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NEGO VEIO PROFESSOR: ancestralidades, descolonização e reencantamento da educação
NEGO VEIO PROFESSOR: ancestry, decolonization and reenchantment of education
PROFESOR NEGO VEIO: ancestralidad, descolonización y reencantamiento de la educación
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 2, 2023
Recepção: 10 Julho 2023
Aprovação: 24 Agosto 2023
Resumo: O artigo risca os caminhos a partir dos saberes assentados nas práticas afro-brasileiras e indígenas com a orientação do professor ancestral Pai Joaquim da Calunga, um Preto Velho que baixa em um Terreiro de Umbanda localizado na zona norte do Rio de Janeiro. Rodopiando nos moldes civilizatórios de uma cultura hegemônica, cruzando possibilidades outras de ser e estar no mundo, incitando a própria potência criativa de estudantes, com a Banda e a Quimbanda, misturando corpos plurais que circulam nos espaços escolares e que muitas vezes incutem a ideia de serem fadados a determinados fins negativos nas periferias, é que vamos fazer a gira girar. Na lógica de uma Educação como experiência de liberdade do ser e de acúmulo e troca de força vital, como axé, a responsabilidade é firmar ponto em um pedaço de cipó curricular e desatar os nós da violência colonial, exercitando a fluidez dos diversos caminhos possíveis. Portanto, esse artigo parte de uma ideia de que nem sempre é possível evitar a morte do corpo físico, mas é possível reencantar o mundo através da potência de vida.
Palavras-chave: Educação, Reencantamento, Preto Velho, Currículo, Descolonização.
Abstract: The article traces the paths from the knowledge based on Afro-Brazilian and indigenous practices with the guidance of the ancestral teacher Pai Joaquim da Calunga, a Preto Velho who goes to a Terreiro de Umbanda located in the north zone of Rio de Janeiro. Whirling in the civilizing molds of a hegemonic culture, crossing other possibilities of being and being in the world, inciting the creative power of students, with Banda and Quimbanda, mixing plural bodies that circulate in school spaces and that often instill the idea of being doomed to certain negative ends on the outskirts, is that we are going to make the rounds spin. In the logic of an Education as an experience of freedom of being and of accumulation and exchange of vital force, like axé, the responsibility is to establish a point in a piece of curricular vine and untie the knots of colonial violence, exercising the fluidity of the different possible paths. Therefore, this article is based on the idea that it is not always possible to avoid the death of the physical body, but it is possible to re-enchant the world through the power of life.
Keywords: Education, Replumbing, Old black, Curriculum, Decolonization.
Resumen: El artículo traza los caminos a partir del conocimiento basado en prácticas afrobrasileñas e indígenas con la guía del maestro ancestral Pai Joaquim da Calunga, un Preto Velho que se dirige a un Terreiro de Umbanda ubicado en la zona norte de Rio de Janeiro. Girando en los moldes civilizatorios de una cultura hegemónica, cruzando otras posibilidades de ser y estar en el mundo, incitando el poder creador de los estudiantes, con Banda y Quimbanda, mezclando cuerpos plurales que circulan en los espacios escolares y que muchas veces inculcan la idea de estar condenados a ciertos extremos negativos en la periferia, es que vamos a hacer girar la rueda. En la lógica de una Educación como experiencia de libertad del ser y de acumulación e intercambio de fuerza vital, como axé, la responsabilidad es establecer un punto en un trozo de enredadera curricular y desatar los nudos de la violencia colonial, ejerciendo la fluidez de los diferentes caminos posibles. Por lo tanto, este artículo se basa en la idea de que no siempre es posible evitar la muerte del cuerpo físico, pero sí es posible reencantar el mundo a través del poder de la vida.
Palabras clave: Educación, Plomería, Preto Viejo, Plan de estudios, Descolonización.
1 CONVERSAS INICIAIS
A colonialidade está presente no contexto do processo de permanência da violência e da dominação colonial existentes na sociedade moderna ocidental, muitas vezes percebida através do racismo e da necropolítica (MBEMBE, 2018). As escolas e suas invenções curriculares são referências para as comunidades das periferias e seus cotidianos. A amplificação e a hiper difusão das informações reiteraram o desencanto do mundo marcado pela desigualdade e pela exposição midiática do consumo, dos interesses e das diferenças sociais. Neste sentido, a desvalorização da educação, a desqualificação da formação docente e a marginalização da escola pública também são interfaces da necropolítica, uma vez que se retira os horizontes de transformação social e uma subordinação das diferentes formas de se posicionar no mundo a partir de uma cosmopercepção das periferias. Neste trabalho, buscamos riscar os caminhos e saberes no chão das periferias onde são recorrentes os assentamentos das práticas afro-brasileiras e indígenas tão bem representadas nas escolas públicas de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. São cidades, comunidades, escolas e territórios ocupados pela população negra do Estado do Rio de Janeiro onde se assentam as ancestralidades tupinambás, sambaquieiras e bantos, heranças de um tempo de resistência e luta contra a violência colonial estabelecida desde os tempos da ocupação europeia.
Para a orientação de um currículo no cotidiano do reencantamento dos mundos e universos diversificados e espalhados pelas periferias, o ponto riscado nos currículos da colonialidade foram ensinados pelo professor ancestral Pai Joaquim da Calunga, um Preto Velho que baixa em um Terreiro de Umbanda localizado na zona norte do Rio de Janeiro. Assim como em um rodopio em espiral, o tempo cronológico e linear deixa de ser uma referência, sendo relegado às bases curriculares da modernidade colonial (MARTINS, 2021). Com uma perspectiva de tempo-movimento, os modelos civilizatórios de uma cultura hegemônica são questionados, redesenhados e cantados em um processo de reencantamento pelos saberes tradicionais perdidos e esquecidos, mas recuperados e dialogados com os estudantes e seus corpos plurais e diversificados que circulam no espaço escolar. Corpos-movimentos que redesenham o tempo, buscam saberes que Pai Joaquim da Calunga explica através de perguntas que faz pensar a natureza das coisas e a cultura das pessoas em um sentido coletivo que afeta e atravessa o que se ensina e o que se aprende em um contexto escolar, mas que avança para além dos muros da escola, chegam às ruas, praças, casas e encruzilhadas onde Nego Véio da Calunga não deixa de ensinar ao contar e recontar as memórias por ele lembradas que mudam o pensar e o fazer-se das periferias e seus significados.
A Educação como experiência da liberdade do ser e das confluências entre os saberes, a força vital, como o axé e a responsabilidade, está firmado em um pedaço de cipó curricular, que se volta para desatar os nós da violência colonial. A fluidez dos diversos caminhos possíveis expressados na oralidade das palavras, das danças, das escritas, dos desenhos, dos gestos e das produções audiovisuais marcadas pela desejo da cura, não apenas das apreensões da morte física, mas também da violência da despersonalização de sujeitos em processos de pensar/sentir as memórias de uma ancestralidade que cotidianamente se faz presente nas frases-problemas, nas perguntas-sentenças, nas respostas-enigmas que baseiam uma epistemologia que assumem os limites e a expansão dos textos curriculares produzidos nos coletivos atravessados pelas confluências e transfluências dos saberes, humanos e não-humanos, visíveis e invisíveis, mobilizados para evitar a morte do corpo físico e reencantar o mundo através da potência da vida (SANTOS, 2023).
As ensinagens em uma perspectiva da professora Vanda Machado (2017), onde a pessoa é instigada a entrar em seu próprio caminho, sina, do jeito que se é, cabe aqui como um dos processos das entrevistas-consultas, abordagem metodológica utilizada no decorrer das pesquisas em que a pesquisador/a cambone entrevista as entidades em um espaço de consulta. Nesse sentido, há entrelaçamentos de metodologias, da pesquisa e da entidade em questão. Pai Joaquim, por exemplo, com os questionamentos feitos, nos instiga a buscar compreender nossos próprios momentos no mundo, fundamentar nossa vida e, com responsabilidade, responder aos processos comunitários, sendo elos firmes do rosário social. Muitas vezes dando respostas para as nossas perguntas com novos questionamentos, Nego Veio nos faz exercitar o autoconhecimento, o reconhecimento do que nos envolve e assim perceber as possibilidades de caminhos a partir da nossa própria identidade. E assim, sendo nós regentes de nosso próprio percurso, gera-se autonomia e liberdade de continuar a gira de forma potente e encantada nessa travessia mundana, sempre na narrativa do ser-conta do rosário, nunca em um sentido subordinado, preso e invisibilizado, mas circular e fluido. Diante dessas ensinagens de Pai Joaquim da Calunga, a entrevista cruza com a consulta, pois quem entrevista recebe as mandingas apalavradas do Preto Velho que vai perpassando pesquisa e vida como um todo.
2 PRETO VELHO! PROFESSOR ANCESTRAL
Ai vovô, eu tenho
medo
Ai vovô, eu tenho medo
Da fumaça do
cachimbo
Descobrindo o meu
segredo
Fonte: Ponto de Preto
Velho
Praticando o chão do Terreiro em uma perspectiva de cambonagem (RUFINO; SIMAS, 2018) na pesquisa, onde o corpo aberto é um dos princípios fundamentais para a possibilidade de afetar-se com diversas sensações dessa gira de ‘saberesfazeres’, pedimos licença ao invisível para lançarmos esses riscados a partir da Umbanda, assentada nas práticas afro-brasileiras e indígenas, ritualizada no Terreiro Mensageiro de Oxalá (TMO). Fundado em 08 de dezembro de 1961, os trabalhos do TMO se iniciaram no espaço do terreno cedido por Seu Dezinho e Dona Ceinha, com a colaboração Dona Gloria, Dona Ica, Seu Adelir e Seu Edson e com a mentoria espiritual de Seu Taú, Caboclo vindo de Aruanda (MENDES, 2018). Depois de algum tempo de funcionamento, foi comprado um terreno naquele mesmo território, onde ainda hoje encontra-se em pleno funcionamento. Além de Seu Taú, o TMO é comandado por diferentes entidades que se fazem presentes na terra através de médiuns e das lideranças religiosas da Casa. Desde a Cabocla Jurema, os muitos Exus da Casa, Vovó Maria, uma Preta Velha de Sabedoria, entre muitos outros.
Com a disponibilidade para o aprendizado e a dúvida como um dos caminhos para as construções das experiências, o percurso do texto aqui apresentado é firmado com o Preto Velho Pai Joaquim da Calunga que nos acolheu na pesquisa e tem orientado uma série de possibilidades político-poético-filosóficas para nos entendermos enquanto um coletivo com agrupamentos diversos; Pai Joaquim nos instiga a reconhecer nossas identidades, ancestralidades e narrativas outras de construção desse território afro-pindorâmico, através das histórias miúdas, mergulhando nas complexidades do Brasil com suas problemáticas coloniais que insistem nos apagamentos, nas exclusões, nos extermínios, na morte em vida.
Em uma noite de sábado numa gira do TMO, Pai Joaquim baixa, isto é, se manifesta através do corpo físico de seu medianeiro, para uma entrevista-consulta. Enquanto canta um ponto já muito conhecido no terreiro, “Oxalá, Oxalá, tem pena de nós, tem dó [...]”, desenha uma circunferência no chão, com pemba, dentro dela um copo com água, outro com pedaços de cana-de-açúcar; cigarro de palha; caixa de fósforo aberta; alguidar com cana e palha da costa; a pemba é posicionada próxima a vela acesa. Ainda entoando o cântico, Nego Veio vai desfolhando manjericão e um ramo de alecrim, até que cobre o traçado da pemba com o seu rosário. Saravá! Que comece a aula, Professor!
Com a cana apontando trechos do rosário, Pai Joaquim vai explicando os significados dos agrupamentos de contas e das contas individuais. Percebendo a vida de modo circular, onde as partes estão conectadas, de acordo com um dos fundamentos banto, o rosário inteiro é entendido como a representação do ciclo das vivências, onde o Preto Velho afirma que temos fases em comunidade e fases individuais em um sentido de entendimentos do mundo; momentos em que estamos agrupados e isolados, porém, mesmo isolados, temos a proteção dos agrupamentos à direita e à esquerda.
Enquanto em uma perspectiva judaico-cristã a conta isolada é o mistério, Nego Veio explicita a reflexão de que essa conta somos nós em determinados momentos descobrindo nossas forças, fraquezas, nossas esperanças, quem somos nós, de fato. Nessa individualidade do “ser-conta”, floresce o processo de cura alimentado pela potência do (bom) coletivo.
Ainda tendo como plano de aula o rosário, Pai Joaquim aprofunda sua fala ao abordar Banda e Quimbanda.
Então êxi que é Banda e Quimbanda; êxi são caminhos opostos, mas complementares, êxi?! E êxi Nego Veio saiu de um mesmo agrupamento na forma de um Exu, êxi, falando êxi pela vibração de Pai Obaluaê, êxi Quimbanda; Nego Veio muda de ciclo […], de energia quando vem pras Almas, trabalhando, também, com a força do Orixá Obaluaê na Banda, êxi?! (Trecho da entrevista-consulta concedida por Pai Joaquim da Calunga)
Girando a cana para a direita e para a esquerda, a entidade afirma que na Banda trabalha-se com espíritos (manos) do mesmo agrupamento e na Quimbanda trabalha-se, também, com os manos, porém, em caminho inverso. Explica que quando precisamos fazer algo mais completo, é necessário mexer em vários fluxos e mostra isso, rodando a cana no sentido horário e anti-horário em cima do ponto riscado. Ao finalizar esta parte, Preto Velho questiona: “O que que xunxê tá fazendo com esses gafanhoto?”
No corpo-texto de Pai Joaquim da Calunga as palavras fazem parte de uma composição textual marcada pela oralidade expressada em palavras, gestos, signos e sinais que podem ser compreendido a partir de um tempo-movimento com meandros que problematizam as linearidades coloniais de um tempo cronológico. Neste sentido, é possível pensar um tempo-cultura expressado em uma tela que suscita leituras de hieróglifos grafados ao longo de um tempo que atualizam memórias e culturas originárias no movimento do corpo em tempo espiralar, pronto para um confronto em forma de dança e movimento aos termos da violência colonial expressadas no seu corpo, nas suas palavras e nas suas diferentes formas de expressar o corpo-texto. Ao se colocar diante do corpo-texto de Pai Joaquim, o professor ancestral, remete-se as temporalidades que implicam nas ações e reflexões políticas do cotidiano, que remete as dores e aos processos de cura em um movimento ancestral. Portanto, as narrativas de Pai Joaquim estão eivadas de ensinamentos marcado pela ancestralidade que
Tanto pode ser concebida como um princípio filosófico do pensamento civilizador africano quanto pode ser vislumbrada como um canal, um meio pelo qual se esparge por todo o cosmos, a força vital, dínamo e repositório da energia movente, a cinesia originária sagrada constantemente em processo de expansão e catalização.(...) Esses seres são “o Ser supremo e os seres sobrenaturais, os ancestrais, o universo material, que inclui homens vivos, vegetais, os minerais e os animais, e o universo mágico” (MARTINS, 2021, p. 60).
Nessas narrativas, o professor ancestral inspira o fazer docente na mistura dos fluxos, das energias. Muitas vezes, em planejamentos de aulas, é necessário envolver Banda e Quimbanda, promovendo uma melhor ligação para o entendimento de estudantes, objetivando que determinadas temáticas façam sentido em suas vidas e resultem em potências para uma existência plena. A inspiração ancestral marca o reencantamento curricular e do planejamento dos encontros voltados para a reflexão sobre as diferenças e desigualdades sociais, sobretudo em um corpo-território que caracteriza as periferias onde estão terreiros e escolas em um processo espiralar que conhecimentos e discursos se confundem em um processo de expansão e catalisação, a despeito das reações conservadoras da colonialidade.
Percebendo a escola como um território em disputa, diante das raízes coloniais é preciso preservar esse espaço praticando a terreirização, ou seja, a afirmação da vida contra a morte na prática miúda dos cotidianos; enfatizando que a morte se dá não apenas com o encerramento do corpo físico, mas, também, com o apagamento, com a marginalização, sobreposições e silenciamentos de culturas, ancestralidades, modos de ser e estar no mundo; ou seja, uma morte em vida. A escola, pois, precisa descolonizar subjetividades.
3 POTÊNCIAS CURRICULARES, ANCESTRALIDADES E REENCANTAMENTO DO MUNDO
Mês de março! Há, na sala de aula, discussões sobre o Dia Internacional da Mulher, envolvendo perspectivas de lutas e conquistas pela equidade de gênero, enfatizando a diversidade existente no próprio feminino. Diante desse planejamento, mexemos, então, com um fluxo de energias. As lutas continuam e a proposta é que cada estudante escolha uma pessoa do gênero feminino que inspire orgulho, força, amor, luta, reexistências, etc; as narrativas trazidas, em geral, são histórias das mães, tias, avós, irmãs como “potências femininas”; as demandas estão lançadas: jovens grávidas expulsas de casa; violências físicas e psicológicas de homens sobre mulheres em relacionamentos amorosos; mulheres impedidas de trabalhar fora de casa; precariedade de moradias onde mães perdem seus pertences em incêndios, alugam quartos pequenos para viver com seus filhos; onde mulheres são excluídas no círculo familiar por não se enquadrar nos padrões impostos do “feminino”; toda luta por sobrevivência dessas mulheres em uma sociedade patriarcal, machista, misógina. Nessa etapa da proposta de atividade, outro fluxo de energia é movimentado. Pensamentos machistas levam rasteiras nas argumentações coletivas dos agrupamentos nas turmas, aquilo que “sempre foi”, vai sendo desestabilizado para uma possível transformação.
Aparentemente uma bagunça, mas um caos organizador é instaurado (Laroyê!), estudantes se emocionam ao contar suas histórias e ao ouvir as outras histórias contadas; após isso, montamos um mural com todas essas narrativas das Potências Femininas, as inspirações das transmutações ensinadas por Pai Joaquim! O entendimento de quem nós somos, de qual é a nossa força e como podemos caminhar de forma melhor para nós mesmos e para o nosso agrupamento (sociedade). Saravá, Nego Veio!
A Quimbanda trazida por Pai Joaquim em nossas entrevistas-consultas é acionada! O momento em que estudantes colocam para fora, expondo, através de palavras escritas e faladas, as mazelas, dificuldades e problemáticas encaradas (o polo negativo) e muitas vezes escondidas no âmago do ser, opera em uma lógica de transmutação; Exu, a boca que tudo come, engole as demandas e regurgita de forma transformada. Pai Joaquim, capaz de transitar pelos polos negativos e positivos, tendo passado pelo agrupamento da falange de Exu Caveira, cavouca o lado mais escondido, mais problemático para ser trabalhado em uma descarga energética, de peso que nos custa, muitas vezes, o próprio encantamento da vida. O polo negativo é, portanto, o escarafunchar da essência, onde Caveira é o ponto auge do entendimento, desnudando todas as camadas dos cativeiros questionados pelo Veio quimbandeiro. E na encruza, que é lugar de gira, morada de Exu, tudo que é lançado volta! Volta de forma transformada!
É a hora, é
chegada a hora
De firmar nossa
porteira
Com a força da
falange dos Caveira
[…]
Todos eles
mensageiros
Do nosso Pai Omolu
Por isso, hoje na
gira
Vamos saravá Exu
Fonte: Ponto para Exu
Na continuação da atividade, as histórias das Potências Femininas somam outros contornos: são avós que conseguem uma estabilidade na vida; mães que se matriculam na Educação de Jovens e Adultos, que são aprovadas em Universidades Públicas, que conseguem melhores empregos e que entendem no divórcio uma libertação de cativeiros; ampliando percepções em uma polaridade positiva, a Banda.
Entendendo a Educação como possibilidade de transgressão (hooks, 2013), a sala de aula pode ser percebida como um espaço comunitário de relações horizontais e de responsabilidade tanto de professores quanto de estudantes. E com a importância de todos esses sujeitos nas experiências de envolvimentos, abrimos caminhos para uma Educação como prática de liberdade, cheia de sentidos nas aprendizagens conectadas às experiências globais de vida discente.
Nessa responsabilidade mútua objetivando um bem comum, no ideal de uma sala de aula virtual democrática, a implementação do projeto Tocando Corações em meio a tragédia que foi a pandemia de COVID-19, buscou fazer com que estudantes entendessem que são partes integrantes e fundamentais para a própria existência do projeto. Sentindo, portanto, a responsabilidade de contribuir de variadas formas nas propostas, discussões, montagens e divulgação de todos os materiais criados, incentivando o diálogo, o respeito, transpondo cativeiros de medo, indiferença, em uma lógica da pedagogia transformadora (hooks, 2013). Assim, termina-se fortalecendo o desenvolvimento intelectual crítico de estudantes para uma ênfase na capacidade de cada um viver de forma livre e plena enquanto cidadãos e cidadãs.
Com a necessidade do isolamento social, o espaço virtual tornou-se o único meio possível para as relações. Mas, como dar prosseguimento às aulas através de plataformas online propostas pela Secretaria de Educação diante de um cenário precarizado? Estudantes sem acesso à internet, com pacotes reduzidos de dados móveis para acompanhar todas as atividades e possíveis videoaulas. A dificuldade encontra-se até na comunicação da escola com estudantes no que se refere à entrega dos kits de alimentação. Desânimo, falta de interesse enfatizada pelo contexto caótico, problemas de ordem financeira, doenças e perdas familiares deram o tom do cotidiano desses e dessas jovens estudantes.
A partir de pesquisas em torno de obras da escritora Cora Coralina, que dá nome à escola, integrantes do projeto chegaram à frase: “Não sei se a vida é curta ou longa demais para nós, mas nada do que fazemos tem sentido senão tocarmos o coração das pessoas”; ao debaterem sua essência e propostas do projeto, decide-se pelo nome Tocando Corações.
A ideia desse projeto, que se tornou interdisciplinar (transitando por Sociologia, História e Filosofia) foi um auxílio mútuo diante da nova realidade vivida. Através da ludicidade, portanto, estudantes produziriam materiais em forma de imagens, vídeos (onde poderiam protagonizar, corporificando sua presença), histórias (podendo ser do próprio cotidiano periférico diante da pandemia), poesias, desenhos, músicas e o que mais surgisse da criatividade. O intuito posterior, seria fazer circular esses materiais, nos meios sociais/virtuais, como forma de propagação positiva para o público em geral, com a finalidade de que, por meio do conhecimento e da arte, existisse um fortalecimento mútuo de combate à COVID-19 e seus desdobramentos (políticos, econômicos e sociais). Interessante perceber os aprendizados obtidos nos debates e criações, além da vontade de compartilhar os materiais criados orgulhosamente pelos grupos.
Houve a personalização do Tocando Corações, com música e desenho oficiais criados em parceria com estudantes e ex-estudantes do CIEP. As temáticas, que muitas vezes eram demandas trazidas por estudantes, giravam em torno da necessidade de adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio; a dura realidade da falta de dinheiro confrontando a cruel decisão de sair ou não de casa com a ameaça de morrer de fome ou morrer contaminado pelo vírus. Além disso, ocorreram discussões sobre a temática Ambiental; o reconhecimento do local de residência de integrantes do projeto, com nomes advindos do tronco linguístico tupi-guarani como Sarapuí, Suruí, Saracuruna, Imbariê… Uma série intitulada como “Você me conhece?”, com estudantes performatizando personalidades negras e indígenas como Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Maria Firmina dos Reis, Tia Ciata, Cacique Raoni, Ailton Krenak etc. O machismo e as diversas violências de gênero foram debatidas em grupos de WhatsApp e alguns encontros síncronos na plataforma Google Meet para, posteriormente, roteirizar materiais a serem produzidos e publicados nas redes. Outubro Rosa, setembro Amarelo, histórias de super-heróis e heroínas frente a pandemia, poesias e músicas fizeram acontecer a gira do Tocando Corações por dois anos.
O alargamento de experiências sociais pode gerar frutos de resistências, reconstruções, (re)existências e fortalecimentos, baseados em potencialidades e saberes múltiplos. Além disso, estudantes têm a liberdade de expressarem-se sem as amarras de cristalizações e preconceitos em sua criatividade, linguagens, diálogos, contraposições; transpondo a barreira do medo, da insegurança, exclusão e indiferença, a fim de reafirmar os alicerces do respeito à diversidade e o direito de cada indivíduo no meio social. A mediação docente no Tocando Corações foi dada com o intuito de organizações, motivações, trocas, inserções na temática do projeto, vislumbrando caminhos emancipatórios (FREIRE, 1996); em uma orientação ética e plural. Nesse sentido, o fundamento é problematizar a realidade de estudantes, inspirando a percepção da Educação, em suas variadas vertentes, como tendo um papel importantíssimo no processo de emancipação e liberdade dos indivíduos, produzindo suas ações político-poéticas na sociedade. E nesse ato de responsabilidade que temos diante da Educação, foram (e são) bastante pertinentes as produções trazidas por suas próprias bagagens culturais, vivências, experiências e formas de praticar a vida com o objetivo dos fortalecimentos de laços de solidariedade e esperança nesses tempos difíceis, aliadas à consciência coletiva, responsabilidade social, as reflexões e ações críticas.
Mesmo diante de mortes sendo naturalizadas, ignorâncias exacerbadas, responsabilidade social esquecida, houve um senso comunitário no Tocando Corações, inclusive, o "nós por nós" para sobreviver diante do caos. Dentro de um espaço virtual também fizemos nossos elos solidários, de afetos, de esperanças, de (re)construções; nossas ideias, debates, pesquisas, gravações, cada palavra enunciada foi um grito de resistência diante de todas as violências assombrando os cotidianos. A Escola, com a impossibilidade do espaço físico, foi praticada na potência que vibrou ainda mais nesses estudantes como existências vivas para além de produção de diplomas vazios de sentido, gerando aniquilações de corpos como meras moedas de mercado.
Diante de inquietações, angústias e medos nesse contexto pandêmico, pensar na Educação por outras perspectivas e imaginar a possibilidade de criações, ações e materializações, também, poéticas com estudantes e ex-estudantes foi um respiro suave, revigorante e incentivador. Integrantes do projeto deram asas, vida, potência ao nosso Tocando Corações, fizeram-no acontecer. Quanta alegria!
Quando levamos esperança para estudantes, estamos traçando o rosário de Pai Joaquim na escola, mostrando que existem diferentes caminhos, fundamentalmente, a possibilidade de histórias outras a serem riscadas como pemba, ou seja, com a essência do indivíduo, abrindo um canal de possibilidade com outros mundos, outras narrativas. Quando fazemos as ações de ensinagens mais complexas, não nos encerrando nos currais curriculares, tendo a sensibilidade do cotidiano e o reconhecimento das bagagens culturais desses corpos; corpos estes muitas vezes domesticados a uma única lógica, doutrinados ao mercado explorador que os resumem em moedas alimentares de um capitalismo cruel. Ao usar Banda e Quimbanda, portanto, exploramos ainda mais a simbologia da cruz que, na cosmopercepção bacongo, simboliza a vida como sendo um ciclo contínuo. Nessa perspectiva, mostramos que esses e essas estudantes não estão fadados/as a determinados fins negativos nas periferias que são impostos e incutidos em si, pois a cruz representa as possibilidades, a encruzilhada como grande potência de encantamento do mundo, onde existe a imprevisibilidade, o inacabamento, a pluralidade de caminhos em contraposição ao totalitarismo, acúmulo e linearidade. Dessa forma, Pai Joaquim lança a palavra de que a partir de um entendimento do contexto em que se está inserido, onde o ser-conta potencializa-se com e nos agrupamentos de contas do rosário social, a escola pode ser um desses agrupamentos onde é possível aquilombar, no sentido de subverter o que está imposto. O terreiro e a escola, quando voltados a uma Educação plural e democrática, podem ser quilombos (e aldeias) na prática de espaços de (re)existências na guerra colonial, reconhecendo e reintegrando identidades, se percebendo comunidades integradas por seres diversos.
Mais um campo de batalha está aberto, o Novo Ensino Médio (NEM). E nessa disputa, no embate com uma Educação que serve a estratificação social, congelando lugares sociais, mantendo privilégios, pensamos aqui a Educação como axé, no sentido de transformações radicais implicadas com a vida, lançando para longe o desencante. É a transgressão (hooks, 2013) ao modo totalizante e excludente de mundo. Ao NEM, que reduz custos ao mesmo tempo que desperdiça dinheiro público, que desvaloriza ainda mais professores e professoras, que abarrota salas de aula com promessas vazias, lançamos um “vence-demanda” para quebrar a maldição!
PARA CONTINUAR A CONVERSA
Nesses caminhos, pisando devagar, é interessante refletir sensações outras das filosofias macumbeiras que percebem na encruzilhada possibilidades múltiplas de práticas de vida. São os saberes falangeiros que bradam no terreiro-mundo! Salve as entidades docentes, desencarnadas, encarnadas, encantadas num mundo possível fundamentado na pluralidade, que frente a um projeto de Brasil extremamente violento, transgridem o precário firmando ponto em um pedaço de cipó! O que é incutido como descarte, diante desse sentido utilitário da vida (KRENAK, 2020), os falangeiros transformam e disputam o cotidiano em um sentido de reencantamento, pois muitas vezes para se estar vivo, basta estar morto, como diz o filósofo Zé Pelintra atravessando o mundo, incorporando saberes no fazer do Terreiro. É a malandragem das ruas, as mandingas da encruza, a sabedoria das matas, os corpos que se reivindicam enquanto existências vivas que vão, em confluência, versando caminhos diversos nessa travessia, credibilizando formas outras de viver. É o currículo, que opera de modo ostensivo nas desigualdades, sendo forjado nas frestas mandingueiras de afirmação da vida.
Diante disto, a partir de uma política de encantamento como prática cotidiana e comunitária de afirmação da vida, é necessário desaprender toda essa imposição colonial, descolonizar o próprio corpo no sentido integral do ser, caiando de amarelo esse nosso sobrado, reencantando a trajetória e, assim, produzindo esperança nos saberes/fazeres cotidianos. O ato de esperançar bastante difundido por Paulo Freire, pode ser pensando desde a ancestralidade onde Pai Joaquim da Calunga traça o rosário no dia a dia de seus consulentes e na comunidade como um todo, em um chamado para fortalecer o fundamento da vida no seu ideal de quebra de cativeiros, ou seja, em um sentido libertário, na resiliência não como subserviência, mas fundamentado na sabedoria ancestral que vai dar o tom do ponto cantado de liberdade imantado pela experiência comunitária.
REFERÊNCIAS
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