Demanda Contínua
VERSÕES DE UMA BASE: disputas, continuidade e rupturas na produção da BNCC do Ensino Médio
VERSIONS OF A BASE: disputes, continuities and ruptures in the production of the BNCC for hight school
VERSIONES DE UNA BASE: disputas, continuidad y rupturas en la producción de la BNCC de la enseñanza secundaria
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 2, 2023
Recepção: 19 Março 2023
Aprovação: 20 Março 2023
Resumo: O artigo tem como objetivo analisar o processo de elaboração da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio (BNCC/EM), com foco nas continuidades e rupturas identificadas nesse processo. O percurso metodológico foi desenvolvido a partir de um duplo movimento. De um lado, buscou-se compreender as influências que operaram sobre a elaboração do texto entre 2015 e 2018, considerando três pontos principais: os sujeitos individuais e coletivos que aturam direta ou indiretamente na elaboração do documento, a dinâmica de elaboração e o cenário político nacional. Concomitantemente, foi realizada uma análise comparativa das três versões (2015, 2016 e 2018). O resultado apontou para disputas, rupturas e diferenças entre os textos, sendo a versão final a expressão de um processo mais centralizado de elaboração e de maior distanciamento em relação aos anteriores.
Palavras-chave: Políticas Curriculares, Ensino Médio, BNCC.
Abstract: The objective of the article is to analyze the elaboration process of the Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio [National Common Curricular Base for High School] (BNCC/EM), focusing on the continuities and ruptures identified in this process. The methodological approach stems from two initiatives. On the one hand, understanding the influences that operated on the elaboration of the text between 2015 and 2018, considering three main points: the individual and collective subjects that directly or indirectly participated in the preparation of the document, the dynamics of the formulation and the political scenario. On the other hand, making a comparative analysis of the three versions (2015, 2016 and 2018). The result indicated disputes, ruptures and differences between the texts, showing that the final version was the expression of a more centralized process of elaboration and more distanced in relation to the previous versions.
Keywords: Curricular Policies, High School, BNCC.
Resumen: El artículo tiene como objetivo analizar el proceso de elaboración de la Base Nacional Común Curricular de la enseñanza secundaria (BNCC/EM), centrándose en las continuidades y rupturas identificadas en este proceso. El camino metodológico fue desarrollado a partir de un doble movimiento de análisis. Por un lado, se buscó comprender las influencias que operaron en la elaboración del texto entre 2015 y 2018, considerando tres puntos principales: los sujetos individuales y colectivos que directa o indirectamente actúan en la elaboración del documento, la dinámica de elaboración y el contexto político nacional. Al mismo tiempo se realizó un análisis comparativo de las tres versiones (BNCC 2015, 2016 y 2018). El resultado apuntó disputas, rupturas y diferencias entre los textos, siendo la versión final la expresión de un proceso de elaboración más centralizado y de mayor distancia en relación a los anteriores.
Palabras clave: Políticas curriculares, Enseñanza secundaria, Secundária, BNCC.
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos 20 anos, no Brasil, ações de redefinição das políticas curriculares para o Ensino Médio têm se tornado cada vez mais frequentes. Mesmo que não possam ser compreendidas inteiramente por uma análise centrada exclusivamente no que ocorre no contexto nacional, pois possuem claras influências externas, tais ações vão adquirindo contornos próprios, relacionados às condições materiais, políticas e ao histórico de desenvolvimento da oferta educacional.
Um olhar atento para o cenário educacional brasileiro permite compreender algumas nuances fundamentais das políticas curriculares para o Ensino Médio. Uma delas, é que as sucessivas iniciativas de reformulação curricular foram intensificadas a partir de uma significativa expansão na matrícula. De acordo com os dados do Censo Escolar, entre 1994 e 2004, se verifica um salto de 3,1 para 9 milhões de matrículas no Ensino Médio (SILVA, 2020). É verdade que esse número se estabilizou nos anos seguintes e, posteriormente, entrou em declínio, estando ainda hoje longe de atender ao total de jovens com idades apropriadas para cursar essa etapa de ensino. No entanto, tal aumento implicou em uma mudança profunda no que se tinha como tradição na oferta educacional para a juventude, bem como sugerem que as disputas em torno da definição das políticas curriculares decorrem, em parte, da referida expansão do acesso.
No contexto atual, os dados do Censo Escolar (INEP, 2020) mostram que 89,2% da população brasileira que tem entre 15 e 17 anos frequentam escola. Esse dado, no entanto, informa, também, que mais de 10% de jovens que estão em idade escolar obrigatória se encontram totalmente fora do sistema escolar. No ano de 2020 somaram 7,55 milhões as matrículas no ensino médio, o que representou uma pequena elevação (1,1% no último ano) em relação à tendência de queda que vinha se observando (queda de 8,2% de 2016 a 2019). Do total de matrículas, 83,3% está no turno diurno e 16,7% no noturno; 94,8% são escolas urbanas. A rede privada atende a 926 mil alunos, o que representa 12,3% da matrícula de ensino médio. As redes estaduais atendem a 6,3 milhões de estudantes (84,1%) concentra 95,9% dos alunos da rede pública. Os maiores percentuais de abandono escolar incidem, justamente sobre a faixa etária apropriada para o ensino médio, a partir dos 16 anos de idade, com uma média de 17%. A evasão tem predominância entre pretos e pardos (71%) e é maior entre homens (58,3%).
Um segundo aspecto a ser destacado é que o aumento nas matrículas ocorreu concomitantemente à uma mudança na legislação. Em contraste com a histórica oferta seletiva e dualista no Ensino Médio e Secundário, em 1996 a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n° 9394 de 20 de junho de 1996) apontou para um novo horizonte ao tornar o Ensino Médio a última etapa da Educação Básica e ampliar seus objetivos. Com essa lei, as finalidades ultrapassam o velho caráter dual da oferta, que oscilava entre preparar para a continuidade dos estudos em nível superior ou formar para o trabalho. O Ensino Médio, como educação básica, explicita o Art. 35 da LDB, confere centralidade ao “aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico”.
Inegavelmente, todo esse processo representou um grande avanço para a democratização da educação no Brasil, que deu respostas a uma demanda que já existia desde a primeira metade do século XX. Porém, uma vez que o Ensino Médio passa a ser ofertado para considerável parte da população jovem, disputas relativas à concepção formativa e o que se entende por qualidade nessa etapa de ensino passam a ser mais recorrentes. Esse fenômeno se expressa claramente entre os anos 90 e as duas primeiras décadas do ano 2000, onde é possível notar uma série de políticas curriculares voltadas para o Ensino Médio com concepções formativas significativamente distintas (SILVA, M., 2018).
As referidas disputas encontram seu ápice entre 2015 e 2018, período de maior instabilidade política na história recente do Brasil, mediante à duas políticas que se atravessam: A produção da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Reforma do Ensino Médio (MP n° 746 de 2016/ Lei n° 13.415 de 2017). No processo de elaboração da BNCC, há indícios significativos de que, com a as rupturas no Governo Federal e, em sua consequência, à correlação de forças em órgãos deliberativos sobre as políticas curriculares, corresponderam dinâmicas de elaboração distintas, que configuraram a BNCC como um espaço privilegiado de embates sobre as concepções formativas. O interesse deste trabalho é justamente analisar esse processo, com foco nas continuidades e rupturas na elaboração da Base Nacional Comum Curricular do Ensino Médio, o que se considera que permitirá compreender melhor os seus sentidos e finalidades.
Na primeira parte do artigo são tecidas algumas considerações de ordem teórica e metodológica. A segunda parte, de caráter mais descritivo, tem por objetivo situar o percurso do processo de elaboração da BNCC/EM. Na terceira parte se encontram os resultados do estudo comparado entre as três versões (2015; 2016; 2018).
2 BREVES QUESTÕES CONCEITUAIS E METODOLÓGICAS
Dada a sua centralidade nas ações dos governos nacionais, as políticas curriculares se apresentam como um campo importante e fértil de pesquisa. As possibilidades de análise desse objeto são amplas e variadas, bem como os instrumentos metodológicos necessários. Em meio a essa diversidade, torna-se importante situar e justificar as escolhas adotadas em face dos objetivos da presente análise.
Nesse texto, aborda-se a BNCC sob a ótica do campo de pesquisa em Política Educacional, que se caracteriza pelo estudo da dinâmica da política, isto é, dos seus processos constitutivos, o que Krawczyk (2015) ilustra como o ato de “entrar na cozinha da política”. Desse modo, o foco não é exclusivamente a análise de uma política e seus efeitos, mas das correlações de força, influências, os contextos e processos que lhe deram origem.
Nas pesquisas sobre políticas curriculares, ou mais amplamente sobre o currículo, não é nova a constatação de que os determinantes e as influências que permeiam o currículo escolar não se restringem às questões relacionadas à eficácia dos processos de ensino e aprendizagem. Isto porque a definição do conteúdo do currículo implica em um complexo processo de seleção, organização e, em alguma medida, transmissão do conhecimento considerado importante para o sujeito que conviverá em sociedade (APLLE, 1979; GIMENO SACRISTÁN, 2000).
De acordo com Apple (2006), o currículo é um projeto cultural que contribui para legitimação de uma parcela da cultura em detrimento de muitas outras possibilidades. É precisamente deste aspecto que advém parte de sua relevância como objeto de investigação, pois, por mais que as escolas não sejam as únicas instituições formativas dos seres humanos, exercem, sem dúvida, um papel importante na valoração, adaptação ou questionamento de tendências políticas, econômicas e sociais.
Concorda-se, por esse motivo, com a necessidade de um posicionamento crítico do pesquisador, que implica na desconfiança ao imediato, na investigação dos pressupostos explícitos e implícitos de uma política curricular, bem como suas possíveis coerências e contradições diante da realidade educacional, da universalização da educação e da superação das desigualdades sociais.
Para uma investigação crítica sobre políticas curriculares, Kramer (1997) aponta algumas questões essenciais, tais como: Quem produziu o texto? Em quais condições? Quais são seus objetivos explícitos e implícitos? Estes se justificam em face de uma demanda concreta da Educação? Quais são seus Fundamentos? A quem a proposta se dirige? Ela estabelece diálogo com esses sujeitos? Todas essas questões são bons pontos de partida que implicam também em um pressuposto metodológico: para compreensão do processo político e suas nuances a análise do texto da política curricular oficial é fundamental, mas não é suficiente.
Sendo assim, a presente investigação organiza-se em um duplo movimento de análise, inter-relacionado, que se inspira na Abordagem do Ciclo de Políticas[1] (BOWE, BALL e GOLD, 1994). O primeiro momento é centrado na análise da dinâmica de elaboração da BNCC do Ensino Médio. Sem buscar esgotar todas as possibilidades de análise desse processo e suas influências, foca-se em três elementos: 1) Os sujeitos individuais e coletivos que atuaram, direta ou indiretamente na elaboração do texto, 2) Os mecanismos e métodos de elaboração do texto e 3) O cenário político nacional. Os materiais empíricos utilizados são documentos técnicos publicados pelo Ministério da Educação, CONSED, UNDIME, bem como manifestos e publicações diversas de atores que se inseriram nesse debate.
Uma vez que o foco da pesquisa é a análise das continuidades e rupturas nesse processo, na segunda parte do texto é realizado um estudo comparativo do conteúdo (BARDIN, 2016) do texto de três versões da BNCC a partir das categorias currículo, juventude e conhecimento escolar. Busca-se explorar nesses documentos as concepções envolvendo cada uma das categorias que foram selecionadas por meio da imersão, tanto no debate do entorno da elaboração da BNCC quanto nas particularidades das disputas envolvendo o Ensino Médio nas últimas décadas. As versões analisadas são BNCC de 2015 (primeira versão), BNCC 2016 (segunda versão revista) e a versão final aprovada em 2018.
O fato que, em ambos os momentos da análise, as fontes utilizadas foram exclusivamente documentais, implicou em alguns limites, como o não acesso direto aos “bastidores do processo”, que recorrentemente são lugares onde muitas das decisões são tomadas. Essa escolha ocorreu em face das condições do processo de pesquisa que, porém, mostrou potencialidades interessantes, como a possibilidade de captar contradições e coerências dentro dos textos oficiais.
3 O PROCESSO DE ELABORAÇÃO DA BNCC DO ENSINO MÉDIO
O processo de elaboração da BNCC iniciou efetivamente no ano de 2015, porém, antes disso já havia manifestações que indicavam a existência de tendências para formulação de uma política curricular com as suas caraterísticas. Se for adotada uma visão restrita[2], as primeiras sinalizações são encontradas nas metas do Programa Currículo em Movimento (2009) e nas Diretrizes Curriculares Nacional Gerais para Educação Básica - DCNGB (2010).
Nesses documentos, de maneiras distintas, há menções sobre a existência de uma demanda por uma “Base Nacional Comum”, termo que remonta ao art. 26 da LDB/96, mas que dessa vez passa a significar um documento específico. A base nacional comum, que trata a LDB/96, já havia sido alvo de diferentes interpretações ao longo do tempo; repercutindo, inclusive, na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN). Por esse motivo, um dos primeiros questionamentos realizados por pesquisadores da área de educação, foi sobre a pertinência dessa proposta em face das outras políticas que já existiam (MACEDO, 2014; SILVA, 2016).
O objetivo atribuído à Base Nacional Comum, nos documentos anteriormente citados, foi o de ser uma referência para o conteúdo da Educação Básica em âmbito nacional, que deveria servir, especialmente, como parâmetro paras as avaliações em larga escala, livros didáticos e cursos de formação de professores. Nas DCNGB, informa-se que essa demanda partiu do Conselho Nacional de Educação (CNE), o que ajuda também a compreender parte das influências que inseriram esta política na agenda, pois um dos sujeitos coletivos de maior relevância na promoção e defesa da BNCC foi (e ainda é) o Movimento pela Base Nacional Comum (MPBNC), constituído por uma complexa relação entre atores e instituições do setor público e privado, com porosidade no próprio CNE, no Conselho Nacional dos Secretários de Educação (CONSED) e na União dos Dirigentes Municipais de Educação (UNDIME).
Apesar do MPBNC ter sido criado em 2013, muitas das intuições que o compõe já possuíam uma longa trajetória de atuação na elaboração de políticas educacionais, pautada pela defesa da adequação do currículo da Educação Básica aos padrões e princípios da agenda de instituições multilaterais internacionais, como a da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), organizadora do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA). Suas linhas de atuação podem ser situadas brevemente em três direções: 1) A atuação nas arenas institucionalizadas de participação social, como as consultas públicas, 2) A porosidade e interdependência com atores do setor público e 3) A produção de consenso sobre a sua pauta pelas plataformas de mídia própria e na grande imprensa (BERNARDI, UCZAK, ROSSI, 2018; GRASSI, SILVA 2019; TARLAU, MOELLER, 2020).
Os trechos destacados abaixo mostram a defesa do MPBNC em relação a Base.
Esse documento deverá ser mais explícito do que está estabelecido atualmente nos textos nacionais legais vigentes que são por vezes genéricos, e promover o debate para o estabelecimento do que, dentro de cara área, deve ser aprendido por todos os brasileiros que concluírem a educação básica [...] Na parte cognitiva as resoluções vigentes definem as áreas do conhecimento que devem ser contempladas no currículo escolar. No entanto, é importante que esses conhecimentos disciplinares sejam ensinados de forma que sua utilidade para a vida de cada estudante fique evidente, pois este é o espírito constitucional da própria LDB. Assim sendo é usual dizer que a base comum se constituirá de conhecimentos e habilidades (MOVIMENTO PELA BASE NACIONAL COMUM, 2015, p.3).
A definição da referida base criará uma linguagem dos fatos pedagógicos que precisará ser também inegociável do currículo dos cursos de formação inicial e continuada dos professores de educação básica, da preparação de estratégias pedagógicas, de materiais de apoio ao ensino, da organização de atividades didáticas, livros e até da organização de sítios na internet, onde o desenvolvimento de tecnologias de ensino possa ser compartilhado. Finalmente, da Base Nacional Comum emanará a matriz de especificação das avaliações nacionais [...] (MOVIMENTO PELA BASE NACIONAL COMUM, 2015, p.4).
Fica claro que, longe de ser uma demanda dos estudantes e profissionais da educação, a proposição da Base, desde o início, foi uma forma de disputar a concepção de currículo e os princípios educativos da Educação Básica por sujeitos externos à escola.
Ao afirmar que as políticas curriculares anteriores eram genéricas, o MPBNC defendia que Base Nacional Comum avançaria ao ser mais explícita sobre aquilo que deveria ser aprendido na escola. O debate sobre as políticas curriculares na história recente do Brasil mostra, no entanto, que o que era chamado de “genérico” escondia uma característica intencional, estabelecida pela necessidade de que houvessem espaços de autonomia para os contextos locais determinarem ações educativas de acordo com suas realidades. Ao contrário da proposta do MPBNC, esse entendimento pautava-se em uma concepção mais complexa de currículo, que defendia que a construção do conhecimento é fruto de uma série de condições materiais e culturais específicas, por isso, sob essa perspectiva, não seria desejável, e nem possível, que o poder administrativo definisse exatamente o que é feito nas escolas.
A segunda defesa do MPBNC remonta à concepção que ficou conhecida no Brasil como “pedagogia das competências”, presente nos documentos curriculares do Ensino Médio da Década de 90, concepção essa que foi bastante criticada por defender uma formação escolar unilateral, voltada para adaptação do sujeito à realidade do trabalho imposta pela reestruturação no modo de produção capitalista (RAMOS, 2003) ou vinculada aos pressupostos das teorias da eficiência social “e suas taxionomias de desempenhos e de comportamentos, submetida aos interesses da atual reorganização dos processos produtivos em um paradigma pós-fordista” (LOPES, 2001, p. 2).
Desse modo, nota-se claramente que nenhuma dessas pautas eram novas. Também por isso, desde o início, as resistências à proposta da Base foram grandes. Na comunidade acadêmica, predominava um discurso de repúdio à ideia de uma política curricular centralizada. É nesse contexto que a Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação (SEB/MEC), apresentada uma proposta, com uma perspectiva próxima das DCNGB e das DCN do Ensino Médio, recém reformuladas. No documento “Por uma política Curricular para Educação Básica: Contribuições ao debate da base nacional comum” (SEB/MEC, 2014), em detrimento da prescrição de conteúdo a serem ensinados/avaliados, defende-se que a Base deveria definir direitos a serem assegurados aos estudantes, o que se configurava como uma tentativa de mudança conceitual – da responsabilização para o provimento das condições necessárias para aprendizagem. Esse documento também trazia como princípio educativo para o Ensino Médio o trabalho, no seu sentido ontológico, e as dimensões da ciência, cultura e tecnológica como dimensões indissociáveis da formação humana integral.
Diante dessa disputa inicial pelos seus sentidos, alguns fatores são importantes para a compreensão dos rumos que o texto da BNCC/EM tomou a partir de então.
Mesmo com a reeleição de Dilma Rousseff, em 2014, a grande polarização eleitoral permaneceu com a não aceitação, por parte da oposição, do resultado das urnas. Por esse motivo, nesse período, aconteceram várias reformas ministeriais a fim de tentar assegurar a governabilidade, que afetaram o MEC. As substituições não foram apenas do ministro, mas também de boa parte dos quadros do MEC, o que teve como uma de suas consequências o abandono da proposta inicial da SEB para a BNCC/EM.
Acompanhado dessas mudanças, a proposta de uma base nacional curricular comum foi inscrita no Plano Nacional de Educação (PNE 2014-2024) como uma das estratégias para o cumprimento das metas 2, 3 e 7, referentes à universalização da Educação Básica. No PNE, a Base Nacional Comum passa a ser chamada de Base Nacional Comum Curricular (BNCC), incorporando no seu objetivo um discurso híbrido, que remontava às duas posições contrárias anteriormente citadas, ou seja, da definição mais ampla de direitos de aprendizagem para uma perspectiva mais prescritiva de descrição de objetivos de ensino demarcados ano a ano. Ao final, os documentos de BNCC, e o próprio PNE, terminaram por incluir uma forma “conciliadora” por meio da determinação de “direitos e objetivos de aprendizagem”.
À revelia de outras estratégias destinadas às mesmas metas do PNE, como as que previam uma valorização da carreira dos professores, ou as que visavam fornecer condições para a permanência do estudante na escola, a BNCC vai ganhando cada vez mais centralidade até se tornar a grande prioridade na agenda do MEC; o que se comprova também pelos próprios pronunciamentos dos ministros da educação[3]. As ações para elaboração da BNCC são imediatas.
A tabela abaixo apresenta uma breve síntese do processo de elaboração do texto da BNCC, com foco no documento do Ensino Médio.
2015 | 2016 | 2017 | 2018 |
(15 à 17/02) 1° Seminário interinstitucional para elaboração da BNCC (17/02) Portaria MEC n° 592 para seleção da Comissão de Especialistas (30/07) Abertura da Plataforma Online “Portal da Base” (19/09) Publicação da Primeira versão da BNCC (15/10) Consulta pública pela plataforma online “Portal da Base” (15/12) Abertura do processo de impeachment contra Dilma Rousseff | (15/02) Publicação de um documento de esclarecimento sobre o tratamento das contribuições nas consultas públicas (15/03) Fim da 1° Consulta pública (03/05) Publicação da segunda versão da BNCC (12/05) Primeiro Afastamento de Dilma Rousseff (23/06 a 10/08) Consulta Pública -Seminários Estaduais organizados pelo CONSED e UNDIME (27/06) Portaria MEC n° 790 – Institui o Comitê Gestor da BNCC e Refirma do Ensino Médio (31/08) Afastamento definitivo de Dilma Rousseff da Presidência da República (22/09) Medida Provisória n°746/16 impõe a Reforma do Ensino Médio | (16/02) Aprovação da Reforma do Ensino Médio – Lei n° 13.415/17 (15/12) Aprovação da BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental no CNE (20/12) Homologação da BNCC da Educação Infantil e do Ensino Fundamental pelo MEC | (02/04) Entrega da “Terceira Versão” da BNCC do Ensino Médio ao CNE (11/05 a 29/08) Consulta pública sobre a terceira versão da BNCC do Ensino Médio organizada pelo CNE (29/06) Renúncia do Presidente da Comissão Bicameral do CNE, voltada para o acompanhamento e deliberação do texto da BNCC (04/12) Aprovação da BNCC do Ensino Médio no CNE (08/12) Homologação da versão final da BNCC pelo MEC |
Apesar das intensas aproximações entre o MEC e o MPBNC[4], entre 2015 e primeira metade de 2016, ainda sob o governo de Dilma Rousseff, houve uma tentativa de diminuir as grandes resistências que se faziam presentes à proposta da BNCC, pela defesa de que o seu texto seria construído de uma forma democrática e participativa, envolvendo diferentes setores da sociedade.
Algumas ações reforçaram esse discurso, tais como: a composição de uma ampla e heterogênea comissão de especialistas para atuar na elaboração do texto da BNCC, em sua maior parte formada por professores de universidades públicas brasileiras; uma grande ênfase e promoção às estratégias de participação social, como a realizada através da plataforma online “Portal da Base” e a publicação de relatórios dos principais apontamentos das consultas públicas e suas repercussões para o texto da BNCC.
O reflexo dessa dinâmica inicial pode ser encontrado em alguns artigos acadêmicos publicados na época (NEIRA, JUNIOR, ALMEIDA, 2016; BURGOS, 2015), em que há interpretações favoráveis à ideia de uma política curricular centralizadora pois a compreendiam como oportunidade da sociedade brasileira realizar uma discussão sobre o currículo da Educação Básica. Não demorou muito tempo, no entanto, para que os limites da participação social se tornassem claros.
Conforme indica o relatório parcial dos dados da primeira consulta pública (BRASIL, 2016b) bem como das suas repercussões para o texto (BRASIL, 2016c), foram várias as críticas ao documento da primeira versão, especialmente sobre a sua organização confusa, a ausência de clareza sobre os seus fundamentos e sobre os sujeitos com quem o texto dialoga. Faz-se menção também a apontamentos mais amplos sobre a concepção de Educação e sobre a própria BNCC, o que leva a crer que se tratam de críticas mais profundas ao mérito dessa política. Contudo, frente a esses apontamentos, as repercussões apontadas para o texto são superficiais, como mudanças nos enunciados de objetivos de aprendizagem, mudança na organização do texto e busca do diálogo maior com as DCN.
Na literatura acadêmica, é possível notar outras críticas às possibilidades de participação na consulta pública. Nos estudos de Costa (2018) e Silva (2018), os aspectos técnicos da plataforma de participação social são questionados, bem como a própria transparência no tratamento dos dados, à medida que se identifica que o elevado número de contribuições não significa necessariamente um elevado número de contribuintes, pois dos 300 mil cadastros, 50% não fizeram intervenções em todas as categorias.
Ainda assim é preciso ressaltar que há um profundo contraste da dinâmica da elaboração da BNCC nessa primeira fase, entre 2015 e o início de 2016, e o modo como se seguiu a elaboração do texto a partir de então. Isto está relacionado, em boa medida, com as rupturas no Governo Federal.
No final de 2015 havia sido aberto o processo de impeachment contra presidente Dilma Rousseff, e, em 2016, uma semana após a publicação da segunda versão, ocorreu o seu afastamento provisório. Quem assume a presidência a partir de então é o vice, Michel Temer (PMBD), com uma postura significativamente distinta do governo anterior. Temer manifestou que não possuía nenhuma intenção de se reeleger e talvez tenha sido isso o que lhe possibilitou levar a adiante políticas impopulares, como a Proposta de Emenda Constitucional que limitou a possiblidade do investimento em áreas como saúde e educação por 20 anos (PEC n°55 de 2016).
Essa postura foi seguida também no MEC, que passou a ser comandado por Mendonça Filho (DEM), um parlamentar conservador do Estado de Pernambuco que, ao assumir, revoga a portaria que havia instituído a primeira comissão de especialistas para a elaboração da BNCC, e nomeia um Comitê Gestor com responsabilidade de acompanhar as consultas públicas da segunda versão da Base, convidar novos especialistas para redação do texto final da BNCC e fornecer subsídios para a elaboração do texto que deu origem à reforma do Ensino Médio.
A coordenação desse comitê ficou sob responsabilidade de Maria Helena Guimarães Castro, nova secretária executiva do MEC, que já havia ocupado o mesmo cargo no Governo Fernando Henrique Cardoso. Junto com ela, (re)aparecem outros sujeitos como Maria Inês Fini, ex diretora do PISA-Brasil e da avaliação para certificação de competências do MEC entre 1996 e 2002.
Sob a indicação do Ministro da Educação e do Presidente da República, também são recompostas algumas cadeiras no CNE, o que altera a comissão bicameral responsável pelo acompanhamento e deliberação sobre o texto da BNCC. Nesse momento, assume o cargo de conselheiro e membro da comissão o ex-presidente do CONSED Eduardo Deschamps, conhecido por ter fortes ligações com o MPBNC.
Todas essas mudanças são providenciais para a compreensão do caminho que segue a elaboração do texto da BNCC e a possibilidade da sua aprovação.
Uma das primeiras ações expressivas do novo governo é a publicação da reforma do Ensino Médio no formato de medida provisória – MP nº 746 de 2016, que contrariava boa parte do texto da BNCC que havia sido construído até então. Entre seus múltiplos pontos polêmicos, a medida provisória impôs uma mudança profunda na organização curricular do Ensino Médio, passando a considerar como disciplinas obrigatórias apenas Português e Matemática e vinculando, obrigatoriamente, os currículos do Ensino Médio à BNCC. Por esse motivo, a elaboração desse documento foi oficialmente paralisada e retomada somente após a aprovação da Lei n° 13.415 de 2017.
Transcorrido aproximadamente um ano após ter sido sancionada a Lei, o MEC encaminha ao CNE uma terceira versão da BNCC do Ensino Médio, sem nenhum esclarecimento sobre as repercussões da segunda audiência pública. Os relatórios parciais dessas audiências mostram que muitas das críticas ao texto permaneceram, bem como um enorme estranhamento dos professores da rede pública com a sua proposição. Não foi fornecida, em um primeiro momento, nem mesmo a informação dos especialistas convocados para elaboração desse documento, o que reforça a tese de que esse documento expressava unicamente a voz dos sujeitos que passaram a conduzir a elaboração da BNCC a partir de então, aqueles que compunham o comitê gestor.
Assim como a tramitação da reforma do Ensino Médio, a tramitação da BNCC no CNE foi marcada por grande tensão. Das cinco audiências públicas que estavam previstas, apenas três, efetivamente, aconteceram. As outras duas foram ocupadas por estudantes secundaristas e profissionais da educação, em repúdio ao que o texto havia se tornado. Após a ocupação da primeira audiência, o presidente da Comissão Bicameral, Antônio Cezar Callegari, renunciou ao posto sob a alegação de que o processo havia sido inteiramente desfigurado.
Callegari, que era incialmente favorável à ideia de uma base nacional curricular comum, publicou uma carta com os motivos da sua renúncia:
Em que pesem todas as circunstâncias, tensões e conflitos políticos, econômicos e sociais que vêm marcando a atual quadra da história brasileira, pode ser considerada uma grande proeza que o CNE tenha conseguido conduzir, de forma democrática e produtiva, a tarefa de elaboração da norma instituidora da BNCC relativa ao ensino Fundamental e à educação Infantil [...]. No entanto, o quadro agora é outro. Temos pela frente a BNCC do ensino médio elaborada pelo MEC. Sobre ela, tenho severas críticas que considero honesto explicitar e ponderações que julgo necessário fazer. [...]A primeira conclusão a que chego é que não é possível separar a discussão da BNCC da discussão da Lei nº 13415 que teve origem em Medida Provisória do Presidente da República e estabeleceu os fundamentos do que chamam de “reforma do ensino médio”. Uma coisa está intrinsecamente ligada à outra. A própria Lei é clara ao estabelecer que é a BNCC que lhe dará “corpo e alma”. Problemas da Lei contaminam a BNCC. Problemas da Base incidirão sobre a Lei. A meu ver, a proposta de BNCC elaborada pelo MEC evidencia os problemas contidos na referida Lei, aprofunda-os e não os supera. Ela sublinha o defeito de origem: a separação do ensino médio do conjunto da educação básica na concepção de uma BNCC. Eu e outros conselheiros insistimos nessa crítica desde o início do processo. Eis que, materializando nossos piores temores, a proposta do MEC para o ensino médio não só destoa, mas contradiz em grande medida o que foi definido na BNCC das etapas educacionais anteriores e é radicalmente distinta do que vinha sendo cogitado nas versões primeiras. Tinham, afinal, razão os que temiam rupturas e fragmentação da educação básica (CALLEGARI, 2018).
Apesar do seu teor bastante crítico, essa carta não teve maiores efeitos entre os conselheiros. Com a renúncia de Callegari, quem assume o posto de presidente da comissão é Eduardo Deschamps, que dá seguimento às audiências à revelia dos inúmeros protestos. As audiências públicas que efetivamente aconteceram, só foram realizadas por um controle massivo do espaço, além de mudanças de última hora no local. Ainda assim, falas de protestos foram predominantes.
Desse modo, fica evidente que a tramitação da BNCC no CNE cumpriu um papel meramente protocolar, pois as decisões já estavam tomadas. Ao final do processo, com a aprovação do texto informa-se, finalmente, quem foram os especialistas que atuaram na elaboração desse documento. A primeira comissão de especialistas foi inteiramente substituída por um grupo expressivamente menor, com bastante alinhamento às tendências corporificadas pelo Comitê Gestor.
4 ANÁLISE COMPARATIVA DAS VERSÕES DA BNCC (2015, 2016 e 2018) A PARTIR DAS CATEGORIAS CURRÍCULO E JUVENTUDE
Se em boa medida, a análise comparativa das versões da BNCC 2015, 2016 e 2018 comprovou a desconfiança inicial que inspirou essa investigação, ou seja, essas versões de fato apresentam concepções bastante distintas, a partir dela, também foram encontradas continuidades expressivas.
A maior continuidade está na concepção de currículo, que não diz respeito apenas ao Ensino Médio, se estende para toda a Educação Básica. Apesar dessa concepção não ser explicitada nos textos, ela está implícita em suas organizações internas, caracterizadas pela prescrição de objetivos de aprendizagem e desenvolvimento por códigos alfanuméricos.
Esse elemento está longe de ser uma preferência estética dos formuladores. Para compreender o seu motivo basta recorrer às primeiras defesas manifestas nos documentos do MEC e do MPBNC sobre o objetivo desta política, isto é: definir claramente aquilo que os estudantes devem ter aprendido ao final da Educação Básica, subsidiando a elaboração de avaliações, materiais didáticos, cursos de formação inicial e continuada de professores. O código é usado como uma forma de possibilitar a replicação das determinações da BNCC para outras práticas curriculares que a sucedam. Tanto as avaliações, quanto os materiais didáticos, cursos de formação de professores e as regulamentações curriculares locais deverão, se tudo ocorrer conforme planejado por seus formuladores, ser organizados e regulados a partir desses códigos.
Em todas as versões analisadas da BNCC, é feita uma defesa da importância de assegurar a autonomia aos professores, às escolas e às redes de ensino para tomarem decisões mais pertinentes de acordo com a sua realidade e demandas locais. No entanto, aquilo que elas de fato apresentam advoga o contrário. É possível afirmar que a BNCC é uma política que almeja àquilo que APPLE (2006) chamou de um “controle forte”, isto é, uma determinação que supera o necessário para a organização do processo pedagógico em uma tentativa de controlar tudo o que é feito no interior das escolas. Os proponentes de um documento dessa natureza acreditam que é desta forma que se alcança o êxito educativo, independente do que isso significa.
Essa concepção de currículo não passou em branco nem pelas instituições ligadas à educação, nem pelos sujeitos que participaram das consultas públicas e nem pelos jovens que ocuparam as audiências públicas em 2018. A predominância, em todas as versões, da agenda empresarial expressa no MPBNC indica que a concepção de currículo nunca foi negociável.
As críticas ao modo como foi conduzido o processo de elaboração, mesmo entre 2015 e 2016, se mostram extremamente razoáveis. Isso não significa que não ocorreram mudanças significativas na participação social, mas que essa participação foi limitada desde o início.
Nos escassos espaços em que houve alguma escuta aos professores, estudantes, movimentos e instituições ligadas à educação, as repercussões no texto foram inevitáveis. A maneira como a juventude é apresentada nas três versões da BNCC talvez seja o melhor exemplo e indicativo deste elemento, uma vez que os três documentos apresentam concepções significativamente distintas – mesmo que todas as versões apresentem a mesma falta de compromisso com esses sujeitos e uma forma apressada de tratá-los.
Na primeira versão, BNCC (2015), que é significativamente menor que as demais, não há sequer um tópico ou seção para tratar do assunto. Em todos os trechos que se faz alguma menção à juventude, essas menções recorrem a estereótipos, tais como: os estudantes “estão vivendo um cenário de culturas juvenis e adultas de sua época, muitas vezes em embate” (BRASIL, 2015, p. 34) e/ou os estudantes estão “lidando com reflexões e tarefas relativas a vida adulta” (BRASIL, 2015, p. 34).
Nessa primeira versão, a juventude é entendida essencialmente como uma fase de transição da infância para a vida adulta, que muitas vezes é marcada pelo conflito com as gerações anteriores. Isso implica, em primeiro lugar, na compreensão de que o jovem deve ser visto a partir do que ele será, não do que ele é. Esta fase torna-se um mero preparar-se para o futuro. Em segundo lugar, a ideia de conflito com as gerações anteriores, remonta ao ideário do jovem rebelde, subversivo. Ainda que essa imagem seja frequentemente empregada em comerciais de produtos destinados a essa faixa etária ou em filmes, ela é pouco representativa da realidade, conforme atestam estudos sobre juventude (NOVAES, 2016) o que demonstra um desconhecimento dos sujeitos a quem a proposta contida na BNCC (2015) do Ensino Médio seria destinada.
Frente às críticas na consulta pública, foi feita uma revisão no texto que resultou na segunda versão, BNCC (2016). Nesta, a concepção de juventude é significativamente alterada. Nesse documento há uma tentativa de retomada dos princípios educativos contidos nas DCNGB (2010) e, no caso do Ensino Médio, das DCN/EM de 2012 (BRASIL, 2012), ainda sim preservando a concepção de currículo da BNCC que contraria esses documentos. Esse movimento implicou diretamente na adoção de uma concepção plural de juventude, expressa nos seguintes termos:
[...] não estão (as juventudes) restritas às dimensões biológica e etária, mas se encontram articuladas com uma multiplicidade de atravessamentos sociais e culturais, produzindo múltiplas culturas juvenis e muitas juventudes (BRASIL, 2016.p.155).
Trata-se, portanto, de uma concepção plural de juventude entendida como em constante transformação e participante ativa no processo de formação que deve levar a sua autonomia e crítica inserção no mundo. Sobretudo, não se deve compreender o diálogo entre a cultura jovem a cultura adulta como uma tensão de gerações, ou a juventude como um mero rito de passagem dos jovens à maturidade, pois não são simples adultos em formação (BRASIL, 2016, p.488).
A diferença em relação ao texto anterior é evidente. Pode-se afirmar que, com todos os limites que persistem nessa versão, avança-se qualitativamente para um diálogo maior como os sujeitos a quem o Ensino Médio é destinado, pois esses passam a ser considerados na sua multiplicidade e na sua condição como presente vivido, o que não uma questão menor quando se fala em política educacional e política curricular, pois a maneira como os estudantes são vistos repercute na educação que é ofertada aos mesmos.
Apesar de alguns elementos da concepção plural de juventude ter sido preservada na versão final, BNCC (2018), o texto foi alterado novamente. Sem o compromisso com a legitimação nas arenas de participação social, a concepção de juventude desloca-se para uma abstração para que possa se articular com a reforma do Ensino Médio:
É necessário, em primeiro lugar assumir a firme convicção de que todos os estudantes podem aprender e alcançar seus objetivos independente de suas características pessoais, seus percursos e suas histórias (BRASIL, 2018, p.467).
Considerar que há muitas juventudes implica organizar uma escola que acolha a diversidade, promovendo de um modo intencional e permanente, o respeito à pessoa humana e aos seus direitos. E mais, que garanta aos estudantes ser protagonistas de seu próprio processo de escolarização, reconhecendo-os como interlocutores legítimos sobre o currículo, ensino e aprendizagem (BRASIL, 2018, p.663).
O termo protagonismo ganha relevância na última versão, mas em um sentido bastante distinto do que se tinha anteriormente. Se antes, referia-se à compreensão de que o jovem não é um mero sujeito passivo que deve se adaptar à realidade em que vive, mas também é ativo na construção dessa realidade, a versão final diz o contrário. Nela, há uma defesa implícita de que, se o indivíduo for formado em adequação ao que é exigido em termos de empregabilidade, as condições sociais, culturais e econômicas em que se situa não são tão relevantes. Ele pode cumprir seu objetivo independente da materialidade da sua vida. Nessa compreensão, ocorre uma responsabilização dos jovens pelo seu sucesso ou fracasso. A lógica é cruel, para dizer o mínimo. Tal defesa está também articulada com o “Novo Ensino Médio”, que estabeleceu uma suposta possibilidade de escolha na parte diversificada do currículo. Em ambos os casos, predomina uma abstração que só considera o indivíduo a partir de fins que lhes são externos.
O termo protagonismo ganha relevância na última versão, mas em um sentido bastante distinto do que se tinha anteriormente. Se antes, referia-se à compreensão de que o jovem não é um mero sujeito passivo que deve se adaptar à realidade em que vive, mas também é ativo na construção dessa realidade, a versão final diz o contrário. Nela, há uma defesa implícita de que, se o indivíduo for formado em adequação ao que é exigido em termos de empregabilidade, as condições sociais, culturais e econômicas em que se situa não são tão relevantes. Ele pode cumprir seu objetivo independente da materialidade da sua vida. Nessa compreensão, ocorre uma responsabilização dos jovens pelo seu sucesso ou fracasso. A lógica é cruel, para dizer o mínimo. Tal defesa está também articulada com o “Novo Ensino Médio”, que estabeleceu uma suposta possibilidade de escolha na parte diversificada do currículo. Em ambos os casos, predomina uma abstração que só considera o indivíduo a partir de fins que lhes são externos.
A maneira como é compreendido o papel do conhecimento escolar no Ensino Médio também é distinta. Nas três versões analisadas, começa-se a tratar o tema a partir do apontamento de desafios presentes nessa etapa da educação básica. Os textos da primeira e segunda versão, BNCC (2015 e 2016) concordam nesse aspecto. Retomam os objetivos dessa etapa de ensino contidos na LDB/96 e enfatizam a necessidade de se superar a repercussões da dualidade histórica que marcou por muito tempo a escola voltada para o atendimento das juventudes. Reforçam, nesse sentido, a necessidade de um compromisso de uma escola que atenda de maneira comum a todos que a frequentam.
O texto da segunda versão vai um pouco além ao desenvolver os princípios educativos contidos nas DCN/EM (BRASIL, 2012). Retoma o princípio educativo do trabalho e enfatiza a Educação Integral, que considera trabalho, ciência, cultura e tecnologia como eixos indissociáveis da formação humana, eixos esses, que foram formulados no contexto de uma tentativa de romper com o dualismo. Não negando a necessidade de se ofertar uma formação que permita ao indivíduo ter condições de se adaptar à sociedade, também não nega suas contradições e subsidio ao desenvolvimento do potencial crítico do sujeito, fundamento para o exercício de sua autonomia intelectual e moral.
A versão final, por outro lado, dá ênfase apenas ao primeiro aspecto mediante uma ruptura profunda com a versão anterior. Toda a influência das DCN/EM de 2012 é substituída pelas proposições presentes nos documentos normativos da reforma do Ensino Médio e pela pedagogia das competências. Sobre os desafios para a etapa, a ênfase passa a recair na necessidade de adequação às mudanças na reestruturação do modo de produção capitalista, que segundo o texto, afetam aos jovens e devem ser levadas em consideração. Tal perspectiva adquire centralidade por meio de expressões que passam a ser utilizadas reiteradamente, tais como “empreendedorismo” e “educação financeira”.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Longe de abordar todos os pontos que recaem sobre a definição de políticas educacionais e curriculares recentes, neste texto abordamos alguns aspectos que consideramos fundamentais com vistas à compreensão do processo de produção de uma política curricular para uma etapa educacional específica, qual seja, a Base Nacional Comum Curricular para o Ensino Médio, entremeado de controvérsias e embates quanto às suas concepções e proposições.
Uma das ordens de disputas que permearam a condução da BNCC diz respeito à concepção de currículo. Neste âmbito, foi exitosa a interpretação de que a proposta curricular nacional deveria pré-determinar boa parte do currículo das escolas, ainda que isso nunca tenha sido declarado oficialmente. Trata-se de uma postura autoritária, que ignora a necessidade de autonomia dos professores e das escolas; e que tem como prejuízo também a restrição do que é considerado currículo e conhecimento escolar, uma vez que busca preencher todo o espaço/tempo escolar com suas determinações.
Com relação às diferenças de concepção nos documentos, identificou-se que os maiores contrastes estão entre as duas primeiras versões, BNCC (2015, 2016), e a versão final, BNCC (2018). Isso decorre das mudanças nos sujeitos e na maneira como foi conduzido o processo de elaboração do texto da BNCC nesses períodos. O resultado final indica que a BNCC (2018) retrocede em relação às versões anteriores, uma vez que acaba incorporando um ideário educacional que fragiliza o Ensino Médio e atua contraditoriamente aos seus objetivos, estabelecidos no art. 35 da LDB/96, uma vez que o texto absolutiza uma perspectiva formativa adaptativa e responsabilizante dos estudantes e professores.
Ressalta-se, no entanto, que este não é um ponto final, pois, diferentemente do que os formuladores dos documentos oficiais possivelmente acreditam, os currículos, por mais prescritivos que sejam, são marcados por movimentos complexos, por negociações dos sentidos e significados que escapam às determinações oficiais.
REFERÊNCIAS
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Notas