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LITERATURA MARGINALPERIFÉRICA E FORMAÇÃO: o entrelaçamento da literatura das ruas com outros espaços de saberes
PERIPHERAL MARGINAL LITERATURE AND FORMATION: the interweaving of street literature with other spaces of knowledge
LITERATURA MARGINAL PERIFÉRICA Y FORMACIÓN : el entretejiendo de la literatura de calle con otros espacios de sabe
Revista Espaço do Currículo
Universidade Federal da Paraíba, Brasil
ISSN: 1983-1579
Periodicidade: Cuatrimestral
vol. 16, núm. 2, 2023
Recepção: 24 Agosto 2023
Aprovação: 09 Dezembro 2023
Resumo: Esta pesquisa tem o objetivo de investigar a potência formativa da produção literária marginal-periférica a partir das narrativas de escritores periféricos. Assumindo que esta pesquisa não poderia estar dissociada das trajetórias de vida, a narrativa (auto)biográfica perpassa toda a pesquisa como instrumento importante no processo de investigação e (auto)formação (SOUZA, 2007). A partir do entendimento de que a literatura marginal-periférica é sempre singular e local, mas ao mesmo tempo global e social, a abordagem metodológica partirá também da pesquisa narrativa (CLANDININ e CONNELLY, 2011) e da metodologia de conversas (SAMPAIO; RIBEIRO; SOUZA, 2018). Com a produção de Soares (2009) e de Ferréz (2005), das vivências de escritoras periféricas, buscamos compreender como a literatura marginal-periférica se inscreve em diferentes espaços de formação, dentre eles, as ruas e as escolas. Desse modo, a pesquisa visa contribuir para a ampliação das discussões sobre os aspectos formativos da literatura marginal-periférica no campo da educação.
Palavras-chave: Literatura marginal-periférica, Narrativas, Formação.
Abstract: This research aims to investigate the formative power of marginal peripheral literary production based on the narratives of peripheral writers. Assuming that this research could not be dissociated from my life trajectory, the (auto)biographical narrative permeates the entire research as an important instrument in the investigation and (self)education process (SOUZA, 2007). From the understanding that marginal peripheral literature is always singular and local, but at the same time global and social, the methodological approach will also start from narrative research (CLANDININ and CONNELLY, 2011) and from the methodology of conversations (SAMPAIO; RIBEIRO; SOUZA, 2018). With the production of Soares (2009) and Ferréz (2005), my experiences as a peripheral writer and the narratives of other peripheral writers, I seek to understand how marginal peripheral literature is inscribed in different spaces of formation, among them, the streets and the schools. In this way,the research aims to contribute to the expansion of discussions on the formative aspects of marginal peripheral literature in the field of education.
Keywords: Marginal peripheral literature, Narratives, Formation.
Resumen: Esta investigación tiene como objetivo investigar el poder formativo de la producción literaria marginal periférica a partir de las narrativas de los escritores periféricos. Suponiendo que esta investigación no podía disociarse de mi trayectoria de vida, la narración (auto)biográfica permea toda la investigación como un instrumento importante en el proceso de investigación y (auto)educación (SOUZA, 2007). Del entendimiento de que la literatura marginal periférica es siempre singular y local, pero al mismo tiempo global y social, el abordaje metodológico partirá también de la investigación narrativa (CLANDININ y CONNELLY, 2011) y de la metodología de las conversaciones (SAMPAIO; RIBEIRO; SOZA, 2018). Con la producción de Soares (2009) y Ferréz (2005), mis experiencias como escritora periférica y las narrativas de otros escritores periféricos, busco comprender cómo la literatura marginal periférica se inscribe en diferentes espacios de formación, entre ellos, las calles. y las escuelas. De esta manera, la investigación pretende contribuir a la ampliación de las discusiones sobre los aspectos formativos de la literatura marginal periférica en el campo de la educación.
Palabras clave: Literatura marginal-periférica, Narrativas, Formación.
1 ANTES DA PESQUISA, JÁ ERA PESQUISA
O presente texto é um recorte de uma pesquisa que teve como tema a literatura marginal-periférica, com ênfase na relação entre esta literatura difundida nas ruas e nas escolas e suas implicações no que diz respeito ao processo formativo das pessoas. Ao ver a literatura marginal-periférica como uma ferramenta pedagógica importante no processo de formação de indivíduos, pesquisamos como esse tipo de saber é abordado em ambientes escolares e fora dele.
Compreendemos como literatura marginal-periférica a literatura produzida por pessoas que vivem nas periferias e margens da sociedade, não exclusivamente no que se refere ao espaço físico ou geográfico, mas também no que se refere às periferias e margens sociais. Concordando com a visão de um dos grandes autores da literatura marginal-periférica no Brasil, Ferréz define:
A Literatura Marginal [...] é uma literatura feita por minorias, sejam elas raciais ou socioeconômicas. Literatura feita à margem dos núcleos centrais do saber e da grande cultura nacional, ou seja, os de grande poder aquisitivo. (FERRÉZ, 2005, p. 12)
Na dissertação de mestrado de Mei Hua Soares (2009), intitulada “A literatura marginal-periférica na escola”, a autora aponta que a literatura marginal-periférica potencializa a leitura no ambiente escolar e se torna uma possível porta de entrada para o “mundo literário”. A partir dessa concepção e de narrativas de autores periféricos pretendo investigar como acontece o diálogo entre os espaços de produção da literatura marginal-periférica e as escolas, se as escolas fazem parte desse espaço e a potência dessa literatura em seu aspecto formativo. A escola convencionalmente é a instituição à qual se atribui socialmente a função da formação, e seus currículos são compreendidos por muitos enquanto reguladores sobre o que é um saber validado ou não. Porém, outros espaços também exercem ação formativa, ainda que não tenham essa função socialmente estabelecida. Nesse sentido, buscamos compreender como os usos (CERTEAU, 1998) da literatura marginal-periférica são produzidos nas escolas a partir das narrativas dos escritores. Além disso, nos interessamos também pelos usos produzidos nas ruas, nos corres, nos saraus, dentre outros, que possam vir a ser elencados nessas conversas e se apresentarem enquanto possibilidades de desdobramentos da potência narrativa dessa literatura.
O interesse por esse tema nasceu da experiência de uma das autoras deste artigo, enquanto também escritora da literatura marginal-periférica, e da história que a conduziu até essa identidade. Embora seja um artigo em coautoria, avaliamos que seria epistemologicamente mais condizente usarmos a primeira pessoa do singular quando se tratar de seções autobiográficas do texto. Em 2015, experienciei meu primeiro contato direto com a poesia marginal-periférica falada através de um vídeo no site YouTube no qual o poeta Akins Kintê recitava a poesia “Duro não é o cabelo”[1]. O que mais me fascinou nesse vídeo foi que ele estava “falando a minha língua” e rimando. Rimando de uma forma que denunciava o racismo e ao mesmo tempo valorizava os traços do povo preto. Era alguém rimando e “falando de mim”. Era representatividade. Parecia a voz que eu não tive. Não era nada parecido com as poesias tradicionais/canônicas já antes conhecidas que falavam de outra realidade que não a minha. Eu sempre gostei de poesias, mas essa era diferente. A partir dos versos de Kinté, eu comecei a perceber que eu também poderia ser uma escritora. Depois desse episódio comecei a pesquisar de modo incansável mais informações sobre esse autor e, consequentemente, a descobrir mais informações sobre literatura marginal-periférica. Continuei acompanhando pela internet, saraus e slams que aconteciam em São Paulo, pois nessa época era lá que se concentrava a maioria de eventos desse tipo. Importante pontuar que slams são campeonatos de poesia falada onde os participantes devem recitar poesias autorais de até três minutos de duração sem o auxílio de nenhum objeto cênico ou acompanhamento musical. Um júri popular é escolhido aleatoriamente no momento do evento e os jurados dão notas às performances dos poetas. Assim, virtualmente, fui conhecendo poetas periféricos como Sérgio Vaz, Andrio Cândido, Lucas Afonso, Mariana Félix, Emerson Alcalde, Roberta Estrela D’Alva, Luz Ribeiro, Mel Duarte e Kimani.
Em fevereiro de 2017, viajei para São Paulo para conhecer o Sarau do Kintal, organizado por Akins Kintê - sim, aquele autor do vídeo que foi um divisor de águas em minha vida. Foi um fim de semana incrível, pois, além de ir ao Sarau do Kintal, que acontece no quintal da família de Akins e recebe muitas pessoas, eu também pude ir ao Slam Sofalá. Eu já escrevia poesias de forma mais assídua desde 2015/2016, mas foi só em junho de 2017 que tomei coragem para recitar em um slam. O Slam das Minas - RJ foi criado em maio de 2017 e, no mês seguinte, eu estava recitando um poema autoral na sua segunda edição, que aconteceu na Casa Porto, no Largo de São Francisco da Prainha - região da chamada Pequena África Carioca. Em setembro de 2017 retornei a São Paulo para assistir ao “I Torneio dos Slams - Estéticas das Periferias'', que era um Slam nacional de duplas. Ao chegar ao evento, pude conhecer o escritor, poeta, slammer[2] e slammaster[3] Emerson Alcalde e falei sobre o principal motivo da minha ida à São Paulo - o Torneio de Slams. Ele ficou surpreso com esse fato, me convidou para ser jurada do evento e, claro, eu aceitei o convite! Em abril de 2018, fui até São Paulo mais uma vez, mas nessa oportunidade fiz um curso intitulado “Pedagogia dos Saraus”, ministrado por Rodrigo Ciríaco. Ciríaco é educador, escritor e coordenador de diversas atividades de incentivo à leitura, produção escrita e difusão literária, principalmente dentro das escolas da rede pública de São Paulo. O curso que participei aconteceu em uma tarde na Ocupação Ermelino Matarazzo - movimento de ocupação de atividades culturais em um prédio público desativado há décadas na Zona Leste de São Paulo - e abordou temas como a valorização da literatura marginal-periférica e como os saraus promovidos por Rodrigo nas escolas contribuem para o interesse de crianças, jovens e adolescentes pelo mundo literário.
A partir do meu envolvimento com os Movimentos de Slams, tanto no Rio de Janeiro, quanto em São Paulo, fui cada vez mais entendendo que eu também poderia ser uma escritora, pois me reconhecia nas falas dos poetas periféricos que recitavam nesses espaços. Percebi que havia uma grande vontade de escrita reprimida dentro de mim que foi libertada através do contato com os slams e saraus. Quando ingressei em 2016 na Universidade Federal do Rio de Janeiro para cursar Pedagogia, percebi desde o início do curso - e no decorrer dele - que a literatura marginal-periférica não era abordada de forma profunda nem no currículo do curso, nem nas experiências relatadas por professores trazendo os aspectos das escolas da educação básica. Ao pensar aulas, abordagens e currículo da educação básica, os professores não envolviam os saberes da literatura marginal-periférica. Por isso, em meus trabalhos nas disciplinas, sempre que possível, eu tentava relacionar os conteúdos propostos com essa literatura desenhando trocas potentes de saberes.
Compreendendo que os saberes tecidos na literatura marginal-periférica pelos seus escritores são tão potentes quanto os produzidos nas pesquisas acadêmicas, escolhi como praticantes (CERTEAU, 1998) neste trabalho monográfico, a nós, acadêmicos das ruas, dos corres, das rimas, dos saraus, dos slams que, através de nossas narrativas, contribuímos para o maior entendimento do cenário existente nesse contexto.
O objetivo da pesquisa de onde se origina este artigo é investigar a potência formativa da produção literária marginal-periférica a partir das narrativas de escritores periféricos. Para atingir tal objetivo pretendemos também analisar a relação entre a formação tecida nas ruas e nas escolas no contexto da literatura marginal-periférica, identificar quais pontos foram primordiais para os autores periféricos se tornarem e se perceberem autores e identificar como a literatura marginal-periférica influenciou na formação dos praticantes da pesquisa.
A literatura marginal-periférica, além de mostrar outras possibilidades de literatura diferentes dos clássicos canônicos literários, tem caráter inclusivo por mostrar a importância de obras e de autores que contam a realidade das periferias e muitas vezes são deixados de fora do hall literário. Isso fica visível na afirmação de Ferréz (2005) ao pontuar a importância de “olhar para dentro” da periferia, e também “de dentro” da periferia: “quem inventou o barato não separou entre literatura boa/feita com caneta de ouro e literatura ruim/escrita com carvão, a regra é só uma, mostrar as caras. Não somos o retrato, pelo contrário, mudamos o foco e tiramos nós mesmos a nossa foto” (FERRÉZ, 2005, p. 9).
A inclusão das histórias e obras das pessoas das periferias nas escolas se apresenta como uma ferramenta potente, inclusive para o desenvolvimento da autoestima dos alunos que entram em contato com esse estilo. Além de perceber a validade da pluralidade literária, esses alunos passam a conhecer melhor essa literatura que, socialmente, é desvalorizada e muitas vezes produzida como inexistente.
Segundo Soares (2009), há relatos de diversas situações de experiências positivas em relação ao uso de conteúdos literários marginal-periféricos em sala de aula. Em especial, a autora destaca a importância de despertar a atenção e o interesse dos alunos pelos textos trabalhados na escola. Salienta que muitos estudantes passam a ter o desejo de ler o livro de onde os textos foram retirados, o que não acontecia em suas experiências como professora anteriormente com os conteúdos canônicos, tal como é possível constatar no trecho:
O interesse – tão precioso – dos alunos durante a leitura de textos de uma modalidade específica, a literatura marginal-periférica, é o mote principal deste estudo. Ao investir, inicialmente com certo receio, em leituras de trechos de obras consideradas “marginais” ou “periféricas” pude notar que os alunos, especialmente os considerados menos interessados por leitura (e também por outros conteúdos curriculares), demonstraram atenção e curiosidade por um tipo de texto que, em princípio, não é direcionado para o leitor escolar. (SOARES, 2009, p.19)
Através desse relato, percebemos que a literatura marginal-periférica pode potencializar a leitura no ambiente escolar e se tornar uma possível porta de entrada para o “mundo literário” - antes representado por personagens que não mostravam certas realidades enfrentadas pelas periferias ou talvez até mostrasse, mas de outra perspectiva: através do “olhar de fora”. No momento em que a literatura marginal-periférica propõe colocar em “primeira pessoa” os atores sociais que antes não tinham visibilidade, cumpre o papel de representatividade e de valorização dos diversos tipos de culturas e linguagens. Tanto no conteúdo, quanto na forma esse gênero literário mostra que, independentemente da sua origem ou condição social, é possível ser autor e leitor da sua realidade.
A ideia de valorizar os conhecimentos que os alunos já experienciaram também está presente na literatura marginal-periférica, pois mostra que não existe apenas um tipo de literatura “correta” – como geralmente é apontada a literatura canônica – mas sim, valoriza a multiplicidade e importância da diversidade literária. Muitas obras literárias marginais-periféricas ainda são apontadas como uma “não-literatura” pelo fato de não se enquadrarem na norma culta padrão da Língua Portuguesa. É importante destacar que tal fato é reflexo do entrave entre a camada de poder do cânone literário sobre qualquer outro estilo de literatura que não se enquadra em seus moldes.
A literatura marginal-periférica tem como uma de suas características abordar temas relativos às vivências dos autores periféricos. Esses temas por raras vezes são abordados no cânone literário e, muitas vezes, quando o são, têm a perspectiva de quem está de fora da periferia. Pelo viés do conceito de autoria no qual apostamos, é possível compreender que os autores da literatura marginal-periférica, ao exporem questões que surgem em suas experiências sociais na luta contra opressões, estão também construindo conhecimento coletivo.
Seja de maneira oral ou escrita, a literatura marginal-periférica reserva lugar especial às vivências de seus autores. Evaristo afirma que “escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo” (EVARISTO, 2007). Dessa forma, escrever se torna um “nós compartilhado” e assim, esses autores se inscrevem e se leem nessas produções.
Reconhecendo que “a consciência da posição de onde se fala e a clareza do que se está falando constituem condições fundamentais para a escolha e o desenvolvimento de uma pesquisa e de seus caminhos” (MARQUES, 2018, p.19), e relacionando essa assertiva com as vivências de nossa autora como escritora periférica, entendemos que a pesquisa narrativa, a metodologia de conversas e a narrativa (auto)biográfica são as melhores opções para prover subsídios para o desenvolvimento da pesquisa acerca do tema proposto. Através da arte de conversar (CERTEAU, 2007 apud RIBEIRO; SAMPAIO; SOUZA, 2018, p.24), pretendemos tecer redes de relações capazes de desenvolver trocas horizontais de saberes entre nós e os outros sujeitos da pesquisa, também autores periféricos. Assim, buscaremos compreender como a literatura marginal-periférica vem contribuindo para a sua trajetória de formação e como tais escritores veem a potência formativa dessa literatura. Concordando com a ideia de que
é preciso, pois, que eu incorpore a ideia que ao narrar uma história, eu faço e sou um narrador praticante ao traçar/trançar as redes dos múltiplos relatos que chegaram/chegam até mim, neles inserindo, sempre, o fio do meu modo de contar. Exerço, assim, a arte de contar histórias, tão importante para quem vive o cotidiano do aprenderensinar. Busco acrescentar ao grande prazer de contar histórias, o também prazeroso ato da pertinência do que é científico. (ALVES, 2008, p.33)
Entendemos que é importante valorizar as narrativas desses praticantes para compreender suas táticas cotidianas. Tal abordagem metodológica será melhor explicitada no capítulo dedicado a isso.
Para conhecer mais sobre a trajetória de vida e experiências dos escritores periféricos que participaram da pesquisa em questão, em um primeiro momento foi proposta uma roda de conversa virtual através de uma ferramenta tecnológica em que é possível fazer chamada de vídeo de forma síncrona entre os participantes. A ideia nessa etapa foi ter contato com suas narrativas, suas relações com a literatura marginal-periférica e saber como essa literatura faz parte de sua formação como indivíduo trazendo também para a conversa as minhas experiências como escritora periférica. Durante a monografia, a pesquisa foi atravessada pelas produções dos escritores da literatura marginal-periférica em diálogo com a produção acadêmica neste campo e conceitos que serão melhor abordados ao longo de todo o texto.
No capítulo 2 apresentarei caminhos metodológicos que fazem com que esta pesquisa seja atravessada pelas vozes de autoras e autores da literatura marginal-periférica, não utilizando essas vozes enquanto um objeto a ser estudado, mas como uma escrita compartilhada tecida a muitas mãos, em que os/as praticantes também têm autoria nesta produção. Para tal, partimos dos conceitos de escrevivência(EVARISTO, 2017), de pesquisa narrativa (CLANDININ e CONNELLY, 2011), narrativa (auto)biográfica (SOUZA, 2007) e metodologia de conversas (RIBEIRO; SAMPAIO; SOUZA, 2018) para estruturar a pesquisa.
No capítulo 3 nos propomos a conversar com autores que trazem interseções com o tema da pesquisa, como Ferréz e Sérgio Vaz com sua vivência na literatura marginal-periférica, Cuti com a literatura negro-brasileira, Mei Hua Soares trazendo sua pesquisa sobre a relação entre a literatura marginal-periférica e as escolas e Boaventura de Sousa Santos com o conceito de ecologia de saberes.
No quarto capítulo a conversa será com os escritores periféricos. Através de uma roda de conversa teceremos narrativas acerca da importância da literatura marginal-periférica em nossas vidas, como foi o nosso primeiro contato com a literatura marginal-periférica e como nós vemos a relação dessa literatura e as escolas. Na íntegra da pesquisa conversamos com três autores: Akins Kintê, William Melo e Josi de Paula. Akins é poeta, arte-educador, cantor, escritor, roteirista e diretor. William é poeta, rapper, professor de Ciências/Biologia e doutorando em Educação pela UFRJ. Josi é poeta, produtora e organizadora do Slam Negritude. Aqui neste artigo destaco a conversa com Akins Kinté.
Esperamos com isso proporcionar novas perspectivas sobre a potência formativa da literatura marginal-periférica e como ela se relaciona com os ambientes de saberes, sejam eles escolares ou não.
2 COSTURANDO NÓS
Quando escrevo, quando invento, quando crio a minha ficção, não me desvencilho de um “corpo-mulher-negra em vivência” e que por ser esse“o meu corpo, e não outro”, vivi e vivo experiências que um corpo não negro, não mulher, jamais experimenta. (EVARISTO, 2009, p.18).
Conceição Evaristo (2017) teceu o conceito de escrevivência enquanto fazia um jogo entre as palavras “escrever”, “viver” e “se ver”. Durante uma entrevista[4], ela comenta que algumas pessoas chegam a comparar esse conceito com uma escrita narcísica, mas ela propõe uma outra perspectiva. Evaristo (2017) relaciona a escrevivência, não ao mito de Narciso, pois esse não caberia a nós negros, não suportaria nossas experiências, mas sim a mitos afro-brasileiros. Diante desse olhar, não é mais o espelho de Narciso - no qual ele acaba se perdendo em sua beleza - que está em cena, mas sim os espelhos de Oxum e Yemanjá - o primeiro capaz de revelar a beleza negra e se auto reconhecer como belo, e o segundo que acolhe a comunidade. Evaristo ainda conclui reforçando que a escrevivência não é só sobre a história de um sujeito, mas também sobre uma história de coletividade.
Voltando à primeira pessoa, sinto que não poderia dar continuidade a essa pesquisa sem que o conceito de escrevivência estivesse permeando toda ela. Minha escrita não pode ser separada das minhas vivências. Se eu escrevo dessa forma, se eu trago os conceitos que trago e se eu construo essa pesquisa juntamente com outras pessoas que escolhi para estar compartilhando saberes, é porque as minhas vivências me trouxeram até aqui.
Isso não impede que outras pessoas também, de outras realidades, de outros grupos sociais e de outros campos para além da literatura experimentem a escrevivência. Mas ele é muito fundamentado nessa autoria de mulheres negras, que já são donas da escrita, borrando essa imagem do passado, das africanas que tinham de contar a história para ninar os da casa-grande. (EVARISTO,2020) [5]
Nesse sentido, me identifiquei mais ainda com o conceito abordado, pois ao me reconhecer como mulher negra escritora, escrevivo essa pesquisa como nenhuma outra pessoa poderia fazer no meu lugar.
Ainda falando sobre o meu lugar de escrita e o lugar dessa pesquisa, trago as contribuições de Clandinin e Connelly (2011) no que diz respeito à pesquisa narrativa. Os autores citam “um espaço tridimensional para a investigação narrativa, com a temporalidade ao longo da primeira dimensão, o pessoal e o social ao longo da segunda dimensão e o lugar ao longo da terceira” (CLANDININ e CONNELLY, 2011, p.85), ou seja, a investigação narrativa considera o aspecto temporal, pessoal, social e a especificidade do lugar em que se dá.
Como falado anteriormente, a presente pesquisa só é possível a partir das vivências que me trouxeram até aqui e um grande exemplo disso é como cheguei até as pessoas com quem conversei na construção desse trabalho. Seja através da internet ou pessoalmente, cheguei a todos a partir da minha paixão pela poesia marginal-periférica. Cada um tem sua trajetória e quando conversei com eles me vi fazendo parte de algo maior que nós. Clandinin e Connelly (2011) também falam disso ao discorrer sobre a ideia de entremeio.
Enquanto trabalhamos no espaço tridimensional da pesquisa narrativa, aprendemos a olhar para nós mesmos como sempre no entremeio - localizado em algum lugar ao longo das dimensões do tempo, do espaço, do pessoal e do social. Mas nos encontramos no entremeio também em outro sentido, isto é, encontramo-nos no meio de um conjunto de histórias - as nossas e as de outras pessoas. (CLANDININ, CONNELLY, 2011, p.99)
Costurando o entremeio ao conceito de escrevivência (EVARISTO, 2017), consideramos a ideia de coletividade e do “fazer juntos” essencial para o desenvolvimento da pesquisa narrativa.
2.1 Nós que ninguém desata
A busca por procedimentos alternativos de pesquisa, entre eles a conversa, só faz sentido se estivermos propensos a questionar e, sempre que necessário, abandonar os tradicionais modelos de análise da “realidade”, na maioria das vezes traduzidos em categorias formatadas-agendadas em nossos projetos. (RIBEIRO, 2018, p.51)
Como falar de literatura marginal-periférica se não pelo viés de uma abordagem metodológica condizente com a mesma? Como falar das margens e periferias se não através da subversão? Como falar de coletividade e do “fazer juntos” se estivéssemos olhando/pesquisando de fora? Seria possível falar das margens através de uma metodologia tradicional e central? Sim, seria. Mas nós escolhemos - como indica a epígrafe acima - abandonar os modelos tradicionais. Se nosso tema e vivências vêm da periferia e das margens, que toda a pesquisa seja construída pelos caminhos que potencializam, respeitam e legitimam essas vozes.
Partindo da ideia de que “o conversar pressupõe a circulação da palavra, numa perspectiva de desestabilizar relações de poder verticalizadas e, portanto, colonialista” (RIBEIRO, 2018, p.34), compreendemos que esse tipo de abordagem metodológica é a que possibilita a construção dessa pesquisa em plena sintonia com o tema. Assim como a literatura marginal-periférica surge em meio às urgências das vozes “não ouvidas” pelo cânone literário, a metodologia de conversa surge em meio às urgências e necessidades de legitimar as vozes, gestos, pausas e silêncios muitas vezes não considerados como parte das pesquisas.
A conversa é, talvez, de alguma maneira e em alguma medida, a arte de se fazer presente, de dar tempo, isto é, de se colocar disponível a ouvir, a escutar, a pensar e partilhar com o outro o que nos habita, fazendo dessa ação não só uma possibilidade de investigação, mas, antes, de transformar-se no próprio ato de investigar. (RIBEIRO, 2018, p.36)
Percebemos que, através da conversa como metodologia, seria possível acessar momentos e narrativas que talvez outra metodologia não permitisse. As conversas com os autores periféricos que aconteceram no decorrer da pesquisa ressaltaram isso.
Akins Kintê foi minha primeira inspiração no universo da poesia falada e da literatura marginal-periférica. Foi através do vídeo postado no Youtube em que ele recita Duro não é o cabelo no I Festival de Poesia da Cidade de São Paulo, que minha vida teve uma grande reviravolta. Poder vê-lo recitando uma poesia que denuncia o racismo ao mesmo tempo em que exalta a beleza negra, me tocou profundamente. E mais que isso, a forma como ele falava permitiu que eu me identificasse. Não era alguém falando uma poesia canônica que é tão distante da minha realidade e linguagem. Era alguém que parecia que falava “de mim e comigo”. Foi uma emoção parecida com a qual tive quando descobri o rap. O conteúdo e a forma fizeram com que eu me identificasse. Só vendo o vídeo do Akins, eu descobri que a poesia era algo possível para mim. Eu escrevia algumas poesias desde os meus oito anos de idade, mas sempre achei que as minhas escritas não se encaixavam no que eu conhecia sobre poesia, pois até então não sabia que poesia também era para pessoas que escreviam sobre a favela de dentro da favela. Nunca tinha visto alguém escrever uma poesia com o jeito de falar que eu falo no dia a dia. Foi então que surgiu na minha mente a possibilidade - mesmo que distante - de que eu poderia, sim, ser uma poeta também.
A escolha dessas pessoas para as conversas se deu pelo entendimento de suas atividades desenvolvidas no entrelaçamento da literatura marginal-periférica com a educação. Pelo fato das conversas acontecerem durante a pandemia do covid-19, elas ocorreram de forma virtual através de plataforma de videochamada. Em média, as conversas duraram trinta minutos.
Propondo um movimento academicamente diferente, partimos das conversas para a busca mais aprofundada das teorias. Seguindo o que Alves (2008) nomeia de movimento de virar de ponta a cabeça,
com o aprendido, sei que uma “boa” pesquisa precisa ter uma sólida teoria de apoio que é entendida como a verdade de partida para que possa “ construir” uma outra verdade “em nível superior”. Trabalhar com o cotidiano e se preocupar como aí se tecem em redes os conhecimentos, significa, ao contrário, escolher entre as várias teorias à disposição e muitas vezes usar várias, bem como entendê-las não como apoio e verdade mas como limites, pois permitem ir só até um ponto, que não foi atingido, até aqui pelo menos, afirmando a criatividade do cotidiano. (ALVES, 2008, p.24)
Compreendemos que é justamente diante dessa multiplicidade de teorias que as entrelaçamos com os saberes tecidos nas conversas. As conversas com os autores periféricos dessa pesquisa aconteceram antes do aprofundamento na parte teórica e dali saltaram os conceitos teóricos que seriam escolhidos no decorrer da pesquisa. Um exemplo disso aconteceu na primeira conversa que tive com Akins Kintê em que ele citou Cuti como sua referência na literatura. Até então eu não tinha lido Cuti, mas a partir dali, me interessei em saber mais sobre esse autor e foi assim que trouxemos seus conceitos para essa pesquisa. Dessa forma, entendemos que a teoria vem para conversar com a prática e não para comprová-la. Assim como a literatura marginal-periférica vem para mostrar que não é subserviente a uma forma padrão e canônica, a metodologia de pesquisa também não necessita ser. Para um tema que subverte o padrão tradicional, uma metodologia que também assim o faça.
3 MINHA VOZ E MINHA ESCRITA SÃO A REVOLUÇÃO
A escrevivência serve também para as pessoas pensarem
(EVARISTO,2020)
Essa frase de Conceição Evaristo em uma entrevista[6] me fez retomar o conceito de Escrevivência. Se o conceito parte do jogo entre as palavras “escrever”, “viver” e “se ver”, ele também mostra que pode ser bem mais complexo do que parece por se tratar da mescla de três movimentos que requerem atenção sobre o ser humano - tanto de si, quanto do que está ao seu redor. Já que é uma ação e não um acontecimento passivo, também explicita a necessidade da pessoa que escrevive se posicionar diante do mundo. Ao dizer que:
A escrevivência quer justamente provocar essa fala, provocar essa escrita e provocar essa denúncia. E no campo da literatura é essa provocação que vai ser feita da maneira mais poética possível. Você brinca com as palavras para dar um soco no estômago ou no rosto de quem não gostaria de ver determinadas temáticas. (EVARISTO, 2020)
Conceição aborda como a escrevivência também pode ser ferramenta para pessoas olharem para si próprias e para as outras, estarem atentas ao que acontece ao seu redor e escreverem sobre isso. Não apenas escrever para as outras pessoas lerem, mas também para as outras pessoas se lerem. A literatura diante do viés da denúncia pode gerar uma provocação para a sociedade e assim implicar em reflexões que até então poderiam estar sendo invisibilizadas. Por isso, a frase “a escrevivência serve também para as pessoas pensarem” (EVARISTO, 2020) se faz tão importante no contexto dessa pesquisa.
Santos (2009) aponta que diante da ecologia de saberes não haveria sobreposição das epistemologias do Norte (ocidentais e hegemônicas) sobre as epistemologias do Sul (tudo que não é legitimado pelas epistemologias do Norte), pois a ecologia de saberes “tem como premissa a ideia da diversidade epistemológica do mundo, o reconhecimento da existência de uma pluralidade de formas de conhecimento além do conhecimento científico” (SANTOS, 2009, p.45). Sendo assim, a partir desse reconhecimento da validade das diversas formas de conhecimento, não haveria hierarquia de epistemologias.
Trazendo esses conceitos citados para o âmbito da literatura marginal-periférica, pode-se indicar que essa literatura passou por muitos anos - ou ainda passa - submetida à lógica da produção de não-existência e invisibilidade. O mundo literário canônico e a academia tentaram e ainda tentam suprimir o avanço e difusão da literatura marginal-periférica, muitas vezes deslegitimando sua potência e julgando como sendo inferior. Há ainda o “lugar do exótico”, no qual por algumas vezes a literatura marginal é até tolerada por pouco tempo, mas ainda assim é vista como inferior e logo submetida novamente ao apagamento.
O ponto de potência da literatura marginal-periférica pode ser também a causa dela ser tão invisibilizada: seu viés político. Assim como “quem pratica a sociologia das ausências proposta pelas epistemologias do Sul… para além de lidar com outros saberes, o faz no âmbito de uma luta social e política” (SANTOS, 2009, p.53), a literatura marginal-periférica, por já nascer dos grupos sociais oprimidos de alguma forma, também se faz no âmbito da luta social e política.
Sérgio Vaz, figura referência na literatura marginal-periférica, já postou[7] uma vez que quem mora em bairro nobre até pode fazer literatura periférica, mas não vai ficar bom. É justamente essa posição política e social que vai caracterizar esse tipo de literatura. Isso fica bastante evidenciado em outra fala[8] de Vaz:
A gente deu utilidade para as palavras, a gente não está falando só das estrelas, a gente está falando do racismo, da fome, da intolerância religiosa, do feminismo, do fascismo. Está falando de tantas outras coisas, que agora estão na boca do povo, mas que sempre esteve na boca do povo pobre, do povo negro (VAZ, 2021)
GOMES (2019) associa a justiça social à justiça cognitiva. Só seria possível alcançar a justiça social através da justiça cognitiva. A escolha da abordagem da ecologia de saberes (SANTOS, 2009) nessa pesquisa, é uma escolha política pensando a literatura marginal-periférica nas escolas e espaços de saberes como de suma importância para a promoção da justiça cognitiva e social. Ao excluir essa literatura da escola, está havendo também a exclusão dos sujeitos que se identificam com ela.
Essa luta social e política, a reivindicação de direitos e a denúncia das opressões partem das vozes situadas em um lugar específico da sociedade - e não é do lado privilegiado. As mãos que escrevem a literatura marginal-periférica, assim como seu próprio nome sugere, estão às margens e nas periferias da sociedade. Aqui reforço que essas margens e periferias vão além dos limites geográficos e dizem respeito às margens e periferias sociais também - tudo que é colocado para fora do centro, seja ele financeiro, de poder, de influência, de estrutura, de legitimação ou de reconhecimento. Sendo assim, essa literatura tem as marcas das vivências das pessoas que estão nessa posição na sociedade e, de forma intencional, escolhem escrever e falar sobre essas vivências.
3.1 Dessacralizando a literatura: Vozes da periferia
Mesmo com as regras impostas ou já naturalizadas na sociedade pela cultura dominante, a literatura marginal-periférica apresenta táticas (CERTEAU,1998) que subvertem a lógica social projetada pelas elites. São essas táticas que viabilizam que “os usuários ‘façam uma bricolagem’ com e na economia cultural dominante, usando inúmeras e infinitesimais metamorfoses da lei, segundo seus interesses próprios e suas próprias regras” (CERTEAU,1998, p.40). Um exemplo que pode ser explicitado sobre isso é a existência - e por que não resistência? - do Sarau Cooperifa e a maneira como ele acontece. Contrariando a lógica que se espera para o formato de um encontro literário, Sérgio Vaz iniciou o movimento de fazer um sarau em um bar na periferia de São Paulo. Como o autor costuma dizer, “a Cooperifa é quando a poesia desce do pedestal e beija os pés da comunidade.”[9] (VAZ, 2022). O bar sempre foi um local de encontro nas periferias do Brasil, onde as pessoas se encontram para falar da vida, seja para celebrar vitórias ou lamentar derrotas, e foi em um espaço como esse que, em 2001, Sérgio Vaz e Marco Pezão decidiram fundar o Sarau da Cooperifa. Inserir a literatura e a poesia nesse ambiente fez com que o bar se assemelhasse a um centro cultural. Virou mesmo um centro e ponto de referência de cultura onde toda terça-feira, de 20:30h às 22:30h, acontece o sarau. Além do sarau no bar do Zé Batidão, a Cooperifa promove outros movimentos, como por exemplo, a Mostra Cultural Cooperifa em que leva ações culturais a diversos espaços. Em outubro de 2019, a 12ª Mostra Cultural da Cooperifa levou literatura, teatro, circo, música, palestras e debates para espaços como Sescs e fábricas de cultura (espaços educativos) de São Paulo. Dentre os diversos eventos em que Sérgio Vaz esteve presente com sua literatura, eu tive a oportunidade de participar de um em especial: o Sarau Língua Afiada. Esse sarau acontece em uma parceria do Museu da Língua Portuguesa e Sérgio Vaz declama suas poesias normalmente no saguão central da Estação de trem da Luz, em São Paulo. Nessa oportunidade pude conversar rapidamente com o poeta antes de começar o evento e também recitei uma poesia autoral no sarau.
Escolas também são espaços onde a Cooperifa e Sérgio Vaz atuam intensamente. Através de saraus, debates e palestras se difunde a literatura periférica para horizontes cada vez mais vastos. Um episódio de quando Sérgio Vaz começou a ir a escolas convidado por um professor me chamou atenção. Ele conta:
No começo, quando eu fui na primeira escola há muitos anos atrás, eu fui a convite de um amigo professor para falar e eu não sabia falar. Ainda não sei, mas eu não sabia direito o que eu ia falar, como eu ia conversar. Mas eu lembro que um jovem perguntou: "Professor, como ele pode ser escritor, se todo escritor já morreu?" E aquilo bateu muito forte, imaginar que a visão que os jovens têm do escritor é que ele já morreu. E talvez ele não estivesse totalmente errado, porque grande parte já morreu apesar da sua importância, e talvez muitos eles não irão conhecer. Aí eu fiquei pensando: puxa, eu escrevo com a periferia, escrevo sobre isso, e será que eu vou ter que morrer para eles conhecerem o meu trabalho? E comecei a pedir para os meus amigos e amigas professoras para me convidarem, e não parei mais. (VAZ, 2021)[10]
Para o jovem citado na passagem, a única versão de escritor que existia em sua mente era representada pela imagem de pessoas tão distantes em termos de tempo e espaço, que ele só conhecia escritores que já haviam morrido. Não conhecia a possibilidade de um escritor viver num ambiente parecido com o que ele vivia e no mesmo tempo em que ele vivia.
Uma vez perguntado[11] sobre a literatura que vem das periferias”, Vaz afirmou que:
a nossa inspiração vem da rua, do povo brasileiro, dessas pessoas que se esmagam no trem, se esmagam no ônibus, em troca de um salário indigno. Acho que essa literatura representa isso, de uma forma direta, sem atravessadores. A gente queria contar um pouco a nossa história, porque de alguma forma a gente sempre ouviu ela sendo contada de uma forma caricata, exótica. E aí nós começamos a contar a nossa história. (VAZ, 2021)
O autor evidencia em sua fala que a literatura referida tem a característica do autor periférico colocar na sua escrita a sua vivência, quebrando o ciclo que se repetia há muito tempo de, na maioria das vezes, ter sua história contada através de “pessoas de fora”, afastadas da sua realidade. Muitas vezes essa história contada por “atravessadores” - como pontua o autor - é contada pelo viés do exotismo, justamente pela distância existente entre quem conta e quem vive o dia a dia. Ao falar em primeira pessoa, ao contar sobre o que se vive no cotidiano, o autor periférico possibilita que tantas outras pessoas que vivem em condições parecidas com as dele se identifiquem, se vejam cada vez mais representados no meio literário e até mesmo iniciem um processo de escrita a partir disso.
No trecho a seguir, Ferréz (2005) aponta a literatura dos autores do gueto como representante do grito do povo brasileiro.
estamos na área, e já somos vários, estamos lutando pelo espaço para que no futuro os autores do gueto sejam também lembrados e eternizados, mostramos as várias faces da caneta que se faz presente na favela, e pra representar o grito do verdadeiro povo brasileiro, nada mais que os autênticos (FERRÉZ, 2005, p.11)
Além disso, ao se referir às várias faces da caneta demonstra que não existe apenas uma narrativa da periferia, mas narrativas das periferias - sim, no plural. O fato da literatura marginal-periférica ir alcançando cada vez mais espaço, ir se espalhando pelas periferias do Brasil, faz com que, cada vez mais, a diversidade de vozes, sotaques, gírias, acentuações e costumes borbulhem e se misturem enriquecendo essa literatura que já é tão rica. Na maioria das vezes em que a periferia era retratada na literatura a partir do olhar de alguém que não vivia naquele espaço, ela geralmente era descrita como se fosse uma coisa só, como se todos que vivessem ali correspondessem ao caricato desenho do periférico exótico. As escritas que partem das pessoas que vivem o dia a dia da periferia garantem a multiplicidade de olhares, perspectivas, experiências e aprendizados que acontecem no cotidiano. Nessa troca de ideia e de perspectivas, nascem novos olhares, novas ideias e novas perspectivas criando um movimento contínuo de aprendizado entre si: a informação circula.
Vaz conta que o Sarau da Cooperifa, assim como tantos outros, tem papel importante na circulação de informações acerca do que acontece no país e como isso pode contribuir para uma tomada de decisão de agir em busca de melhoria para o que está ao seu redor.
Foi ali, nessa roda de poesia, nessa roda de conversa, que muita gente descobriu o que estava acontecendo no país. Muita gente voltou a estudar porque entendeu que ali, ouvindo a poesia, ela poderia mudar a sua realidade, e de alguma forma mudar o país através da sua atitude. (VAZ, 2021)
De certa forma, e agora voltamos à primeira pessoa do singular, isso também aconteceu comigo quando conheci e comecei a acompanhar mais de perto a literatura marginal-periférica. Através de slams e saraus que passei a frequentar, através das trocas de ideias que aconteciam nesses espaços, comecei a me atentar mais para o cenário político e social que estava à minha volta. Através do desenvolvimento do pensamento crítico e de passar a me reconhecer naquelas pessoas que estavam naqueles espaços, passei a perceber que eu também poderia ser escritora. Eu já escrevia algumas coisas há algum tempo, mas não me enxergava na possibilidade de ser escritora. Não tinha incentivo e nem vislumbrava compartilhar meus escritos. Quando conheci a literatura marginal-periférica, me identifiquei e passei a ver sentido em escrever, assim como percebi que o que eu já havia escrito fazia, sim, sentido. Nessa literatura pude me reconhecer e perceber que o que eu escrevia e a forma que eu escrevia fazia sentido. Acredito fortemente na afirmativa de Sérgio Vaz quando diz que “não é a poesia que vai mudar o país, mas, de alguma forma, essa poesia que a gente fez instigou muitas pessoas a chegarem até o livro, a chegarem até o conhecimento”[12] (VAZ, 2021). Essa afirmativa confirma o viés formativo dos espaços como saraus e slams, assim como confirma esses espaços como espaços de saberes. Esse viés formativo configura também um viés político, pois, como o poeta fala, dá utilidade para a palavra.
Então, a gente deu utilidade para as palavras, a gente não está falando só das estrelas, a gente está falando do racismo, da fome, da intolerância religiosa, do feminismo, do fascismo. Está falando de tantas outras coisas, que agora estão na boca do povo, mas que sempre esteve na boca do povo pobre, do povo negro. (VAZ, 2021)
Cuti também aborda o viés político da literatura ao afirmar que “a literatura é poder, poder de convencimento, de alimentar o imaginário, fonte inspiradora do pensamento e da ação” (CUTI, 2010, p.12). Sendo assim, pergunto: quem são as pessoas que detêm esse poder? Posso responder dizendo que há muito tempo grupos de pessoas brancas, financeiramente favorecidas, dominavam esse poder no Brasil, porém respondo também dizendo que há alguns anos isso vem se modificando. O mercado literário continua sendo dominado pelo grupo citado anteriormente, mas nas ruas, nos corres e nas praças, a literatura tem abraçado outros grupos que não fazem parte do cânone literário. Cuti, sobre o fato dos escritores negro-brasileiros que fizeram questão de escrever sobre sua negritude, aponta:
Eles são todos brasileiros e sabem da importância de se dizerem negro-brasileiros. E por que, se ninguém está perguntando? Não é nenhuma pergunta que eles respondem. Eles contradizem uma afirmação. Qual? De que "negro" é isso e aquilo de ruim, de negativo etc. Eles estão afirmando que não são o que os brancos, por meio da estereotipia, criaram para o próprio deleite e afirmação da branquitude. Esses poetas estão dizendo que são o que são e não isso e não aquilo que para eles foi inventado; estão dizendo que detêm o controle do próprio destino e propondo outro discurso. Essa afirmação é importante para o processo de tomada de consciência e para manter a disposição de seguir com entusiasmo. (CUTI, 2010, p.54)
3.2 “Mas isso pode aqui na escola?”
A percepção de que existia uma “considerável distância entre as teorias de ensino, as propostas e orientações curriculares e o cotidiano escolar” (SOARES,2009, pg.18) foi o que motivou Soares (2009) a experimentar outras alternativas de ensino diferentes das tradicionais, quando ingressou como professora de português na rede pública de ensino do estado de São Paulo. Em suas práticas diárias em sala de aula, começou a notar o interesse dos alunos por um certo tipo de literatura em que o ambiente onde a história se passava era mais próximo ao convívio dos estudantes - em sua maioria moradores da periferia na zona norte de São Paulo. É a partir dessas percepções que se inicia a pesquisa que resultou na sua dissertação de mestrado que tem o título de A literatura marginal-periférica na escola. Se por um lado a professora/pesquisadora constata uma distância entre as orientações curriculares e o cotidiano escolar ao ingressar na rede pública de ensino, por outro lado ela mesma aponta uma possível saída para esse impasse:
No Caderno do Professor de Língua Portuguesa e Literatura da área de Linguagem, Códigos e suas Tecnologias (2008), fornecido pelo Estado como material de base a ser seguido ao longo das aulas, aparece entre as cinco competências fundamentais a serem desenvolvidas pelos alunos do 3º ano do Ensino Médio durante o 2º bimestre a seguinte: “recorrer aos conhecimentos desenvolvidos na escola para a elaboração de propostas de intervenção solidária na realidade, respeitando os valores humanos e considerando a diversidade sócio-cultural”. Tal afirmativa como diretriz curricular poderia ser o indício de uma transformação linguística que abrangeria não só o estudo das variantes linguísticas, mas também a leitura de textos não-canônicos e produções textuais mais abertas e experimentais dentro da sala de aula. (SOARES, 2009, pg.45)
Diante da interpretação do material fornecido pelo Estado de São Paulo em que consta as competências que se espera que os alunos desenvolvam, em conjunto com as percepções sobre os interesses dos estudantes com quem teve contato, ela coloca como alternativa possível para sua prática em sala de aula a abordagem de textos não-canônicos.
Por mais que Soares (2009) não tenha como abordagem direta na sua pesquisa os estudos com os cotidianos, seu movimento de interpretação da orientação curricular citada anteriormente juntamente com a sua tomada de decisão por incluir em suas aulas textos não-canônicos, me fez pensar em como essa abordagem podem se relacionar com sua pesquisa. Alves (2008), sobre a pesquisa nos/dos/com os cotidianos das escolas, diz que “buscar entender, de maneira diferente do aprendido, as atividades dos cotidianos escolares ou dos cotidianos comuns, exige que esteja disposta a ver além daquilo que outros já viram” (ALVES, 2008, p.18). As orientações curriculares já estavam postas há muito tempo e outras pessoas já haviam tido outras interpretações, mas ela, a partir das percepções que teve junto aos seus alunos no dia a dia, “viu além daquilo que os outros viram”: viu a possibilidade de uma transformação na abordagem da literatura em sala de aula.
Em um relato de atividade que aconteceu na escola em que trabalha, a professora conta que a pergunta “mas isso pode aqui na escola?” permeou todo o processo. Era uma atividade em que os estudantes tinham que montar uma cena teatral e, por desejarem que o tema fosse algo próximo da realidade deles, pediram ajuda para ela. Decidiram escrever um texto em conjunto e o resultado final agradou. Pelo fato da cena conter atos considerados violentos (não reais, mas encenados) e uma linguagem majoritariamente coloquial, daí a indagação por parte dos estudantes se aquilo poderia ser apresentado na escola. Isso foi considerado útil, pois possibilitou o debate sobre algo que pode ser danoso na sociedade, pode se transformar em ponto de reflexão positiva através da arte.
Durante sua pesquisa, Soares (2009) constata que “a literatura marginal-periférica apresenta um papel relevante – independente do valor literário – no ensino de literatura e na produção textual escolar que é o da apropriação da escrita por parte dos grupos historicamente excluídos da cultura erudita” (SOARES, 2009, p.45). Além disso, a autora ressalta ainda que “esse jovem aluno de escola pública de periferia passa a perceber, a partir das leituras literárias experimentadas em sala de aula, uma representatividade social até então não vista nas demais obras canônicas” (p.49). Essas constatações vão ao encontro do que relata Sérgio Vaz sobre suas palestras e encontros nas escolas. O autor fala sobre a importância de estar atento ao que os estudantes demandam e desejam: “É muito importante a gente falar de literatura, falar de arte na base, falar com essas pessoas, com essas crianças. Entender como é que eles querem receber a literatura, como é que eles entendem de poesia, o que eles estão falando, como estão pensando” (VAZ, 2021).
Essa busca por tentar entender o que se passa na escola e com os indivíduos que ali estão é possível na medida em que se está atento ao que se passa ao seu redor. Na pesquisa nos/dos/com os cotidianos, Alves destaca a necessidade de
mergulhar inteiramente em uma determinada realidade buscando referências de sons, sendo capaz de engolir sentindo a variedade de gostos, caminhar tocando coisas e pessoas e me deixando tocar por ela, cheirando os odores que a realidade coloca a cada ponto do caminho diário. (ALVES, 2008, pg.19)
Uma iniciativa revolucionária na relação entre slams e escolas, surgiu com o Slam Interescolar de São Paulo. Revolucionária não só por levar o slam até as escolas, mas por organizar um campeonato de poesia entre diversas escolas. Em 2021, o Coletivo Slam da Guilhermina lançou o livro Das ruas para as escolas, das escolas para as ruas: Slam Interescolar em que conta como se deram os processos de organização das cinco edições do Slam Interescolar São Paulo e outros Slams Interescolares pelo Brasil. A primeira edição do campeonato aconteceu em 2015, após o Coletivo Slam da Guilhermina ser contemplado por um edital público em que, como contrapartida, criaria um torneio de slams entre escolas. O coletivo, além de ser pioneiro na cena dos slams por ser o primeiro slam de rua do Brasil, a partir daí se tornaria pioneiro em mais uma vertente da cena - agora relacionando os slams com as escolas. O primeiro passo dado foi a partir do deslocamento dos integrantes do coletivo até as escolas da região do bairro Vila Guilhermina, na zona leste de São Paulo, para realizar oficinas de poesias faladas, escrita criativa e apresentação de slams. Seis escolas receberam as oficinas e quatro delas participaram do Slam Interescolar de 2015. Na final desta primeira edição, oito estudantes participaram e todos eles receberam certificados, medalhas, livros e a campeã, Luara Maysa, recebeu um troféu e um tablet. Curioso pensar que quase toda a premiação foi custeada pelos integrantes do coletivo e o recurso advindo do edital público citado anteriormente foi todo destinado à compra do tablet dado à campeã. Diante desse cenário, percebe-se que ainda que houvesse o incentivo do governo através do edital de incentivo à cultura, a grande parte do trabalho feito para tirar a ideia do papel só foi possível pelo empenho e dedicação dos integrantes do coletivo em conjunto com professores e membros da gestão das escolas. Entre 2015 e 2019, o Slam Interescolar de São Paulo teve cinco edições, uma em cada ano. Com o passar dos anos, o Coletivo Slam da Guilhermina seguiu organizando o campeonato e, cada vez mais experiente, foi agregando parceiros no desenvolvimento das ações. Já em 2016, na segunda edição do campeonato, o número de inscritos surpreendeu os organizadores e, sem as parcerias com outros slammers e com o Instituto Singularidades que enviou sete alunas do curso de Letras para ajudar na organização, não seria possível dar conta desse evento que se tornou bem grande. A final do evento contou com aproximadamente 700 estudantes - entre eles os que iriam competir e os que iriam assistir - que levaram cartazes e faixas para representar suas respectivas escolas. Vale lembrar que apenas as edições de 2015 e 2019 tiveram incentivo através de edital público. A edição do ano de 2019 teve alguns destaques, tanto pelo fato do coletivo organizador estar com mais experiência, quanto pela tranquilidade maior de poder realizar as ações com suporte financeiro adquirido através do edital. O grande desafio foi organizar a maior edição existente, com 80 escolas inscritas. Se nas edições anteriores o coletivo não conseguia estar tão presente quanto gostaria durante os slams que aconteciam nas escolas como etapas preliminares da final do campeonato Interescolar, com os novos recursos o coletivo conseguiu aumentar o número de integrantes e acompanhar de perto as etapas realizadas nas escolas participantes. Dessa prática, surgiram os “poetas-formadores”. A edição de 2019 contou com nove poetas-formadores e cada um seria responsável por visitar oito escolas. Cada escola receberia duas visitas: uma para a realização de oficina de escrita poética e outra para ajudar na realização do campeonato de poesia escolar que indicaria o campeão para representar a escola na final Interescolar. O fato dos integrantes do coletivo estarem mais próximos das escolas participantes, permitiu que eles percebessem melhor o que acontecia durante todas as etapas do processo nas escolas e identificassem os pontos positivos e negativos nesse percurso. Sobre os pontos positivos destacam-se o grande apoio dos professores, o engajamento dos estudantes e a satisfação dos organizadores em trabalhar em conjunto para a melhor forma de realização do evento. Entre os pontos negativos estão alguns casos de denúncias por parte dos pais de estudantes contra integrantes do coletivo ou professores das escolas participantes. Como exemplos de denúncias formais que foram feitas podemos citar a acusação de incentivo ao “racismo reverso” por parte do coletivo - embasada equivocadamente em um vídeo da internet de um poeta que não faz parte do coletivo e nunca esteve na escola em questão. Além do Slam Interescolar de São Paulo, também existiram outros Slams similares pelo Brasil: Slam Interescolar em Minas Gerais, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Mato Grosso do Sul, Bahia e a edição do Slam Interescolar Nacional.
4 PALAVRA É CAMINHO
A escolha das pessoas com quem escolhemos conversar se deu pelo fato dessas pessoas serem referências para na literatura periférica e por terem algum contato com o campo da Educação. Conhecemos Akins Kintê por um vídeo do YouTube em que recitava uma poesia. Em 2017, e aqui cabe voltar à primeira pessoa do singular, pude comparecer ao sarau que ele organiza em São Paulo e, enfim, conhecê-lo pessoalmente. Ele é poeta, arte-educador, cantor, escritor, roteirista e diretor audiovisual.
No início da conversa com Akins, ele fez questão de destacar a importância da literatura negra na vida dele:
Eu tenho que dizer também que talvez antes de pensar…é de entender essa questão de literatura periférica…assim, é bom a gente falar da literatura negra também, né. Com a literatura negra a gente vai entender… com Cadernos Negros em 78, Cuti lançando de forma independente…a gente vai entender que vai ter esse lance também talvez de uma periferia de uma literatura totalmente tradicional acadêmica que nunca viu essa literatura também como, né, como parte dessa sociedade. Então esse foi o meu primeiro contato com literatura. Cadernos Negros vai ser muito importante, sabe? Uma literatura feita de forma independente, escrita por homens pretos e mulheres pretas.
Interessante pensar que até o momento dessa conversa eu não tinha lido muitas obras de Cuti, apenas alguns poemas em uma edição do livro Cadernos Negros. Depois dessa conversa, principalmente por esse apontamento que Akins fez logo no início, eu resolvi procurar saber mais sobre Cuti e descobri o seu livro Literatura negro-brasileira, que acabou se tornando um livro indispensável para esta pesquisa. Eu sempre tive nítido em minha mente que a literatura marginal-periférica tinha relações intrínsecas com a literatura negro-brasileira, mas após ler esse livro de Cuti pude entender mais ainda essa relação. Não que no livro o autor estabeleça essa relação, mas a partir do que é colocado no livro sobre a literatura negro-brasileira, eu pude entender melhor essa interface ligando ao que eu já havia vivido e lido sobre a literatura marginal-periférica. Outro ponto de entrelaçamento dessa conversa com todo o restante da pesquisa é que Akins cita a Cooperifa como sendo seu primeiro contato com a literatura periférica. Ele foi pela primeira vez ao sarau da Cooperifa em 2003 e lembra que nessa época estava acontecendo o boom de saraus pelas periferias de São Paulo ocupando bares, quintais e bibliotecas. Além de destacar a importância desses saraus para divulgar seu trabalho e seus livros, destaca a importância deles no âmbito da oralidade e como essa “roda de falas” faz parte da cultura negra. Esses espaços são importantes para nos fortalecer e reconhecermos nossas qualidades.
normalmente algumas pessoas querem colocar como menor. “ah essa é uma literatura menor e tal”. E o que eu acho da hora estudar e entender…por isso que é legal quando a gente entende as estruturas. A gente vê que não é menor não, mano. Essa literatura feita pelo Sérgio Vaz não é menor que ninguém, não. A literatura feita dentro das quebradas de favela não é menor, não. Não deve nada pra ninguém.
Akins atualmente trabalha como arte-educador coordenando oficinas de criação literária e editoração para jovens a partir de 14 anos de idade. Sua história com a arte-educação já vem desde 2008 quando começou a organizar oficinas na Fundação Casa em São Paulo. Em um certo momento da conversa, enquanto falávamos de como é importante para nós nos reconhecermos na literatura feita por pessoas periféricas, pessoas parecidas conosco, ele apontou a importância desse movimento que estamos fazendo hoje de levar essa literatura cada vez mais longe.
Esse movimento que nós estamos falando, ele é importante. A qual, nós enquanto criança e adolescente nós não tivemos isso nem a pau. Quase ninguém… pelo menos na minha biografia pessoal me deu essa referência pro estudo, o prazer por isso. Foi o rap que fez, sabe? “Vai ler, vai se gostar”. Era praxe, eu dentro da Fundação Casa pegar um rap do Facção Central e conseguir trabalhar Machado de Assis a partir disso. Pegar um funk do Mc Lon e trabalhar Cruz e Souza porque é o mesmo tipo da rima. E aí você conversar muito mais de Cruz e Souza do que de Mc Lon. Mas isso é o educador que tem que se propor.de tirar a vaidade dele, descer um degrau e conversar com esse educando. E dizer: “Bora. Que que cê tá ouvindo no dia a dia?”. E a partir daí a gente conseguir ver as pessoas aprender a ler e ler com mais prazer, com orgulho.
O destaque para o papel do educador também é algo que me chamou a atenção nessa fala. Assim como é colocado por Soares (2009), Akins demonstra que essa literatura periférica que tem ligação direta com o universo do jovem que está no espaço educativo, pode ser a porta de entrada para o mundo literário. No exemplo, ao relacionar a música de Mc Lon à escrita de Cruz e Souza, o educador aciona o universo do estudante - o que ele está ouvindo no dia a dia - e traz a escrita de outro autor para dialogar com esse universo.
Uma questão que apareceu em todas as conversas é sobre a importância que a literatura marginal-periférica tem em mostrar para nós que existem pessoas parecidas conosco, que falam como a gente, falam sobre o que passamos no cotidiano das periferias e que elas são escritoras, poetas e tantas outras coisas que antes não imaginávamos que podíamos fazer também. Foi a partir do momento que eu vi que alguém parecido comigo estava escrevendo e recitando sobre assuntos do meu dia a dia, que eu me percebi enquanto alguém capaz de também fazer isso. Só então eu entendi que também poderia ser escritora e falar de temas que transbordavam do meu ser, mas que antes pareciam pequenos ou inválidos para compartilhar com o mundo. Só ao ver que teve alguém que escreveu algo tão próximo do meu cotidiano e eu me identifiquei tanto, foi que me dei conta que escrever da forma que eu escrevia e abordar os temas que eu abordava, também poderia impactar positivamente outras pessoas - assim como fui impactada. Sendo assim, finalmente me entendi como escritora.
Outro ponto que surgiu em todas as conversas e está intimamente ligado a esse anterior, é a questão de como esse “se reconhecer no outro” a partir da literatura marginal-periférica influencia positivamente na autoestima das pessoas. No meu caso, a literatura marginal-periférica me ajudou a conseguir me expressar melhor através da escrita. Por ter sido sempre muito tímida durante toda infância e adolescência - ou silenciada pelos diversos aspectos do racismo - tinha muita dificuldade em expressar verbalmente meus posicionamentos e reflexões, mas achei na escrita uma forma de expor e compartilhar minhas reflexões, sentimentos e opiniões. Com a evolução da escrita, essa confiança em expor meus posicionamentos passou a refletir também positivamente na maneira verbal de me comunicar. Se durante toda a minha trajetória escolar eu desejei ser invisível - assim como Emicida constata nos versos “E é incrível, quantos de nós senta no fundo da sala pra ver se fica invisível” (EMICIDA, 2010).
O rap surgiu nas conversas como grande inspiração tanto para Akins, quanto para mim. Seja na infância ou na adolescência, em algum momento nós tivemos a influência do rap em nossas vidas como elemento fomentador do pensamento crítico a partir dos questionamentos da estrutura social presente em suas letras. Akins chegou até a relacionar o viés da produção independente, que era marca do rap brasileiro nas décadas de 1980 e 1990 - quando chegou ao Brasil - com o modo independente de publicação da literatura feita nas periferias.
quando a gente pensa nas antigas, isso daí, de falar “ caramba, como um grupo tipo Racionais consegue chegar em lugares que não chega nem grande mídia, nem pequena mídia e as pessoas estão ouvindo “Diário de um detento”, ouvindo “Capitulo 4 , versículo 3”. Então nisso o rap foi mil grau, da clandestinidade…o rap puxou esse bonde de falar "ninguém vai esperar a grande mídia”. Depois o funk pegou isso da hora… e talvez a nossa literatura também tenha referência do rap, essa coisa da independência, essa coisa de não esperar… não esperar que uma grande editora abra as portas pra nós.
A publicação de livros de forma independente, sem o atravessamento de uma grande editora, é uma marca da literatura marginal-periférica. A fala de Akins nos indica que o rap pode ter contribuído para essa estratégia, no sentido de buscar alternativas para o compartilhamento de suas obras sem precisar do aval da “grande mídia” ou das grandes editoras.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No início do texto, trouxemos como objetivo investigar a potência formativa da produção literária marginal-periférica a partir das narrativas de nós, escritores periféricos. Quando escolhemos como abordagem metodológica a pesquisa narrativa e a pesquisa nos/dos/com os cotidianos, sabíamos que não teríamos como prever ou indicar como se daria o decorrer desta pesquisa. Não sabíamos os caminhos por qual passaria, quase como água de rio que não sabe para onde cada pedra em seu percurso te levará. Mergulhar nesse mar - que é a literatura marginal-periférica - tão profundamente como mergulhamos, demonstra que não poderíamos adotar uma metodologia que exigisse que nos distanciássemos do que seria pesquisado.
Entre voos e mergulhos, pudemos perceber que mergulhar na pesquisa também foi mergulhar em mim. Retomamos pela última vez neste artigo a primeira pessoa do singular. Se visitar de forma sincera não é tão fácil quanto parece. Num misto de episódios rememorados e sentimentos remexidos, chego mais forte a esse ponto de recomeço. Não é fim, pois seria impossível colocar um ponto final conclusivo numa pesquisa que me toma por inteiro. Eu vivo a literatura marginal-periférica todos os dias. Esse ponto final só é possível se for para iniciar um novo parágrafo em seguida, pois a vida continua. Os saraus continuam, os slams continuam, os livros continuam, as ruas estão aí ensinando todo dia.
As narrativas apresentadas até aqui foram de profunda importância para o entendimento de forma mais ampla do que nos propomos pesquisar, ainda assim compreendemos que é possível aprofundar muitas outras reflexões que surgiram durante as conversas tecidas, mas não couberam a esta escrita. Durante o caminho foi possível encontrar respostas e questionamentos, descobertas e constatações, dores e alegrias, além de muito reconhecimento pelo viés formativo da literatura marginal-periférica.
Se precisasse escolher um trecho de poesia que refletisse o que foi tecido nesta pesquisa, seria:
eu vim falar da retomada
ter de volta cada grão que nos foi tirado
De tecermos nossas redes
Caminharmos lado a lado
Fortalecer nossos fazeres
Disseminar nossos saberes
Resgatar nossa memória
Reescrevendo cada linha dos livros de história
(Josi de Paula)
Relacionamos esses versos com o objetivo inicial da pesquisa, pois entendo que falar de retomada, de disseminar nossos saberes e resgatar nossa memória faz parte do potencial formativo da literatura marginal-periférica. Ao escrevermos e recitarmos nossas vivências partindo do olhar de quem mora nas periferias, estamos informando a tantos outros como nós que podemos ser escritores, poetas, e tudo o mais que quisermos. Outras narrativas, diferentes daquelas que o cânone literário colocava como únicas possíveis, estão sendo difundidas. Estamos escrevendo nos livros, recitando nas ruas - e até mesmo gritando quando necessário - que, sim, vamos continuar nos inspirando uns nos outros para transformar para melhor nossas realidades e, consequentemente, a sociedade.
Por seguir acreditando no poder da palavra é que continuamos lutando. Por acreditar que a literatura marginal-periférica pode ser agente transformador da sociedade é que seguimos de pé e buscando aprender cada vez mais sobre os caminhos que podemos seguir com ela. Por não desistir é que deixamos o trecho a seguir como reflexão deste ponto de recomeço:
E a gente ajunta adversário porque
vive com orgulho.
“O bagulho é louco e é necessário ser
mais louco que o bagulho.”
Vem chegando dia 20,
o dia da consciência de que radical
é o militante cansado de ter paciência.
Mas a gente tenta, porque na prática
o método aperfeiçoa
A gente vem falar rimando para ver
se não magoa.
Mas se vocês ainda estão escutando
é porque a gente não fala a toa.
(NASCIMENTO, 2021, p.27)
REFERÊNCIAS
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Notas