Demanda Contínua

EDUCAÇÃO UNIVERSITÁRIA: perspectivas metodológicas para a de(s)colonização de saberes

UNIVERSITY EDUCATION: methodological perspectives for the de(s)colonization of knowledge

LA EDUCACIÓN UNIVERSITARIA: perspectivas metodológicas para la descolonización del saber

Larisse Miranda de Brito
Universidade Federal da Bahia, Brasil

Revista Espaço do Currículo

Universidade Federal da Paraíba, Brasil

ISSN: 1983-1579

Periodicidade: Cuatrimestral

vol. 16, núm. 2, 2023

rec@ce.ufpb.br

Recepção: 19 Abril 2022

Aprovação: 05 Novembro 2022



DOI: https://doi.org/10.15687/rec.v16i2.62855

Resumo: A partir de uma densa revisão bibliográfica, a proposta desse artigo é compreender como a etnopesquisa crítica multirreferencial, através dos seus itinerários metodológicos, pode transgredir a lógica colonialista da ciência moderna, no sentido de promover uma produção de conhecimento que sinalize para a de(s)colonização de saberes. Seus resultados avaliam que a etnopesquisa, ao implicar-se com o reconhecimento da diferença em uma perspectiva relacional que horizontaliza os saberes sem qualquer pretensão de torná-los medidas universais, desenha um rigor metodológico que se opõe ao epistemicídio e transgride os cânones científicos modernos, tornando-a uma proposta de(s)colonial.

Palavras-chave: Educação universitária, Pesquisa, Metodologia.

Abstract: From a dense bibliographic review, the purpose of this article is to understand how critical multi-referential ethnoresearch, through its methodological itineraries, can transgress the colonialist logic of modern science, in the sense of promoting a production of knowledge that signals the de(s) ) colonization of knowledge. Its results evaluate that ethnoresearch, when involved with the recognition of difference in a relational perspective that horizontalizes knowledge without any intention of making them universal measures, draws a methodological rigor that is opposed to epistemicide and transgresses modern scientific canons, making it a colonial proposal.

Keywords: University Education, Research, Methodology.

Resumen: Desde una densa revisión bibliográfica, el propósito de este artículo es comprender cómo la etnoinvestigación crítica multirreferencial, a través de sus itinerarios metodológicos, puede transgredir la lógica colonialista de la ciencia moderna, en el sentido de promover una producción de conocimiento que señala el des(s) ) ) colonización del saber. Sus resultados evalúan que la etnoinvestigación, cuando se involucra con el reconocimiento de la diferencia en una perspectiva relacional que horizontaliza los conocimientos sin intención de convertirlos en medidas universales, dibuja un rigor metodológico que se opone al epistemicidio y transgrede los cánones científicos modernos, convirtiéndola en una propuesta colonial.

Palabras clave: Educación Universitaria, Investigación, Metodologia.

1 INTRODUÇÃO

O método racionalista cartesiano, como principal dispositivo de acesso ao conhecimento (presunçosamente) puro e verdadeiro: a ciência, baseada na ideia de objetividade e neutralidade para a garantia de um conhecimento universal capaz de mensuração para a comprovação de sua validade, produziu um saber asséptico e distante da realidade da maior parte de sujeitos sociais que (sobre)vivem aos destroços do colonialismo. Perspectivas filosóficas e epistemológicas foram negadas como sendo um conhecimento menor, inverídico e ineficaz para a promoção de progresso para a humanidade. Esses conhecimentos foram encapsulados na ideia de crenças irracionais ou dogmas espiritualistas que evocavam a negatividade de seres diabólicos. Essa “história única” sobre os modos de re-produção da vida entre os povos colonizados (africanos e povos originários) gera a colonialidade do saber como poder que dissemina e desenvolve a ideia de uma superioridade intelectual do homem (europeu) branco/hétero/cisgênero/cristão sobre os demais povos e gêneros.

Desse modo, os conhecimentos/saberes considerados importantes para a formação cultural e profissional de uma determinada sociedade serão fundamentados no racismo epistêmico e no epistemicídio como base organizacional para sua prática e desenvolvimento. As perspectivas críticas, pós-críticas, fenomenológicas, pós-modernas, as epistemologias feministas, a epistemologia da complexidade e as perspectivas pós-coloniais e decoloniais, guardadas as devidas singularidades, estão entre aquelas que iniciam e desenvolvem um debate consistente acerca da falácia universalista do conhecimento científico moderno de lastro racista. A imagem do pós-guerra e a década de 1960 são o pano de fundo para os questionamentos que ampliam as possibilidades de construção metodológica no trabalho científico (MORIN, 2011; SANTOS, 2010). Admite-se a incompatibilidade de métodos puramente matemáticos para compreender a tessitura da realidade social.

A perspectiva multirreferencial situa sua busca na compreensão do comportamento humano através de suas experiências ordinárias. É construída como uma crítica ao neutralismo purista da ciência moderna. Entre suas propostas está a possibilidade de diálogo (MACEDO; BARBOSA; BORBA, 2012) com diversos modos de produção de conhecimento para compreender a realidade social desde que seja possível estabelecê-lo de modo horizontalizado.

Além de diversos outros aportes teóricos/epistemológicos, a etnopesquisa crítica multirreferencial baseia-se nos pressupostos fenomenológicos, com destaque para a etnometodologia e a multirreferencialidade. Propõe metodologias e métodos que se distancieam da neutralidade universalista da ciência moderna, através de um itinerário de pesquisa que admite seu caráter relacional, o erro e a mudança de rota como processos importantes do ato de pesquisar e criar conhecimento. Sinaliza para o fato de pesquisador-e-sujeito-pesquisado serem co-autores da pesquisa, uma vez que ela é resultado da relação estabelecida por eles em seu processo de elaboração e desenvolvimento. Considera a realidade como uma construção coletiva cotidiana que não dorme na insensatez alienada, mas é capaz de elaborações próprias para a tessitura da experiência em sociedade. Assim, etnopesquisa crítica multirreferencial, suportada por um rigor outro, nos convida a pensar caminhos metodológicos que pesquisem com o sujeito e não sobre ele, assim desmonta a lógica neutra, objetiva e universalista da produção científica.

2 CIÊNCIA E COLONIALIDADE DO SABER

Toda a nossa experiência sociocultural e político-econômica é atravessada pelo colonialismo. Nesse sentido, o homem (europeu) branco/hétero/cisgênero/cristão posicionado como centro e parâmetro para a experimentação do mundo, tornou subalternizada todas as experiências e estéticas que se distanciam da sua, afinal, "Narciso acha feio o que não é espelho" (VELOSO, 1978)1. A cultura brancocêntrica autoafirma-se através da distinção (socio(antropo)lógica) de raças, como uma cultura narcísica quando não vê a si mesma, age contra o outro e passa a deslegitimá-lo (como se esse outro precisasse de sua legitimação para existir). O Capitalismo imperial cria então o cenário ideal para que essa cultura se expanda através da subalternização de povos inteiros. Os povos originários e africanos (consequentemente seus descendentes) foram/são alvo principal dessa política genocida de subalternização.

Nesse processo, a ciência moderna constitui dispositivo importante ao autolegitimar-se como saber unívoco, através do que ela chamou de método científico. Assim, pressupôs que um único método fosse adotado por todas as disciplinas científicas como caminho inequívoco para atingir a verdade sobre os fenômenos estudados, fossem eles naturais, biológicos, sociais, culturais, psicológicos, etc. Baseado em pressupostos matemáticos de mensuração e dedução, o método elaborado por René Descartes (1596-1650), formou-se a partir da pretensão de objetividade, neutralidade e universalidade. Desse modo, a ideia de método na ciência moderna aparece como caminho sem curva, uma reta que não admite erro ou desvio. Aliada à expansão territorial, comercial, política e cultural europeia, a ciência produziu exclusões e subalternizações de outros métodos de conhecer e se relacionar com a realidade humana.

Considera-se o racismo epistêmico e o epistemicídio como características fulcrais no processo de surgimento e desenvolvimento da ciência moderna, pois eles operam para a negação, silenciamento, subalternização e genocídio da produção intelectual, epistemológica, filosófica, etc, dos povos originários, africanos e seus descendentes (SANTOS, 1999; CARNEIRO, 2005). Tratados como primitivos e destituídos de capacidades intelectivas, construiu-se um apagamento de suas produções socioculturais e político-econômicas. Para Carneiro (2005) é através dessa negação do outro, ou seja, da construção do não-ser que afirma-se a existência do ser. Portanto, a compreensão ontológica brancocêntrica constrói-se pela negação da existência de humanidade na alteridade. Por isso, Ailton Krenak (2020) nos ensina que a ideia de humanidade desenhada na modernidade é como “um clube restrito a poucos”. Tornar-se humano significa buscar a condição de ser, o que resulta no uso da máscara branca (FANON, 2008) na tentativa de esconder a negrura de seus pertencimentos.

O epistemicídio é um dispositivo de racialidade/biopoder que se realiza através da destruição da racionalidade, cultura e civilidade do outro. Através de um processo disciplinar e normalizador opera para a anulação e a morte do outro, é uma espécie de sequestro da razão que atua a partir da negação de racionalidade e da imposição da assimilação cultural (sempre incompleta). É, portanto, um dispositivo de controle de mentes, corpos e corações (CARNEIRO, 2005). “Assim, da destruição e/ou desqualificação da cultura do dominado, o epistemicídio retira a legitimidade epistemológica da cultura do dominador, justificando a hegemonização cultural da modernidade ocidental” (CARNEIRO, 2005, p.101). O racismo epistêmico e o epistemicídio são, portanto a base de legitimação da epistemologia construída pela ciência moderna.

A colonialidade do saber consiste nesse poder de imposição da ciência como único saber creditável que tendo nascido, se justificado e expandido durante o período moderno e o colonialismo, persiste como valor organizacional dos processos educacionais. Ela constrói a ideia de impossibilidade de criação filosófica, epistemológica, científica fora da racionalidade brancocêntrica. Desse modo, o combate ao racismo epistêmico se faz urgente para que possamos destruir a lógica colonialista que opera em nossos sistemas de educação. Consideramos que o processo de de(s)colonização2 implica a re-tomada de referências outras para construções heurísticas de aproximação e elaboração de conhecimento. Nesse sentido, os processos educacionais que, no caso do ensino universitário, envolve a pesquisa como uma de suas dimensões, devem operar a partir de uma “[...] dialética para o estudo das experiências de vida e do currículo como conversação complexa, a partir de questões que dizem respeito aos sujeitos [...]” (PACHECO, 2009, p. 396).

As descobertas no campo da Física e da Química, os estudos feministas, com destaque para o feminismo negro e decolonial, a multirreferencialidade, a fenomenologia, os estudos da complexidade, as teorias pós-coloniais e decoloniais apontaram, ainda no início da década de 1960, para a insuficiência do método científico cartesiano para pensar a multiplicidade complexa das relações humanas (SANTOS, 2010). Procedeu-se longos e profundos debates acerca do reducionismo universalista da ciência brancocêntrica e sua pretensa hegemonia na geopolítica do conhecimento baseada na su-l-balternização3 de povos não-brancos no que se refere à produção epistemológica.

Observa-se um (in)tenso debate no campo da metodologia e do método, e os adeptos da ciência brancocêntrica estão sempre preocupados em re-afirmar métodos infalíveis de produção de um conhecimento universal, válido. Ocorre que ele é desenhado a partir de uma relação desigual na qual o “eu” (sujeito pesquisador) considera-se mais importante que o “outro” (objeto a ser conhecido/dominado). Estabelece-se uma relação hierárquica definida por quem domina (as ferramentas capazes de produzir conhecimento) e quem faz parte do contexto que se pretende conhecer (convertido em um dado objetivamente manipulável).

Essa compreensão hierárquica, em pesquisa, (re)atualiza a lógica dominante, base do pensamento colonialista e da colonialidade do saber. Por isso, pensar metodologias outras se torna caminho incontornável para o combate ao colonialismo epistêmico. As propostas dos estudos feministas (especialmente as produções de autoras negras e decoloniais), a fenomenologia, a multirreferencialidade, os estudos da complexidade, as teorias pós-coloniais e decoloniais, trazem consigo a ideia da importância do sujeito pesquisado, suas experiências, sentidos e significações para o processo de construção de uma pesquisa científica. Consideram a complexidade inerente à experiência humana e desconstroem a premissa que aliena os sujeitos a uma condição de “imbecis culturais”, incapazes de refletir e construir sua própria realidade. Para Santos (2017; 2019), o processo de descolonização da ciência e da relação dos sujeitos com os mais diversos saberes sinaliza para a construção de metodologias não-extrativistas que rompam com o modelo extrativista difundido pela ciência moderna. Assim, orienta-se por uma atitude colaborativa que admita que estudamos com e não sobre os sujeitos ou fenômenos sociais.

Se a ciência atua para a neutralidade, objetividade, rigidez e universalidade da produção de conhecimento, a proposta de(s)colonial caminha para o lado oposto. Recorre ao encontro relacional, à produção de intersubjetividades que constroem objetivamente a realidade, flexibiliza, contextualiza e reconhece a multiplicidade das experiências humanas. Sugere que não há um modo de produção de conhecimento, mas que esses são diversos e contextualmente produzidos. Argumenta que a perspectiva relacional, assentada no re-conhecimento do outro como via de trânsito para que eu possa transformar a mim mesmo, é importante para a decolonização do conhecimento. Assim, a intercrítica e a interculturalidade são condições fundamentais para a realização do giro descolonial (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL, 2007).

O Giro de(s)colonial está fundamentado na re-tomada das produções epistemológicas não-brancas, com destaque para as produções africanas, afro-diaspóricas e dos povos originários, no combate ao racismo, patriarcado e capitalismo. Desse modo, considera-se que a etnopesquisa crítica multirreferencial apresenta perspectivas razoáveis para a construção de metodologias de(s)coloniais, preocupadas com a preservação da ecologia de saberes4 e com o enfrentamento das metodologias extrativistas que adotam uma postura colonialista em face de seus interesses de pesquisa.

3. METODOLOGIA NÃO-EXTRATIVISTA E ETNOPESQUISA: perspectiva de(s)colonial

É comum observarmos algumas dúvidas entre pesquisadores de diversas áreas acerca das diferenças entre metodologia e método. Parece haver certa dificuldade em exprimir as nuances dessas duas dimensões. Nesse trabalho, compreende-se a metodologia como caminho, a estrada que escolhemos percorrer para desenhar nosso constructo5 de pesquisa. Ela envolve a escolha do tema, preferências epistemológicas e teóricas, os métodos com os quais dialogam e também mudanças, errâncias e transformações que a caminhada evoca.

Os métodos aparecem aqui como formas de caminhar, eles representam a opção de estradas, trilhas, becos e vielas para que a caminhada seja adequada às aspirações da nossa chegada. Comporta transformações, pois podemos tomar uma trilha e nos perder no caminho, às vezes decidiremos voltar, noutras, iremos nos aventurar a conhecer esse desvio, pois como nos diz César (2008): “caminho se conhece andando então vez em quando é bom se perder, perdido fica perguntando sai só procurando e acha sem querer. Perigo é se encontrar perdido, sair sem ter sido, não olhar, não ver, bom mesmo é ter sexto sentido”. Método, portanto, é esse andar pelo caminho, perder-se, perguntar, relacionar-se, ter sexto sentido e boa disposição para gerar o encontro através do olhar e da escuta atenta/implicada/intuitiva/sensível.

Entendemos que “[...] o método só se faz depois, porque se abre ao acontecimento e vive no seu âmago experiências acontecimentais [...] o próprio método é a possibilidade do pesquisador prolongar sua capacidade de interagir na realidade a ser compreendida” (MACEDO, 2016, p. 91). Desse modo, a opção competente, a responsabilidade técnica e a capacidade de autocrítica são garantias de um outro rigor metodológico (MACEDO; GALEFFI; PIMENTEL, 2009,).

A proposta de Macedo (2004; 2010; 2012; 2018) com a elaboração da etnopesquisa consiste em abordar as diversas realidades desenhadas por sujeitos culturalmente enraizados e relacionalmente implicados com sua construção. O conceito nasce a partir de experiências (des-agradáveis) do autor com pesquisas no campo da Psicologia educacional infantil e do seu desejo em construir um instrumental que estivesse rigorosamente implicado com a perspectiva e a relação dos indivíduos com o contexto simbólico e cultural construído por eles.

Nesse sentido, ele aponta para a importância da contextualização nos processos de pesquisa. Considera que o etnocentrismo europeu julga a cultura do outro através da cultura do “eu”. Produz “rótulos, estereótipos e estigmas”, (MACEDO, 2004, 155) quando vinculam fracasso escolar e condições cognitivas à “privação cultural” e/ou “origem social”, por exemplo. Configura-se, portanto um processo contínuo de negação da autonomia do outro sobre si próprio. A etnopesquisa apresenta a ciência como uma construção social e cultural edificada sócio culturalmente como dispositivo de poder (MACEDO, 2004; 2010; 2012). A ciência seria então mais um modo olhar o mundo que, ao impor-se como único caminho possível, realiza a colonialidade do saber (QUIJANO, 2002).

Há, no processo de produção científica moderno, uma espécie de redução dos povos não-brancos a entendimentos que (re)organizam suas subjetividades, sentidos e significados a imaginários pré-moldados na representação de “déficit”, incapacidade e perigo, atestando seu estado animalesco. Podemos então concluir que a colonização conceitual aprofunda e expande a colonialidade do saber refletida na complexificação da colonialidade do ser.

Ao re-conhecer a multiplicidade cultural do humano como dispositivo de resistência “[...] face a tendência alijante e hierarquizante da cientificidade normativa, histórica e confortavelmente articulada ao domínio de classe [acrescento raça] [...] que têm no conhecimento uma das fontes e/ou instrumentos de ação” (MACEDO, 2004, p.85), a etnopesquisa crítica traz a alteridade como potência humana que deve ser entendida como lócus de produção de re-existência. Desse modo, combate a colonização conceitual ao questionar o posicionamento e interesses de suas construções teórico-epistemológicas.

A etnopesquisa crítica multirreferencial é um convite à relativização através da contextualização e reconhecimento das diversas culturas. Seu exercício é apresentado por Macedo (2004) como atitude incontornável ao etnopesquisador, pois permite “[...] uma ruptura face ao colonialismo intelectual que caracteriza a ciência moderna e as intervenções que ela inspira” (MACEDO, 2004, p.91). A realização de uma etnopesquisa requer uma disposição não-imperialista, atenta, que acolha as alteridades através de uma atitude intercultural. Exige flexibilidade e sensibilidade com os universos com os quais se deseja trabalhar. Desenha-se com o outro e se estabelece na/com a diferença tendo na cultura seu assentamento. Compreende o conhecimento como criação interativa, dialógica, conversacional e cultural. Sua perspectiva relacional não escamoteia as relações de poder nem tampouco as contradições, os paradoxos, as (in)tensões que delas emanam. Ao contrário disso, as re-conhece para então atuar junto a elas. Entende o erro, o desvio e o acontecimento como inerentes ao processo de pesquisa.

Suas implicações teórico-epistemológicas giram em torno da teoria da ação e de “epistemologias outras” preocupadas com o caráter relacional e cultural da construção de conhecimento. Sendo a etnometodologia fundante, a etnopesquisa dialoga com a fenomenologia social, a hermenêutica intercrítica, a semiologia, a semiótica, o interacionismo simbólico, a multirreferencialidade, a Escola de Chicago, tendo na ecologia de saberes6 seu horizonte principal (MACEDO, 2010; SANTOS, 2007).

A implicação é assumida como elemento fulcral para processos em (etno)pesquisa. Como “ etnopesquisa implicada” ela é “uma teoria enraizada” que deve ter clareza, coesão, coerência, consistência e relevância quando da escolha de seu constructo e realização. Esses elementos podem ser assumidos no fluxo de processos intercompreensivos experienciados como, por exemplo, nos/com os movimentos sociais. Assim, a etnopesquisa admite uma posicionalidade política e abandona a ideia de neutralidade (impossível) da ciência moderna (MACEDO, 2012).

Como um rio que corre e deságua em distintas direções, a etnopesquisa crítica multirreferencial, desemboca na etnopesquisa implicada que se bifurca entre a etnopesquisa-crítica e a etnopesquisa-(form)ação. Essas duas versões possuem valores em comum no que diz respeito ao método, e diferenciações quanto a problemática e suas finalidades. Como elementos comuns, é possível reconhecer: 1) a implicação como condição precípua para criação de saberes, portanto condição inicial para qualquer investigação; 2) anuncia a capacidade crítica, criativa, inventiva, sistemática e interpretativa dos atores sociais; 3) admite a experiência como criadora de inteligibilidades e saberes relevantes como ponto de partida para suas realizações.

A etnopesquisa-(form)ação compreende pesquisadores e sujeitos como co-partícipes de sua construção através de atos relacionais. Suas etapas são construídas com participação coletiva. A formulação de uma problemática ocorre “[...] no interior de um problema social e envolve uma necessidade social que preocupa um grupo em dado contexto” (MACEDO, 2010, p. 161). A formulação da problemática, a negociação de acesso ao campo, a elaboração do constructo, avaliação, análise e apresentação dos resultados são desenhados coletivamente em um importante processo de diálogo com a alteridade, e de cultivo da intercriticidade como política de pesquisa.

Para o autor a pesquisa é uma práxis e o método realizado por ela é uma pauta política, assim a práxis em etnopesquisa-(form)ação é “[...] uma ação associada a uma estratégia, em resposta a um problema posto concretamente numa situação em que o autor está implicado” (MACEDO, 2010, p. 164). Assume a militância (crítica) como frutífera para pensar processos criativos dos sujeitos sociais. Como cosmovisão, ela está associada ao pertencimento e a processos de “vinculação social, cultural, existencial, profissional, erótica e espiritual” do investigador (MACEDO, 2012, p. 45).

A etnopesquisa crítica multirreferencial admite a existência de uma pluralidade de métodos, sua re-criação são (re)existências heurísticas que se (re)atualizam a cada pesquisa que deles lança mão. Como condição fundante, respeito combinado à sensibilidade, forja um “rigor outro” que admite o vínculo, o pertencimento e a afirmação como modos de criação de saberes e revela sua posicionalidade política acerca do discurso de neutralismo da modernidade (Idem; Ibid.). Em etnopesquisa, os métodos são experimentados de forma reflexiva no exercício da capacidade de interferência por parte do pesquisador na realidade pesquisada.

A experiência narrada (acessada através de diários, entrevistas narrativas individuais/coletivas, grupos focais, rodas de memória, histórias de vida, autobiografia, etc), constitui-se como uma das principais fontes para a etnopesquisa. É a partir dela que se torna possível compreender as compreensões do outro sobre si e re-conhecer os processos de elaboração (etno)metódicos7 pelos quais os sujeitos criam sua própria realidade. Em etnopesquisa, as experiências metodológicas são permeadas por processos de autorização e autonomização do pesquisador que, a partir do contato com a experiência do sujeito, poderá criar inteligibilidades próprias na condução do seu caminhar investigativo e assim exercitar a criação e inventividade metódica com implicação e rigor.

Observa-se que a conceituação da etnopesquisa crítica multirreferencial resulta de proposições, (re)elaborações, revisões que comportam transformações e produzem seu esgarçamento. Desse processo, resulta a perspectiva contrastiva pensada na dimensão da etnopesquisa. Como etnopesquisa contrastiva, o que Macedo (2018) propõe é o enfrentamento da colonialidade saber na tradição metodológica das pesquisas qualitativas, a partir do redimensionamento e ressignificação dos processos pertencentes ao procedimento científico, além do abandono da tradição comparativista.

Assim, ele sugere a substituição das noções de 1) construção de objeto de pesquisa, 2) coleta de dados, 3) triangulação de fontes de dados, 4) generalização analítica, 5) análise de dados por: 1) constructo de pesquisa, 2) produção de informações e compreensões, 3) pluralização relacional de fontes, 4) transingularização. De maneira implicada, a etnopesquisa reconhece o produto da pesquisa como informações/compreensões que não esgotam o movimento real, relaciona perspectivas e compreende a realidade como processos singulares que permitem: “aproximações, distanciações e diferenciações”. Para a etnopesquisa contrastiva as experiencialidades em relação, são responsáveis pela produção e percepção dos contrastes entre realidades experienciais. Por isso, ela traz consigo “um significativo esquema de múltiplas vozes” construído na relação com a alteridade.

NOTAS (IN)CONCLUSIVAS

É possível notar que a dimensão não-extrativista e de(s)colonial da etnopesquisa crítica multirreferencial se revela de diferentes formas. Como metodologia não-extrativista, a etnopesquisa reitera o caráter colaborativo e relacional dos processos investigativos. Rompe, portanto com a ideia hierárquica característica da ciência moderna que objetifica os sujeitos conferindo-lhes lugar de “fornecedores” de dados. Prevê ainda a implicação política do investigador, desde que essa venha acompanhada de um rigor teórico-metodológico sensivelmente desenhado.

Ao entender a realidade complexa da experiência social humana, re-conhecer as diversas formas de produzir conhecimento, assinalar a pesquisa como práxis e o método como política, assumir o contraste (opondo-se a comparação) como caminho metódico para pensar o processo de produção de informações e acionar a experiência, os sentidos e significados dessa experiência para os sujeitos, a etnopesquisa enfrenta a colonização conceitual e constrói novas lentes para enxergarmos aquilo que permanece escondido nos escombros do edifício científico moderno. A etnopesquisa atua com uma atitude de(s)colonizadora, ao abrir-se à escuta sensível e aprendente de narrativas historicamente silenciadas, o que permite a re-tomada de produções epistemológicas, teóricas, filosóficas, etc, não-brancas. Ao assumir a relação, o vínculo, o pertencimento, a implicação, a mudança de rota. Admite o erro, o inaudito, as frestas e brechas do itinerário no processo de construção de conhecimento. Assim, combate o neutralismo, a objetividade, o universalismo e a rigidez do conhecimento científico, o que nos autoriza a reconhecê-la como uma perspectiva enraizadamente de(s)colonial porque implicada com a oposição ao racismo, patriarcado e capitalismo como horizonte possível.

REFERÊNCIAS

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Notas

1 Com a multirreferencialidade, compreende-se o uso de referências musicais como uma forma de elaboração de conhecimento que pode dialogar com textos científicos sem que haja qualquer fragilidade no rigor e caráter da pesquisa.
2 O uso do “(s)” aponta para as tensões existentes em torno dos conceitos, colonialidade e decolonialidade, especialmente aquelas elaboradas por Boaventura de Sousa Santos.
3 O uso dessa grafia dá conta do debate estabelecido pelos estudos “pós-coloniais” que sinaliza para o poder exercido por países que controlam o capitalismo imperial e impõem seus modos de Ser e conviver como representativos de civilização e erudição. Esses países são melhor representados pelo conceito de Norte Global, em contrapartida, o Sul Global seria representativo dos países que são colocados à margem desse poder.
4 O que emerge do diálogo crítico intercultural com os diversos modos de produzir conhecimento é a ecologia de saberes que possibilita o enfrentamento à monocultura científica moderna e o combate ao seu pensamento abissal.
5 Como veremos adiante, esse é um conceito elaborado por Professor Macedo (2018) no contexto da etnopesquisa que se opõe a ideia de “objeto de pesquisa”.
6 A etnopesquisa re-elabora seu itinerário através de diferentes elementos desses suportes epistêmicos, teóricos e metodológicos
7 O conceito de Etnométodo forjado pela etnometodologia de Harold Garfinkel sinaliza para o fato dos atores sociais construírem métodos próprios de criação, descrição, sistematização, análise e interpretação da realidade.
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