadas legislativas municipais, estaduais e federais. Este movimento, mais uma vez, acabou por promover reordenamentos legais, com posições marcadamente conservadoras em relação à educação nacional.

Neste mesmo ano, o MEC instituiu uma Comissão de Especialistas para a elaboração de proposta de Base Nacional Comum Curricular para o país, a BNCC, um documento normativo, cuja intencionalidade foi estabelecer um conjunto de aprendizagens necessárias no sistema educacional brasileiro. A primeira versão do Documento foi disponibilizada para consulta em 2015; a segunda versão, em 2016 e, em 2017, após finalizados os Seminários Estaduais, o MEC entregou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) a terceira versão do Documento (BRASIL, 2017). Em dezembro do mesmo ano, a proposta da BNCC para a Educação Infantil e Ensino Fundamental foi homologada e, em 2018, a parte referente ao Ensino Médio.

Particularmente quanto às discussões sobre sexualidade e questões de gênero, a primeira versão da BNCC mostrou disposição em manter o tema no foco das diversas áreas do conhecimento. Já na segunda versão do documento, houve significativas mudanças na abordagem do tema, observa-se uma ampliação de quantidade de informações e esclarecimentos sobre as temáticas. A terceira versão do Documento, lançada em um momento de profunda crise política do país, elimina por completo a menção explícita dos termos sexualidade e gênero na Educação Infantil e nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental.

Na página de apresentação da BNCC, o então Ministro da Educação, Mendonça Filho, afirma que:

[...] a BNCC expressa o compromisso do Estado Brasileiro com a promoção de uma educação integral voltada ao acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno de todos os estudantes, com respeito às diferenças e enfrentamento à discriminação e ao preconceito. Assim, para cada uma das redes de ensino e das instituições escolares, este será um documento valioso tanto para adequar ou construir seus currículos como para reafirmar o compromisso de todos com a redução das desigualdades educacionais no Brasil e a promoção da equidade e da qualidade das aprendizagens dos estudantes brasileiros (BRASIL, 2018, p. 5, grifos nossos).

No entanto, mesmo priorizando elementos de uma educação inclusiva, de respeito às diferenças e o enfrentamento à discriminação e ao preconceito, bem como à adequação e construção de currículos que reafirmem o compromisso de redução das desigualdades, a temática da Sexualidade, diretamente ligada aos compromissos assumidos com a emancipação humana, já não figura na BNCC.

O processo de elaboração do Documento (BRASIL, 2017), trouxe um grande embate na discussão do tema Sexualidade nas primeiras idades e mais especificamente ao que se refere ao termo gênero. Dentre os temas, observa-se a supressão do que era contemplado nos PCN como Orientação Sexual (BRASIL, 1997).

Portanto, no que tange aos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, a BNCC silencia quanto à abordagem de Gênero e Sexualidade. Isto significa que os avanços apontados e promovidos pelos PCN em 1997 (GAGLIOTTO, 2009; LORENZI, 2017, foram depauperados. O tema é citado de passagem e sem ênfase, apenas nos Anos Finais do Ensino Fundamental, “nos anos finais, são abordados também temas relacionados à reprodução e à sexualidade humana, assuntos de grande interesse e relevância social nessa faixa etária [...]” (BRASIL, 2018, p. 325, grifos nosso).

Observa-se que no documento (BRASIL, 2017 a palavra “sexualidade” aprece apenas na citação acima e no conteúdo de Ciências do 8º ano, na unidade temática “Vida e Evolução”, dentro do objeto do conhecimento: sexualidade, quando contempla a habilidade “selecionar argumentos que evidenciem as múltiplas dimensões da sexualidade humana (biológica, sociocultural, afetiva e ética) - EF08CI1”, totalizando apenas três menções à palavra. Repetindo o mesmo processo de busca com a palavra “gênero”, não foi localizada nenhuma menção em todo o documento.

Embora o documento da BNCC deixe claro em vários momentos a importância dos sistemas e redes de ensino, bem como escolas, nas suas respectivas esferas de suas competências e autonomia, “[...] incorporar aos currículos e às propostas pedagógicas a abordagem de temas contemporâneos que afetam a vida humana em escala local, regional e global, preferencialmente de forma transversal e integradora” (BRASIL, 2018, p. 19, grifo nosso), o retrocesso referente ao estudo da temática da Sexualidade fica evidente em sua versão final.

Percebe-se, como afirma Desidério (2020), um distanciamento do conceito da sexualidade, aproximando-o de uma visão reducionista e com fins repressores, que predominou na história e insiste em se manter, isto é, de abordagem parcimoniosa e com foco na prevenção de doenças, da violência e gravidez não planejada, em especial na adolescência.

Faz-se necessário, partir do pressuposto de que a sexualidade é uma condição exclusivamente humana (NUNES, 2006; FIGUEIRÓ, 2014; GAGLIOTTO, 2014; LORENZI, 2017), que seu ensino não se limite a uma abordagem biológica, fragmentada e de exclusividade do ensino de Ciências, mas, que carece de uma abordagem integradora e interdisciplinar, comprometida com a totalidade do ser, considerando a sua construção histórica, social e cultural. Assim, Werebe (1998), afirma que ainda se faz necessário criar condições para que as crianças e jovens possam falar sobre suas dúvidas, inquietações e curiosidade sobre sexualidade, muito além do que propõe a BNCC.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O percurso de busca por ordenamentos legais, que orientaram a institucionalização da Educação Sexual no Brasil, evidenciou várias dificuldades e que os tempos áureos, de promoção do estudo da sexualidade, enquanto um espaço-tempo curricular, foi solapado mais uma vez. Foi necessária uma busca atenta e minuciosa pelos documentos, a fim de perceber a presença, implícita ou não, de conteúdos que significassem a defesa pelo estudo da sexualidade em âmbito escolar. Além dos dados favoráveis presentes nos PCN, especialmente no período de quase duas décadas de vigência do Documento, observou-se que na trajetória histórica de 60 anos analisados, houve o predomínio de vazios em relação a documentos oficiais, no sentido de promover e normatizar o estudo do tema nos Anos Iniciais.

Em outras palavras e em forma de síntese, observamos que na década de 1960 não foram encontradas menções legais, mesmo que de forma implícita, que orientassem um trabalho mais focado na Educação Sexual. Em 1971, a partir da LDB, Lei n.º 5.692, pela primeira vez, observou-se prerrogativa legal para a inclusão nos currículos de 1º e 2º graus, de um tema de interface, os Programas de Saúde, que acabou por possibilitar às instituições educacionais, o trabalho de temas relativos à sexualidade. Porém, como tudo ainda estava sob orientação de governos ditatoriais, a iniciativa acabou por gerar pouco impacto na educação fundamental.

Na década de 1980, com a nova Constituição Federal (BRASIL, 1988) observa-se um paradoxo. Ao mesmo tempo, em que houve a defesa de novos ideais para a nação brasileira, incluindo a educação como um direito de todos e dever do Estado e delibou sobre a igualdade de gênero, doutrinou a representação da família à união entre homem e mulher, excluindo outras pluralidades relativas à união afetiva.

Em 1996, uma nova versão da LDB, Lei n.º 9.394, (BRASIL, 1996), reafirmou o compromisso do Estado Brasileiro com o direito à educação para todos, garantido na CF 1988 (BRASIL, 1988). Concomitantemente, o MEC promoveu mudanças em suas políticas curriculares nacionais para a Educação Básica, colocando em vigência os PCN (BRASIL, 1997), considerados pela comunidade científica nacional (FIGUEIRÓ, 1998; GAGLIOTTO, 2014; LORENZI, 2017) com um grande passo em direção ao reconhecimento e institucionalização da Educação Sexual escolar em nosso país. No entanto, sua elaboração e implementação não foi fruto do acaso, mas, resultante de amplo debate sobre objetivos educacionais e sociais mais amplos. Subjacente à proposição da Orientação Sexual, enquanto tema transversal, esteve a necessidade do Estado de promover o sexo seguro, com foco no controle de Infecções Sexualmente Transmissíveis (ISTs) (NUNES, 2006).

Em 2018, sob intensa discussão e dissenso sobre diversos pontos, entre eles a ausência da Sexualidade e Educação Sexual, é colocada em vigor a BNCC (BRASIL, 2018). Em sintonia com o contexto mais amplo, fica claro neste momento, que a educação brasileira enfrentava nova fase conservadora e de resistência ao direito de estudar a temática da Sexualidade e suas interfaces em boa parte do segmento educacional básico, em especial, nos anos iniciais do ensino fundamental. O assunto se faz presente, apenas nos anos finais, ao lado de conteúdos que se relacionam à reprodução, puberdade, gravidez e ISTs. Além de situar a Sexualidade como um componente curricular das Ciências da Natureza, desconsiderando sua multidimensionalidade, o documento o associa, de forma reducionista, ao conceito e entendimento do funcionamento do corpo biológico, tão somente.

No diagrama estão registradas as peças documentais analisadas na trajetória histórica realizada e os indicativos sobre a presença ou ausência do tema em foco, bem como, o teor da presença, quando identificada.

Diagrama com registro das peças documentais analisadas na trajetória
histórica
Figura 1
Diagrama com registro das peças documentais analisadas na trajetória histórica
Elaborada pelas autoras com base nos dados encontrados nas legislações.

Abordar as políticas educacionais, no que tange à Educação Sexual, significa levar em consideração que estas estiveram e estão articuladas a um projeto mais amplo, de sociedade e de ser humano idealizado e em curso, portanto, circunscrito temporalmente em um contexto político, econômico, social e educacional prevalente. O momento é de retrocessos em várias direções, incluindo a educação. Faz-se necessário seguir investigando, resistindo, vigiando e participando intensamente dos movimentos realizados pela sociedade, de forma a contribuir para a formação de docentes críticos e atuantes, capazes de contribuir para a proposição de um novo projeto educacional, comprometido com a formação integral dos cidadãos, desde a infância.

REFERÊNCIAS

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Notas

[1] O estudo respeitará a denominação de cada época. Orientação Sexual é o termo utilizado na década de 1960 para designar a prática educativa sobre sexualidade em âmbito escolar.
[2] [...] inovar significa mudar as raízes, as bases. Trata-se, pois, de uma concepção revolucionária. [...] Dizer-se que algo é inovador porque se opõe ao tradicional significa aqui não apenas substituir métodos convencionais por outros. Trata-se de reformular a própria finalidade da educação, isto é, colocá-la a serviço das forças emergentes da sociedade (SAVIANI, 1989, p. 21).
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