DISCUTINDO VÍCIOS HISTORIOGRÁFICOS COM PROFESSORES DE CIÊNCIAS EM FORMAÇÃO

DISCUSSING HISTORIOGRAPHICS VICES WITH TRAINING SCIENCE TEACHERS

ORCID: http://orcid.org/https://orcid.org/0000-0001-8224-9085 Lucas Albuquerque do Nascimento
UFPI, Brasil
ORCID: http://orcid.org/https://orcid.org/0000-0002-3748-709X Hermano Ribeiro de Carvalho
UFPI, Brasil
ORCID: http://orcid.org/https://orcid.org/0000-0002-1648-2652 Boniek Venceslau da Cruz Silva
UFRN, Brasil

DISCUTINDO VÍCIOS HISTORIOGRÁFICOS COM PROFESSORES DE CIÊNCIAS EM FORMAÇÃO

REAMEC ? Rede Amazônica de Educação em Ciências e Matemática, vol. 8, núm. 2, 2020

Universidade Federal de Mato Grosso

Recepção: 27 Fevereiro 2020

Aprovação: 24 Maio 2020

Resumo: Nos últimos anos, pesquisas na área do Ensino de Ciências destacam a potencialidade do uso da História e Filosofia da Ciência (HFC) para compreensão sobre a construção de conhecimentos científicos. Dessa forma, torna-se importante investigar as interfaces entre HFC e as salas de aulas como, por exemplo, no contexto de formação inicial de professores de Ciências. Nesse sentido, o objetivo deste artigo é apresentar os principais tipos de vícios historiográficos que uma construção histórica pode conter e discutir alguns desses equívocos com professores de ciências em formação, por meio do uso de um texto didático. Para isto, foi criado um texto no formato de diálogo, no qual, teve como discussão o uso do livro de Ciências e a presença de vícios historiográficos. O texto foi aplicado num curso de extensão ofertado para professores de Ciências em formação da Universidade Federal do Piauí (UFPI). A partir de um questionário, construiu-se e analisou-se dados que apontaram para uma compreensão sobre aspectos da Historiografia da Ciência, principalmente devido à característica do texto ao abordar fatos do dia-a-dia da profissão docente. Por fim, defende-se durante a formação inicial e/ou continuada, a inserção de momentos de discussão sobre a construção dos conhecimentos científicos e seus aspectos históricos.

Palavras-chave: História e Filosofia da Ciência, Vícios historiográficos, Texto didático.

Abstract: In recent years, research in the area of Science Education has highlighted the potential of using History and Philosophy of Science (HPS) to understand the construction of scientific knowledge. Thus, it is important to investigate the interfaces between HPS and the classrooms, for example, in the context of initial training for science teachers. In this sense, the objective of this article is to present the main types of historiographic vices that a historical construction can contain and to discuss some of these mistakes with science teachers in formation, through the use of a didactic text. For this, a text in the format of dialogue was created, in which the use of the Science book and the presence of historiographic vices were discussed. The text was applied to an extension course offered to science teachers in training at the Federal University of Piauí (UFPI). From a questionnaire, data was constructed and analyzed that pointed to an understanding of aspects of the Historiography of Science, mainly due to the text's characteristic when addressing the day-to-day facts of the teaching profession. Finally, during the initial and / or continuing education, the insertion of moments of discussion about the construction of scientific knowledge and its historical aspects is defended.

Keywords: History and Philosophy of Science, Historiographics vices, Didactic text.

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, pesquisas destacam que as discussões e o uso da História e Filosofia da Ciência (HFC) são profícuas ao Ensino de Ciências e a interface entre HFC com as aulas de Ciências vem sendo alvo de diversos estudos ( MARTINS, 2007; MARTINS, 2012; SILVA, 2012a; SILVA, 2014; NASCIMENTO; CARVALHO, 2014a; NASCIMENTO; CARVALHO, 2014b; DAMASIO, 2017; SOUZA, et al, 2019 ). Segundo os autores citados, para fins pedagógicos, a HFC possui um potencial extremamente favorável ao professor que busca obter melhores resultados em sala de aula como, por exemplo, desmistificar a ideia do método científico, dando ao aluno subsídios necessários para que ele tenha um melhor entendimento do trabalho do cientista; mostrar como o pensamento científico se modifica com o tempo, evidenciando que as teorias científicas não são ?definitivas e irrevogáveis?, mas objeto de constante revisão e contribuir para um melhor entendimento das relações da ciência com a tecnologia, a cultura e a sociedade.

Além disso, e segundo Silva (2010), a HFC proporciona a construção de diversos materiais didáticos que abordem práticas pedagógicas diferentes como, por exemplo, a construção de textos históricos e didáticos, peças teatrais, debates, experimentos históricos, entre outros.

Para Matthews (1995), o uso da HFC nas aulas de Ciências pode trazer benefícios à formação do aluno como, por exemplo:

[...] humanizar as ciências e aproximá-las dos interesses pessoais, éticos, culturais e políticos da comunidade; podem tornar as aulas de ciências mais desafiadoras e reflexivas, permitindo, deste modo, o desenvolvimento do pensamento crítico; podem contribuir para o entendimento mais integral de matéria científica, isto é, podem contribuir para a superação do ?mar de falta de significação? que se diz ter inundado as aulas de ciências, onde fórmulas e equações são recitadas sem que muitos cheguem, a saber, o que significa ( MATTHEWS, 1995, p.165).

Nesse sentido, e quando se relaciona a HFC com a aprendizagem de teorias científicas, inserir elementos históricos e filosóficos podem,

(a) proporcionar o estudo mais adequado de equações relacionadas a conceitos e teorias que, em algumas ocasiões, vêm se mostrar sem significação aos estudantes; (b) servir como uma ferramenta no trabalho das concepções alternativas mostradas pelos alunos; (c) proporcionar o estudo e elaboração de novas estratégias de ensino que possibilitem dar uma maior significação ao estudo de conceitos e teorias físicas e (d) (d) contribuir para o entendimento da relação ciência, tecnologia e sociedade ( SILVA, 2011, p. 156).

O uso da HFC nas aulas de Ciências pode possibilitar a formulação (por parte dos alunos) de uma concepção adequada em relação ao próprio fazer científico e da sua natureza, apresentando a dimensão coletiva do conhecimento, mostrando que a ciência, na sua construção, ?é (re)pensada por mais de uma pessoa; mostra tanto os acertos quanto os erros na ciência; mostra os problemas, dificuldades e dilemas que rodeiam o cientista na formulação de uma teoria, dentre outras? ( SILVA, 2010, p.27).

Diante desse cenário, consideramos ser fundamental a discussão sobre aspectos relacionados à Historiografia 4 da Ciência como, por exemplo, os tipos de vícios historiográficos com os professores de Ciências, principalmente aqueles em formação. A importância se constitui pelo fato de que o futuro professor, ao conhecer os principais tipos de vícios presentes em construções históricas, possivelmente facilite o reconhecimento desses equívocos que um texto, relato ou episódio histórico possa conter, a fim de corrigi-los e favorecer a aprendizagem de um conhecimento científico de forma correta por parte dos seus alunos.

Dessa forma, o objetivo deste artigo caracteriza-se por apresentar os principais tipos de vícios historiográficos que uma construção histórica pode conter e discutir alguns desses equívocos com professores de ciências em formação através do uso de um texto didático.

A seguir, serão apresentados por meio da literatura especializada, os principais tipos de vícios historiográficos encontrados no campo da História da Ciência e Historiografia da Ciência, e por meio de alguns exemplos, será feita uma breve discussão de alguns desses equívocos.

2 OS PRINCIPAIS TIPOS DE VÍCIOS HISTORIOGRÁFICOS

Utilizamos como referência o estudo feito por Carneiro e Gastal (2005), Pitanga et al(2014) e Silva et al(2014) no qual, destacam os principais tipos de vícios historiográficos, ou seja, aqueles que são comuns em materiais didáticos que contém a História da Ciência inserida no conteúdo das Ciências Naturais.

História da Ciência puramente descritiva, repleta de datas e informações que não têm qualquer relevância para aquilo que está sendo estudado

Esse tipo de relato transmite a falsa impressão de que toda a Ciência é feita em datas precisas, onde os cientistas e/ou estudiosos retiram suas informações do nada, ou com lances, ou momentos de genialidades, passando a imagem de gênio iluminado. Vejamos, por exemplo, como ele aparece em um livro de Ciências do ensino fundamental.

[?] o maior feito de Galileu, naquela época foi, segundo ele próprio, a descoberta de 'novos planetas' ao redor de Júpiter. Galileu descobriu quatro satélites na órbita desse planeta em janeiro de 1610 [?] ( USBERCO et al, 2011, p.21).

Whiggismo

Esse tipo de História ficou contabilizado, dentre outras características, pelo estudo do passado decorrente de teorias atuais, uma vertente do whiggismo que recebeu o nome de anacronismo.

O historiador analisa o passado à luz do presente. Nesse tipo de relato encontramos uma busca por uma visão geral e abreviada da história, gerando relatos distorcidos e anacrônicos.

Dessa forma, ao tomar como base fontes históricas não confiáveis, podemos chegar a resultados errôneos, recaindo em vícios metodológicos. Formando um conhecimento científico inadequado, perpetuando um equívoco entre as gerações. Observe um exemplo retirado de um livro de Ciências:

[...] O movimento aparente da Lua, do Sol e de outras estrelas ? que aparecem a leste e desaparecem a oeste ? induziu os sábios, até aproximadamente o século XV, ao erro de afirmar que a Terra está no centro do Universo e que todos os astros circulam à sua volta [...] ( PEREIRA; SANTANA; WALDHELM, 2012, p.275).

Utilização ideológica da História da Ciência

Nela, as ideias de determinado grupo são valorizadas em detrimento de outros ou ocorre à valorização exacerbada de determinados cientistas e/ou estudiosos, gerando a personificação de verdadeiros heróis e de falsos vilões na Ciência, mascarando os fatos históricos. Observe o exemplo dado por Martins (2005):

A História da Ciência Nacionalista, do físico e matemático Émile Picard (1916), que considerava que tudo o que havia de bom encontrado no desenvolvimento da ciência devia-se aos cientistas franceses, enquanto tudo de ruim se devia aos cientistas alemães ( MARTINS, 2005, p.315).

Apudismo

São trabalhos baseados quase que exclusivamente em informações indiretas de fontes secundárias e terciárias. Esse termo é aplicado aos trabalhos historiográficos que se valem do termo ?apud? de forma excessiva, baseando apenas em informações obtidas em fontes secundárias, sem consultar as fontes primárias (os originais).

No caso de textos relacionados à HFC, é comum às fontes primárias, serem escritas em idiomas diferente do português (inglês, francês, italiano, espanhol, latim, entre outros) e a falta de conhecimento nesses outros idiomas acaba por exigir a consulta nas fontes traduzidas (secundárias ou terciárias) e caso essas fontes não sejam de confiança, pode acontecer de existir traduções erradas, permeando um ?ciclo vicioso? de equívocos.

Quase-História

Nessa abordagem, é comum prevalecer a ideologia científica do autor ou do historiador da ciência que narra os fatos históricos. Dessa forma, é comum serem renegados ou até apagados da história escorregões de grandes estudiosos, como Isaac Newton, Galileu e Einstein, com a finalidade, quase sempre previamente definida, de enaltecer o lado genial do cientista.

A Quase-História é o resultado do sentimento e da necessidade de autores darem vida aos fatos, construindo a Ciência com propósitos próprios: sustentar uma versão metodológica científica. Diante disso, é muito comum ocorrer à falsificação da história, dando a essa nova história reconstruída uma característica de história genuína. Note um exemplo de outro livro de Ciências:

[...] Em 1530, baseados em estudos realizados ainda sem a utilização de instrumentos de observação do céu, Nicolau Copérnico, astrônomo polonês, propôs o chamado modelo heliocêntrico [...] ( GOWDAK; MARTINS, 2012, p.9).

Pseudo-história

Segundo Allchin (2004)5, no seu artigo ?Pseudohistory and Pseudoscience?, citado por Silva et al(2014) , traz os problemas que essa vertente pode ocasionar no Ensino de Ciências. Para o autor, nesse tipo de história é comum ocorrer a romantização de cientistas, onde suas descobertas são infladas e perfumadas de dramas. Ela pode contribuir para a formulação de ideias equivocadas sobre como a Ciência e teorias científicas são construídas.

O autor chama atenção para alguns sinais que podem denotar a presença da pseudo- história em um texto histórico. Para ele, são característicos às presenças de romantismo, descobertas por ?insigth?, a presença apenas de experimentos crucias, a exclusão total de erros dos cientistas, a interpretação sem problematização dos experimentos, conclusões de natureza ideológicas, dentre outras. Observe um exemplo:

[...] O italiano Galileu Galilei, nascido em Pisa, Itália, em 1564, desde criança se mostrava muito curioso e criativo, imaginando e construindo brinquedos [...] ( GOWDAK; MARTINS, 2012, p.19).

É comum encontrar na literatura especializada (veja, por exemplo: SILVA; CARVALHO; NASCIMENTO, 2014) estudos referentes a análises de livros-texto de Ciências que evidenciam a existência de vícios historiográficos, principalmente o whiggismo, a quase- história e a pseudo-história.

Outros estudos como, por exemplo, Carneiro e Gastal (2005) e Pitanga et al(2014) , analisaram livros-texto de Biologia e Química, respectivamente, e seus resultados convergiram na existência de vícios historiográficos como:

Histórias anedóticas

Os fatos históricos geralmente centrados na biografia de um determinado estudioso. Para os fins educativos, ?esta forma de apresentar os aspectos históricos pode reforçar ou induzir os alunos à construção de uma imagem na qual a produção do conhecimento científico limita-se a eventos fortuitos, dependentes da genialidade de cientistas isolados?. ( CARNEIRO; GASTAL, 2005, p. 35). Como exemplo, citamos:

[...] Cavendish era um químico tão brilhante quanto excêntrico [...]. Segundo contam, ele incorporava a equivocada imagem popular do cientista maluco [...] ( REIS, 2007, p.317).

Linearidade

Para Pitanga et al (2014) , a linearidade tornou-se uma característica do homem em criar uma ideia contínua dos acontecimentos históricos, tornando evidente uma visão distorcida da evolução, sempre linear e cumulativa. Um exemplo em um livro de Química é mostrado abaixo:

Como salientamos várias vezes, a história da ciência é consequência do trabalho de muitos pesquisadores, que vão gradativamente descobrindo e aperfeiçoando modos de controlar os fenômenos até chegar a aplicações práticas de grande importância [...] ( FELTRE, 2008, p. 408).

Consensualidade

Relatos históricos que apenas evidenciam os fatos convergentes de um determinado conceito, os consensos na construção do conhecimento científico. E geralmente, quando os pontos de vista conflitantes são apresentados, na grande maioria das vezes, é para reforçar a ideia de que se trata de um conflito entre visões ?corretas? e ?equivocadas?. Um exemplo em um livro de Biologia é mostrado abaixo:

A ideia de Virchow a respeito da origem das células foi apoiada, em 1878, pelo biólogo Walther Flemming (1843-1905), que descreveu detalhadamente o processo de reprodução celular ( AMABIS; MARTHO, 1997, p. 47).

Ausência do contexto histórico mais amplo

Nos textos e relatos que envolvem a História, a transmissão da concepção de que a ciência é algo não influenciável, ou seja, a não existência dos fatores extracientíficos durante um processo de construção do conhecimento científico como, por exemplo, a sociedade, a política, a economia, a religião e a cultura. Como exemplo, citamos:

Galvani defendeu seu ponto de vista até o fim da vida, o que lhe trouxe dissabores [...] a perda da posição de professor da Universidade de Bolonha, por ter se recusado a jurar fidelidade ao governo invasor da Itália, de Napoleão Bonaparte, morrendo na miséria. Volta, por sua vez, indiferente dos problemas políticos, jurou fidelidade a Napoleão, tendo sido agraciado, em seguida, com uma medalha de ouro e foi elevado à posição de senador do reino da Itália, com o título de conde ( USBERCO; SALVADOR, 2009, p.265).

A falta de percepção, muito provavelmente provocada pela não discussão de aspectos relacionados à Historiografia da Ciência na formação inicial do professor de Ciências, pode fazer com que os futuros professores, mesmo de forma implícita, transmitam um determinado conhecimento científico distorcido e/ou equivocado. Por isso, na introdução deste artigo, defendemos a ideia de discutir aspectos relacionados aos vícios historiográficos durante a formação do professor de Ciências.

No próximo tópico, será apresentado e discutido o percurso metodológico do estudo, enfatizando: o ambiente da pesquisa, o texto didático e as questões utilizadas nos questionário junto com o seu referido objetivo.

3 PERCURSO METODOLÓGICO

O estudo caracterizou-se por ter uma natureza diagnóstica e empírica, conforme Marconi (2003), foram levados em consideração principalmente os aspectos qualitativos da pesquisa.

O ambiente da pesquisa: O público-alvo, local da pesquisa e curso de extensão

O ambiente em que a pesquisa se desenvolveu, foi em um curso de extensão: ?História e Filosofia da Ciência na sala de aula: Por quê? Para quê? Como?? promovido pelo Grupo de Estudo e Pesquisa em História e Filosofia da Ciência (GEPHFC) da Universidade Federal do Piauí (UFPI). O público-alvo do curso de extensão foram os alunos dos cursos de Licenciatura em Química, Biologia e Ciências da Natureza, tendo o número de 17 participantes que responderam as questões referentes ao texto didático analisado neste artigo. Os encontros aconteceram na sala de vídeo do curso de Ciências da Natureza, no bloco do Centro de Ciências da Natureza (CCN II) da UFPI.

Nesse momento, é importante ressaltar que a discussão do curso de extensão não se restringe apenas à Historiografia da Ciência e o desenvolvimento desse artigo. Dessa forma, outras discussões que não são relacionadas e discutidas neste trabalho foram realizadas como, por exemplo, Natureza da Ciência e aspectos históricos relacionados à Astronomia.

Foi no quinto e último encontro do curso que se utilizou o texto didático construído e apresentado neste artigo para discutir aspectos da Historiografia da Ciência por meio dos vícios historiográficos. Logo após a leitura, os participantes do curso responderam o questionário relacionado ao texto didático e foi realizada uma discussão referente à temática do texto didático.

As ferramentas para a produção dos dados

O texto didático e o questionário: Processo de construção, aplicação e discussão

Como forma de melhorar a aquisição de conhecimentos, os textos didáticos ou históricos podem,

(a)propiciar a leitura de textos científicos, possibilitando a discussão de trechos de textos originais de estudiosos, filósofos naturais e cientistas; (b) servir de ferramenta para a apresentação de situações-problemas de forma aberta, possibilitando a elaboração de estratégias didáticas que se aproximem dos verdadeiros problemas que serviram de fundamentos para o surgimento de determinado conceito científico e (c) servir de momento reflexivo para os estudantes, a partir do momento que muito dos modelos criados por eles podem ser postos em paralelo com modelos pensados por cientistas em épocas passadas. ( SILVA, 2012b, p. 4).

A construção do texto didático (Ver Anexo) no formato de um diálogo fictício, teve como temática principal uma conversa entre três professores de uma escola pública sobre o uso do livro-texto de Ciências e a presença de vícios historiográficos.

Como descrito na página anterior, a aplicação do texto didático foi realizada no último encontro do curso de extensão. Escolhemos esse momento, pois acreditamos que as discussões anteriores como, por exemplo, História da Ciência, a sua relação com a sala de aula e os aspectos relacionados à História da Astronomia, poderiam servir como base para a leitura e o entendimento do texto.

Em seguida, os participantes responderam um questionário ( Quadro 1) referente ao texto, que teve como objetivo, construir informações para a análise dos dados deste artigo e discutir a utilidade do diálogo (texto didático) como forma de inserção da História da Ciência na formação docente e no Ensino de Ciências.

Em síntese, a sequência metodológica foi: 1)leitura do texto didático no formato de diálogo; 2)Após a leitura do texto didático, os participantes responderam questões referentes às discussões tratadas no texto. Foram duas questões abertas, as quais tiveram o mesmo objetivo e; 3)Em grande grupo, a discussão da temática presente no texto didático.

Quadro 1
Questões do estudo referente ao texto didático Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
Questões do estudoObjetivo
1. Em sua opinião, a linguagem utilizada no
diálogo ficou acessível e de fácil compreensão?
Comente sua resposta.Verificar a utilidade do diálogo como forma de inserção
2. Para você o diálogo colaborou para aquisição de novos conhecimentos em relação àda História da Ciência na formação docente e no Ensino de Ciências.
História da Ciência? Quais foram esses
conhecimentos?

Para a construção e análise, as respostas dos participantes foram retiradas da resolução do questionário e submetidas à uma análise de conteúdo, cujo referencial adotado foi Bardin (2009).

Na busca da manutenção do sigilo dos participantes da pesquisa, será feita a seguinte codificação com as suas identificações: o primeiro participante que respondeu o questionário sobre o texto será nomeado de QT-P1. Para os demais participantes, seguiremos o mesmo padrão, a saber: QT-P2, QT-Pn, onde ?n? é o número atribuído ao participante da pesquisa.

Os docentes em formação fizeram a leitura do texto didático, o qual abordou a problemática da existência de vícios historiográficos no conteúdo de Astronomia do livro-texto de Ciências do ensino fundamental.

Logo em seguida, responderam o questionário referente ao texto e depois foi feita uma discussão acerca da problemática central do texto, a fim de esclarecer possíveis dúvidas existentes.

4 ANÁLISES DOS DADOS POR MEIO DO QUESTIONÁRIO

A produção e aplicação do texto didático tiveram como característica principal, verificar a funcionalidade do recurso para fazer-se a inserção da HFC na formação de professores de Ciências em formação.

Os participantes que cursavam a licenciatura em Biologia eram 3 docentes em formação, os que cursavam a licenciatura em Química eram também 3 graduandos, já os participantes que cursavam a licenciatura em Ciências da Natureza eram 11 docentes em formação.

Participantes respondendo o questionário do texto didático Fonte: Figuras feitas pelos autores, 2019.
Figuras 1-A e 1-B
Participantes respondendo o questionário do texto didático Fonte: Figuras feitas pelos autores, 2019.

A primeira questão perguntava aos participantes sobre a linguagem utilizada no texto didático, se a linguagem ficou acessível e de fácil compreensão.

Todos os participantes afirmaram que o texto foi facilmente compreendido, pois, dentre os principais motivos dessa acessibilidade citada pelos participantes foi devido à clareza das discussões e a característica de abordar fatos do dia-a-dia da profissão docente.

Apresentamos algumas falas dos participantes desta pesquisa:

QT-P2: De fácil compreensão, porque é um texto voltado para episódios do nosso dia-a-dia.

QT-P6: Sim, o diálogo foi redigido de forma clara e informal, mas não deixou de ser um assunto científico, qualquer pessoa por mais leiga que ela seja consegue compreender.

QT-P9: Sim, pois como é diferente a leitura por conta das entonações dadas dentro da conversa, acaba por chamar mais atenção de quem ler, logo se faz melhor entendimento, pois não se perde o foco do diálogo.

QT-P13: Sim, a linguagem utilizada foi de fácil entendimento, por mais que o diálogo tenha sido criado de forma fictícia ele retrata bem a realidade de vários professores que estão desiludidos com seu método de ensino não só em ciências, mas em outras disciplinas também.

(Resposta dos participantes do curso de extensão, 2019).

A segunda pergunta referente ao texto didático questiona aos participantes se o diálogo colaborou na aquisição de novos conhecimentos, exemplificando quais foram esses conhecimentos e se houve alguma terminologia não compreendida.

O grupo investigado sinalizou que o diálogo gerou um ganho significativo sobre aspectos da Historiografia da Ciência, e devido o texto abordar recortes da História da Astronomia, acentuando os vícios historiográficos, os participantes apontaram um ganho de conhecimento sobre essa temática, a qual, segundo os mesmos, é pouco discutida durante sua formação.

Observaremos alguns descritos dos docentes em formação acerca da colocação citada acima:

QT-P11: Sim, sobre a Astronomia, o uso de novas formas para se utilizar em sala de aula, como o diálogo. Essas discussões por vezes não acontecem durante a graduação.

QT-P16: Sim, no trecho em que fala sobre uma combinação de lentes criadas por Galileu Galilei, isso só foi possível devido a diversos fatores que ocorreram antes e durante a conclusão.

QT-P17: Dificilmente existe conhecimento científico individual e genial, tem todo um processo para que se chegue a uma conclusão. Há erros dos cientistas, então como no caso da descoberta dos novos satélites ao redor de Júpiter.

(Resposta dos participantes do curso de extensão, 2019).

Segundo os participantes, todas as terminologias utilizadas na construção do diálogo foram compreendidas, mesmo aquelas que não eram conhecidas como, por exemplo, whiggismo, pseudo-história e quase-história, todas foram esclarecidas com a leitura do texto didático.

QT-P6: Todas as terminologias foram explicadas de forma bem didática e compreensível, até mesmo os termos que se referem aos vícios historiográficos.

QT-P17: Não houve nenhuma terminologia no texto que não foi compreendida, eu não conhecia o termo whiggismo, mas com o conceito discutido no texto, passei a conhecer e compreender.

(Resposta dos participantes do curso de extensão, 2019).

Por fim e segundo os participantes, a característica do texto didático em apresentar conceitos teóricos e exemplos para cada conceito no formato de um diálogo proporcionou aos professores em formação uma leitura mais dinâmica e interativa entre o leitor e o texto.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diversas pesquisas na área do Ensino de Ciências destacam a potencialidade do uso da História e Filosofia da Ciência para a compreensão sobre a construção de conhecimentos científicos. Dessa forma, foi determinado como objetivo deste artigo, apresentar os principais tipos de vícios historiográficos que uma construção histórica pode conter e discutir alguns desses equívocos com professores de ciências em formação através do uso de um texto didático. Para isto, foi criado um texto didático no formato de um diálogo fictício, no qual, teve como discussão central o uso do livro-texto de Ciências e a presença de vícios historiográficos. O diálogo também serviu como exemplo de estratégia didática para a inserção da HFC no Ensino de Ciências. O texto didático foi aplicado em um curso de extensão ofertado para professores de Ciências em formação da Universidade Federal do Piauí (UFPI).

Na tentativa de estreitar a relação entre a teoria e a prática, inseriu-se o texto didático e os principais resultados apontaram que a metodologia utilizada foi adequada. O grupo investigado sinalizou que o diálogo gerou um ganho significativo sobre aspectos da Historiografia da Ciência, principalmente devido à característica de abordar fatos do dia-a-dia da profissão docente.

Devido o texto abordar recortes da História da Astronomia, acentuando os vícios historiográficos, os participantes apontaram um ganho de conhecimento sobre essa temática, a qual, segundo os participantes, é pouco discutida durante sua formação.

Vale ressaltar que segundo os participantes, o investimento na inserção de elementos da HFC através do curso de extensão, proporcionou a eles uma formação mais adequada das potencialidades no uso da HFC na sala de aula.

Defendemos a ideia que devido a vasta quantidade de informações relacionadas à HFC, necessita-se de mais momentos de discussões na formação dos professores de Ciências. Por isso, acreditamos que o curso de extensão possa ter servido de ?pontapé inicial? na formação dos docentes de Ciências da UFPI e que os mesmos, busquem sempre estarem se informando e aperfeiçoando acerca da temática.

Por fim, não foi nosso objetivo apontar falhas na formação de professores de Ciências da UFPI, mas chamar a atenção para uma educação científica de maior qualidade. Acreditamos ser necessária durante a formação inicial e/ou continuada, a inserção de momentos de discussão sobre a construção dos conhecimentos científicos e seus aspectos históricos.

REFERÊNCIAS

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Anexo Texto didático

DIÁLOGO

A História da Ciência contida em livro-texto de Ciências: um produto confiável?

Criado de forma fictícia, mas nada impede que esse diálogo possa ou poderá acontecer em alguma escola do nosso país, o discurso vem retratar uma conversa entre o professor Ribeiro (professor recém-formado em Ciências da Natureza e que está no seu primeiro dia de trabalho) e os professores Bruno e Paula (professores curiosos e com alguns anos de experiências na docência, mas que aparentemente estão desiludidos em relação à disciplina Ciências no Ensino Fundamental).

Amigos desde o período infantil, Bruno e Paula sempre estudaram e trabalharam juntos e agora estão prestes a iniciarem suas experiências como docentes no 9° ano do Ensino Fundamental. No primeiro dia de aula do ano, os amigos relembravam sobre suas aulas ministradas em Ciências nos anos que se passaram.

Professora Paula: Nossa, Bruno! Vamos lecionar no último ano do Ensino Fundamental, como esses anos de trabalho passaram rápido, mas tem algo que me deixa triste...

Curioso como sempre o amigo e professor pergunta...

Professor Bruno: Eu percebi que você sempre vinha empolgada nos primeiros dias de aula dos anos anteriores. O que foi Paula? O que esta lhe deixando triste?

Professora Paula: É que nos anos anteriores sempre tinha a esperança de um ano promissor em relação à disciplina Ciências, mas sempre é a mesma coisa. Você não percebeu o quanto as nossas aulas aparentam ser repetitivas?

Professor Bruno: Realmente, amiga, você tem razão! Passamos por tantos conteúdos que foram abordados na disciplina de Ciências, mas lhe juro, se você um dia me perguntar algo que eu ministrei, eu posso até lhe responder, mas eu não consigo relacionar os conteúdos que ensino no dia-a-dia dos alunos, muito menos mostrar que o conhecimento científico, bem como o cientista, é algo próximo e possível deles também e não somente de gênios iluminados. Isso me deixa triste e desmotivado em relação à Ciência e ao meu trabalho.

Professora Paula: Concordo com você, às vezes somos questionados com algumas perguntas dos nossos alunos, algumas delas nem levamos em consideração o que eles pensam. Com o passar do tempo, isso acaba me deixando desiludida porque acho muito difícil neste momento esse cenário mudar.

Professor Bruno:Por isso quase não dou liberdade para alunos perguntarem nas minhas aulas de Ciências. As minhas aulas são baseadas exclusivamente no livro didático de Ciências. Para mim, todas as informações lá são corretas. O livro é meu guia. Faço de tudo para discutir até as últimas linhas deles. Como o tempo fica curto, não faço nada diferente. Sinto que o livro é como um ?par de muletas?.

Professora Paula: Eu, particularmente, não tenho nada contra o professor utilizar os livros de Ciências. Mas, como você, o que vem me deixando chateada é que somente utilizamos os livros de Ciências, quase não vejo um companheiro de profissão trazendo algo novo.

Passeando pelo seu novo local de trabalho, antes de iniciar suas atividades, o novo professor aparentava estar bastante entusiasmado com a oportunidade de aplicar todos os seus conhecimentos adquiridos durante os cinco anos que cursou na Universidade. Logo ele deparou-se com aqueles dois adultos conversando no pátio da escola e de forma inevitável o professor acabou percebendo que ambos estavam tristes. Aquela cena lhe deixou intrigado...

Professor Ribeiro: Olá, bom dia! Sem querer me intrometer na conversa de vocês, mas eu escutei um pouco dela e achei o tema bastante relevante, posso participar dessa conversa com vocês?

Professor Bruno:Bom dia. Claro que pode, mas quem é você? (De forma surpresa o professor perguntou).

Professor Ribeiro:Perdoem-me, nem me apresentei a vocês. Sou o novo professor de Ciências da escola e podem me chamar de professor Ribeiro.

Professora Paula: Que legal! Também somos professores de Ciências da escola e estávamos justamente discutindo sobre as nossas aulas de Ciência que foram ministradas nos anos anteriores e talvez você tenha algo a contribuir para a nossa discussão.

Professor Ribeiro:Lógico! Tenho algumas considerações importantes acerca da conversa de vocês.

Curiosos e com o olhar de esperança, os professores mais antigos dão total atenção ao professor novato que continua a conversa...

Professor Ribeiro: Com o cenário que foi discutido entre vocês é muito provável que durante as aulas de Ciências que ambos ministraram até os dias de hoje, não houve discussões relacionadas à temáticas da área de Ensino de Ciências, uma dentre elas, a qual gosto muito, é a História e Filosofia da Ciência.

Professor Bruno: Óbvio que não, colega, eu nem imagino o que seja isso...

Professor Ribeiro: Calma, meu amigo, eu explicarei a vocês. A História e Filosofia da Ciência na sala de aula é um ramo da Didática das Ciências, a qual se dedica às questões específicas de ensino e de aprendizagem das Ciências Naturais e suas relações com a História e Filosofia da Ciência. Eu acredito que ela pode ser utilizada como uma ferramenta no Ensino de Ciências.

Professora Paula: Interessante, professor, estamos entendendo, mas como aliar a História e Filosofia da Ciência nas aulas que temos diariamente?

Professor Ribeiro: Eu certamente irei ser colega de profissão de vocês, então irão presenciar diversas formas, mas darei alguns exemplos: debates, peças teatrais, o uso de experimentos históricos, dentre outros.

Mesmo com a explicação do novo professor, o professor Bruno se mostrava inquieto e tinha uma dúvida em relação à explicação do novo colega...

Professor Bruno: Mas, Ribeiro, você poderia nos dar exemplos em relação ao livro didático? Como associar a História e Filosofia da Ciência com os conteúdos dos livros? Porque nós e muitos outros professores só utilizamos o livro como única forma de ensinar.

Professor Ribeiro: Boa pergunta, Bruno! Em relação ao livro didático, esse é um tema que gera muitas questões em relação aos profissionais da educação. Sem nenhuma dúvida o livro é uma ferramenta de extrema importância na educação, mas ele deve ser utilizado pelo professor como algo que norteie suas ações e não ser utilizado de forma única e exclusiva pelo professor. Eu notei que vocês irão trabalhar com o 9° ano do Ensino Fundamental durante esse ano letivo. Agora em mãos, eu tenho um livro do 6° ano, o qual eu gostaria de dar exemplos para vocês de como utilizar a História da Ciência. Estes exemplos, certamente, vocês não os conhecem. Vocês aceitam?

Professora Paula e Professor Bruno: Claro! (Ambos responderam de forma instantânea e com muito entusiasmo).

Professor Ribeiro: Pois bem, vamos lá. Abrindo o livro na parte que discute a astronomia, eu me deparo com o seguinte trecho ?[?] Hoje o feito de Galileu pode ser repetido por qualquer câmera digital de baixo custo. No entanto, há 400 anos, este foi um dos marcos mais importantes da ciência [...]?. Eu pergunto para você, eu posso fazer essa afirmação?

Paula toma a liberdade e responde ao novo professor da escola...

Professora Paula: Sim! Há muito tempo que trabalhamos e confiamos no que o livro traz para nós. Os conhecimentos descritos pelos autores, entendemos que estejam corretos.

Professor Ribeiro: Não devemos possuir esse tipo de atitude, companheiros. Com conhecimentos adquiridos aos aspectos Históricos da Ciência, nota-se certo menosprezo por parte do autor do livro ao comentar esses fatos históricos, principalmente ao retratar as contribuições dos estudiosos do passado como ideias simplistas à luz das teorias aceitas no momento. De certa forma, os livros passam uma ideia totalmente equivocada sobre como a Ciência é. Este é um erro bastante comum e é conhecido como whiggismo.

Professora Paula:Whi... O quê? (A professora pergunta com certo tom de dúvida)

Professor Ribeiro: Whiggismo... É quando o texto histórico apresenta uma abordagem que valoriza somente os conhecimentos atuais em detrimento dos anteriores, analisando o passado à luz do presente. E se prestarmos um pouco de atenção no trecho fica implícito essa visão.

Professor Bruno: Que legal, Ribeiro! Jamais imaginaríamos isto... Será que podemos encontrar outros exemplos?

Professor Ribeiro: Claro que sim, observem esse outro trecho: ?[?] Entretanto uma pessoa com extraordinário talento descobriu que poderia utilizar uma combinação de lentes para ampliar o alcance de sua visão [...] Ao apontar para o firmamento esses equipamentos, o céu nunca mais foi o mesmo; o responsável por essa revolução: o italiano Galileu Galilei [...]?. Em relação a esse trecho o que vocês me diriam?

Professora Paula: Caro colega, você está me deixando tão surpresa a cada momento, eu realmente procuro identificar algo de estranho nesse trecho, porém não consigo. Não é verdade, Bruno?

Professor Bruno:Concordo com você, Paula. E o que você tem a dizer sobre aquele trecho, Ribeiro?

Professor Ribeiro:O trecho retrata um Galileu praticamente mítico, romantizando-o e apresentando suas descobertas como algo inevitável e individual, muito devido a sua face genial. Isso evidência uma concepção totalmente distorcida sobre o conhecimento científico e se caracteriza como uma pseudo-história.

Professor Bruno: Você poderia explicar melhor essa tal de pseudo-história? Fiquei com um pouco de dúvida em relação a ela.

Professor Ribeiro:Claro! Quando o texto histórico apresenta relatos romantizados, descobertas inevitáveis, individuais e geniais; ausência de erros no processo de construção ou derrocada de teorias científicas; personagens brilhantes, geniais e sem erros na sua carreira; conclusões sem relação com estudos anteriores, dentre outras. O texto também renega a influência de fatores extracientíficos na Ciência, teorias antecedentes, contrárias ou alternativas à teoria apresentada. Quero dar mais um exemplo que podemos encontrar e certamente geraria uma ideia errada em relação aos aspectos históricos da Ciência, posso?

Professora Paula: Pode sim, amigo. Estamos aprendendo muito com esta conversa.

Professor Ribeiro: Vamos observar mais esse trecho ?[?] o maior feito de Galileu, naquela época foi, segundo ele próprio, a descoberta de 'novos planetas' ao redor de Júpiter. Galileu descobriu quatro satélites na órbita desse planeta em janeiro de 1610 [?]?. Com alguns conhecimentos que vocês irão adquirir durante outras discussões como essa, seria muito provável que iriam contestar esse trecho, pois podemos notar a transposição de um Galileu notável e genial, onde seus escorregões são excluídos do relato, isso acaba gerando um vício conhecido como quase-história.

Professor Bruno: Explique para nós mais sobre a quase-história...

Professor Ribeiro:Certo! Quando o texto faz uma reconstrução dos fatos históricos, posicionando os acontecimentos do passado numa cronologia até o presente com intuito, por exemplo, de renegar os erros dos grandes cientistas ou enaltecer seus acertos. Entenderam?

Professora Paula:Sim, interessante, professor Ribeiro, esses tipos de discussões não tivemos durante o nosso período de graduação, se tivéssemos, certamente teríamos outra ideia em relação aos textos históricos que o livro didático traz e seria muito provável que não teríamos esses escorregões e dúvidas.

Professor Ribeiro: Entendo, minha intenção foi justamente mostrar alguns exemplos para vocês. Esses exemplos que mostrei abrange alguns vícios historiográficos (whiggismo, pseudo- história e quase-história) e quase todos os autores trazem de forma implícita ou até mesmo explícita esses vícios. Isto é extremamente comum.

Completando seu raciocino, o professor Ribeiro fala...

Professor Ribeiro:Algumas das minhas intenções durante o ano letivo é despertar esse lado crítico nos meus alunos e até mesmo em vocês e, além disso, é sempre viável que nós, durante as aulas que iremos ministrar, levemos em consideração as perguntas e os pensamentos que nossos alunos trazem do dia-a-dia para utilizarmos como formas de abordar esses temas.

Professora Paula: Mas, amigo, por que não vimos estas discussões e exemplos como esses durante nossa graduação?

Professor Ribeiro:Isso pode se dar por inúmeros motivos, dentre eles está o próprio currículo do curso que vocês foram graduados. É muito provável que ambos, durante suas graduações, não tiveram esse tipo de discussão. Se tiveram, não foi de forma coesa ou com qualidade, sendo assim, insuficiente para a utilização no ensino. Devemos ter em mente que a formação não deve ser considerada como um ponto final, mas sim um ponto de partida. E não podemos esperar que nós, professores, sejamos historiadores da Ciência. O que devemos ter em mente é que sejamos capazes de distinguir o bom e o mau texto histórico para utilizar com nossos alunos. O que pode fazer a diferença no futuro são discussões como essa que estou tendo com vocês e que gerem utilizações adequadas dos textos históricos desde o Ensino Fundamental.

Professor Bruno:Professor Ribeiro, eu percebi que você só discutiu um pouco a parte da História da Ciência, mas você no início havia falado também que seria interessante aprendermos sobre a Filosofia da Ciência.

Professor Ribeiro: Sim, realmente, mas, meus queridos, essa é uma longa discussão, não precisamos ter pressa, vocês lembram que eu afirmei que iriamos discutir sobre o que vem a ser o conhecimento científico?

Professora Paula:Sim, nos lembramos e certamente cobraremos essas explicações de você. (Respondeu com certo entusiasmo a professora).

Professor Ribeiro: Pois é justamente neste momento que discutirei com vocês e todo o restante dos professores, se eles aceitarem, sobre a Filosofia da Ciência. Teremos muitas discussões a respeito da História e Filosofia da Ciência. E caso vocês tenham interesse numa formação continuada, seria de fundamental importância para a carreira profissional de vocês. Na Universidade tem vários grupos que estudam o Ensino de Ciências. Eu fiz parte de um sobre o uso da História e Filosofia da Ciência na sala de aula. Mesmo depois de formado desejo continuar meus estudos sobre a temática, pois o grupo ministra palestras e cursos de extensões que abrange essas e outras temáticas.

Professor Bruno: Que legal! Eu e a professora Paula estamos muito ansiosos para presenciarmos essas discussões e certamente todo o restante dos professores irão aceitar sem nenhum problema. E sem nenhuma dúvida, aproveitaremos essa sua dica e vamos procurar aperfeiçoar nossos conhecimentos.

Professor Ribeiro:Ótimo! Espero que tenhamos boas discussões durante este ano e nos próximos, e agora devemos esperar nossas aulas, pois pelo que me parece o sinal de iniciar as aulas está prestes a tocar. Até a sala dos professores e bons trabalhos!

Notas

4 Pode-se chamar de ?historiografia? a produção dos historiadores, para diferenciá-la da ?história? ? entendida como um conjunto de situações e acontecimentos pertencentes a uma época e a uma região ? que é o objeto de estudo dos historiadores. Temos, assim, dois níveis distintos. A história é algo que se pode considerar como existente independentemente da existência dos historiadores (a menos que se adote uma postura filosófica idealista) ( MARTINS, 2006, p. 1).
5 ALLCHIN, D. Pseudohistory and Pseudoscience. Science & Education 13: 179-195, 2004.

Autor notes

Mestrado em Educação Científica e Tecnológica (UFSC). Membro do Grupo de Pesquisa CEUCI (UFSC), Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Endereço para correspondência: Campus Reitor João David Ferreira Lima, Sala 205, Bloco B do CED, Trindade, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. CEP: 88040-900.
Professor de Biologia da rede particular de ensino, Teresina, Piauí, Brasil. Endereço para correspondência: Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, Ininga, Teresina, Piauí, Brasil, CEP: 64049-550.
Mestrado em Ensino de Ciências Naturais e Matemática (UFRN). Doutorado em Ensino de Ciências e Matemática (UFRN). Docente do Curso Licenciatura em Ciências da Natureza (UFPI), Teresina, Piauí, Brasil. Endereço para correspondência: Campus Universitário Ministro Petrônio Portella, Ininga, Teresina, Piauí, Brasil, CEP: 64049-550.
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