Resumo: Na perspectiva ético-crítica (DUSSEL, 2012), acredita-se que, ao reconhecerem-se como “vítimas” do sistema vigente, as pessoas podem estabelecer formas de se libertar das injustiças que enfrentam. Essa ideia inspira-se na prática de Freire (2019), defensor de uma educação humanizadora, para a qual criou um processo teórico-metodológico denominado Investigação Temática. Este trabalho se propõe engajado com o processo de humanização da comunidade de Vidal Ramos, um município agrícola do interior de Santa Catarina, a fim de transformar as situações de injustiça ali presentes (ainda que muitas não sejam facilmente reconhecidas pela comunidade), a partir de um planejamento didático inspirado na educação ético-crítica e na Investigação Temática. O planejamento foi realizado em encontros no formato de uma oficina, com o grupo Prosa no qual integra uma pessoa com vínculo na comunidade, o qual realizou análise de falas significativas, identificou as contradições, o tema gerador e o contra tema, bem como movimento de estudo crítico da situação com a identificação de conhecimentos demandados. Por fim, também se realizou um movimento de planejamento dialógico-problematizador em diferentes áreas curriculares, abordando as contradições discutidas. A partir do desenvolvimento de tais atividades foi possível perceber a factibilidade da perspectiva ético-crítica em um movimento de práxis curricular que parte da escuta da comunidade, da problematização dos limites desumanizadoras identificados nessa escuta e do movimento de identificação dos conhecimentos demandados pela análise crítica dessas situações. Em contrapartida, ficou evidente a exigência de um coletivo diverso e do envolvimento de membros da comunidade local no processo de Investigação Temática Freiriana.
Palavras-chave: Educação ético-crítica,Investigação Temática Freiriana,Ensino de Ciências,Falas significativas.
Abstract: From an ethical-critical perspective (DUSSEL, 2012), it is believed that, by recognizing themselves as “victims” of the current system, people can establish ways of freeing themselves from the injustices they face. This idea is inspired by the practice of Freire (2019), defender of a humanizing education, for which he created a theoretical-methodological process called Thematic Investigation. This work proposes to engage with the process of humanization of the community of Vidal Ramos, an agricultural city in the interior of Santa Catarina, in order to transform the situations of injustice present there (although many are not easily recognized by the community), from a didactic plan inspired by ethical-critical education and Thematic Investigation. The planning was carried out in meetings in the format of a workshop, with the Prosa group, which includes a person with ties to the community, who carried out analysis of significant speeches, identified the contradictions, the generating theme and the counter-theme, as well as a study movement critical view of the situation with the identification of required knowledge. Finally, a dialogic-problematizing planning movement was also carried out in different curricular areas, addressing the contradictions discussed. From the development of such activities, it was possible to perceive the feasibility of the ethical-critical perspective in a movement of curricular praxis that starts from listening to the community, from the questioning of the dehumanizing limits identified in this listening and from the movement of identification of the knowledge demanded by the critical analysis of these situations. On the other hand, the demand for a diverse collective and the involvement of members of the local community in the Freirean Thematic Investigation process was evident.
Keywords: Ethical critical education, Freirean Thematic Investigation, Science Teaching, Significant speeches.
Resumen: Desde una perspectiva ético-crítica (DUSSEL, 2012), se cree que, al reconocerse como “víctimas” del sistema actual, las personas pueden establecer formas de liberarse de las injusticias que enfrentan. Esta idea se inspira en la práctica de Freire (2019), defensor de una educación humanizadora, para lo cual creó un proceso teórico-metodológico denominado Investigación Temática. Este trabajo se propone comprometerse con el proceso de humanización de la comunidad de Vidal Ramos, un municipio agrícola del interior de Santa Catarina, para transformar las situaciones de injusticia presentes allí (aunque muchas no son fácilmente reconocidas por la comunidad), desde un plan didáctico inspirado en la educación ético-crítica y la Investigación Temática. La planificación se realizó en encuentros en formato de taller, con el grupo Prosa, que cuenta con una persona vinculada a la comunidad, quien realizó análisis de discursos significativos, identificó las contradicciones, el tema generador y el contratema, así como un movimiento de estudio con visión crítica de la situación con la identificación de los conocimientos requeridos. Finalmente, también se realizó un movimiento de planificación dialógico-problematizante en diferentes áreas curriculares, abordando las contradicciones discutidas. A partir del desarrollo de tales actividades, fue posible percibir la viabilidad de la perspectiva ético-crítica en un movimiento de praxis curricular que parte de la escucha de la comunidad, del cuestionamiento de los límites deshumanizantes identificados en esa escucha y del movimiento de identificación de los conocimientos que demanda el análisis crítico de estas situaciones. Por otro lado, se evidenció la demanda de un colectivo diverso y el involucramiento de miembros de la comunidad local en el proceso de Investigación Temática Freireana.
Palabras clave: Educación ético-crítica, Investigación Temática Freireana, Enseñanza de las Ciencias, Discursos significativos.
Artigos
DA DENÚNCIA AO ANÚNCIO: movimento de um planejamento Ético-Crítico inspirado na Investigação Temática Freireana
FROM DENOUNCEMENT TO ANNOUNCEMENT: movement towards an Ethical-Critical planning inspired by Freirean Thematic Investigation
DE LA DENUNCIA AL ANUNCIO: movimiento hacia una planificación Ético-Crítica inspirada en la Investigación Temática Freireana
Recepção: 10 Julho 2023
Aprovação: 24 Agosto 2023
A perspectiva educacional desenvolvida por Paulo Freire e continuadores de sua obra pode ser caracterizada com uma forma de conceber a ação educativa como uma prática cultural de libertação, como uma práxis autêntica, esclarecedora das razões de ser da realidade dura com a qual historicamente a humanidade convive: fome, pobreza, mortes evitáveis e distintas manifestações de relações de opressão e exploração que se reinventam historicamente. Entretanto realidade tal qual têm sido, mas como uma possibilidade e por isso mesmo não como uma realidade dada, mas sim como produto das relações historicamente construídas, passíveis então de transformações radicais. Uma educação que reconhece a feiura da realidade tal como se apresenta ao produzir diversas formas de sofrimento, que se reconhece como instrumento de denúncia dessa feiura e ao mesmo tempo de anúncio da boniteza do que pode vir a ser, de anúncio de uma realidade na qual todos fazem parte ao protagonizar a sua própria história. Reconhecer o papel da educação escolar para a transformação da realidade injusta significa simultaneamente reconhecer a historicidade do seu papel reprodutor da sociedade injusta, aspecto denunciado pelas teorias da reprodução social, ou seja, significa também reconhecer a necessidade de mudança na forma-conteúdo da escola (FREITAS, 1995). No sentido de superar a forma-conteúdo bancária da educação vigente Freire (2019) aprofunda a ideia de que a educação libertadora, dialógica, começa já na busca do seu conteúdo programático: momento em que introduz a ideia de investigação temática.
Atualmente temos muitos exemplos de como a Investigação Temática Freireana (ITF) tem gerado impactos dentro do ambiente acadêmico, mas sobretudo com as comunidades de oprimidos. O trabalho de Stoeberl e Brick (2021) apresenta um projeto comunitário desenvolvido com jovens do distrito de Rio Negrinho articulada a partir das demandas, anseios e contradições vivenciadas por esses jovens, que, por morarem em uma região rural e do interior, acreditam que não tem oportunidades de futuro. Demartini e Silva (2021) analisam o papel dos temas dobradiças em um processo educativo inspirado na ITF no qual, em contato com a comunidade de uma escola estadual de São Francisco do Brejão (MA), desenvolveu-se um projeto de construção de uma quadra de vôlei comunitária no município a partir da demanda da comunidade e do protagonismo da comunidade. Solino et al. (2021) abordam a possibilidade de planejamento de aulas ciências por acadêmicas do curso de pedagogia considerando as etapas da Investigação Temática, a partir da interação com a comunidade do Alto Sertão Alagoano. É destacado a promoção do protagonismo docente, o papel da escuta da comunidade na obtenção dos Temas Geradores e a definição de parâmetros para analisar as falas significativas da comunidade, destacando a necessidade de aprofundamento nestes parâmetros.
O engajamento com as comunidades locais a partir do processo de ITF, conforme os casos mencionados, reconhece os limites da educação sem deixar de assumir o seu papel político, de impossibilidade de promover processos educativos sem intencionalidade. Assim, a intencionalidade que orienta esse processo é a busca pela transformação da realidade injusta, tendo em conta o argumento de Paulo Freire de que a educação sozinha não transforma o mundo, ela transforma as pessoas que transformam o mundo. Neste trabalho analisaremos movimentos de aproximação, estudos e planejamento de grupo de Pesquisa engajados com o processo de humanização de uma comunidade rural de Santa Catarina. O objeto de reflexão trata-se de uma prática de planejamento coletivo que visa subsidiar a práxis educativa transformadora das situações de opressão vivenciadas, que parte da escuta da comunidade local e visa gerar subsídios, a partir da identificação de conhecimentos pertinentes, em direção ao anúncio comunitário da superação das situações.
O trabalho está estruturado em quatro partes, iniciando com uma apresentação do processo de Investigação Temática freireana e pressupostos da perspectiva ético-crítica, marcos teóricos da pesquisa. Na sequência, apresentamos os aspectos metodológicos do trabalho, que apresenta o detalhamento da oficina realizada com o grupo de pesquisa, e em seguida abordamos os resultados e discussão, expondo os avanços e as limitações da pesquisa. Por fim, nas considerações finais, ilustramos a possibilidade de que a Investigação Temática seja utilizada como inspiração nos mais diversos contextos, ainda que a sua efetivação demande reinvenções.
A abordagem temática freireana, segundo Halmenschlager (2014) e Delizoicov, Angotti, Pernambuco (2018), desenvolve-se a partir de um processo teórico-metodológico denominado por Freire (2019) como Investigação Temática, buscando levar em consideração as demandas postas pelas próprias comunidades, é uma alternativa de engajamento na busca de superação das situações de opressão. A Investigação Temática intenciona “propor aos indivíduos dimensões significativas de sua realidade, cuja análise crítica lhes possibilite reconhecer a interação de suas partes” (FREIRE, 2019, p. 134). Silva (2004) argumenta que não há um caminho único e rígido a ser seguido para a realização da ITF, que são processos necessariamente condicionados por cada contexto. Entretanto podem ser destacadas algumas questões fundamentais para que uma atuação possa se dizer inspirada nela, como a dialogicidade, a problematização, a coletividade e o cultivo de uma práxis autêntica, estejam presentes de forma consciente, como motor da atividade as intencionalidades e os conflitos. Nesse sentido, no capítulo 3 do livro Pedagogia do Oprimido, Freire apresenta a investigação temática não como uma finalidade em si, mas como uma exigência para uma educação dialógico-problematizadora, uma vez para que ele “o diálogo começa pela busca do conteúdo programático” (FREIRE, 2019).
Conforme Brick (2017) destaca, o processo de Investigação Temática é desenvolvido por Freire tendo em vista, sobretudo, a educação popular, em geral, em casos de educação não formal, entretanto o destaca também reconhecer a perspectiva freireana como referência para a práxis curricular levou a mobilização da ideia de ITF e a sua reinvenção à outros contextos, não previstos por Freire (2019), como é o caso de Delizoicov (1982), Angotti (1982), Pernambuco (1983), Pernambuco (1994) e Silva (2004). Delizoicov (1983), ao analisar como a perspectiva freireana figurou como referência para a práxis curricular no contexto da promoção de um Ensino de Ciências humanizador, na reestruturação da educação escolar do recém liberto Guiné Bissau, sintetiza o processo de ITF em cinco etapas: 1) Levantamento preliminar; 2) Análise das situações e escolha das codificações; 3) Diálogos descodificadores; 4) Redução temática; 5) Trabalho em sala de aula. Essa leitura de Delizoicov, identificando 5 etapas da Investigação Temática, se tornou uma grande referência entre os estudos e práticas da área, influenciando muitos trabalhos que se inspiram na ITF, dentre eles o trabalho de Silva (2004) que sistematiza o processo de reorientação currículo de distintas redes de ensino em gestões populares vivenciados a partir da experiência na rede de ensino de São Paulo no governo Luiza Erundina, quando Paulo Freire foi secretário da Educação. Silva (2004) criou um esquema (Figura 1) que relaciona a atuação dos educadores para elaborar o currículo e as etapas da Investigação Temática.
Silva (2004, p. 129) defende que:
Partir do discurso concreto dos sujeitos, das falas significativas das vítimas é, sem dúvida, a primeira exigência de um projeto educacional comprometido com a democratização, pois a fala do excluído representa o ataque mais radical à pretensão de totalidade que o sistema instituído pode sofrer. É nesse sentido que a perspectiva ético-crítica dusseliana se diferencia, radicalmente, de uma ética estritamente discursiva.
Assim, as falas significativas da comunidade se tornam a bússola de toda a prática escolar. No entanto, a seleção dos objetos de estudo de uma prática pedagógica ético-crítica não se limita à opinião e vivências de discentes ou docentes. “É fundamental que (...) o ponto de partida signifique uma problemática local, um conflito cultural, uma tensão epistemológica, política e ética, uma contradição socioeconômica entre as concepções de realidade entre os agentes da comunidade escolar” (SILVA, 2004, p. 183). Silva (2004) sistematiza algumas características das falas significativas, as quais podem ser ressignificadas em cada contexto de realização, como mostra Stoeberl e Brick (2021). Dentre tais características, há a indicação de que são significativas as falas que: 1) São recorrentes entre a comunidade; 2) Expressam percepções de mundo; 3) Explicitam conflitos e contradições sociais; 4) Representam limites explicativos a serem superados; 5) São explicativas e abrangentes; 6) Mantêm a forma de falar da comunidade; 7) Representam uma totalidade orgânica.
Partindo das falas significativas, torna-se possível identificar um tema gerador (FREIRE, 2019) que represente uma síntese das contradições vivenciadas na realidade concreta das comunidades. Os temas geradores que, apesar de serem a síntese da realidade concreta da comunidade, carregam consigo toda a complexidade e a totalidade de suas contradições, podem ser complementados, em um processo dialógico, pelos contratemas (SILVA, 2004), incluindo as percepções também dos educadores acerca das situações que são objeto de estudo durante a Investigação Temática.
Com os temas geradores definidos - e os contratemas, conforme a sugestão de Silva (2004) - cada especialista pode aprofundar as unidades de aprendizagem de sua área. A partir das decisões dos especialistas, que estabelecem os núcleos fundamentais de discussão dos temas e dos conhecimentos referentes às suas áreas, é possível ter um quadro amplo, que, para ser visível a todos os envolvidos, numa pretensão totalizadora, pode ser organizada em uma “rede temática” (SILVA, 2004).
Silva (2004) mostra que, enquanto o tema gerador apresenta as situações-limite para a comunidade, o contratema pode trazer também a síntese da percepção crítica dos educadores acerca do tema gerador. Assim, a terceirização da culpa, o fatalismo, o conformismo, expressos nas falas significativas e, geralmente, explícitos no tema gerador, podem ser problematizados pelo contratema. É também uma possibilidade dialógica de considerar os conhecimentos da comunidade sobre suas próprias vivências e os conhecimentos dos educadores provenientes de outras práticas e de outras leituras já realizadas.
A partir do desafios enfrentados em relação ao registro dos processos de Investigação Temática e do trabalho coletivo que exige sucessivas totalizações, Silva (2004) desenvolve a ideia de “rede temática” cuja construção coletiva propicia uma percepção totalizante do processo e de relações entre elementos tais como: falas significativas, tema gerador e contratema e conhecimentos científicos que forem selecionados como coerentes de serem abordados em uma prática educativa engajada com a comunidade. Na Figura 2 apresentamos um modelo de rede temática sugerido por Silva (2007).
Nesse caso, a rede temática permite vislumbrar de maneira rápida a síntese das discussões ocorridas durante a Investigação Temática, bem como perceber as relações existentes entre os conhecimentos destacados, facilitando a organização e o planejamento curricular. Além de destacar as dimensões materiais, socioculturais e econômicas da realidade concreta, na rede temática dividem-se, também, os conhecimentos entre as escalas local, microssocial e macrossocial. Dessa forma, percebem-se as influências dos contextos macro e microssocial para as negatividades enfrentadas no contexto local, possibilitando um estudo sistêmico e complexo das relações que se estabelecem nesse contexto e contribuindo para que os indivíduos se percebam como “vítimas do sistema de opressão vigente” ao mesmo tempo que se tornam sujeitos de suas realidades.
É evidente que o processo de Investigação Temática não é simples e demanda tempo e envolvimento profundo com a comunidade. A impossibilidade de tamanha dedicação é prevista por Freire (2019, p. 164): “Como fazer, porém, no caso em que não se possa dispor dos recursos para esta prévia Investigação Temática, nos termos analisados?” Nesse caso, Freire (2019) sugere que, com um conhecimento introdutório da comunidade, os educadores conseguem definir temas que poderiam ser codificados. Com a discussão desses temas iniciais, é possível que novos surjam no diálogo com as populações, o que também não impede que seja feita uma pergunta direta sobre outros temas que poderiam ser discutidos. A partir da consideração e problematização desses temas, tem-se um rico material temático que pode servir de objeto de estudo, desde que seja construído de modo que os sujeitos envolvidos se sintam protagonistas durante todo o processo. Assim, acreditamos que práticas educativas inspiradas pela Investigação Temática, se avaliadas as ações e os seus limites em cada contexto, permitem um aprofundamento no contexto das comunidades e uma atuação crítica e problematizadora.
DEMARTINI, Gabriel R.; SILVA, Antonio F. G. da. Abordagem Temática Freireana no Ensino de Ciências e Biologia: Reflexões a partir da Práxis Autêntica. Revista Brasileira de Pesquisa em Educação em Ciências, v. 21, p. 1-30, 2021. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/rbpec/article/view/33743/28250. Acesso em: 04 out. 2021.
Vidal Ramos é um município do interior de Santa Catarina, de área territorial de 346,932 km2, segundo último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). A população corresponde a 6290 pessoas, das quais mais de dois terços se localizam em zona rural. Nos dias de hoje, no município, predomina a agricultura familiar. Esse(a)s agricultore(a)s obtêm a maior parte do seu sustento a partir do plantio e venda do fumo (em folhas), mas também apresentam comercialização considerável de milho, feijão e cebola. Ademais, produzem hortaliças, árvores frutíferas, batata, aipim, repolho, feijão e abóbora para consumo próprio, de acordo com Kuneski e Gaia (2020). Desde 2010, a economia do município também tem se desenvolvido a partir da instalação de uma grande empresa de cimentos no município (VIDAL RAMOS, 2009).
Segundo Pinheiro (2023), os vidalramenses são bastante sociáveis entre eles, e costumam realizar muitas festas comunitárias, a fim de financiar fundos para a igreja (a maioria da população é católica), para o hospital do município, ou mesmo organizam festas para reunir as famílias, preparando muitas comidas comuns no local, como cucas, bolos, pães, torresmo, linguiça… Algo, no entanto, que aflige parte da população, principalmente os jovens, é a dificuldade de encontrar emprego, e sobretudo em funções com boas condições de trabalho, bem como a falta de opções de lazer. Por isso, a chegada da empresa de cimentos, ainda que cause grandes danos ambientais, é apreciada pela comunidade, porque diversifica as opções de trabalho para a população. Esses aspectos fazem parte da análise a qual aprofundaremos neste trabalho, realizada durante uma oficina com o grupo Prosa.
O processo de ITF que orienta teórico-metodologicamente este trabalho se caracteriza como uma pesquisa participante, a qual prevê o estabelecimento de relações com grupos populares, reconhecendo-se, comunidade e pesquisadores, como sujeitos implicados com a realidade a ser transformada. Parte-se do princípio de que ambos – pesquisadores e comunidade – mobilizam saberes, os quais articulam-se e permitem a construção de conhecimento mais pertinente em relação às necessidades locais. Assim, é possível observar o caráter político da pesquisa-participante, cujo desenvolvimento se dá a partir das relações que se fazem entre teoria e prática (BRANDÃO; BORGES, 2007).
Assim, nosso intuito envolve um processo de escuta da comunidade de Vidal Ramos, pensando na valorização crítica da cultura vigente. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, tendo em vista as considerações de Lüdke e André (1986) do tipo pesquisa participante(BRANDÃO; BORGES, 2007), não apenas porque estamos presentes e implicados no processo, mas sobretudo por reconhecermos essa como característica de uma pesquisa engajada com a transformação da realidade local, na qual o rigor metódico não se dá pela busca de uma pretensa neutralidade dos pesquisadores que parte de uma dicotomia entre sujeito-objeto, mas sim pela explicitação das intencionalidades envolvidas no processo.
Assim o processo de ITF em Vidal Ramos teve início em 2022 com a reaproximação imersiva ao contexto por uma pesquisadora membro do Prosa que têm origem na cidade e que passou a lecionar na cidade e concomitantemente iniciou o processo de escuta ativa e registro de falas significativas (SILVA, 2004) que foram objeto de sucessivas conversas tanto com outros membros da comunidade local, quanto do grupo Prosa, no sentido de construir, a partir de Silva(2004) e das próprias falas registradas, os critérios de identificação e análise das falas significativas, podendo estes ser expressos nos seguintes termos:
● São recorrentes;
● Expressam percepções de mundo;
● Explicitam conflitos e contradições sociais;
● Representam limites explicativos a serem superados
● Devem ser explicativas e abrangentes;
● Mantêm a forma de falar da comunidade;
● Representam uma totalidade orgânica.
Entretanto, a identificação e análise das falas exige um trabalho coletivo, participativo, e com a impossibilidade de constituir um coletivo local, buscamos enfrentar esse desafio com a realização de uma oficina de planejamento ético-crítico com o grupo Prosa[1], objeto central de estudo no presente artigo, em que se ampliou o debate sobre a realidade local, aprofundando as análises das contradições expressas nos dados e nas falas da comunidade permitindo a construção de um processo de estudo-planejamento inspirado na ITF como uma ação articuladora intitulada “Oficina de Estudo Ético-Crítico da Realidade de Vidal Ramos - SC’. Todo o processo práxico analisado ocorreu no âmbito do referido projeto, que é articulado aos projeto de extensão “Semeando girassóis: estudos engajados com situações significativas para os povos do campo/periferias” e projeto de pesquisa “Formação ético-crítica: desafios à transformação da realidade injusta”, ambos vinculados ao Prosa – Grupo de Pesquisa em Educação e Tecnologia Ético-Crítica e principalmente às atividade do Prosa intituladas “Grupo de Orientação Coletiva” e “Ciclo de Estudos sobre Investigação Temática Freireana”, que têm se proposto a promover processos de pesquisa-ensino-extensão visando a construção de práxis educativa audiência por meio da ITF em contexto nos quais seus membros tenham vínculos perenes. Nesse sentido também cabe explicitar que este trabalho é parte de uma dissertação, desenvolvida pela primeira autora deste trabalho, a qual atuava concomitantemente à pesquisa de mestrado e participação nas atividades do Prosa como professora de química em uma escola de Vidal Ramos, cidade de onde originou parte de sua família. As dificuldades de constituir um coletivo dentro da escola - considerando os percalços da prática docente, com as poucas horas-atividade para as muitas horas-aula - e também pela dificuldade de abertura da comunidade na identificação das contradições que vivencia levou ao redimensionamento da atividade naquele contexto: atividade de planejamento-estudo crítico da realidade local como processo de preparação para futura ação mais participativa. Dessa forma, compôs o grupo de trabalho envolvido na pesquisa participante uma representante da comunidade local e estudantes e pesquisadores do Prosa com distintos níveis de aproximação com a ITF.
Assim, a “Oficina de Estudo Ético-Crítico da Realidade de Vidal Ramos - SC" foi uma oportunidade de articular os estudos teóricos com o desenvolvimento de um processo de Investigação Temática com uma das comunidades com as quais há membros do grupo com vínculos perenes o que configura critérios para realizarmos processos de pesquisa-ensino engajados. Ou seja, compreendendo as especificidades do contexto de Vidal Ramos, buscamos formas de identificação e superação das contradições vivenciadas no município. Acreditamos que a Investigação Temática é um caminho para uma educação ético-crítica, que leve em consideração as situações de opressão que os vidalramenses enfrentam, incentivando, sobretudo, a percepção da construção do conhecimento científico de maneira solidária às necessidades das comunidades.
A oficina, que aconteceu entre os meses de novembro e dezembro de 2022 e se dividiu em cinco encontros de duas horas aproximadamente, divididos com base nas etapas da Investigação Temática sugeridas por Silva (2004):
● Encontro I: Seleção de falas significativas
● Encontro II: Análise de falas significativas
● Encontro III: Análise de falas significativas
● Encontro IV: Identificação do tema gerador/contratema e “qualificação” das problematizações programáticas
● Encontro V: Rede temática - totalização e elaboração de projetos de redução temática
Durante as oficinas, ocorridas todas de forma remota, além dos registros audiovisuais, memórias dos encontros, foram objeto da oficina a realização atividades coletivas de análise e planejamento cujos registros foram sendo feitos de forma participativa e progressiva em documentos on-line compartilhados. Permitindo assim a reconstituição dos produtos e dos processos vivenciados, permitindo o processo de análise.
As falas significativas selecionadas nos dois primeiros encontros foram identificadas em contato com a comunidade. São falas comumente ouvidas nas conversas com os moradores da comunidade. As falas (Quadro 1) foram separadas entre: 1) falas de moradores como um todo, que se referem aos acontecimentos do município, 2) de agricultores, sobretudo fumicultores, que correspondem aos trabalhadores mais numerosos do município, e 3) da comunidade escolar, tendo em vista a articulação da pesquisa com o Ensino de Ciências.
Uma vez que a realidade concreta se expressa não apenas por dados e fatos de uma localidade, mas pela forma como a comunidade descreve as suas vivências (FREIRE, 2019), a consideração das falas da comunidade expõe as contradições vivenciadas em seu contexto social. Para a seleção das falas significativas, foram considerados os critérios elencados por Silva (2007), dentre os quais se destacam o fato de serem recorrentes, expressarem percepções de mundo, explicitarem conflitos e contradições sociais, representarem limites explicativos a serem superados e manterem a forma de falar da comunidade.
A reflexão sobre as falas significativas da comunidade para a construção do currículo é um “critério ético-crítico para a seleção dos objetos de estudo que partem do reconhecimento do ‘outro’, das negatividades comunitárias a que está submetido, como compromisso com sua emancipação” (SILVA, 2004, p. 32), considerando a emancipação como a superação das negatividades, a partir da libertação, em que os indivíduos se reconheçam como os sujeitos de suas próprias histórias.
Pode-se, portanto, com as falas significativas, perceber os conflitos presentes na comunidade, as dificuldades que às vezes as pessoas enfrentam para identificar as contradições sociais que vivenciam ou a identificação conformista das situações-limite, que dificulta a sua superação por um “medo da liberdade” (ALVES; SILVA, 2015; FREIRE, 2019). Ao mesmo tempo, nas falas significativas também podem aparecer as formas de superação de determinados problemas já encontrados pelas comunidades, o que também faz parte da análise dos educadores quando não se pretende desvelar uma prática superficial e descompromissada com a comunidade (VALLA, 2000).
Com a seleção das falas, o coletivo integrante do Prosa que estava participando da oficina pôde se inteirar das questões centrais para a população de Vidal Ramos. Em muitos momentos, ficou evidente que algumas falas que ocorrem em Vidal Ramos são também comuns em outros contextos, sobretudo em localidades do interior ou que também sobrevivem da fumicultura. Pelo fato de não conhecerem o contexto de Vidal Ramos (a oficina aconteceu de maneira remota, então os participantes nunca estiveram no contexto estudado), o reconhecimento das situações presentes nas falas significativas aconteceu a partir das vivências dos participantes em contextos que vivenciam situações similares.
Assim, ainda que ausentes do contexto estudado, foi possível identificar que as falas selecionadas eram recorrentes, porque estavam presentes também em outros contextos com realidades próximas às de Vidal Ramos. Entretanto, tendo em vista esse não pertencimento à comunidade vidalramense, para a efetivação de práticas engajadas com os sujeitos que vivenciam essa realidade, a comunicação e a pergunta acerca da concretude e do sentido das ideias e análises surgidas com o coletivo é fundamental. Caso contrário, é possível a incorrência de uma invasão cultural (FREIRE, 2013; 2019), em uma postura em que se supõe o problema da comunidade, com pouca densidade de diálogo, de análise coletiva e de sucessivas validações com ela. Mais potente ainda seria o processo se mais pessoas, representantes de distintos segmentos da comunidade, estivessem dele participando, sobretudo para completar o ciclo gnosiológico das problematizações da fala a que se refere Silva (2004, p. 199) quando divide a problematização das falas significativas, presente na construção de um currículo ético-crítico, em três níveis:
Um primeiro nível de problematização busca explicitar e caracterizar o objeto do conflito presente nas falas em contexto mais restrito procurando suscitar aprofundamentos das informações e dos dados descritivos sobre a questão, apontando os conceitos de segundo nível. O segundo nível de problematização busca ampliar e superar as explicações e as contradições, fomentando análises históricas a partir da articulação de conceitos diacrônicos de terceiro nível. Este terceiro nível problematizador, mais propositivo, investe nas possibilidades de planejar e realizar intervenções efetivas na realidade vivenciada. Sem esse terceiro nível o ciclo gnoseológico (Freire, [1968] 1978a, p. 145) não se completaria, ou seja, não se chegaria ao plano da práxis, da conscientização.
O processo ora analisado incidiu sobretudo sobre os níveis 1 e 2 tendo em vista gerar subsídios para uma segunda oficina a ser realizada no contexto local com maior participação comunitária. É possível inferir, então, que, o primeiro nível citado por Silva (2004) ocorreu nos dois primeiros encontros, em que houve a seleção das falas significativas. Esse foi o momento de codificação (DELIZOICOV, 1991; FREIRE, 2019) da realidade de Vidal Ramos, buscando compreender a percepção do “outro” acerca de sua própria realidade. O segundo nível se iniciou no terceiro encontro, com a análise das falas significativas, para aprofundar o entendimento acerca das contradições presentes nas falas, trazendo também a percepção crítica do coletivo de educadores sobre as situações enfrentadas. É, assim, o início da descodificação (DELIZOICOV, 1991; FREIRE, 2019).
Esse processo de codificação e descodificação coletiva, ocorrida durante a oficina com o Prosa, marca um grande diferencial pedagógico em comparação com a prática desenvolvida durante a disciplina de química, anteriormente à oficina com o Prosa e descrita e analisada em Pinheiro, 2023. Nesse caso, ainda que houvesse uma preocupação com a comunidade e uma intenção de trazer a percepção dos estudantes sobre a sua própria realidade, sem uma análise profunda, interdisciplinar e crítica das falas, e com a ausência de fatos e dados da comunidade, não foi possível articular os conhecimentos científicos com as lutas da comunidade em uma prática ético-crítica.
Um exemplo das análises realizadas com o Prosa pode ser visto na Quadro 2. A fala significativa 15 (“Eu nunca vi nenhum plantador de fumo que nunca passou mal na época da colheita. Mas vamos fazer o que? Temos que trabalhar, né?”) foi selecionada por todas as duplas e, portanto, foi uma das que possibilitou o melhor aprofundamento nas problematizações. Uma síntese das análises das demais falas significativas selecionadas pode ser encontrada em Pinheiro (2023).
A profundidade na análise, a evidência das contradições, a demonstração dos fatalismos e conformismos comuns nas falas significativas permitem a construção de percepções importantes para a tomada de consciência - que, com o passar das etapas da Investigação Temática, se tornará conscientização (FREIRE, 2019) - também dos educadores acerca das vivências da comunidade. Essa tomada de consciência por parte dos educadores está relacionada com o fato de que, quando parte da comunidade, também podem ter dificuldade de perceber as situações-limite presentes em tal contexto. Por isso, coletivamente, em diálogo com pessoas de outras áreas, mas tendo como foco as falas da própria comunidade, é possível construir uma prática educativa profunda em um sentido ético-crítico.
A partir da análise das falas foram identificadas algumas situações desumanizadoras enfrentadas pela comunidade vidalramense: 1) a dependência da fumicultura e, consequentemente, do uso de agrotóxicos, das empresas fumageiras, das condições climáticas, da disposição física bruta de trabalho, fatores que, somados à exposição à nicotina, ocasionam problemas de saúde recorrentes à população fumicultora; 2) a submissão à empresa de cimentos, que apresenta concessão de exploração das terras da região por 100 anos, mas que é considerada a “salvação” para as pessoas de Vidal Ramos que buscam opções diversificadas de emprego e estudo; 3) a desvalorização das famílias que vivem no interior do município, que não recebem as mesmas condições de estradas, energia, água encanada, coleta de lixo… (ainda que estes três últimos itens não tenham aparecido em nossas análises); 4) as hierarquias sociais existentes tendo em vista os contextos familiares da população vidalramense, posto que há famílias mais prestigiadas por serem descendentes dos colonizadores, por apresentarem maior poder aquisitivo, ou por terem participação ativa na política institucional do município; 5) a desarticulação entre os conteúdos trabalhados na escola do município (focando no Ensino Médio, já que é o nível de atuação como professora ACT da integrante do Prosa que faz parte da comunidade de Vidal Ramos) e a vida dos estudantes. Estas situações foram importantes para a elaboração do tema gerador e do contratema, que estão na Quadro 3, bem como para a identificação das contradições a partir das situações-limite.
Muitas vezes, as situações de desumanização não são percebidas por quem as sofre, ou são identificadas com um viés fatalista ou conformista, com a ideia de que não haveria como transformar aquela realidade, ou como se esta transformação estivesse ao encargo de outras pessoas, geralmente, pessoas que ocupam os cargos de poder (FREIRE, 2019). Em uma perspectiva ético-crítica, no entanto, há um engajamento na luta para que as pessoas se reconheçam como vítimas do sistema vigente e que, a partir desse reconhecimento, busquem formas de mudar esta realidade coletivamente (BRICK, 2017; MORENO, 2022; SILVA, 2004). O contratema apresentado corresponde à visão crítica da equipe Prosa com relação às situações enfrentadas pela comunidade de Vidal Ramos, a qual identifica que, para que a comunidade possa superá-las, é preciso uma organização coletiva, para buscar substituir a monocultura por formas de cultivo socioambientalmente justas. Nesse caso, caminhar-se-ia no sentido da libertação do domínio da fumicultura e da empresa de cimentos, que hoje são os principais empregadores na região.
A superação dessa contradição exige a "síntese cultural” (FREIRE, 2019), que se configura como um estilo de pensamento (forma de perceber e um agir correspondente a essa forma) emergente a partir da circulação intercoletiva (FLECK, 2010) de ideias codificadas como tema gerador e contratema diante das contradições que ainda não são percebidas como tal, mas sim como fatalismos, terceirização da culpa e diversas formas de silêncio, pelas comunidades locais. Ou seja, a emersão de um novo estilo de pensamento, como síntese cultural libertadora, como ensina Fleck (2010) ao se referir a períodos de complicações, é condicionada pela consciência de coletivos de pensamentos distintos sobre problemas em comum que seus respectivos estilos de pensamento não dão conta. É nesse contexto que ocorre a abertura para a circulação intercoletiva, ou a abertura para o “outro” nos termos de Dussel (2012). É nesse desafio de conscientização das contradições, como complicações nos termos fleckianos, que a tensão entre as explicações da comunidade e dos educadores precisa ser elaborada como problema para ambos: como problematização. Assim, um trabalho coletivo e de valorização de uma nova forma de vida também envolveria um processo de reconstrução da história local e dos conhecimentos locais, possibilitando novas maneiras de pensar a organização das famílias “importantes” da comunidade, das regiões desvalorizadas e dos conhecimentos escolares relevantes.
A identificação do tema gerador e do contratema foi realizada com base nas falas selecionadas e analisadas durante os encontros, que representam uma determinada forma de perceber e um agir correspondente, que poderíamos chamar de estilo de pensamento (FLECK, 2010) local. Devido aos condicionantes da pesquisa, esta etapa aconteceu de maneira individual, ou seja, foi elaborada a partir das discussões entre o grupo após o terceiro encontro, e foi apresentada para avaliação pelo coletivo no encontro seguinte, o qual a complementou com as ideias que as propostas de tema gerador e contratema ainda não tinham abarcado. Elaborar uma síntese das situações-limite enfrentadas pela comunidade (tema gerador) e das percepções críticas que os educadores apresentam sobre elas (contratema) não foi trivial, sobretudo porque as análises apresentam uma profundidade da qual não se pretende abrir mão durante as sínteses. Assim, a codificação do tema gerador e do contratema não ficou sucinta, pois buscou contemplar muitas das discussões ocorridas durante a oficina.
No tema gerador aparecem algumas situações desumanizadoras vivenciadas pela comunidade vidalramense, ainda que algumas vezes não sejam percebidas. São situações para as quais muitos não veem saída, como o trabalho que não signifique a submissão às empresas, além de uma agricultura que não esteja respaldada pela monocultura e pelos agrotóxicos, e de uma escola que esteja engajada com os seus interesses. A organização coletiva para o reconhecimento como sujeitos de sua própria história, gerando a construção de novas formas de vida, com outras opções de trabalho e estudo, corresponde à síntese das percepções críticas do Prosa com relação às situações-limite de Vidal Ramos. No entanto, a validação da comunidade sobre estas pautas é elemento essencial para uma atividade ético-crítica, o que tornará a atividade como uma síntese cultural, e não como uma invasão (FREIRE, 2013; 2019).
Na continuação das atividades, no quarto encontro, foram pensados em conhecimentos gerais e específicos que os participantes da oficina consideram favoráveis para a construção de uma conscientização entre o coletivo de pessoas engajadas com a transformação das situações de desumanização de Vidal Ramos. Conscientização esta que, como Freire (2019) explica, não envolve apenas uma tomada de consciência, mas uma ação a ser desenvolvida com base nas consciências que são aprimoradas a partir das práticas.
Tendo em vista o objetivo da Investigação Temática, que se relaciona à busca por conhecimentos que podem potencializar a conscientização das comunidades, compreendendo as situações de desumanização que enfrentam e buscando transformar essa realidade, pode-se compreender a função social da ciência, tão enaltecida por Fleck (2010). Vê-se a complementaridade possível entre a Investigação Temática (FREIRE, 2019), que propõe justamente que as comunidades construam conhecimento científico, e Fleck (2010), que mostra que o conhecimento científico é construído a partir dos próprios anseios e necessidades das comunidades. Nos Quadro 4 e 5 apresentamos a seleção de conhecimentos que os participantes da oficina articulam com algumas das falas selecionadas.
As lacunas que podem ser percebidas no Quadro 5 retratam aspectos que o coletivo de educadores-pesquisadores não tinham ainda respostas e se mostrava então como um desafio, como aspectos a serem pesquisados não como uma mera atividade de preenchimento das lacunas, mas sim por ser reconhecido pelo coletivo o papel que o preenchimento daquelas lacunas poderia ter em esclarecer possibilidades para além das quais a comunidade local e a própria equipe de educadores-pesquisadores poderiam perceber em um primeiro momento.
Partindo dos conhecimentos explicitados a partir da análise das falas pelo coletivo de especialistas do Prosa, tendo em vista também as dimensões material, cultural e social e o contexto sobre o qual a fala poderia se articular (macro ou microssocial ou local), foi possível construir uma rede temática a fim de vislumbrar de maneira geral e sintética as discussões do coletivo. A rede temática, inspirada no modelo de Silva (2004), elaborada com base nos conhecimentos gerais e específicos citados pelo Prosa relacionados a cada fala significativa, compõe a Figura 3.
A rede temática permite que, em uma percepção ampla, se vislumbre uma totalização das codificações e decodificações acerca da realidade estudada. Ela representa:
(...) tentativas de totalizações históricas - com a pretensão de humanizar pela denúncia das negatividades vigentes. Construídas coletivamente, [as redes temáticas] contextualizam falas significativas, temas / contratemas geradores como interfaces de uma mesma esteira sociocultural, procurando manter um distanciamento analítico que busca superar as perspectivas fragmentárias convencionais do positivismo, proporcionando um “cerco epistemológico” a essas visões de mundo, viabilizando tanto a organização de programações de diferentes disciplinas, quanto a preparação de atividades para sala de aula (SILVA, 2004, p. 247-248).
A construção da rede temática, com base nos conhecimentos gerais e específicos discutidos pelo Prosa, assim como do tema gerador e do contratema, foi realizada de maneira individual e apresentada e avaliada no encontro seguinte pelo coletivo. Na identificação dos conhecimentos, é perceptível como as dimensões social, material e histórica (SILVA, 2004) se complementam. Na análise dos conhecimentos que podem fomentar a conscientização acerca das contradições presentes em cada fala aparecem conhecimentos que se relacionam às três dimensões. Nota-se, dessa forma, a interdisciplinaridade proposta pela Investigação Temática, potencializando o processo de conscientização.
Pensando em uma prática pedagógica, nesse caso, não basta apenas identificar os conhecimentos pertinentes, mas também planejar as atividades escolares que serão realizadas. Os programas de ensino (projetos de redução temática) ocorridos no último encontro tinham essa intenção, ainda que, com mais tempo disponível, pudessem ser aprofundados. Um exemplo de planejamento, referente à área das Ciências da Natureza, pode ser visto no Quadro 6, e outro exemplo, referente à Física pode ser visto no Quadro 7. As construções referentes às áreas de todos os participantes deste encontro da oficina estão disponíveis em Pinheiro (2023).
Ainda com o pouco tempo disponibilizado para a elaboração do programa de ensino, foi possível perceber a potencialidade desta etapa da oficina. Cada participante presente no encontro elaborou um projeto de redução temática referente a sua área de formação e depois compartilhou com o coletivo. Como haviam dois integrantes da área da Química, a comparação das duas ideias desenvolvidas mostra como é possível ir muito além com a coletividade, posto que, apesar de partirem da mesma rede temática, os conhecimentos sugeridos e a forma de interpelá-los eram completamente diferentes nos dois projetos de redução temática. A união das ideias, ou a complementação delas entre os integrantes pode gerar um trabalho profundo e comprometido com a comunidade.
Um exemplo disso também pode ser identificado com outro programa de ensino elaborado no encontro, mas na área da Física (Quadro 6), que optou por focar na discussão acerca da má qualidade das ruas dos interiores de Vidal Ramos, que aparece nas falas significativas. Por ser um debate emblemático na comunidade, este tema também foi discutido pela professora com os estudantes durante a aula de química. Entretanto, depois da oficina é possível perceber como se ganha em senso crítico dos próprios educadores para desenvolverem uma atividade baseada em tal temática. Nesse caso, inicialmente a educadora ainda não havia passado por um processo de tomada de consciência acerca do tema que estava ensinando, o que dificulta o desenvolvimento de uma atividade crítica com os estudantes. Dessa forma, fica ainda mais evidente a potencialidade da Investigação Temática em práticas que pretendem ainda mais do que a tomada de consciência, mas a conscientização (FREIRE, 2019), em uma perspectiva ético-crítica, não apenas pelos estudantes, mas também pelos educadores.
Esta etapa de elaboração de projetos de redução temática precisa ser planejada coletivamente, mas também as atividades a serem desenvolvidas durante as aulas, no caso de práticas escolares, o que não é um movimento trivial, sobretudo quando se pretende desvelar uma ação humanizadora. Esta parte de planejamento específico para aulas não foi contemplada pela oficina, devido à falta de tempo.
Em contrapartida, a atividade não necessariamente se encerra com o fim da oficina. Mais encontros podem ser marcados entre integrantes do grupo interessados, ou mesmo com professores de diferentes áreas de Vidal Ramos. Também é preciso considerar que o objetivo principal do coletivo era de completar um ciclo de Investigação Temática, o que foi possível realizar, e que serviu de inspiração para outros movimentos com comunidades de envolvimento de outros integrantes do Prosa, como a Reserva Extrativista Marinha do Pirajubaé e a comunidade de Volta Grande, em Rio Negrinho.
Partindo do ponto de vista dos professores, a Investigação Temática permite que atuem como sujeitos também da prática que realizam. Às vezes, nem professores nem estudantes são sujeitos da prática educativa, porque em um processo de tentativa de transferência de conhecimentos estabelecidos por um currículo distante da realidade (FREIRE, 2019), não há a humanização de docentes ou discentes. Assim, ao participar de uma construção de currículo inspirada na Investigação Temática, os professores podem se reconhecer como sujeitos, porque estão dando sentido aos conhecimentos: “Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer” (FREIRE, 2013, p. 20).
Ao mesmo tempo, a participação dos professores em processos de Investigação Temática também traz os estudantes como sujeitos das práticas, visto que tudo o que é desenvolvido parte da realidade dos próprios estudantes, com base em suas falas e na sua aprovação acerca das suposições realizadas pelo coletivo participante da Investigação Temática. Dessa forma, percebe-se a dialogicidade (FREIRE, 2019) presente no processo, posto que há a consideração e valorização dos conhecimentos de todos os envolvidos, que possibilita uma síntese cultural entre os conhecimentos do contexto dos estudantes e os conhecimentos específicos de cada área dos professores.
A avaliação coletiva dos encontros permite uma (re)elaboração das atividades a serem avaliadas e desenvolvidas com a comunidade vidalramense, bem como as demais ações inspiradas na Investigação Temática que o Prosa pretende desenvolver com as outras comunidades com os quais há integrantes envolvidos. Considera-se que o ciclo que se desenvolveu durante a oficina está longe do ideal, mas já avança em muitos pontos quanto às práticas isoladas e, por não se encerrar com esta pesquisa, pode avançar ainda muito mais.
Ficou evidente, com a oficina, que um processo de Investigação Temática necessita da coletividade, de análises profundas sobre o contexto e de pessoas de diferentes áreas para potencializar o diálogo sobre os fatos, dados e falas da comunidade, que correspondem a sua realidade concreta, como afirma Freire (1999). Da mesma forma foi possível identificar que a realidade, os limites explicativos desumanizadoras da comunidade local, tomada como objeto de trabalho comum, condicionou trocas autênticas entre os distintos integrantes do coletivo de trabalho, gerando percepções comuns inéditas para o coletivo e inclusive a identificação de lacunas de conhecimento e de informações sobre a realidade como problemas a serem resolvidos pelo coletivo.
Para essa análise realizada com o coletivo Prosa, utilizamos as falas significativas (SILVA, 2004) ouvidas das pessoas da comunidade vidalramense, a partir das quais é possível reconhecer algumas das contradições sociais existentes no contexto do município. Com isso, identificamos o tema gerador e o contratema e criamos uma rede temática que permite a visualização de conhecimentos científicos que se relacionam com as contradições sociais destacadas no contexto da comunidade. Por fim, elaboramos programas de ensino (projetos de redução temática) pensados para as áreas das ciências de habilitação dos participantes da oficina.
Nesse caso, percebemos que a oficina propiciou avanços na perspectiva ético-crítica em comparação à tentativa de prática isolada durante a disciplina de Química. Percebeu-se, nesse caso, a fundamentalidade da coletividade, do diálogo e da consideração das questões que partem da própria comunidade, a partir de suas falas. Ao mesmo tempo, o fato de os pesquisadores do Prosa não terem contato com a comunidade, a limitação de tempo para a oficina e a sua ocorrência de maneira virtual foram também limites que, ao serem superados, podem tornar a prática ainda mais rica.
Em contrapartida, com o tempo de pesquisa que se tem disponível para o mestrado, e tendo em vista a dinâmica escolar e as muitas demandas e relações que se estabelecem nesse contexto, não foi possível, até o fim da pesquisa, colocar em prática o planejamento inspirado na Investigação Temática construído com o PROSA. Outra limitação vivenciada se refere à abertura da comunidade para a organização de estudos mais críticos acerca dos aspectos vivenciados na comunidade. Como aprofundamos na dissertação (PINHEIRO, 2023), muitas vezes os oprimidos não se identificam desta forma e, portanto, uma atividade que visa à conscientização torna-se um desafio.
Ainda que com tais limitações, acreditamos ter sido efetiva a compreensão das potencialidades de vivenciar processos de estudo da realidade local inspirados na Investigação Temática freireana para conceber um Ensino de Ciências engajado ético-criticamente com a realidade local de Vidal Ramos, que se constituía como objetivo da pesquisa, ainda que como subsídio para a etapa mais importante do processo, que é o desenvolvimento participativo do processo na realidade local: práxis, que demanda articulações com pessoas e instituições em cada contexto.