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CURRICULO E IDENTIDADES: aproximações entre educação, cultura e arqueologia social inclusiva na Fundação Casa Grande em Nova Olinda-CE
CURRICULUM AND IDENTITIES: approximations between education, culture and inclusive social archeology at the Casa Grande foundation in Nova Olinda-CE
CURRÍCULO E IDENTIDADES: aproximaciones entre educación, cultura y arqueología social inclusiva en la fundación Casa Grande en Nova Olinda-CE
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 2, 2023
Recepção: 24 Julho 2023
Aprovação: 24 Agosto 2023
Resumo: A construção das identidades passa por um processo de socialização, e relação com as culturas através dos percursos formativos, agregando elementos articulados pelas instituições educativas formais e não formais. A Arqueologia Social Inclusiva, na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda-CE, constitui-se em uma prática formativa que fomenta o resgate da memória, das identidades e liga os sujeitos as culturas, a história, a geografia do lugar e os materiais tangíveis e intangíveis que compõem o campo da educação, construindo pertencimento através de uma pedagogia performática, numa relação entre currículo oculto, educação e cultura. O objetivo central da pesquisa foi analisar a Arqueologia Social Inclusiva como ferramenta de formação na Fundação Casa Grande em Nova Olinda – CE, bem como suas aproximações com as culturas, as identidades e o processo educativo não formal de crianças e adolescentes atendidas. Para tanto, fez-se necessário um diálogo de aporte teórico acerca dos significados da cultura, da educação, do currículo, da relação entre currículo e cultura e a construção das identidades. Desenvolveu-se uma pesquisa etnográfica, através de observação participante, com grupos focais e aplicação de questionários semiestruturados. Os dados foram processados por meio da análise de conteúdo, apresentados no percurso do texto, através de abordagem qualitativa. Concluiu-se que a Fundação Casa Grande possui um papel de protagonismo no Cariri em função de suas práticas educativas emancipatórias e de valorização da memória e das produções etnográficas, além de levar em consideração os pressupostos da Arqueologia Social Inclusiva como instrumento de formação do currículo não formal.
Palavras-chave: Currículo, Educação, Arqueologia Social Inclusiva.
Abstract: The construction of identities goes through a process of socialization, through the relationship with cultures through training paths, adding elements articulated by formal and non-formal educational institutions. Inclusive Social Archeology, at the Casa Grande Foundation, in Nova Olinda-CE, constitutes a training practice that encourages the rescue of memory, identities and connects subjects to cultures, history, the geography of the place and with the tangible and intangible materials that make up the field of education, building belonging through a performative pedagogy, in a relationship between hidden curriculum, education and culture. The main objective of the research was to analyze Inclusive Social Archeology as a training tool at the Casa Grande Foundation in Nova Olinda - Ce, as well as its approximations with cultures, identities and the non-formal educational process of children and adolescents assisted. Therefore, a theoretical dialogue about the meanings of culture, education, curriculum, the relationship between curriculum and culture and the construction of identities was necessary. An ethnographic research was developed, through participant observation, with focus groups and application of semi-structured questionnaires. Data were processed through content analysis, presented in the course of the text, through a qualitative approach. It was concluded that the Casa Grande Foundation plays a leading role in Cariri due to its emancipatory educational practices and the appreciation of memory and ethnographic productions, in addition to taking into account the assumptions of Inclusive Social Archeology as an instrument for the formation of the curriculum not formal.
Keywords: Currículo, Educação, Arqueologia Social Inclusiva.
Resumen: La construcción de identidades pasa por un proceso de socialización y relación con las culturas a través de caminos de formación, agregando elementos articulados por instituciones educativas formales y no formales. La Arqueología Social Inclusiva, en la Fundação Casa Grande, en Nova Olinda-CE, constituye una práctica formativa que incentiva el rescate de la memoria, las identidades y vincula a los sujetos con las culturas, la historia, la geografía del lugar, construyendo pertenencia a través de una pedagogía performativa, en una relación entre currículum oculto, educación y cultura. El objetivo central de la investigación fue analizar la Arqueología Social Inclusiva como herramienta de formación en la Fundación Casa Grande de Nova Olinda - CE, así como sus aproximaciones con las culturas, las identidades y el proceso educativo no formal de los niños y adolescentes atendidos. Por lo tanto, fue necesario un diálogo teórico sobre los significados de cultura, educación, currículo, la relación entre currículo y cultura y la construcción de identidades. Se desarrolló una investigación etnográfica, a través de la observación participante, con grupos focales y aplicación de cuestionarios semiestructurados. Los datos fueron procesados a través del análisis de contenido, presentados en el transcurso del texto, a través de un abordaje cualitativo. Se concluyó que la Fundación Casa Grande tiene un papel protagónico en Cariri por sus prácticas educativas emancipatorias y de valorización de la memoria y las producciones etnográficas, además de tener en cuenta los presupuestos de la Arqueología Social Inclusiva como instrumento para la formación del currículo no formal.
Palabras clave: Curriculum, Education, Inclusive Social Archaeology.
1 A ARQUEOLOGIA SOCIAL INCLUSIVA COMO PEDAGOGIA PERFOMÁTICA: TRAÇOS IDENTITÁRIOS DE UM CURRÍCULO OCULTO
A Arqueologia enquanto ciência, propõe a descoberta, análise e apresentação de dados da cultura material pretérita para a possível compreensão das condições de existência humana no passado, distante ou não, que nos traga elucidações sobre os aspectos antropológicos que envolvem o desenvolvimento da humanidade. Contudo, para além da sua dimensão técnica, uma outra arqueologia é possível, dentro de uma formação curricular não formal, a partir de uma realidade concreta e de práticas emancipatórias, inclusivas e de resgate das identidades historicamente constituídas.
No que diz respeito à perspectiva sistêmica e a difusionista, ambas se aproximam de condições tecnicistas, dentro de um academicismo clássico, tradicional e preocupadas com o processo de prospecção, escavação, medição, aplicação de técnicas conservacionistas, descrição modular dos artefatos encontrados e encaminhamento às reservas técnicas etc. Concentram-se nos procedimentos metodológicos para detalhar a formas, a temporalidade da existência dos materiais encontrados. Tecnicamente, precisamos assegurar e reconhecer a importância e a necessidade das perspectivas apontadas, pois se constituem como a base de construção do conhecimento arqueológico, do desenvolvimento de pesquisas sobre a cultura material, sobre a recomposição do passado antrópico e pela compreensão fornecida a partir das análises de dados fundamentais no campo da Arqueologia como ciência do passado, levando-se em consideração o sentido etimológico da própria palavra e o seu significado tradicional, que de acordo com Funari:
[...] o objeto de estudo da Arqueologia seriam as coisas, em particular os objetos criados pelo trabalho humano (artefatos), que constituiriam os "fatos" arqueológicos reconstituíveis pelo trabalho de escavação e restauração por parte do arqueólogo. Esta concepção encontra-se ainda muito difundida entre aqueles que consideram ser a tarefa do arqueólogo o esburacamento do solo e a recuperação de objetos antigos (1988, p. 10).
A tarefa da Arqueologia, por este aspecto, seria realizar as escavações e organizar, metodologicamente, os materiais encontrados em superfície, através de sondagens, ou por meio das escavações estratigráficas [1]. A construção do conhecimento arqueológico, neste sentido, estava limitada aos interesses dos pesquisadores, ou às demandas das instituições financiadoras das pesquisas, sejam elas entes públicos ou privados, resultando num distanciamento entre os resultados obtidos e as comunidades onde os trabalhos eram desenvolvidos.
Quando procuramos estabelecer a relação entre educação, cultura, identidades e a arqueologia como prática e as possíveis demarcações dos currículos no processo de aprendizagem, precisamos refletir sobre a indissociabilidade do que está presente nas espacialidades territoriais. Nos terreiros que devem ser compreendidos como âmbito constitutivo da ação educativa, afinal, a educação é o terreiro do mundo. Não se trata, apenas, de uma busca por objetos do passado, da compreensão a ser lançada sobre a cultura material produzida pelos humanos em tempos passados, é necessário levarmos em conta os sentidos da arqueologia com base no que foi preconizado por Funari:
(…) A Arqueologia estuda os sistemas socioculturais, sua estrutura, funcionamento e transformações com o decorrer do tempo, a partir da totalidade material transformada e consumida pela sociedade. As principais discussões sobre o que seja Arqueologia derivam, justamente, dessa ambivalência, ou seja, do fato de que tem como objetivo a compreensão das sociedades humanas e, como objeto de pesquisa imediato, objetos concretos (Funari, 1988, p. 08).
Neste caso, enxergamos um novo conceito de arqueologia, pautado pelo pressuposto teórico que a coloca numa condição intrínseca à natureza do conceito apontado. A arqueologia, diante de todos esses entrelaçamentos e atravessamentos, precisa ser social. Suas práticas não devem ser limitadas a escavação estratigráfica, a descrição técnica dos objetos encontrados. O sentido educativo, integrador, de fomento ao resgate das identidades culturais, das abordagens críticas, de uma pedagogia performática inclusiva e dialógica, que não sejam distantes dos terreiros, mas que estejam em profundo contato com as culturas transcendestes dos lugares.
Podemos perceber que, por esta perspectiva, o território possui um significado mais espiritual do que físico, proporcionando sentidos também aos objetos nele integrados, pois o espaço é um dos elementos que compõem o plano onde ocorrem os fenômenos sociais, dando significância aos artefatos arqueológicos que exigem interpretação. O valor simbólico dos objetos, de artefatos ou construções partia da importância que lhes era atribuída pela memória coletiva. Daí porque se constitui, na sua essência, o patrimônio cultural vinculado à construção identitária dos membros de uma sociedade que carece de preservação, como resultado de um constructo histórico, antropológico e sociológico, pois:
Nessa concepção mais ampla, patrimônio pode ser classificado como o conjunto de bens materiais (tangíveis) e imateriais (intangíveis), não só as edificações e os monumentos históricos ou as manifestações artísticas, mas todo o fazer humano, tudo o que o ser humano produz, de todas as classes sociais, tanto as mais quanto as menos favorecidas (BARRETO, 1999, p. 11).
Com base nesse amplo conceito de patrimônio e sob a necessidade de resgatar as identidades que compõem os sentidos do lugar, integrando a sociedade, as comunidades agrupadas nestes espaços de memórias, reconhecemos que a arqueologia pode ter uma função social muito mais ampla, um sentido mais próximo dos fazeres educativos, tanto nos espaços formais quanto não formais, além daquilo que é prescrito nos currículos institucionais. Escavando o terreiro do mundo, prospectando os saberes e fazeres nos contextos das temporalidades, encontramos as interfaces entre educação, cultura e os currículos como mediadores na construção das identidades. No que diz respeito aos aspectos didáticos, e as contribuições que esta perspectiva pode nos trazer para os diferentes ciclos formativos escolares, destacamos a possibilidade de diálogos transdisciplinares que podem ocorrer entre disciplinas dos componentes curriculares institucionais, as epistemologias do campo arqueológico numa contextualização histórica, geográfica, os saberes tradicionais, as práticas culturais dos territórios, bem como os elementos que se coadunam com as identidades locais.
Neste ponto, a Arqueologia Social, adquire feições de uma pedagogia freireana, pois, ela passa a possuir um caráter emancipatório, de empoderamento e da tomada de consciência do sujeito sobre sua própria realidade, sobre suas condições históricas e sobre a comunidade onde ele está inserido (FREIRE, 1987). É como se os sujeitos integrados nas pesquisas, num diálogo constante entre os conhecimentos acadêmicos, científicos e os saberes alocados pelas vivências, pelas tradições e disseminados no tempo, passassem por uma distinta alfabetização cultural transdisciplinar a partir de um currículo não institucionalizado. A partir da aquisição desta nova feição, onde a Arqueologia passa a conviver com o complemento do social, e torna-se uma ciência cidadã[2], é necessário analisarmos o emprego deste termo, para esclarecermos o quanto ela passa a ser também inclusiva. Temos assim, uma dinâmica de produção cultural a partir das relações que estabelecemos com a natureza intrínseca, com a natureza exterior, com o meio ambiente, e a partir das relações com os outros sujeitos da coletividade pois, tudo que produzimos culturalmente, tem um caráter social.
Há quase que um alumbramento espontâneo na prática arqueológica cujos dispositivos curriculares perpassam os ditames do tecnicismo e da institucionalidade, evocando, inclusive, a transdisciplinaridade necessária para o agregamento de conhecimentos que amplificam o campo de atuação e de percepção da arqueologia. Circundamos a ilumiara[3] no alvorecer de uma nova ciência. Um conjunto integrado de saberes que possibilitam o ecoar das vozes dos terreiros, dos lugares onde se produz cultura, e de onde se tiram os achados que trazem as marcas de um tempo distante, mas que auxiliam na compreensão das diferentes formas de organização da humanidade, suas significações e suas relações com os objetos.
A ressignificação metodológica em qualquer campo das ciências, pode contribuir com a otimização da construção do conhecimento, com a socialização e democratização do saber, além de gerar oportunidades, pois as aproximações metodológicas participativas e colaborativas são alternativas buscadas pelos pesquisadores para a realização de trabalhos mais conjuntos com as comunidades. Novas estratégias de pesquisa e de produção epistemológica, geram engajamento, provocam reflexões coletivas, valoram as culturas locais, as identidades e possibilitam aprendizado difuso entre os que pesquisam, os que ocupam os lugares pesquisados, proporcionando emancipação e autonomia na construção dos sujeitos. Neste caso, o caráter emancipatório é também um caráter inclusivo.
1.1 Educação e cultura nos espaços não formais e a concepção de lugar de sabença na Fundação Casa Grande em Nova Olinda-CE
As espacialidades, sejam elas temporais ou geográficas, possuem significados em função da percepção dos próprios sujeitos a seu respeito, não havendo um sentido único para aquilo que a natureza expressa em suas variadas formas. Esses sentidos, derivam das representações constituídas das heranças que fazem parte do imaginário que transcende o espaço histórico, pois a realidade material e imaterial com todos os significados, não passa de representações imagéticas montadas num aparelho psíquico, oriundas dos arcabouços culturais.
Espaço, paisagem, tempo, tudo isso é impregnado de significados adotados pelo homem, resultante de sua relação com cada um desses elementos e com os outros homens, tecidos a partir de sincretismos que delineiam a forma como enxergamos o mundo e as “coisas” nele existentes. É como se os sentidos dos lugares fossem resultantes das formas de pensamento humano, pois “a paisagem cultural, se realiza como um produto da conexão de estruturas humanas. Os espaços não são apenas projeções geograficamente organizadas em função da ação da natureza. O sentido do lugar já existia antes dos seus significados científicos, são marcados pelos atributos dados por povos que o habitavam durante o perídio pré-colonial. Por essa razão, segundo Augé:
As paisagens são culturais, sempre habitadas e transformadas pela presença humana, e duplamente diversas em função da localização geográfica e das sociedades humanas que as moldam. Elas, assim como as obras de arte, dependem do olhar que delas desliza. Como as obras de arte ou como os indivíduos humanos que, em seus confrontos, podem sentir atração, repulsão ou indiferença (Augé, 2014, p. 49).
Tudo isso faz parte de um arcabouço cultural transcendental, cuja principal ferramenta de resgate e de disseminação não curricular é uma Arqueologia Social Inclusiva dos objetos da memória. Uma prática didático pedagógica que tem como fundamento central a difusão da memória e dos hábitos que se configuram nos códigos culturais do cerne das nossas identidades que, segundo Candau (2012, p. 61) “é o conjunto da personalidade de um indivíduo que emerge da memória.” Identidades e memórias configurativas de tempos remotos, do período pré-colonial, de um tempo em que os sujeitos estavam essencialmente integrados a natureza, intrínsecos a paisagem cultural tangível e intangível.
No campo da formação de professores, intenciona-se a construção de uma crítica às estruturas curriculares oficiais para uma reflexão sobre a necessidade de curricularização de ferramentas que possam promover a devida aproximação entre educação, cultura e a valorização das identidades, da memória e dos saberes tradicionais, difundidos pelas oralidades e pela necessidade de construirmos um currículo pautado pelo interculturalismo, vislumbrando o desenvolvimento do sentimento de alteridade e de valoração das nossas matrizes de formação étnica. Neste sentido, podemos com essa pesquisa, contribuir com a desestabilização dos currículos hegemônicos e homogeneizantes, que tratam as salas de aula como se fossem fábricas fordistas numa preparação linearizada para o dito “mercado de trabalho”, que não consegue enxergar as diferenças e nem tampouco dialogar com as nossas identidades. Ou seja, a pesquisa:
Parte de uma proposta de educação intercultural, a crítica cultural implica numa renovação do conhecimento escolar e das estratégias de construí-lo e reconstruí-lo na sala de aula. Partimos do ponto de vista de que a adoção de uma perspectiva intercultural não significa uma desvalorização do conhecimento nem pretende restringir o(a) aluno(a) aos seus referenciais culturais. Consideramos que a escola deve promover um processo de ampliação dos horizontes culturais dos estudantes. A centralidade da cultura nas reflexões e propostas sobre a escola e currículo não pode jamais ter como consequência a desvalorização do conhecimento escolar cuja apreensão constitui direito de todo e qualquer estudante. Consideramos então, ser possível e desejável que a escola se constitua em lugar no qual se articulem diferentes saberes, conhecimentos e culturas. (MOREIRA, 2014, p. 14)
Diante do processo de mudança social e da busca constante por uma identidade, a educação se coloca como mecanismo substancialmente prioritário, em qualquer que seja o nível de escolarização e em qualquer modalidade institucional, seja na escola formal, seja em instituições não governamentais como a Fundação Casa Grande. Além disso, as práticas do currículo não formal passam a servir de modelos de ferramentas absolutamente úteis no processo de desenvolvimento da aprendizagem, de resgate das identidades e de valorização das culturas matriciais, dos saberes tradicionais e da diversidade étnica. A Fundação é uma casa de saber e educação, onde tudo se cria a partir das vivências conduzidas com as crianças e adolescentes que se integram ao lugar encantado, como numa aula de vida a partir da própria realidade.
2 CURRÍCULO E IDENTIDADE CULTURAL: IMPLICAÇÕES E ATRAVESSAMENTOS NO TERRITÓRIO DA CONSTRUÇÃO EDUCATIVA
O currículo se constitui como território de construção das identidades imbricadas na cultura, nos espaços de formação, na atmosfera social e nas espacialidades físicas onde o fenômeno da educação se dissipa. A estrutura curricular não é uma ferramenta solitária e uníssona, ela está vinculada aos mais variados aspectos e elementos que integram a educação, tanto nos espaços formais como nos não formais, realizando atravessamentos e implicações para as identidades culturais em contexto de formação. Para responder à pergunta: o que é currículo? partimos de diferentes outros questionamentos. O que é currículo em que temporalidade? O que é currículo sob que latitude, em que lugar do globo terrestre? O que é currículo em que sociedade? O que é currículo em que sistema de ensino? Essas questões expressam a complexidade que teríamos em definir o currículo numa só perspectiva, numa só categoria conceitual, principalmente quando tratamos o currículo como objeto de estudo científico, visto que só a partir do século XIX e início do século XX é que este objeto tem estado no centro dos estudos sistematizados no campo da educação e das investigações científicas (MOREIRA, 2013).
O papel agregador que o currículo adquiriu, conferiu-lhe um sentido de poder simbólico[4], quando visto como ordenador dos conteúdos que devem ser ministrados, mesmo que não estejam em consonância com os anseios dos sujeitos da aprendizagem. Além disso, tornou-se um marcador de tempo, de classificação, de hierarquização, de substrato para uma composição identitária universalista, dentro de determinações pedagógicas lineares e conformativas para uma aprendizagem devida e eficiente. Na contemporaneidade, dada a autonomia do currículo e o seu poder de agregamento involuntário, tornou-se o esqueleto estrutural do processo de escolarização e do ensino nos seus mais distintos níveis de aprendizagem, desde a escola primária básica aos programas de pós-graduação. O currículo acabou tomando forma de uma ferramenta para encapsular vidas, pois, segundo Sacristã:
Junto com a ordenação do currículo é regulado o conteúdo (...), são distribuídos os períodos para se ensinar e aprender, é separado o que será o conteúdo do que se considera que deva estar nele inserido e quais serão os conteúdos externos e mesmo estranhos. Também são delimitados os territórios das disciplinas e especialidades e são delimitadas as referências para a composição do currículo e orientação da prática de seu desenvolvimento. Tudo isso, como um conjunto, constituirá o padrão sobre o qual se julgará o que será considerado sucesso ou fracasso, o normal ou anormal, o quanto é satisfatória ou insatisfatória a escola, quem cumpre o que é estabelecido e quem não o faz (Sacristã, 2013 p. 18).
A finalidade de estabelecer um padrão formativo, de constituir um percurso linear e criar uma trilha de aprendizagem invariável, torna o currículo uma ferramenta de controle social, através da disseminação de conhecimentos inerentes à logica burocrática acadêmica, atendendo a interesses oriundos das relações de poder político dos sistemas educativos, constituindo um território homogêneo para a construção de subjetividades e identidades culturais. Esse fenômeno de padronização se conflita com as diversidades existentes nos territórios disputados pelas forças antagônicas e que se articulam dentro do campo da educação e dos processos de aprendizagem formais e não formais.
A Curricularização é um processo de ordenação, a configuração de uma conjuntura que se pretende necessária no contexto de formação acadêmica, que mobiliza o que é concebido como conhecimento universal obrigatório em áreas instituídas para canalizar esse conhecimento de forma sistematizada, padronizada e hierarquizada aos sujeitos em formação, seja qual for o nível de escolarização, sobretudo nos sistemas ou modelos formais de educação que se estabelecem com as mudanças que ocorrem no percurso do século XIX para o século XX, oriundas das transformações impulsionadas pela nova dinâmica societária do sistema de produção capitalista com a industrialização. O modelo de sociedade vigente nos países que conduziam esse fenômeno econômico, político e social fez com que os sistemas de ensino, as escolas e as universidades passassem a racionalizar ainda mais o processo de ensino-aprendizagem, tendo o currículo como mecanismo de orientação para essa racionalização. Nascia uma nova concepção de sociedade, de escola e um novo conceito de currículo, considerando-o até mesmo como uma importante ferramenta de controle social de uma sociedade tão complexa e multifacetada (MOREIRA, 2013).
Nasce uma concepção de currículo paradoxal, com divergências entre o que é institucionalizado e o que se pratica nas culturas difusas e diversificadas onde os currículos são implementados e desenvolvidos, mesmo diante relevância dos conhecimentos universais necessários à formação educativa acadêmica dos sujeitos. É aqui que devemos compreender a relação entre currículo, cultura, sociedade e as identidades, mudando o prisma da discussão que é centralizada sobre o que é currículo, para a ideia de que o currículo é uma composição de elementos culturais, sociais, econômicos, ideológicos, contextualmente integrados dentro de uma conjuntura específica, dialógica e absolutamente dinâmica, conforme anuncia Silva:
A questão central que serve de pano de fundo para qualquer teoria do currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. De uma forma mais sintética a questão central é: o quê? Para responder a essa questão, as diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana, sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da cultura e da sociedade (Silva, 2022, p. 14).
Encontramos aqui o significado do currículo para além dos seus sentidos restritos da institucionalidade e de conhecimentos universais, já que nestes moldes, há infinitas discrepâncias entre aquilo que se pretende ensinar e as práticas culturais da realidade objetiva. Sendo assim, no terreiro da educação, prospectamos o currículo como um “artefato” arqueológico, um objeto da cultura imaterial presentes nesse terreiro.
A complexidade do currículo enquanto “artefato” que se constrói a partir de uma conjuntura societária, histórica e cultural, nos encaminha para uma percepção que se esvai das teorias tradicionais que procuram definir um conceito de currículo. Seja na perspectiva enviesada pelo marxismo, seja pelo taylorismo do cientificismo da Revolução Industrial, seja pela ótica da reprodução cultural do conceito de “habitus” e da “violência simbólica” de Pierre Bourdieu (SILVA, 2022). Essas teorias, limitam-se a compreender o currículo sob condições específicas como as estruturas econômicas, os aspectos institucionais que devem estar além da condição dos sujeitos, bem como a predominância de uma cultura hegemônica, sem abrir espaços para rupturas, desencaixes ou resistências que possam gerar libertação e emancipação dos envolvidos no processo educativo.
O objeto de interesse dessa pesquisa se refere à Arqueologia Social Inclusiva como prática de um currículo não oficial na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda-CE, que será melhor analisado, levando-se consideração os cinco aspectos apontados por Silva (2010, p. 17) sobre o currículo e a cultura: o primeiro como “prática de significação”, o segundo como “prática produtiva”, o terceiro como uma “relação social”, o quarto como uma “relação de poder” e o quinto como uma “prática que produz identidades sociais”. Entre o primeiro e o quinto aspectos encontramos material teórico para estabelecermos a devida relação entre educação, cultura, currículo, identidade e a Arqueologia Social como prática pedagógica criadora de sentidos, ferramenta de resgate da história e de compreensão da condição antropológica material e imaterial da Região do Cariri cearense, no que diz respeito a produção de conteúdo inerente à cultura do território, ao terreiro encantado do entorno da Chapada do Araripe, suas expressões e manifestações do passado de do presente, assim como profusão do conhecimento no campo da Arqueologia, da Antropologia, da História e de outros campos das Ciências Humanas e das Ciências Sociais.
2.1 Identidades culturais e subjetivação no terreiro da educação moldadas pelo currículo
O currículo é uma ferramenta formal ou não formal de instrumentalização da educação como fenômeno antropológico. Já a educação é uma dimensão da cultura, atravessada por seus diferentes elementos, como a política, a economia, as tradições, os aspectos da espiritualidade e a diversidade de culturas disseminadas pela intensificação da globalização.
O mundo contemporâneo, composto por uma rede infinita de informação faz surgir um novo tipo de homem, pois a própria tecnologia é que dirige o processo de transformação, como se as nossas identidades devessem ser mundializadas e determinadas pela técnica, podendo ocasionar a descaracterização das subjetividades dos indivíduos enquanto seres sociais, pois:
Se abordarmos a vida das pessoas na globalidade de sua história, as variações dos registros nos quais elas se exprimem, e as múltiplas facetas que elas evocam de seu percurso, é realmente difícil não tomar consciência das sinergias positivas ou negativas entre as dimensões psicossomáticas, psicológicas, sociológicas, antropológicas, sociohistóricas, espirituais, por exemplo, que intervêm na expressão evolutiva da existencialidade e, assim, da identidade (Josso, 2007, p. 416).
O homem não possui apenas uma dimensão biológica, natural, é um ser complexo, multidimensional, inacabado, resultante de um processo evolutivo que foi determinante na sua configuração enquanto ser social. Essa complexidade decorrente de sua condição evolutiva definiu, basicamente, a sua grandeza extraordinária enquanto produtor de cultura. A cultura é o fator determinante da nossa humanidade, podendo se caracterizar como todas as invencionices que não estão absolutamente vinculadas aos nossos aspectos biológicos, pois as heranças genéticas não são definidoras dos aspectos socialmente construídos, como define Berge e Luckmann (2012): “A humanidade específica do homem e sua sociabilidade estão inextrincavelmente entrelaçadas. O Homo sapiens é sempre, e na mesma medida, homo sócios.
Assim, podemos afirmar: se há a presença do homem, há a presença de elementos culturais, mesmo que em contextos históricos distintos, obedecendo aos aspectos sociais gerais do recorte temporal que se observa. Fica claro que a tipificação das identidades decorre dos hábitos produzidos pelas estruturas sociais, suas instituições socializadoras e os indivíduos desenvolvem o sentimento de pertencimento à essas estruturas a partir das práticas engendradas por esses hábitos e, neste caso, os currículos ocupam a centralidade no processo de formação social que podem ser influenciados pelas relações que se processam na estrutura da sociedade, ou seja, onde ocorrem os encaixes e desencaixes, responsáveis pela formação das subjetividades e das identidades.
Sendo assim, é como se os encaixes nos grupos fossem os meios pelos quais se constroem as identidades, preparadas numa consciência coletivizada e inseridas nos imaginários através dos fatos sociais de forma coercitiva, genérica e exteriorizada. Os encaixes e desencaixes aqui referidos podem ser assim explicados:
[...] a construção da identidade e o equilíbrio da personalidade humana parecem demandar uma certa estabilidade, mas não a cristalização, de traços e relações pessoais e coletivas. Trata-se aqui do inverso, como resposta a eles, dos mecanismos de desencaixe: essa relativa estabilidade é fornecida por processos de reencaixe que, reflexivamente, consistem em outra característica saliente da modernidade. Com isso, o indivíduo pode perceber-se como membro de um grupo, de uma religião, de uma classe, de uma etnia que o inclui e que lhe dá sentido (DOMINGUES, 2005.p.24).
A construção do sujeito, em termo de identidade sociocultural passa pelo encaixe, desencaixe ou reencaixe do mesmo num dado agrupamento social, onde estão pré-definidos os componentes usados na formação da subjetividade e serão refletidos na identidade individual. Na medida em que ocorre um processo de transformação social horizontalizado as identidades culturais são modificadas. E quanto maior a velocidade das mudanças, bem como a sua abrangência global provocando o que Hall (2006) chama de compreensão espacial e temporal, as identidades se tornam ainda mais fluidas e distantes das ancestralidades e das tradições remotas.
A pós-modernidade não é um mero acaso decorrente do fim da modernidade, mas sim uma nova configuração social voluntária, resultante das mudanças encabeçadas pelos avanços tecnológicos nos processos produtivos ao longo dos diferentes contextos históricos, iniciados ainda na segunda metade do século XVIII. A partir daí a dinâmica de sociabilidade vem sendo cada vez mais fragmentada e a consequência direta disto é uma imensa dificuldade de encontrarmos um encaixe identitário. A Revolução Industrial fez com que uma grande quantidade de indivíduos se adaptasse ao acelerado ritmo impresso pela velocidade da produção, tendo como consequência, o surgimento de um novo modelo de sociedade, denominada de sociedade industrial, globalizada e globalizante, cujos padrões são disseminados pelos fluxos culturais entre as nações, construindo um compartilhamento mundializado de identidades.
Quanto mais a vida social se torna mediada pelo mercado global de estilos, lugares e imagens, pelas viagens internacionais, pelas imagens da mídia e pelos sistemas de comunicação globalmente interligados, mais as identidades se tornam desvinculadas – desalojadas – de tempos, lugares, histórias e tradições específicos e parecem flutuar livremente. Somos confrontados por uma gama de identidades (cada qual nos fazendo apelos, ou melhor, fazendo apelos a diferentes partes de nós), dentre as quais parece possível fazer uma escolha (HALL, 2010.p.75).
De acordo com a perspectiva apontada por Berge e Luckmann (2012), a identidade é definida por um processo social, um constructo que leva em consideração os aspectos culturais mais amplos de toda uma conjuntura socialmente organizada. Contudo, as conjunturas sociais vem sofrendo alterações significativas numa espécie de compressão espaço-tempo que, segundo Hall (2006) é a aceleração dos processos globais, de forma que se sente que o mundo é menor e as distâncias mais curtas, que os eventos em um determinado lugar tem um impacto imediato sobre pessoas e lugares situados a uma grande distância, afetando definitivamente as subjetividades e fragilizando a construção das identidades, levando o sujeito a um deslocamento em vez de gerar o sentimento de pertencimento, pois o mundo social encontra-se fragmentado. A fragmentação do mundo moderno nos coloca diante de um dilema imensurável acerca de nossa própria identidade, tendo em vista os deslocamentos sofridos pelas subjetividades. Se os elementos padrões das sociedades se dissolvem, é possível que a socialização dos indivíduos seja fragilizada, e neste caso, a principal consequência é a dificuldade de se elaborar uma consciência individual, já que esta última está vinculada as coletividades por meio das culturas e as culturas na pós-modernidade passam, em sua maior parte, por um hibridismo sem precedentes, longe das tradições, dos saberes populares, dos modos de fazer e dos mais variados elementos que estão fincados no arcabouço das origens.
É aqui que encontramos a convergência entre cultura, sociedades pós-industriais, identidades, sistemas formativos educacionais e suas ferramentas norteadoras, ou seja, os currículos, pautados pela lógica do avanço do sistema capitalista. Por consequência do fenômeno da globalização há uma tentativa de homogeneização cultural liderada pelos países que se encontram num estágio mais avançado de desenvolvimento tecnológico. Os impulsos culturais oriundos desses países vão provocando transformações substanciais nas identidades locais, pois quando não geram homogeneização, geram hibridismo. Os currículos, por sua vez, estão mais distantes da diversidade cultural e mais próximos de uma tentativa de homogeneização das identidades, tendo em vista as variáveis determinantes do processo formativo.
Pensa-se, constantemente, qual o tipo de sujeitos que precisam ser formados por um conjunto de conhecimentos universalizados e hegemônicos, não levando-se em consideração as particularidades epistemológicas dos territórios em que estes sujeitos estão agrupados e, consequentemente, suas culturas também se tornam irrelevantes na construção de um currículo institucional. Sendo assim, o que podemos observar, a partir das resistências que se manifestam através currículo não formal, são práticas de uma pedagogia performática que viabilizam a construção social dos sujeitos, as subjetividades e as identidades que expressam traços compartilhados, representações e simbologias dos lugares de sabença. Já que, conforme Silva:
O currículo, como espaço de significação está estreitamente vinculado ao processo de formação das identidades sociais. É aqui, entre outros locais, em meio a processos de representação, de inclusão e de exclusão, de relações de poder, enfim, que em parte, se definem, se constroem, as identidades sociais que dividem o mudo social (2010, p. 27).
Por esta ótica, o currículo está absolutamente vinculado as subjetivações, a construção das dimensões humanas abordadas anteriormente. Se somos seres políticos, sociais, estéticos, éticos, morais e dotados de algumas outras dimensões antrópicas, é porque tivemos um percurso também definido por um currículo, seja ele formal ou não formal. Identidade, cultura e currículo são premissas fundantes para a compreensão do ser humano, de suas relações, de seus papéis sociais, das funções ocupadas no processo produtivo e, até mesmo, no padrão de sentimentalidade desenvolvido na ambígua pós-modernidade.
3 ARQUEOLOGIA SOCIAL INCLUSIVA, EMANCIPAÇÃO E IDENTIDADE NO PERCURSO EDUCATIVO: EXPRESSÕES DE UM CURRÍCULO OCULTO NUM ESPAÇO NÃO FORMAL
A Arqueologia Social Inclusiva, baseada nos princípios elementares da ciência cidadã, nos apresenta subsídios essenciais para a melhoria da qualidade de vida, intelectual e material da sociedade, direcionando-nos para aquilo o mundo precisa compreender acerca do patrimônio material e da identidade cultural, principalmente acerca dos direcionamentos sobre a proteção dos bens históricos que passam a ser vistos de forma sentimental pelos povos do presente contínuo, como foi possível de observar desde a Conferência de Atenas em 1931, ratificada pelo Iphan:
A conferência, profundamente convencida de que a melhor garantia de conservação de monumentos e obras de arte vem do respeito e do interesse dos próprios povos, considerando que esses sentimentos podem ser grandemente favorecidos por uma ação apropriada dos poderes públicos, emite os votos de que os educadores habituem a infância e a juventude a se absterem de danificar os monumentos, quaisquer que eles sejam, e lhes façam aumentar o interesse de uma maneira geral, pela proteção dos testemunhos de toda a civilização (Iphan 2004, p. 17).
O processo de inclusão das populações na proteção do patrimônio e na sua utilização como mecanismo de desenvolvimento social, não se limita apenas à um programa de educação patrimonial, mas sim, perpassa pela construção do sentimento de pertencimento à memória coletiva, ao território e ao reconhecimento de suas identidades historicamente construídas.
A práxis da Arqueologia Social Inclusiva não está direcionada por um manual, uma ficha técnica, um roteiro que direciona o percurso formativo e orienta, indistintamente, sobre quais os conhecimentos universais precisam ser aprendidos e reproduzidos. Não é um componente curricular substabelecido a partir de uma correlação de forças no campo político, nem resulta do academicismo exacerbado que ofusca as epistemologias produzidas pelo lado de fora, nas espacialidades onde se constroem as identidades e os seus sujeitos.
Esta pesquisa procura pela construção de alguns significados e sentidos que devem ser atribuídos à Arqueologia Social Inclusiva, não apenas pela busca de uma definição conceitual, mas pela tentativa de descrevermos essa nova perspectiva derivada da vivência de um currículo oculto que se constitui como ferramenta formativa, uma pedagogia performática que contribui, significativamente, com o resgate das identidades e a emancipação dos sujeitos em formação. O processo de inovação metodológica da arqueologia, no Cariri cearense, não se dá por uma imposição curricular, não é resultado de reforma institucional, nem de orientação de órgãos acadêmicos que possuem as responsabilidades políticas de gerir o patrimônio arqueológico. Essa mudança de paradigma, ocorre a partir das percepções voluntárias de dois grandes expoentes responsáveis pelo agregamento do social ao termo arqueologia nesse contexto. O alumbramento que a Chapada do Araripe provoca em que a vivência, arrebatou os espíritos inquietos de Rosiane Limaverde e Alemberg Quindins para uma aventura que resultou num ciclo de construção desse processo.
Sem saber que estavam desenvolvendo pesquisas arqueológicas, históricas, geográficas e antropológicas, dentro do que seria considerado como método científico processual, a partir da década 1980, Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde, idealizadores da Fundação Casa Grande, passaram a construir um acervo volumoso de conhecimentos coletados a partir das imersões num universo de saberes e fazeres das culturas que permeiam esse território, conforme anuncia Limaverde:
Foi na poética de um espaço encantado que a Casa se fez a morada do mito e das lendas indígenas do povo Kariri. Os moradores dela são na verdade moradores de todos os tempos, desde que o lago se fez mar e o mar se fez chapada. Quando o homem gravou no arenito a sua história, assinalando sua passagem, (ou permanência?), o espaço se fez encanto e habitou entre nós (Limaverde, 2015, p. 05).
É neste espaço de encantamentos que ocorre uma mudança metodológica na construção do conhecimento arqueológico na Região do Cariri. E a síntese dessa transformação é materializada com o surgimento, em 1992, da Fundação Casa Grande. Um abrigo para a convergência da base essencial desse conhecimento sobre o “homem Kariri” e das antropias que se articulam para a construção das identidades culturais do povo da Chapada. A Fundação Casa Grande tem uma profunda relação didática com a mudança de paradigma na arqueologia praticada no Cariri cearense, instaurando uma pedagogia performática delineada por um currículo não prescrito, mas pelas vivências proporcionadas a partir do próprio cenário, da espacialidade, do terreiro, do território onde os alumbramentos das ilumiaras kariris acontecem. Um novo fazer arqueológico, a partir das pesquisas desenvolvidas pelos fundadores da Fundação, fazendo aflorar a cultura de um povo que dá origem a um lugar dotado de sentidos.
Inaugura-se um tempo em que a função da ciência do antigo não se resume ao estudo técnico dos objetos prospectados. Sem deixar de lado a importância e a necessidade da técnica, do aparato metodológico conservador para o estudo, a compreensão, a descrição e a composição dos artefatos e suas análises contextuais a partir da produção de relatórios, agora vislumbra-se interação, diálogo, transdisciplinaridade e aproximação com os agentes da produção histórica e cultural. Esse novo caminho, traz oportunidades para que o povo do lugar seja contemplado com a pesquisa, com o conhecimento produzido e com a participação ativa, consolidando a função emancipatória da Arqueologia Social Inclusiva como ciência cidadã, conforme aponta Limaverde (2015, p. 47) sobre essa prática:
O envolvimento da população local nos processos de interpretação arqueológica e na política de gestão do patrimônio, através de uma arqueologia mais próxima aos cidadãos, como uma conquista de todos, e não encastelada nas torres acadêmicas. Nesse caso, a população passa de beneficiário passivo (receptor) ao envolvimento ativo nos processos de interpretação e gestão do patrimônio.
É neste sentido que caminha a Arqueologia Social Inclusiva através de suas práticas de um currículo oculto. Uma educação emancipatória, libertária, que gere autonomia dos sujeitos em formação, a emancipação intelectual, cultural, econômica, política e a construção da autonomia se dá através de práticas que levem em consideração o universo material e imaterial que preexiste na leitura do mundo real, nas culturas, resgatando as identidades e provocando o reconhecimento étnico do povo em comunidade (FREIRE, 1988).
A Arqueologia Social Inclusiva, possibilita que as comunidades do entorno da Chapada do Araripe se coloquem como pertencentes a configuração desta identidade, como resposta a produção de uma ciência que seja construída para o fortalecimento da cidadania e da emancipação dos sujeitos ativos na construção da história, no resgate da identidade e na valorização da memória através do patrimônio material e imaterial.
A Fundação Casa Grande, como lugar de sabença, faz com que a comunidade possa protagonizar a produção do conhecimento e, a mudança metodológica na prática da Arqueologia, amplifica os sentidos da ciência e faz surgir novos significados, novas possibilidades pedagógicas e novos caminhos formativos de um currículo oculto , conforme alude Limaverde:
- A utilização dos conhecimentos sistematizados pelo patrimônio arqueológico unidos ao intangível da memória do Mito, no delineamento de soluções práticas e caminhos frente aos problemas concretos da comunidade de Nova Olinda;
- O protagonismo das crianças e jovens da Casa Grande legitimando a herança do patrimônio arqueológico, sendo elas próprias as guardiãs da memória local, construindo a cidadania e dignificando suas próprias vidas;
- Na Casa Grande, essas heranças foram e são revividas, recriadas e retransmitidas pelas próprias crianças para outras crianças, a comunidade e o público, como um processo de aprendizado contínuo de gestão do patrimônio cultural (Limaverde, 2015, p. 48).
Não ocorre apenas o empoderamento, o que se passa é a apropriação das heranças culturais, históricas, tradicionais e dos códigos sociais que transcendem no tempo e se dissipam nas espacialidades e que também estão presentes na materialidade dos objetos. Os objetos, expressam as subjetividades, carregam marcas de uma temporalidade contextual e dos traços das culturas praticadas nesse espaço-tempo, portanto, podem trazer à tona características conjunturais que fazem parte das identidades pretéritas, mas estão presentes, ainda que não saibamos identificá-las, no presente contínuo. O resgate das identidades promovido pelas práticas da Arqueologia Social Inclusiva é marcante. O trabalho realizado não é uma distopia metodológica, mas sim, uma vivência pautada pela realidade concreta e objetiva do tangível e do universo intangível das culturas. Se as identidades culturais são forjadas no âmbito do processo educativo, através dos elementos articulados por um currículo prescrito nas instituições formais de educação, isso se reproduz nos espaços não formais através de tecnologias sociais criativas e inovadoras que impulsionam mudanças metodológicas significativas.
Pensar a Arqueologia como âncora, como condição primordial e disciplina que está na centralidade dessa pedagogia é inevitável, conforme anunciado por (LOPES, 2009, p. 02, apud LIMAVERDE, 2015, p. 48):
A Arqueologia, por deter os meios técnicos e os princípios que permitem resgatar e libertar do estado de ocultação o patrimônio de tempo longo e de natureza híbrida, que as sociedades, por razões diversas, deixaram num estado de latência, acelera o seu tempo de revitalização e confere-lhe um papel de sujeito participante e de fator de integração e coesão das comunidades.
Contudo, refletir sobre a necessidade de se promover rupturas na ortodoxia conservadora de uma prática que distancia a comunidade do que ela detém, como fazedora de sua própria cultura, de sua história, de seus significados representativos, dos sentidos que são dados aos lugares, dos saberes e fazeres que são apregoados ao imaginário coletivo e que se expressam em objetos e nos traços da imaterialidade, das manifestações, é uma responsabilidade social das ciências. Integrar, incluir, gerar o sentimento de pertença social e de espírito colaborativo, contribuindo com a construção do espírito de alteridade, de aceitação da diversidade cultural, de uma vivência pautada pela interculturalidade e na construção de identidades culturais que possam vislumbrar a ilumiara da origem Cariri no entorno do espaço encantado da Chapada do Araripe.
Esta Ilumiara Cariri, fundamento central e base de organização da pedagogia performática da Arqueologia Social Inclusiva praticada na Fundação Casa Grande, faz resplandecer a essência de sua formação e funcionalidade na construção e no resgate das identidades culturais que se constituem a partir da presença mitológica transcendente do pretérito, conforme insinua Limaverde:
Ambos, o Mito e a Arte, são as bases da função simbólica da Casa Grande desde o seu início, através do inventário dos mitos e lendas origens das composições musicais que deram ascendência à Fundação Casa Grande e o resultado deste, através do inventário arqueológico. Estas são as formas de abordagem utilizadas pela Casa para apresentar às crianças e à comunidade o patrimônio cultural da Chapada do Araripe. (Limaverde, 2015, p. 52:)
O patrimônio cultural presente no referido inventário arqueológico não se resume ao objeto encontrado, ao que se vislumbra no substrato escavado ou no achado fortuito de superfície em sondagens de prospecção. O patrimônio está para além dos sentidos dimensionais da cultura material que tem origem no estudo técnico dos objetos. A referência que se faz aqui ao patrimônio, na verdade, nos direciona à compreensão do volume de símbolos, de representações e significados que incidem sobre as espacialidades. O patrimônio é a composição cultural, material e imaterial, da atmosfera antrópica em que os fenômenos humanos são realizados. É nesta atmosfera que atua a Arqueologia Social Inclusiva, contribuindo para que as identidades culturais sejam resgatadas e forjadas dentro dos novos contextos.
3.1 Por onde o “caboclo” andou... a ilumiara Cariri, o terreiro formativo, educação, cultura, identidade e a arqueologia social inlcusiva num lugar de “sabença”: aspectos básicos de uma etnografia participativa como percurso metodológico
Localizada em Nova Olinda, no Cariri cearense, a Fundação Casa Grande é uma organização não governamental, idealizada pelo casal de pesquisadores Alemberg Quindins e Rosiane Limaverde (in memorian). Remonta os fins da década de 1980 e início da década de 1990, especialmente os anos de 1992, quando a Casa foi, efetivamente, inaugurada, após passar por um processo de requalificação da edificação. A recuperação da arquitetura, a renovação dos traços da fachada, a remodelação do piso em ladrilho batido, as portas, janelas e calçadas recuperadas se harmonizam com os ideais de uma vida pautada pela busca, por uma trajetória de encontros, de aventuras e conquistas simbólicas e representativas para os idealizadores.
O projeto da Fundação não é apenas uma proposta de recuperação dos aspectos materiais que representariam um contexto histórico do lugar. Ali não se buscava apenas reavivar, no tempo presente, elementos de um passado adormecido no imaginário, dos reflexos das memórias contadas pelas vozes das figuras épicas que fazem parte do ilustre panteão literato dos sertões, os contadores de história que resgatam a atmosfera do passado em forma de verbo. A Fundação nasce como um catalisador da cultura do Cariri, um ponto de convergência dos elementos materiais e imateriais que constituem as identidades do povo da Chapada do Araripe, conforme demonstra Alemberg Quindins (apud LIMAVERDE, 2015, p. 134):
A Casa Grande é um beija flor que suga o néctar da Chapada do Araripe e espalha sobre o seu vale. Ao amanhecer do dia, depois de uma longa viagem, regressava à Chapada do Araripe, região em que nasci. Ao revê-la diante dos primeiros raios de sol que arrastava o verde do alto de sua floresta em direção ao vale, pensei, enquanto a luz brincava sob minhas pálpebras... Aqui, ou já aconteceu, ou está para acontecer uma grande coisa!
É com o advento da Casa que a espacialidade da Ilumiara Cariri se completa, e é neste mesmo lugar que o terreiro se constitui como universo de uma educação dialética, uma educação propositiva que parte da realidade cultural dos sujeitos em formação. A virada metodológica na Arqueologia, promovida pela dinâmica da Casa Grande, faz dela mesma, um lugar em que os saberes não são apenas transferidos de forma sistêmica, não há uma hierarquização tácita de elementos universais que se projetam nas orientações dos currículos prescritos. A educação neste lugar, adquire uma forma devidamente antropológica, feita a muitas mãos, como aquela definida por Brandão, (2007) e Freire, (1988), cuja função primordial é promover a autonomia dos sujeitos a partir de suas subjetivações, de seu arcabouço cultural e dentro dos repertórios que ilustram as histórias de vida.
As práticas de um currículo oculto, conduzido por essa nova Arqueologia, tem como finalidade promover um percurso formativo a partir de uma educação emancipatória, autônoma, libertária (FREIRE, 1988) inovadora, que se materializa no fazer diário das crianças da casa. No desenrolar das oficinas de fotografia, de técnica de iluminação, de sonoplastia, das atividades de campo, na construção de minidocumentários em vídeo, no teatro, no desenho, no aprendizado da rádio, na musicalidade que evoca a paisagem sonora do Cariri e nas diversas modalidades artísticas trabalhadas no universo brincante da Casa. Brincante, porque a dinâmica do lugar exige que não haja um sistema de transmissão de conhecimentos universais pré-definidos por uma lógica linear como nas instituições formais de educação. Pois, segundo Ximenes:
Ao aprender brincando [...], as crianças que frequentam a ONG Fundação Casa Grande tornam-se, cada vez mais, pessoas "autônomas" no que diz respeito ao conhecimento sobre a cultura da região do Cariri e de outras culturas que perpassam no cotidiano da Casa Grande. Esse pensamento vai ao encontro do que Mário Kaplún (2002) acredita ser a base do desafio contemporâneo da educação, [...] formar crianças e jovens capazes de ativarem as próprias potencialidades para uma gestão "autônoma" do conhecimento (2014, p. 117).
A ilumiara Cariri é o terreiro encantado da Chapada do Araripe, cujo alpendre é a Fundação Casa Grande, onde se materializa a formação e a construção da trajetória da “meninada do sertão”, de crianças que precisam de uma oportunidade para se estabelecerem como sujeitos ativos, reflexivos, críticos, sensíveis ao mundo que circunda ao seu redor, com suas culturas, com os traços de uma identidade que parece ter se distanciado no tempo, mas que, como sabença, como um conhecimento produzido além dos muros acadêmicos, das escolas formais, vem à tona através de fórmulas não prescritas, mas sim vividas nesse terreiro.
A escolha metodológica foi por uma pesquisa etnográfica, em caráter de observação participativa, pois segundo Peirano (1995), a experiência etnográfica é um verdadeiro envolvimento entre o pesquisador e o objeto pesquisado, energizada pelo entrelaçamento com o campo de observação de forma não linear. É possível compreendermos que o campo da Antropologia, através do método etnográfico, possibilita-nos a apreensão dos objetos estudados a partir de uma profunda imersão naquilo que queremos explicar, sobretudo quando nos propomos a estudar aspectos da educação como fenômeno antrópico complexo e em sua totalidade, pois, conforme prenuncia o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira (1998, p.17), “a especificidade do trabalho antropológico [...] em nada é incompatível com o trabalho conduzido por colegas de outras disciplinas sociais, particularmente quando, no exercício de sua atividade, articulam a pesquisa empírica com a interpretação de seus resultados.” Utilizar o conhecimento antropológico no processo de sensibilização do olhar, da sensibilização da escuta, para que se resulte numa boa escrita (OLIVEIRA, 1998), e assim interpretar os significados, as representações, descobrir que além da imagem, dos sons, existe sempre algo que precisa ser descoberto quando se trata da relação entre educação e cultura, mediada pela pesquisa etnográfica.
O terreiro formativo da Fundação Casa é um amplo complexo de relação sociais a espera de interpretação, um lugar onde é possível se fazer etnografia da forma mais vívida possível. Desde o primeiro momento em que se põe os pés no terreiro, quando se sente a atmosfera em que as tradições se convergem, alinham-se, em que os traços das identidades culturais que forjam as feições do nosso povo se fazem presentes. Somos arrastados, energicamente, para um campo de pesquisa, onde os objetos de estudo se materializam nos fazeres, nos saberes, nas cotidianidades de uma educação além do processo formal, proporcionado pelo currículo oculto da Arqueologia Social Inclusiva, fazendo-nos perceber a força da transdisciplinaridade que envolve a dinâmica educativa com os métodos da Antropologia. A observação participativa nos permitiu enxergar, apreender, sentir, ver além do que está posto no cotidiano aparente das práticas na Casa Grande. Pensar a Arqueologia Social Inclusiva como âncora das atividades formativas da “meninada do sertão” atendida na Casa Grande é enxergar um fenômeno educativo que pode gerar a emancipação e a autonomia através do resgate da cultura, da valoração das identidades e de uma dinâmica performance na construção do saber.
É possível observar o caráter efetivo e os significados que são atribuídos às categorias teóricas abordas nesta pesquisa, tanto pelas falas coletadas quando pela observação de outras fontes de onde podemos extrair os dados de uma etnografia por meio da observação participativa, pois, conforme denuncia Mainardes (2009), há um universo de fontes quase infinito à espera da análise por parte do pesquisador, como documentos escritos, artefatos, fotografias, vídeos e áudios.
As impressões que compõem o campo das experiências reveladoras, no trabalho etnográfico, destacam-se pelo alumbramento do que passamos a chamar, nesta pesquisa, de Ilumiara Cariri. Os encantos da cultura que circundam a Chapada do Araripe convergem para o espaço de sabença da Fundação Casa, podendo ser avistados na arquitetura do lugar, nas cores da fachada, no relevo das platibandas, a nas tecituras que marcam as manifestações que ocorrem no cotidiano da Casa. Como podemos perceber na fotografia abaixo:
A imersão na experiência reveladora do campo pesquisado, é uma possibilidade que temos de contemplar um fazer educativo distinto daquilo que estamos acostumados a vivenciar nos espaços formais de ensino-aprendizagem, onde ocorre uma apreciação compulsória de um currículo prescrito institucionalmente que, na maioria das vezes, não contempla a realidade construída socialmente no lugar em que ele está inserido. Na contramão desse caminho, é que se pensa da educação como ferramenta de emancipação, como podemos vislumbrar nas falas recorrentes dos participantes da pesquisa: “A troca de saberes e o ensino aprendizado, onde criança aprende com criança no dia a dia e os adultos se adaptam diariamente em busca do ensino ideal” (Onça Parda)
A arquitetura dos ambientes é acolhedora e nos envolve com os traços das culturas que permeiam o imaginário do Cariri, nos fazendo compreender, em profundidade, a essência das nossas subjetividades forjadas no âmbito da educação não formal praticada na Casa, mas que possui um extraordinário poder de formação com base nos princípios de uma ciência cidadã, integradora, comunitária e participativa.
A observação participativa como ferramenta do trabalho etnográfico que orientou esta pesquisa, fez-nos perceber não apenas os aspectos centrais do nosso objeto de estudo, mas nos ajudou a ver além do que está posto, inclusive, de como os currículos prescritos pela formalidade institucional, desconsideram aspectos da vida real tão fundamentais para o desenvolvimento das diferentes inteligências e habilidades que brotam das culturas. Coadunamos o nosso pensamento com a reflexão feita por Arroyo:
Nas diretrizes e reorientações curriculares falta sociedade, falta dinâmica social, faltam as tensas experiências sociais que nos cercam, que invadem as escolas nas vidas das crianças e dos adolescentes, dos jovens e adultos, dos próprios docentes. Por que tantas diretrizes, reorientações curriculares ignoram que existe tanta vida lá fora e continuam nos lembrando que sua legitimidade vem dos ordenamentos legais? Por que perdura esse estilo das páginas iniciais lembrar de leis, pareceres, resoluções, normas e não partem das tensões sociais que interrogam a sociedade, o Estado, suas instituições, os currículos? Seria mais político buscar legitimidade na dinâmica social, no avanço das lutas por direitos em vez de recorrer a corpos normativos por vezes tão distantes dessas lutas por direitos concretos, de sujeitos concretos. A resposta pode nos levar a entender a distância entre dinâmica social, experiências sociais e conhecimentos, políticas, diretrizes, normas (Arroyo, 2013, p. 119).
As dinâmicas societárias no seio das culturas carecem ser levadas em consideração no processo de educação como fenômeno antrópico. Vivemos num tecido social cujos fios são resultantes das estruturas elementares da história, da cartografia do lugar, de uma espacialidade que se esvai do sentido restrito dado ao território como algo hiper-racionalizado e objetivo. É assim que acontecem os fenômenos no terreiro de sabença da Casa Grande, com mais sociedade, comunidade, sujeitos, ação, construção, forma e a essência do espaço tempo vivido no presente contínuo, mas sem deixar para traz os sentidos e as representações constituídas ao longo do processo histórico que nos dão a condição humana fundante das nossas identidades.
A disposição arquitetônica observada e vivida pela experiência reveladora no percurso da pesquisa, nos envolve desde a “chegança”, dos primeiros momentos em que o alumbramento se faz presente no imaginário. Conforme vivenciamos os ambientes internos, nos distanciamos ainda mais do panóptico[5] dos espaços formais de educação. Somos arrebatados para uma “arquitetura do afeto”[6], cujos traços são marcadamente acolhedores e se desviam dos parâmetros da formalidade institucional presente nas escolas regulares. Vejamos por exemplo, o que encontramos no Teatro Violeta Arrais, onde acontecem várias atividades culturais, apresentações artísticas, lançamento de livros, performances musicais e as aulas dos módulos da especialização em Arqueologia Social Inclusiva, e que funciona também como um laboratório de fotografia, de iluminação, de técnica de som e palco para a “meninada do sertão”.
A luz âmbar que ilumina o teatro, a disposição do equipamento de som, os bancos em madeira, as peças em couro do artesão local Espedito Seleiro, que traz materializado na sua produção artística a história do ciclo do couro na Região do Cariri, as crianças acompanhando minuciosamente a realização das atividades e fazendo os registros fotográficos e videográficos, as transmissões simultâneas nas redes sociais, o cerimonial. Todos os detalhes de uma atmosfera de aprendizagem que se expressa sem a presença de um currículo oficial, formal e institucionalizado, mas das vivências, das formas práticas que estão presentes nas cotidianidades e que possuem uma profundidade de conteúdos ainda maior do que o que não está oculto. É um lugar onde se aprende pelo que se faz e pelas formas brincantes que atravessam a construção das subjetividades em curso.
A experiência reveladora da etnografia, onde a pesquisa foi concluída, no momento em que os estranhamentos são superados e passamos para a última fase da observação participativa, fez-nos caminhar pelo o terreiro do mundo da educação não formal, como se estivéssemos em busca de novos horizontes e novos desdobramentos para um processo de interpretação minuciosa dessa atmosfera, porque assim como pensou Geertz (2008) vimos nesse método não apenas uma “ciência experimental em busca de leis, mas uma ciência interpretativa, à procura de significados.”( p. 4) As práticas da Arqueologia Social Inclusiva enquanto procedimento didático pedagógico curricular não prescrito, presente no currículo oculto de uma instituição não formal como a Fundação Casa Grande, possibilita uma visão mais horizontalizada dos que se propõem a estudar a educação pelo viés das Ciências Sociais, tendo em vista as atividades, as formas de transmissão de saberes, a relação com as culturas locais, o resgate de elementos históricos importantes na formação social dos sujeitos e a articulação de todos esses elementos, na maioria das vezes, por meio de expressões artísticas tradicionais ou contemporâneas, além de uma rede de contatos que pode ser construída para que os saberes tradicionais possam ser disseminados através de vivências, rodas de conversa, caminhadas ou mesmo através das práticas da Arqueologia processual, se vai a campo para realização de sondagens de superfície ou escavações arqueológicas necessárias ao processo de salvamento de artefatos encontrados fortuitamente. Contudo, antes do procedimento processual, respeita-se o alumbramento do território, os traços e características da Ilumiara Cariri presentes na linha do tempo e no fio transcendente da história oral contada pelos remanescentes do Povo Kariri, que foi por onde o caboclo andou e deixou suas marcas identitárias na subjetividade construída no terreio da educação não formal.
A Arqueologia Social Inclusiva, neste ponto, aproxima-se ainda mais acentuadamente, com o método etnográfico e com as feições metodológicas da etnografia de observação participativa, pois aqui o pesquisador aprende por estar próximo e ensina por estar próximo.
A dimensão da aprendizagem, nessa perspectiva, de uma construção dialética emancipatória que gere autonomia nos sujeitos em formação, é muito mais ampla do que o praticado nos espaços formais, segundo a retórica sistêmica dos currículos oficiais. A Arqueologia Social Inclusiva, pelo que podemos observar, não é uma técnica linear pela qual podemos transferir conhecimento. Ela é mais que uma ferramenta técnica do processo de formação na pedagogia integradora da Casa Grande, como pode ser aludido em uma das falas dos grupos focais, verbalizadas pela participante Jurema: “A Casa Grande é importante pelo fomento da educação e da cultura para esses jovens do sertão nordestino... e a arqueologia por meio da tese de Rosiane, perpassa esse espaço para ir além, porque toda a comunidade deve ser tocada a partir da arqueologia”. Percebe-se na fala, a presença marcante do legado deixado por Rosiane Limaverde, através de suas pesquisas e da sua trajetória inovadora do fazer arqueológico, das práticas que não estavam prescritas nos currículos formais, mas que contribuíram de forma significativa para que ocorra uma virada metodológica nos sentidos da ciência do antigo, para uma nova ciência da cidadania, das vozes do sertão, do lugar da cultura Kariri.
É nítido que o que está na centralidade do percurso formativo na Casa Grande não é a preocupação exclusiva com os objetos de estudo da Arqueologia processual. A reificação desses objetos, dos artefatos, não contaminou a pedagogia da autonomia (FREIRE, 1987) que contribui com a formação e com a manutenção dos aspectos culturais, históricos, sociais, geográficos e dos significados do Cariri. A feitura do aprendizado, a tecitura dos saberes, tudo isso ancora-se no bojo de um currículo cultural transdisciplinar.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A cultura é aquilo que nos torna humanos, aquilo que nos faz sentir, ver, pensar, ser, ouvir, agir. É o que dá sentido ao mundo e as coisas que estão no mundo. Não fosse a cultura, não saberíamos os significados, as formas representacionais, não reconheceríamos a nós mesmos e os outros com que estabelecemos as nossas relações. Somos o resultado do tecido costurado com os fios da cultura. Em cada ponto dado nessa complexa costura, fica a marca de um traço que se materializa nas nossas formas sociais de expressão das identidades.
Nós, humanos, numa perspectiva utilitarista, somos um composto cartesiano de corpo e alma. Dois elementos que se entrelaçam para fazer surgir as feições de nossas dimensões antropológicas. O corpo, resultado de um fenômeno biológico intrínseco, mas não distante e nem dissociado da ambiência extrínseca, do meio ambiente naturalizado de onde retiramos os componentes orgânicos para a formar a vida. A alma, não com o sentido espiritualista, mas, vindo do escopo cartesiano racionalista, seria basicamente a nossa dimensão psicossocial, o bojo de onde retiramos as conexões para nossas manifestações imateriais, percepções, sensorialidades, e onde se encontra a estrutura elementar para a construção do arcabouço cultural. E é nesse arcabouço cultural que ocorre a modelagem das nossas identidades. Forjadas em contexto e conjunturas onde se entrelaçam os elementos das culturas, sejam elas pretéritas ou as que divagam pelo mundo contemporâneo da mundialização econômica. Sejam as velhas ou as novas formas de ser, de agir, de pensar ou sentir.
No percurso de nossa pesquisa, resolvemos ter o termo terreiro como sinônimo de lugar, onde se processa o fenômeno da educação, dada a sua complexidade e sua condição antrópica, porque esse é um fenômeno iminentemente humano.
Na espacialidade onde se desenvolveu a pesquisa, a observação participante como ferramenta central do estudo etnográfico, na Fundação Casa Grande, em Nova Olinda-CE, vislumbramos as profundas aproximações entre educação e cultura. Através das vivências, da participação direta, da proximidade, tivemos a oportunidade de construir uma sólida percepção de que não se faz educação sem a presença das culturas do lugar, sem as devidas conexões com as identidades locais, com os aspectos históricos, geográficos, com os sentidos e representações simbólicas que as coisas do lugar possuem no imaginário dos sujeitos em formação. Cultura e educação são dois elementos indissociáveis, articulados no percurso de formação e usados como materiais de modelagem das identidades, mesmo que as ferramentas dessa construção não sejam institucionalizadas, formais, como os currículos prescritos nos espaços formais de educação.
Os currículos, nos espaços educativos, formais ou não formais, são instrumentos de composição identitária e de construções culturais. Contudo, nos espaços instituídos pelas políticas públicas de educação, são mecanismos de poder e controle social, cuja elaboração segue um rito verticalizado, não participativo, e não possuem um caráter emancipatório por estarem dissociados das realidades, da complexa conjuntura do mundo real dos indivíduos em formação.
Encontramos, a partir da pesquisa desenvolvida na Fundação Casa Grande, uma série de possibilidades para o emprego de uma pedagogia que se esvai do currículo oficial, cujo objetivo central é promover a emancipação e a autonomia de crianças e adolescentes a partir dos preceitos reformulados da Arqueologia processual.
A virada metodológica promovida pela Arqueologia Social Inclusiva, revelou a existência de um currículo oculto além das prescrições sistemáticas que vai até os sujeitos em formação, no arcabouço de suas culturas, resgata a suas identidades, escava o território a procura de elementos materiais e imateriais que possam agregar, de forma positiva, saberes e fazeres na composição de suas subjetividades. Esses elementos escavados, não se limitam a artefatos que precisam ser descritos pelas técnicas procedimentais da Arqueologia tradicional. Essa nova Arqueologia do lugar, portanto, inclusiva, é mais que uma ciência, é uma ferramenta pedagógica de um currículo oculto, praticada no terreiro da educação batida no chão.
A pesquisa ora apresentada, nos fez apreender os sentidos da educação como fenômeno, da cultura como essência, dos currículos como instrumentos formativos, das identidades como expressão da condição humana e da necessidade de pensarmos em novas pedagogias, de refletirmos sobre os sistemas tradicionais, numéricos e hiper-racionalizados com fins capitais. Precisamos caminhar ainda mais na espacialidade desse terreiro, escavar ainda mais os saberes históricos de nossas culturas, cultivar o nosso patrimônio material e imaterial para, a partir deles, traçarmos com os próprios sujeitos, novas configurações curriculares para a construção de identidades autônomas e emancipadas.
REFERÊNCIAS
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Notas