Demanda Contínua
CÍRCULOS DE CULTURA NO RETÂNGULO DA TELA DO COMPUTADOR: desafios de um período pandêmico
CULTURE CIRCLES ON THE COMPUTER SCREEN RECTANGLE: challenges of a pandemic period
CÍRCULOS DE CULTURA EN EL RECTÁNGULO DE LA PANTALLA DEL ORDENADOR: desafíos de un período de pandemia
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 2, 2023
Recepção: 30 Outubro 2022
Aprovação: 21 Dezembro 2022
Resumo: O presente trabalho tem como foco o desenvolvimento de ação de Extensão Universitária realizada na forma remota, durante a pandemia. O objetivo é apresentar elementos para reflexão sobre as práticas curriculares neste período, destacando os limites e as possibilidades dos recursos tecnológicos. Como objeto de reflexão, foram utilizados os “Círculos de Cultura”, que buscaram aprofundar conceitos desenvolvidos por Paulo Freire. Nos registros de caderno de campo, em formulários e atas, buscou-se identificar elementos para o desenvolvimento dessa produção reflexiva. Destacamos como obstáculos a desigualdade social existente em nosso país, que impediu o acesso de parcela da população aos recursos digitais. Por outro lado, destacamos como possibilidade a interlocução com sujeitos de diferentes partes do país, a partilha de experiências e materiais. Consideramos que essa ação remota pode se integrar como atividade complementar a ações extensionistas presenciais.
Palavras-chave: Círculo de Cultura, Paulo Freire, Extensão Universitária, Educação de Jovens e Adultos.
Abstract: This paper focuses on the development of University Extension action carried out remotely, during the pandemic. The objective is to present elements for reflection on curricular practices in this period, highlighting the limits and possibilities of technological resources. As an object of reflection, the “Circles of Culture” were used, which sought to deepen concepts developed by Paulo Freire. In the field notebook records, in forms and minutes, we sought to identify elements for the development of this reflective production. We highlight as obstacles the existing social inequality in Brazil, which prevented the access of part of the population to digital resources. On the other hand, we highlight as a possibility the dialogue with subjects from different parts of the country, the sharing of experiences and materials. We consider that this remote action can be integrated as a complementary activity to in-person extension actions.
Keywords: Culture Circle, Paulo Freire, University Extension, Youth and Adult Education.
Resumen: Este trabajo se centra en el desarrollo de la acción de Extensión Universitaria realizada a distancia, durante la pandemia. El objetivo es presentar elementos para la reflexión sobre las prácticas curriculares en este período, destacando los límites y posibilidades de los recursos tecnológicos. Como objeto de reflexión se utilizaron los “Círculos de la Cultura”, que buscaban profundizar conceptos desarrollados por Paulo Freire. En los registros del cuaderno de campo, en formularios y actas, buscamos identificar elementos para el desarrollo de esta producción reflexiva. Destacamos como obstáculos la desigualdad social existente en Brasil, que impedía el acceso de parte de la población a los recursos digitales. Por otro lado, destacamos como posibilidad el diálogo con sujetos de diferentes partes del país, el intercambio de experiencias y materiales. Consideramos que esta acción a distancia puede integrarse como una actividad complementaria a las acciones presenciales de extensión.
Palabras clave: Círculo de Cultura, Paulo Freire, Extensión Universitaria, Educación de Jóvenes y Adultos.
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como objetivo apresentar elementos para refletirmos sobre as práticas curriculares desenvolvidas na Extensão Universitária durante o período pandêmico, uma vez que, desde o ano de 2015, seguindo a diretriz do Plano Nacional de Educação, Lei nº 13.005/2014 (BRASIL, 2014), que reafirma o compromisso do plano anterior, com a inserção da Extensão Universitária nos currículos de graduação, as atividades extensionistas começaram a ser incorporadas à grade curricular da UFRJ. Assim, as ações de extensão que, para algumas instituições são complementares e opcionais, no caso da instituição estudada, é um componente curricular necessário aos estudantes para a integralização de seus cursos.
Essa obrigatoriedade colocou para a instituição o desafio de garantir a continuidade de oferta de ações para que os estudantes pudessem atuar como membros da equipe de execução e trouxe alguns questionamentos: como operar com essa dimensão da universidade que busca romper seus muros e dialogar com a comunidade externa quando a segurança coletiva exigia que todos se mantivessem dentro de suas casas? Quais as formas de respeitar as diretrizes da Extensão neste contexto? De que maneira criar espaços de interação dialógicas que, de fato, contribuíssem para a constituição de subjetividades?
Mesmo frente a essas indagações, diante da necessidade do distanciamento social para evitar a propagação da doença, no primeiro ano da pandemia, quando diariamente morriam milhares de pessoas contaminadas pela COVID-19, as ações do Curso de Formação de Alfabetizadores para Jovens e Adultos, que antes eram direcionadas para encontros presenciais na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), recepcionando naquele espaço estudantes de graduação, pós-graduação, professores da rede pública e privada e educadores populares, passaram a ser executadas com uso exclusivo dos recursos tecnológicos, para manter viva a comunicação com a comunidade externa.
O panorama descrito acabou por evidenciar ainda mais a desigualdade social de nossos “Brasis”, ao mostrar que a tecnologia, que é expressão do desenvolvimento das forças produtivas e da criatividade humana, tem seu acesso restrito a uma parcela da população, pois muitos estudantes, professores e, principalmente, os educadores populares apresentavam dificuldades no acesso e na utilização dos equipamentos e da própria internet, que poderia representar uma potencialidade de democratização da informação e da produção do conhecimento. Segundo dados da pesquisa TIC Domicílios de 2019, quase trinta por cento dos domicílios brasileiros (cerca de 20 milhões) não têm internet. O que nos levou a questionar a serviço do quê e de quem a tecnologia está em nosso país e a reconhecer os limites da ação que estava sendo desenvolvida no que diz respeito à participação dos sujeitos.
Desse modo, não foi possível estar no espaço formativo com a pluralidade de sujeitos normalmente encontrada na sala de aula. No espaço virtual, estavam aqueles que tinham condições mínimas de acesso aos recursos tecnológicos, e com esses sujeitos foram construídos os Círculos de Cultura, que buscaram trazer para o debate algumas palavras ou expressões presentes nas obras de Paulo Freire. Palavras e expressões “grávidas de mundo” como dizia o autor, pois elas possibilitam a reflexão em torno de temáticas e geram a construção de releituras da realidade social para que possamos pronunciar o mundo e suas transformações.
Pensar no desenvolvimento de Círculos de Cultura de forma não presencial, utilizando o retângulo da tela do computador, já se constituiu em si como um desafio, pois, figurativamente, se na forma geométrica de um círculo não temos vértices e sim uma circunferência num contínuo que se encontra, num retângulo esbarramos com os vértices de cada canto, fazendo com que cada um deles indique uma nova direção. As barreiras virtuais e o afastamento real se constituem, portanto, como obstáculos para a conexão humana horizontal pretendida. As câmeras, por vezes fechadas, também se configuravam como obstáculos para a interlocução e a fluidez do diálogo. Como dialogar sem ver o seu interlocutor? Como interagir sem conseguir identificar os efeitos que nossa fala provoca no outro? Essas foram reflexões permanentes durante a realização das atividades.
O estudo sobre as obras de Paulo Freire nos permite identificar uma relação profunda da produção do conhecimento com a realidade histórica, que destaca conceitos sociológicos, filosóficos, políticos, linguísticos e econômicos ao nos provocar a ler o mundo não como algo dado, mas como uma construção coletiva, em que cada um é sujeito da história. Os Círculos se constituíram assim, como um espaço que buscou um aprofundamento maior nas obras do autor, através da partilha da compreensão que cada participante trazia das palavrasmundo ou expressões destacadas, com o intuito de provocar em todos releituras do mundo e novas leituras dos escritos do educador.
Foram realizados quatro eventos do Círculos de Cultura, com intervalo médio de dois meses entre eles, em que foram trabalhadas duas dessas palavras ou expressões em cada um. Neste espaço, pelo menos duas pessoas foram convidadas para introduzir brevemente a temática e estimular os demais participantes a dar continuidade ao diálogo, buscando construir um processo de estudo e interação entre sujeitos com distintas inserções sociais, com o cuidado em respeitar a diversidade na forma de compreensão e vivência com a temática suscitada pela palavra, mas respeitando o silêncio daqueles que ainda não se sentiam seguros para se colocar no grupo.
A ideia central era avançar nos estudos do autor através do estímulo à Interação Dialógica, que é uma das diretrizes da Extensão Universitária, estabelecida pelo Fórum de Pró-Reitores de Extensão das Instituições Públicas de Educação Superior Brasileiras (FORPROEX, 2012). Interação necessária quando trabalhamos com a perspectiva de democratização na produção do conhecimento, colocando em diálogo saberes construídos em outros espaços/tempos e articulados com o que é elaborado no espaço acadêmico. Nesse sentido, a realização dos “Círculos de Cultura” se constituiu como uma abordagem possível.
Desse modo, nos propomos a refletir, neste trabalho, sobre as potencialidades e debilidades dessa ação extensionista desenvolvida. Para tanto, teremos como corpus de análise os registros documentais dos “Círculos de Cultura”, realizados de forma remota, e refletiremos sobre as informações presentes nos formulários, atas e registros de cadernos de campo. Os Círculos visavam aprofundar expressões e conceitos presentes nas obras de Paulo Freire, com o intuito de promover maior aproximação dos participantes com o pensamento do autor, patrono da educação brasileira. Para isso, utilizamos a problematização da realidade como parte do método da prática pedagógica, convidando os participantes a trazerem suas experiências particulares suscitadas pela temática em debate, por entender que a ampliação da complexidade do conhecimento envolve sua apropriação que não se dá de forma linear, mas por sucessivas aproximações que fazem com que o singular interaja com o geral.
2 CÍRCULOS DE CULTURA: palavras vivas, “grávidas de mundo”
As obras de Paulo Freire nos convidam a compreender o processo dialógico como elemento constitutivo do sujeito, ou seja, na interação entre os sujeitos está o princípio fundador da própria linguagem e da consciência. Desse modo, a base para a formação educativa repousa na comunicação, que não pode ser confundida com o ato de fazer comunicados, esses são significados “depositados” no outro, transformando-se em conteúdos estáticos e cristalizados e não expressão do conhecimento produzido. Pelo contrário: para o autor, a educação funda-se no diálogo como processo dialético-problematizador que nos impulsiona ao pensar crítico em relação à condição humana no mundo.
Nesses termos, a base que sustenta a proposta do Círculo de Cultura traz o diálogo como princípio educativo, uma vez que mais do que metodologia ou técnica de ação grupal, o diálogo “[...] passa a ser a própria diretriz de uma experiência didática centrada no suposto de que aprender é aprender a “dizer a sua palavra” (BRANDÃO, 2010, p. 69). A relação dialógica se coloca como fundamental à construção de uma sociedade democrática, uma vez que nos possibilita identificar a pluralidade que marca nossa sociedade e romper com a “Cultura do silêncio” (FREIRE, 2001, p. 59), que segrega parcela significativa da população ao lhe negar o direito à palavra e assim também o direito de se expressar e de expressar o mundo.
Em muitos de seus livros, Freire materializa a perspectiva dialógica no próprio desenvolvimento de seus conceitos. São livros construídos a partir da polifonia, que simboliza a compreensão de diferentes sujeitos sobre determinada temática na elaboração de distintas obras, como: Sobre educação: diálogos (FREIRE; GUIMARÃES, 1982); Por uma pedagogia da pergunta (FREIRE; FAUNDEZ, 1985); Essa escola chamada vida (FREIRE; BETTO, 1985); Alfabetização: leitura do mundo, leitura da palavra (FREIRE; MACEDO, 1990); Pedagogia: diálogo e conflito (GADOTTI; FREIRE; GUIMARÃES, 1995); Medo e ousadia (FREIRE; SHOR, 1996); Aprendendo com a própria história I (FREIRE; GUIMARÃES, 1987); Aprendendo com a própria história II (FREIRE; GUIMARÃES, 2000). Nesses trabalhos, as reflexões são tecidas a partir de interlocuções, estabelecendo um modo vivo e dinâmico de trabalhar coletivamente ideias político-educativas e suprimindo a hierarquização das vozes.
Encontramos as primeiras referências de Paulo Freire aos Círculos de Cultura no livro Educação como prática da Liberdade (FREIRE, 1967), quando o educador, ao trazer para a discussão o Projeto de Educação de Adultos, apresenta a proposta dos Círculos de Cultura, pautados na organização do debate coletivo. Partia-se da necessidade de romper com a estrutura hierarquizada da sala de aula, em que o professor é aquele autorizado a falar e a “transmitir” o conhecimento e buscava-se uma participação livre e crítica dos educandos, numa relação mais horizontal e dialógica.
O nome “Círculo de Cultura” nos remete à figura geométrica do Círculo, em que a própria disposição do grupo permite que todos se observem e formem um contínuo. Ao adicionar o termo “Cultura”, Freire destaca que na relação do ser humano com a realidade, o ser humano faz cultura através dos atos de criação e recriação com que vai dinamizando o mundo e conformando as épocas históricas. O termo cultura, cada vez mais empregado na teorização social e no discurso pedagógico, coloca em evidência nossa diversidade e aponta que em toda prática social estão envolvidas questões referentes a significados (MOREIRA, 2020). Nas palavras de Francisco Weffort
O círculo se constitui assim em um grupo de trabalho e de debate. Seu interesse central é o debate da linguagem no contexto de uma prática social livre e crítica. Liberdade e crítica que não podem se limitar às relações internas do grupo mas que necessariamente se apresentam na tomada de consciência que este realiza de sua situação social (WEFFORT apud FREIRE, 1967, p. 07).
Nesse sentido, a comunicação ocupa lugar central no processo educativo, pois nesta não há sujeito passivo, ela implica interação dialógica e reciprocidade. Logo, a comunicação está intrinsecamente ligada à cultura e ao diálogo, não estando, portanto, isenta de condicionantes socioculturais, tampouco de tensionamentos e disputas. Para Freire (2011, p. 93),
[...] a comunicação eficiente exige que os sujeitos interlocutores incidam sua "ad-miração” sobre o mesmo objeto; que o expressem através de signos linguísticos pertencentes ao universo comum a ambos, para que assim compreendam de maneira semelhante o objeto da comunicação.
Neste ato comunicativo, que se dá por meio de palavras, está presente a relação pensamento-linguagem-realidade, pois não há pensamento que não esteja ligado aos níveis de percepção da realidade, que são expressos a partir da linguagem, onde através das palavras os sujeitos comunicam mutuamente seus conteúdos e ampliam sua capacidade crítica de realizar a leitura do mundo, já enriquecida com as contribuições dos interlocutores.
Encontramos nos estudos de Bakhtin contribuições para aprofundarmos nossa reflexão sobre a relação dialógica nas obras de Freire, uma vez que, para o autor, ser significa comunicar-se pelo diálogo (BAKHTIN, 1997, p. 63), que deve ser concebido como produto histórico, marcado cultural e socialmente, pois reflete aspectos da interação social, em que, além de embates, envolve também conflitos, negociação e possibilidade de acolher e repensar ideias. Do diálogo depende a vitalidade do pensamento humano, pois ele proporciona o encontro entre vozes e consciências, de onde nascem e vivem as ideias.
[...] a orientação dialógica, co-participante é a única que leva a sério a palavra do outro e é capaz de focalizá-la enquanto posição racional ou enquanto um outro ponto de vista. Somente sob uma orientação dialógica interna minha palavra se encontra na mais íntima relação com a palavra do outro mas sem se fundir com ela, sem absorvê-la nem absorver seu valor, ou seja, conserva inteiramente sua autonomia enquanto palavra [...] (BAKHTIN, 1997, 64).
Para Bakhtin, a palavra é elemento privilegiado da comunicação cotidiana e expressão da linguagem interior e da consciência. Ela tem sempre um sentido ideológico ou vivencial, que se relaciona totalmente com o contexto e carrega um conjunto de significados que socialmente foram dados a ela, e que serão ressignificados a partir do que é presumido pelo ouvinte nas condições reais da comunicação verbal. Toda palavra reverbera as palavras que a precederam, incorporando-as e antecipando-as, contando com as reações da compreensão.
Paulo Freire também destaca o papel da palavra, afirmando ser esta a revelação essencial do diálogo. Para o autor, a palavra é constituída por duas dimensões acopladas e simultâneas: ação e reflexão. Desse modo, dizer a palavra é um ato de pronunciar o mundo, de criar e recriar, de decidir e de optar, não podendo, assim, ser privilégio de poucos, mas direito de todos. Nesse sentido, a opção por conduzir a discussão dos Círculos a partir de palavras ou expressões que encontramos nas obras de Freire nos possibilita não só a construção da compreensão coletiva de seu pensamento, mas, acima de tudo, novas formas de criar e pronunciar o mundo.
3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Num contexto de tantos ataques à educação pública e à filosofia educacional de Paulo Freire, a proposta de construção dos Círculos de Cultura durante a pandemia surgiu da necessidade que sentimos de criar espaços de reflexão e promoção de maior aproximação dos participantes com as obras do autor, que pudessem promover o estímulo não só a uma compreensão mais aprofundada e complexificada do ato educativo, como também de nossa situação existencial. Desse modo, foram estabelecidos três princípios para o desenvolvimento dos encontros: problematização do momento histórico, ampliação da complexidade do conhecimento das obras do educador, vinculação da discussão com experiências educacionais. A ideia principal era que cada um deles enquanto sujeito particular e concreto se reconhecesse na discussão proposta e pudesse trazer para o debate suas interpretações sobre as palavras ou expressões trazidas por Freire e como elas dialogam com sua prática educativa e a realidade vivida.
Assim, a cada Círculo selecionamos duas dessas e recomendamos uma bibliografia básica do autor, que foi indicada na chamada do evento. O material foi acessado pelos participantes, principalmente, em sua completude e em formato digital e enviada na forma de PDF a todos os inscritos, de maneira a que os participantes tivessem não só um capítulo, mas todo o livro. Ao longo dos quatro eventos aqui apresentados, foram utilizadas as obras Pedagogia do Oprimido (1987), Pedagogia da Autonomia (1996), A importância do ato de ler (1989) e discutidas oito palavras ou expressões selecionadas pela equipe: Aderência e Ser Mais, Dialogicidade e Cultura do Silêncio, Dodiscência e Inacabamento, Humanização e Leitura de Mundo.
Com a escolha das palavras ou expressões que seriam discutidas no evento, pensou-se sobre datas e horários, compreendendo a disponibilidade predominante dos atuantes no campo da educação: o período noturno. Após essas primeiras definições, foi necessário determinar os convidados que atuariam como facilitadores do debate, tendo a preocupação de trazer sujeitos que pudessem “puxar” a roda de conversa a partir de uma primeira fala e tecer diálogos com as falas de outros interlocutores. Desse modo, convidamos docentes e discentes internos e externos à universidade, da área da Educação, sendo alguns extensionistas e ex-integrantes do Programa Integrado da UFRJ para a Educação de Jovens e Adultos, que atuam na EJA em distintos espaços.
No que tange os extensionistas que atuaram na ação, o evento tinha como meta a diretriz da Extensão Universitária “Impacto na Formação do Estudante”, uma vez que, segundo o FORPROEX (2012, p. 52)
As atividades de Extensão Universitária constituem aportes decisivos à formação do estudante, seja pela ampliação do universo de referência que ensejam, seja pelo contato direto com as grandes questões contemporâneas que possibilitam. Esses resultados permitem o enriquecimento da experiência discente em termos teóricos e metodológicos, ao mesmo tempo em que abrem espaços para reafirmação e materialização dos compromissos éticos e solidários da universidade pública brasileira.
Cabe destacar que, entre os passos de organização do evento, estava prevista a formação e preparação da comissão organizadora por meio de levantamento bibliográfico e discussões em reuniões de formação continuada, realizadas semanalmente com toda a equipe. Desde a concepção do evento, tinha-se evidente que o objetivo não era só difundir o conhecimento acadêmico, mas também, e principalmente, construir coletivamente novos saberes a partir de leituras e vivências distintas, partindo da compreensão do outro como sujeito produtor de conhecimento e buscando complexificar os conhecimentos já trazidos das obras de Freire em diálogo com a problematização de nossa realidade existencial. Isso se constitui como um desafio no diálogo com os participantes, uma vez que muitos verbalizavam a expectativa de que os sujeitos da academia confirmassem ou não se suas interpretações das obras do autor estavam corretas, gerando debates sobre a relação estabelecida entre a universidade e os demais setores da sociedade.
Com a intenção de garantir que o máximo de pessoas falasse e a insegurança com o funcionamento eficaz dos recursos tecnológicos fosse superada, estabelecemos um limite inicial de 60 inscritos e contamos com a utilização da plataforma Google Meet para interação. Com a alta procura dos interessados pelo Curso de Formação de Alfabetizadores em EJA, ofertado pelo Programa e suspenso diante da pandemia de COVID-19, havia muitos interessados no Círculo de Cultura desde a sua primeira divulgação virtual, realizada através das redes sociais do Programa. Assim, o primeiro Círculo de Cultura recebeu 71 pedidos de inscrição já nas horas iniciais do primeiro dia, mesmo com a previsão de cinco dias de inscrição, o que fez com que fechássemos as inscrições ainda neste dia. Diferentemente do curso presencial, o evento virtual permitiu que interessados de fora da região da cidade e do estado do Rio de Janeiro pudessem participar do evento, possibilitando trocas com sujeitos que experienciam outras realidades em diferentes partes do Brasil.
Outro dado que pode contribuir para a compreensão da grande procura é o fato de não haver cobrança de taxa de participação. Além de público, o evento era gratuito, de forma a garantir uma maior democratização dos espaços da universidade. Além disso, não estipulamos critério mínimo quanto à escolaridade, o que nos levou a receber muitos estudantes do Ensino Médio no primeiro Círculo realizado. Os únicos requisitos para ter a inscrição deferida eram a inscrição dentro do limite de vaga e o interesse pelas ideias Freirianas, manifestado através da ferramenta de formulários digitais Google Forms.
Mesmo com a alta procura pelo evento no período de inscrição, o número de participantes no primeiro Círculo foi abaixo do esperado, comparecendo 50% do total de vagas. Somando esse número aos integrantes do Programa em que o evento foi realizado, tivemos cerca de 40 participantes ao todo. Com a identificação deste movimento de não comparecimento de inscritos, aumentamos o número de vagas das três edições seguintes do Círculo de Cultura para 80 participantes. Entretanto, diante do número de vagas disponibilizadas e preenchidas no período de inscrições, uma média de 45,9% dos participantes inscritos compareceu ao evento. Ainda que a participação efetiva no evento não fosse massiva, diante do número de vagas preenchidas durante as inscrições, os participantes demonstraram real interesse do evento, trazendo ricas contribuições para as discussões através de participações pontuais.
Durante a realização do evento, integrantes da equipe extensionista eram divididos em tarefas específicas, como possibilitar o acesso à sala virtual a partir da lista de inscritos, registro de frequência e moderação de bate-papo para que as perguntas e comentários por aquele canal fossem atendidas também. Além disso, pelo menos três extensionistas ficaram responsáveis pelos registros no diário de campo, em que buscavam anotar não só falas, como atitudes e reflexões que foram suscitadas pelas discussões. O registro por diferentes sujeitos buscava trazer maior variedade de elementos para as discussões posteriores.
Cada evento do Círculo de Cultura teve uma duração de cerca de 1h30m, que pode se estender por mais 45 minutos, e possuiu uma estrutura de dinâmica já definida, iniciando-se com uma fala da Coordenadora Geral do Programa apresentando o evento e o Programa. A partir disso, a professora indicava o mediador do evento, que apresentava os coordenadores de debates para que iniciassem suas falas. O mediador informava aos participantes sobre as dinâmicas de falas/perguntas, poderiam utilizar a ferramenta de “levantar a mão”, disponível pelo Google Meet, quando desejassem se manifestar, pois ela cria uma fila virtual automática, democratizando a participação.
No decorrer do evento, buscamos inserir outros elementos para discussão através da perspectiva cultural, com diversos formatos, como leituras de poemas e cordéis, músicas, vídeos e ainda leituras de citações sobre Educação, principalmente escritos de Paulo Freire. Tais elementos buscavam estimular a discussão a partir de outras perspectivas, despertar emoções e provocar os participantes para que se incorporassem ao diálogo, buscando mobilizar aqueles que, muitas vezes, permaneciam com a câmera e microfone fechados ao entrar em contato, falando de sua experiência.
Ao término do Círculo de Cultura, todos os participantes deixavam a sala virtual e apenas a equipe organizadora ficava presente. Neste momento, houve uma troca de percepções acerca de como se desenvolveu o evento que estava sendo planejado e organizado há cerca de um mês. A partir de olhares distintos, buscávamos dar início à reflexão crítica sobre a prática, pois como nos lembra Freire (1996, p. 39).
[...] Na formação permanente dos professores, o movimento fundamental é o da reflexão sobre a prática. É pensando criticamente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a próxima prática. O próprio discurso teórico, necessário à reflexão crítica, tem de ser de tal modo concreto que quase se confunda com a prática. O seu “distanciamento” epistemológico da prática enquanto seu objeto de análise, deve dela “aproximá-lo” ao máximo. Quanto melhor faça esta operação tanto mais inteligência ganha da prática em análise e maior comunicabilidade exerce em torno da superação da ingenuidade pela rigorosidade [...].
Posteriormente, a equipe se reunia novamente para aprofundar as reflexões iniciais que foram tecidas, com o intuito de avaliar a ação realizada e programar os eventos seguintes. Nesta etapa, era possível contar com a presença de outros integrantes da equipe que não participaram do evento, o que fazia com que surgissem diferentes indagações, nos fazendo recorrer aos registros e às contribuições dos extensionistas e provocando a equipe a direcionar o olhar para outros elementos além da experiência vivida. A partir da avaliação realizada, definíamos novas estratégias ou possíveis melhorias para próximas edições.
4 GESTAÇÃO DE REFLEXÕES A PARTIR DE PALAVRAS OU EXPRESSÕES "GRÁVIDAS DE MUNDO”
Durante os Círculos, apesar de termos como prática o convite da abertura de câmeras, buscamos respeitar o movimento dos participantes, pois tínhamos a percepção de que existiam, do outro lado da tela, diversas realidades e obstáculos. Era preciso considerar que, em meio à necessidade de isolamento social, tínhamos de lidar com um cenário bem distante do “ideal”, em que alguns dos inscritos não tinham nem mesmo um espaço adequado para participar do evento. Para parcela significativa da população, os pequenos espaços residenciais tinham que ser divididos no uso do espaço/tempo por vários sujeitos. Logo, diante dessa realidade, era justificável a não abertura da câmera, o que de certa forma dificultava o diálogo, mas não o impedia completamente, pois ainda era possível usar o microfone ou o espaço para bate-papo.
Ademais, pesquisas apontavam que o isolamento social afetou tanto a saúde física das pessoas como a mental, em razão disso, foi possível observar que doenças psiquiátricas, como a ansiedade e depressão, tiveram um aumento considerável neste período (MOREIRA et al., 2021). Por considerar essa condição, compreendemos que talvez alguns participantes estariam naquele momento, disponíveis somente para escutar e ressignificar o que pensavam ou sabiam sobre Paulo Freire. Essa escuta, no entanto, também fazia parte do processo do ser e tornar-se humano. Esta também poderia ser uma forma de reivindicação em defesa da vida, posto que nós, seres humanos, nos constituímos da interação, logo a escuta naquele instante poderia representar a busca de fortalecimento no coletivo. O respeito ao silêncio do outro, contudo, vinha acompanhado do estímulo ao diálogo. Com Freire (1996, p. 117, grifos no original), vemos que:
A importância do silêncio no espaço da comunicação é fundamental. De um lado, me proporciona que, ao escutar, como sujeito e não como objeto, a fala comunicante de alguém, procure entrar no movimento interno do seu pensamento, virando linguagem; de outro, torna possível a quem fala, realmente comprometido com comunicar e não com fazer puros comunicados, escutar a indagação, a dúvida, a criação de quem escutou. Fora disso, fenece a comunicação.
Com o objetivo de estabelecer a comunicação diante de um cenário de tamanha complexidade, enquanto planejamos o círculo, refletimos sobre a relevância de nossa preparação para este momento, com a disposição de recebermos os participantes com afetividade, mesmo que isto ocorresse à distância. Foi preciso pensar, falar e se planejar para receber toda a diversidade e adversidade que estaria presente no Círculo. Desse modo, o diálogo se fez essencial como ferramenta capaz de possibilitar o equilíbrio e o desequilíbrio. Partimos da compreensão de que todo participante não sairia daquele espaço do mesmo jeito que tinha chegado, pois os ideais Freireanos estariam provocando um movimento de reflexão sobre si e sua relação com o mundo.
Em diálogo com Leite e Gazoli (2012), vemos que a qualidade dessa mediação, em qualquer espaço educativo, interfere no processo de ensino-aprendizagem, assim, foi necessário que acolhêssemos os participantes que estavam naquele espaço somente para escutar, pois era um momento de muito sofrimento social, perdas familiares, doenças físicas e psicológicas, desemprego e a sensação de desamparo por parte do Estado. Nossa ação objetivou transpassar as barreiras visíveis e invisíveis em busca de encontrarmos a potencialidade da práxis do diálogo, assim, defendemos que, para se efetivar uma educação como prática da Liberdade, o compromisso firmava-se na “[...] negação do homem abstrato, isolado, solto, desligado do mundo” (FREIRE, 1987, p. 98). Afinal
Por um lado, temos que ter clareza de que nossa presença no mundo não está isenta da influência das forças sociais. Nossas ações são afetadas por condicionantes materiais, históricos, sociais, culturais e econômicos em que estamos inseridos, e isso nos impõe barreiras de difícil superação, verdadeiras situações existenciais opressoras. Por outro lado, temos a certeza de que os obstáculos não se eternizam e de que a consciência de homens e mulheres como seres históricos nos impõe um compromisso ético de intervir e construir o mundo (MOURA, 2021, p. 112).
Na certeza de que o caos vivido pelo período pandêmico um dia terminaria, os Círculos visavam se constituir como espaço de fortalecimento e de esperança. Entendendo a esperança não como um tempo de espera, mas como um tempo de luta por dias melhores. Foi necessário reconhecer os sentimentos, as emoções, os desejos que moviam as pessoas a estarem ali, não só dos participantes, mas dos membros da própria equipe extensionista, que, diante de um presente tão implacável, fizeram a escolha de se assumir como seres históricos e viram no Círculo uma possibilidade de intervir no mundo para construir um presente/futuro diferente.
Os diálogos do Círculo de Cultura, apesar de terem a fala inicial dos coordenadores de debate como abertura do evento, foram desenvolvidos a partir dos diversos relatos reais da vida dos participantes, frisando que a palavra naquele espaço não era de um, e sim de todos. Buscamos, com isso, estimular a Interação Dialógica com base na democratização da palavra e do estímulo a que cada um pudesse dizer a sua palavra, para que ela pudesse se relacionar com a palavra do outro (BAKHTIN, 1997). Acreditamos que a prática dialógica pode promover o fortalecimento mútuo e contribuir para superação do distanciamento entre a universidade e os demais setores da sociedade a partir da troca de saberes, o que implica um movimento de escuta e diálogo, que tem a capacidade de reconfigurar o próprio fazer acadêmico.
Dessa maneira, tendo a compreensão de que o foco maior nos limites deste ensaio é a reflexão sobre criações curriculares no período pandêmico, exporemos apenas as discussões presentes no primeiro Círculo, cujas palavras e expressão foram, Aderência e Ser Mais. Cabe destacar que a partir dos formulários de inscrição, pudemos verificar que, dentre os inscritos neste evento, 86% se autodeclaram do sexo feminino, assim como o número de estudantes do Curso de Formação de Professores de Nível Médio representava 56% do total. Dentre as motivações citadas para participar do evento, podemos destacar a seguir as que tiveram maior recorrência: o desejo de conhecer o pensamento de Paulo Freire; a oportunidade de participar de atividade em uma universidade pública; refletir sobre o legado de Paulo Freire na atualidade; e, trocar experiências sobre trabalhos educativos na perspectiva freireana. Todos os nomes utilizados para identificar os participantes são fictícios, visando a preservação de suas identidades.
A abertura se deu com a leitura do poema “A Escola”, de autoria desconhecida, mas muitas vezes atribuído à Paulo Freire, que buscava destacar a importância das relações para o processo educativo. Em seguida, os participantes foram convidados a falar suas percepções sobre o poema e o diálogo teve início. Uma das coordenadoras do debate, Carla, técnico-administrativo da universidade e membro da equipe, iniciou destacando que a filosofia educacional de Paulo Freire ultrapassa a área de educação, pois se constitui como filosofia para vida, para refletirmos sobre o nosso ser/estar no mundo e as diferentes situações de opressão estabelecidas. Carla optou por trabalhar a temática proposta para aquele dia a partir da discussão das relações étnico-raciais, trazendo reflexões a partir do vivido. Nos registros feitos nos cadernos de campo, pudemos resgatar a fala dela ao se referir à pesquisa que havia desenvolvido.
Para minha surpresa, quando fui entrevistar três mulheres negras, elas se autodeclaram morenas, e naquele momento, sofri um impacto, porque pensei, puxa, segundo o IBGE é autodeclaração, toda pesquisa é uma autodeclaração, você não pode dizer para o outro que ele é negro, ele que vai dizer, ele que vai se identificar, aí naquele momento, eu fiquei um tanto impactada, pois elas eram negras (Carla, 2021).
Carla convidou os participantes a refletirem sobre o quanto a postura daquelas mulheres se constituía como um processo de aderência a uma realidade que as oprime, e que, por vezes, não permite a consciência de si, como pessoa. As lentes utilizadas para olhar para si são as do opressor, que vê o negro sob a ótica do racismo. Dessa forma, estão tão imersas na lógica opressora que utilizam a negação de sua origem afrodescendente como tentativa de se deslocar desse lugar de inferioridade e se aproximar de um lugar que acreditam ser de maior prestígio.
Entrando no diálogo proposto pelo Círculo, Rosa, uma das participantes, manifestou concordância com a fala de Carla e alertou que esse processo de aderência e negação de sua própria origem é construído desde a infância, pois é possível identificar essa cultura de aderência por grande parte das crianças negras na sala de aula da escola da rede municipal do Rio de Janeiro, em que atua como docente do Fundamental I. Nos registros, encontramos o seguinte relato de Rosa:
As crianças deste ano, a maioria é negra, e elas chegam na escola com muita baixa autoestima. Elas já falam assim, - eu não sei, eu não sei, eu não consigo -, e eu tive que trabalhar toda essa questão da autoestima da criança, e foi justamente em roda de conversa, apresentando a diversidade de livros, onde tem o negro, onde tem o branco, as diferenças né, para que as crianças começassem a se aceitar como parte daquele lugar, e que elas sabem sim, do jeito delas (Rosa, 2021).
O relato de Rosa apresenta os esforços empreendidos nos espaços educativos pela busca de respeito, valorização e reconhecimento das diversas identidades culturais e nos remete às afirmações de Moreira (2020, p. 32) sobre como “As dificuldades e contradições que permeiam todos esses esforços contribuem para a emergência de inúmeros desafios para a organização e o funcionamento da escola, da sala de aula e do currículo dos diversos níveis e graus de ensino”, visto que essas manifestações são marcadas por relações e disputa de poder, que em alguma instância resultam em discussões sobre quais conhecimentos deveriam ser legitimados nos espaços formativos.
A partir dessas primeiras intervenções, outras pessoas foram se incorporando ao diálogo e a discussão destacou a urgência da incorporação das questões étnico-raciais nos currículos dos diferentes níveis de ensino, a partir da compreensão de que o trabalho com essa temática não pode prescindir do pressuposto de que nela estão presentes diversos condicionantes históricos, sociais, econômicos, culturais, políticos que mobilizam múltiplas dimensões da organização de nossa sociedade e estão envoltos em conflito, disputa de poder, naturalização de desigualdades, legitimação da segregação e tentativa de desumanização. Com Passos (2012, p. 138-139), vemos que, “Como elemento de estratificação social, o racismo se estruturou na cultura, no comportamento e nos valores dos indivíduos e das organizações da sociedade brasileira, perpetuando uma estrutura de oportunidades desigual para os negros”.
O movimento de aderência à lógica opressora faz com que, muitas vezes, a população negra reproduza e reforce o preconceito racial, pois para reconhecer criticamente essa contradição “É preciso que o eu oprimido rompa esta quase ‘aderência’ ao tu opressor, dele ‘afastando-se”’, para objetivá-lo [...]” (FREIRE, 1987, p. 151, grifo no original). Diante dessas reflexões, Cristina, professora de projetos de educação popular na comunidade do Rio de Janeiro, abordou a palavra “Aderência” a partir da experiência vivenciada em sala de aula como professora de Língua Portuguesa ao discutir o preconceito linguístico.
Ela relatou que ao indagar os alunos sobre o entendimento que trazem sobre a expressão preconceito linguístico, um dos adolescentes respondeu: “Professora, não gosto desse negócio de usar gíria não, tá ligada!?” Rosa destaca que, apesar do próprio aluno ser um usuário de gíria, ele reproduz em sua fala o preconceito linguístico, que mais do que se referir à variação na fala, está diretamente direcionado à origem social do falante. Com Bagno (2004, p. 40), vemos que “Qualquer manifestação linguística que escape desse triângulo escola-gramática-dicionário é considerada, sob a ótica do preconceito linguístico, ‘errada, feia, estropiada, rudimentar, deficiente’, e não é raro, a gente ouvir que isso não é português.”
A fala do aluno de Cristina, além de trazer elementos para refletirmos sobre aderência, nos convida a indagar a favor de quem e, portanto, contra quem, o currículo escolar trabalha e como ele pode servir para que a diversidade cultural seja transmutada em desigualdade a partir do lugar social que cada indivíduo ocupa, perpetuando situações de opressão, discriminação e hierarquização de saberes, a partir da categorização do que é certo ou errado.
Contrapondo-se à lógica do “certo e errado” na língua falada, a sociolinguística vem se constituindo como um instrumento político contra a discriminação e exclusão pela linguagem ao contestar os modelos teóricos convencionais que analisam dicotomicamente os fenômenos linguísticos pelo viés do preconceito social embutido na relação entre língua e sociedade, ao denunciar que, no Brasil, o prestígio atribuído a esta ou aquela variedade linguística está intrinsicamente ligado às relações de poder econômico que estão estabelecidas. Uma vez que “[...] são fatores históricos, políticos e econômicos que conferem o prestígio a certos dialetos e variedades regionais e, consequentemente, alimentam a rejeição e preconceito em relação aos outros” (BORTONI-RICARDO, 2004, p. 34).
Ao trazermos à discussão os condicionantes históricos, Vanderley, estudante de graduação em Letras, entrou no contínuo do Círculo, resgatou a fala inicial de Carla sobre a filosofia educacional de Paulo Freire não estar restrita à área educacional e trouxe a discussão sobre a “Aderência” contribuir para interpretarmos também as posturas dos policiais em suas operações, que, muitas vezes, criminalizam a população negra e pobre. Em um processo de real desumanização, muitos deles também negros e pobres reservam a essa população o pior tipo de abordagem, que pode ir desde agressão verbal até física. Finalizando sua intervenção, relatou que durante uma operação policial ele, um jovem branco de classe média, se surpreendeu ao ser liberado da revista que era feita em seus colegas negros.
A discussão em torno da palavra “Aderência” possibilitou que gestássemos distintas reflexões sobre a situação opressora existente em nossa sociedade, que leva ao processo de desumanização, contrapondo-se à vocação ontológica do ser humano de Ser Mais, que está intrinsecamente ligada à sua inconclusão. Camila, estudante de Pedagogia, alfabetizadora extensionista do Programa, ao entrar na discussão, falou como consegue identificar essa busca pelo Ser Mais em seus alunos em sala de aula e destacou como a busca deles a impulsiona em seu próprio movimento de Ser Mais:
Ver o movimento dos alfabetizandos de superar vários obstáculos na busca de Ser Mais, me desafia a buscar minha superação, e conseguir que eles também se superassem Percebi que era um movimento de mão dupla, não era só eu que ia conseguir Ser Mais, mas eles também estavam conseguindo, então é aí que eu encontrei verdadeiramente, raízes da educação, e que realmente, eu queria enquanto profissional da educação, enquanto professora, que esses alunos se colocassem sempre no movimento de tentar Ser Mais (Camila, 2021).
As palavras da extensionista destacam o caráter coletivo da busca por Ser Mais para constituição de sua humanização sempre inconclusa e nos conduzem ao encontro do que diz Paulo Freire em Pedagogia do Oprimido: “Esta busca do ser mais, porém, não pode realizar-se no isolamento, no individualismo, mas na comunhão, na solidariedade dos existires, daí que seja impossível dar-se nas relações antagônicas entre opressores e oprimidos” (FREIRE, 1987, p. 75, grifo no original). Vitória, outra participante do Círculo, complementa logo depois da leitura das palavras de Freire dizendo que:
Ouvindo a fala de cada um, vendo o rosto de cada um, é uma alegria imensa porque, cada um que está aqui faz parte do meu Ser Mais. Então queria começar falando assim do que é o Ser Mais, né! Em sala de aula, sinto que meus alunos estão buscando o tempo inteiro ser melhor, ser melhor pra si, ser melhor para outro, e quando você faz esse movimento, de parar, de refletir, de ouvir, você consegue compreender várias questões que até então, parece que estavam “dadas” pela sociedade, foi imposto para você, [...] ser mais não é você pegar a reflexão que você fez, as construções de conhecimentos e guardar para si, é trazer e compartilhar, como nós estamos fazendo aqui (Vitória, 2021).
A fala de Vitória parece sintetizar a proposta de realização do Círculo, de partilha, de troca de experiências e saberes. Não apenas neste primeiro evento do Círculo, mas nos demais, apesar de nem todos terem aberto a câmera ou o microfone, a palavra seguiu seu contínuo e de diferentes formas os Círculos se constituíram como espaço de fortalecimento e maneira de superar as situações-limites impostas pelo período pandêmico afinal, “Ninguém educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (FREIRE, 1987,68).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Embora a UFRJ tenha avançado na institucionalização da Extensão, com sua incorporação na quase totalidade dos currículos dos cursos de graduação, suas diferentes concepções estão em permanente disputadas no desenvolvimento de práticas acadêmicas, que envolvem movimentos direcionados para sua efetiva aceitação nos currículos como prática significante de produção de novos sentidos (LOPES; MACEDO, 2021). Mobilizando assim, disputas por concepções de universidade e conhecimentos a serem legitimados no âmbito acadêmico, pois se por um lado a Extensão é valorizada como espaço de exercício do papel político e cultural da universidade, por outro ela ainda é pouco reconhecida como ação acadêmica de produção do conhecimento.
A interlocução com os demais setores da sociedade possibilitada por ações extensionistas traz elementos para a discussão sobre como o currículo historicamente é produzido na educação superior e subverte a lógica da universidade como lócus exclusivo de produção do conhecimento ao trazer outras vozes para o diálogo, materializando a pluralidade e disputa de processos societários presentes em nossa sociedade e refletidos no contexto da universidade pública.
Nesse sentido, a realização dos eventos do Círculo vem reafirmar a Extensão enquanto atividade acadêmica e o caráter da universidade pública, consolidado através da interseção entre o ensino, pesquisa e extensão, dimensões fundamentais para a (re)construção do conhecimento como lugar de resistência e defesa da ciência e das instituições públicas. Em tempos de ataques não só à educação pública, como ao seu patrono, o educador Paulo Freire, os Círculos se constituíram como forma de estreitar os laços com os demais setores da sociedade, ao mesmo tempo em que buscavam ampliar o acesso às obras do educador, utilizando-as para interpretação e intervenção no mundo.
Para a equipe extensionista, a organização dos eventos do Círculo representou a busca de superação da situação-limite (FREIRE, 1987) a que estávamos submetidos. Além de ter se configurado como altamente formativa, uma vez que, independentemente de serem coordenadores dos debates ou não, os extensionistas tinham a responsabilidade de se preparar para contribuir com a discussão através de suas intervenções. Estar no coletivo e em diálogo com outros sujeitos de distintas partes do país, ainda que de forma remota, diminuía a insegurança e a sensação de solidão provocada pelo distanciamento social necessário para frear a pandemia de COVID-19 e apontava para práticas curriculares possíveis de serem desenvolvidas para além do período pandêmico.
Por outro lado, a prática dialógica exigida para esse tipo de atividade acabou por ficar prejudicada, pois nos limites do retângulo da tela do computador, de câmeras e microfones fechados, perdemos muito da nossa capacidade de interação, dos gestos, das expressões faciais, do movimento de “tomar a palavra” para complementar o que o outro está dizendo. Para buscar contornar essas limitações, fizemos uso do recurso do bate-papo, que serviu também como espaço para compartilhamento de material, como livros, autores, poemas e músicas. Porém, nas palavras digitadas no bate-papo, faltou a entonação, o acento, a emoção do estar junto presencialmente.
O fato de ser um evento público e gratuito, na forma remota, possibilitou o diálogo com sujeitos de diferentes partes do Brasil e distintos espaços educacionais, desde estudantes do Curso de Formação de Professores de Nível Médio, à professores das redes municipais e estaduais de ensino, até os sujeitos de diferentes comunidades acadêmicas. Contudo, cabe ressaltar nossa limitação no que diz respeito à acessibilidade, pois não foi possível contarmos com tradutores de libras durante os eventos do Círculos. Assim, diante do caos pandêmico em que vivíamos, fizemos a ocupação possível de demarcação da universidade pública e da defesa de uma educação pública, gratuita, laica e de qualidade para todos, como potencial reivindicatório.
A experiência nos mostrou a possibilidade de interlocução com a utilização de recursos tecnológicos, mas também nos alertou para a forma como o Estado vem se representando por uma política neoliberal que, em pleno pico pandêmico, quando tínhamos milhares de mortes diárias no país, se aproveitava para proclamar um “novo normal” para o campo educacional através do “[...]aligeiramento da graduação, o recurso às modalidades virtuais, o fortalecimento do ensino a distância e incentivo à mercantilização e precarização dos serviços ofertados pelas Universidades” (COSTA; CAPUTI; SILVA, 2021, p. 86).
O que fez com que, nos eventos dos Círculos de Cultura, ao mesmo tempo em que partilhávamos saberes de experiência feitos (FREIRE, 2002), aprofundássemos também discussões teóricas e debates sobre o papel do Estado na garantia constitucional do direito à educação. Debate que precisa ser cada vez mais aprofundado, pois com a gradativa desresponsabilização do Estado com a oferta da educação, parcela significativa da população enfrenta cada vez mais dificuldade em dar continuidade ao seu processo formativo nas instituições públicas educacionais.
Com a aceleração do processo de vacinação e a pandemia controlada, pudemos retornar às atividades extensionistas na forma presencial. Dessa forma, o curso de Formação de Alfabetizadores voltará a acontecer nas dependências da universidade a partir do ano de 2023, mas, diante da experiência remota, a equipe avalia a manutenção da realização dos eventos do Círculo como ação complementar, alternando entre presencial e remota, de forma a manter o diálogo com os sujeitos que estão geograficamente distantes, mas que se aproximam a partir da perspectiva de trabalho com a filosofia educacional proposta por Paulo Freire.
REFERÊNCIAS
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