Recepção: 18 Fevereiro 2020
Aprovação: 24 Maio 2020
DOI: https://doi.org/10.26571/reamec.v8i2.9851
Resumo: Uma das perspectivas da etnomatemática é ressignificar os conteúdos da matemática escolar. Para isso, a ênfase deve ser dada à aprendizagem dos alunos ancorada em seu ambiente cotidiano, relacionando os conteúdos escolares aos saberes provenientes da cultura. Dessa forma, é importante investigar práticas em que a matemática escolar seja concebida como parte da realidade e da própria vida. Este artigo tem como objetivo mostrar estratégias de natureza matemática que são trabalhadas e processadas em atividades camponesas. Essas atividades possibilitam, por meio de uma Associação de Pequenos Agricultores, criar e recriar formas de resistência à exploração dos produtores. Utilizamos uma abordagem qualitativa, pelo viés da Etnomatemática, com observação participante, registros fotográficos e entrevistas com produtores rurais. Os resultados mostram processos mentais de natureza matemática dos produtores rurais, independentes de escolarização, que foram desenvolvidos, por meio da cultura, nas suas atividades diárias. Esses processos são decoloniais e podem ser aproveitados como estratégias de ensino e aprendizagem em uma escola da comunidade.
Palavras-chave: Etnomatemática, Produtor rural, Decolonialidade, Cultura.
Abstract: One of the perspectives of ethnomathematics is to re-signify the contents of school mathematics. For this, the emphasis should be placed on students? learning anchored in their daily environment, relating school contents to knowledge derived from culture. Thus, it is important to investigate practices in which school mathematics is conceived as part of reality and of life itself. This article aims to show strategies of mathematical nature that are worked and processed in rural activities. These activities make it possible, through an Association of Small Farmers, to create and recreate forms of resistance to the exploitation of producers. We use a qualitative approach, from the perspective of Ethnomathematics, with participant observation, photographic records and interviews with rural producers. The results show mental processes of a mathematical nature of rural producers, independent of schooling, which were developed, through culture, in their daily activities. These processes are decolonial and can be used as teaching and learning strategies at a school of the community.
Keywords: Ethnomathematics, Rural producer, Decoloniality, Culture.
1 INTRODUÇÃO
A Associação de Pequenos Agricultores de Cristalino (APAC) é uma organização profissional que agrupa, representa e defende os interesses dos profissionais da agricultura e pecuária da comunidade de Cristalino ? Nova Venécia, no estado do Espírito Santo, Brasil. É uma organização de um grupo majoritário do setor agrícola: fazendas familiares cujos proprietários são pequenos agricultores.
Fundada em 30 de dezembro de 1992, a Associação de Pequenos Agricultores de Cristalino ? Nova Venécia/ES, foi inaugurada em 06 de novembro de 1993. Ela está integrada à estrutura de trabalhadores autônomos do Sindicato possuindo 30 afiliados, agricultores e criadores profissionais de todos os setores e que possuem na Associação uma organização que os representa em todos os níveis e presta serviços necessários a eles.
A APAC é uma organização agrária jovem que se reflete, acima de tudo, em dois fatores: o ímpeto em defender com seu trabalho o futuro da agricultura familiar e a rápida e enorme experiência adquirida nos últimos anos, tendo crescido paralelamente à integração da agricultura na comunidade e à evolução vertiginosa da agricultura na região.
A atividade da APAC reflete a evolução permanente das alternativas e propostas diante de problemas específicos e os grandes debates sobre o futuro da agricultura e do meio rural. Portanto, se tornou a organização agrícola de referência em termos políticos, sindicais, sociais e informativos de toda a região.
A história do homem também é a história de como resolver seus problemas e é justamente por isso que o progresso da ciência e da tecnologia em geral e da matemática em particular é de fundamental importância. A resolução de problemas é indissociável à nossa existência como seres sociais.
Desde o surgimento do homem na Terra, a própria vida tem exigido que encontremos soluções para os vários problemas que nossa sobrevivência coloca. A adaptação ao ambiente coloca situações problemáticas diariamente, tanto pelas mudanças que ocorrem em nosso meio (escassez de alimentos, condições climáticas adversas etc.) quanto pela visão cada vez mais ampla que temos da realidade. Nem sempre temos resposta imediata para todos eles, ou soluções relacionadas às nossas crenças ou aos instrumentos (materiais ou teóricos) com os quais enfrentá-los.
Assim, ao longo de nossa existência milenar no planeta, nossa história continua enfrentando e resolvendo problemas cada vez mais complexos, em um número crescente de áreas, tanto em nossa vida social quanto no ambiente ao nosso redor. Assim, cabeças e mãos permanecem unidas como no passado, ajudando-se mutuamente. E o conhecimento que estamos adquirindo consolida e sintetiza a grandeza da capacidade humana de resolver problemas. Ao longo da história, todo povo que atingiu um mínimo de desenvolvimento dedicou, ainda que inconscientemente, parte de seus esforços aos conhecimentos e valores que consideraram como válidos, conservando e transmitindo de geração em geração, criando uma marca da sociedade no indivíduo.
Para a APAC, todos os associados da comunidade rural e local, são unidos e inseparáveis. Na sua visão de mundo, é difícil entender a separação dos elementos que cercam sua vida e conceitos como recursos naturais ou biológicos, que estão relacionados a uma visão cultural diferente. Portanto, território, habitat ou ecossistema, que abrangem vários componentes da natureza, são conceitos de natureza humana integrados mais próximos da visão de mundo rural e local.
Entre esses conhecimentos e crenças, esta pesquisa enfoca aqueles que se manifestam através de avaliações, interpretações e atribuições de significado, bem como através de práticas concretas que demonstram um tipo específico de relação com a natureza, uma vez que, com base nisso, justifica-se a necessidade da inclusão de conhecimentos tradicionais locais como elemento indispensável nos processos educativos sobre questões de natureza matemática.
Para o encadeamento do texto, no tópico dois traremos conceitos essenciais, especificando a etnomatemática como uma oportunidade que contempla as dimensões pedagógica, cognitiva e política, as quais mesclam-se para explicitar a decolonialidade como maneira de resistir e insurgir contra o que é proposto e dito como natural nas salas de aula, especificamente de matemática. Ao longo do texto apresentaremos autores que corroboram a etnomatemática como modalidade para o ensino e a aprendizagem dos conteúdos matemáticos escolares e como maneira de modificar o olhar dos professores que atuam nessa área de ensino. A seguir, abordaremos os aspectos metodológicos que foram utilizados, tais como o contexto, os sujeitos e os instrumentos.
Os resultados e discussões trazem relatos dos produtores rurais, bem como, as análises críticas e reflexivas no que tange as possibilidades de ensino e de aprendizagem dos conteúdos matemáticos escolares, partindo do conhecimento desses produtores. Finalizando, as considerações respaldam a contextualização, a interculturalidade e os saberes e fazeres desses produtores rurais como estratégias de ensino e de aprendizagem para a resistência e insurgência diante daquilo que naturalmente ocorre nas salas de aula.
2 ETNOMATEMÁTICA E SOLUÇÃO DE PROBLEMAS PROVENIENTES DA CULTURA
A Etnomatemática é um programa de pesquisa, denominado Programa Etnomatemática, que promove o respeito à diferença, solidariedade e cooperação, para que cada uma das diferenças possa apoiar a construção de um mundo mais justo e digno para todos. Vários são os autores que tratam o Programa Etnomatemática no contexto da Educação Rural, como Mattos (2016) e Knijnik et al. (2012) , para os quais as práticas de fora da escola podem ser utilizadas no ensino e na aprendizagem dos conteúdos escolarizados, mobilizando a Etnomatemática como ferramenta metodológica.
De acordo com Knijnik et al. (2012) :
O pensamento etnomatemático está centralmente interessado em examinar as práticas de fora da escola, associadas a racionalidades que não são idênticas à racionalidade que impera na Matemática Escolar [...] olhar para essas outras racionalidades, sem jamais se esquecer do que está no horizonte, é pensar outras possibilidades para a Educação Matemática praticada na escola ( KNIJNIK et al., 2012, p. 18).
Em Mattos (2016) vemos que o conhecimento é caracterizado ou condicionado pelas diferentes realidades (experiências, representações e descrições), que variam dependendo da cultura matemática própria, como uma abstração usada pelos seres humanos, em que o processo é caracterizado para resolver problemas de seu ambiente, seu contexto. Dessa forma, aborda a existência de diferentes contextos e diferentes formas de lidar com estes, ou seja, a existência de múltiplas matemáticas, dando uma conceituação básica de Etnomatemática como as formas de lidar com o contexto.
Os conceitos de Etnomatemática se tornaram mais complexos e acabaram se enriquecendo, mostrando a dinâmica interna e vitalidade desse programa de pesquisa. Exemplos da diversificação do conceito podem ser encontrados em Gerdes (2012), que apresenta visões da Etnomatemática em várias perspectivas de matemáticas, no meio de etnógrafos, matemáticos e professores de matemática. A Etnomatemática promove certos objetivos sociais, culturais e políticos, e alguns destes são criações de uma consciência matemática de povos historicamente excluídos.
D´Ambrosio (2011) apresenta como um programa de investigação em história e filosofia da matemática, com claros envolvimentos pedagógicos, mostrando como um campo de investigação complexo e diverso, o qual está construído a partir das diferentes dimensões, entre elas a dimensão conceitual, histórica, cognitiva, epistemológica, política e educacional. D?Ambrosio (2011)não trata propriamente da dimensão pedagógica, mas aborda de maneira geral a educacional que contempla essa dimensão. ?A proposta pedagógica da etnomatemática é fazer da matemática algo vivo, lidando com situações reais no tempo (agora) e no espaço (aqui). E através da crítica questionar o aqui e agora? ( D?AMBROSIO, 2011, p. 46-47). É desse entendimento que o autor trata.
Mattos (2020, p. 123) corrobora esse entendimento e acrescenta que a perspectiva pedagógica possibilita ?fortalecer raízes e a identidade e empodera os membros de diferentes grupos socioculturais?. Já para a dimensão cognitiva, D?Ambrosio (2011)propõe que se inicie daquilo que o aluno já sabe, utilizando o currículo trivium ? literacia, materacia e tecnocracia ? para organizar estratégias de ensino e de aprendizagem. Sobre a dimensão política, D?Ambrosio (2011) afirma que se tem que reconhecer as raízes culturais dos alunos para dignificá-las em um processo de síntese entre as culturas. Com essa mesma visão, Mattos (2020) adentra pela decolonialidade como maneira de resistir e de transcender à colonialidade.
Da mesma forma, Walsh (2017, p. 25, grifo da autora) afirma que ?o decolonial denota, então, em um caminho de luta contínua em que se pode identificar, tornar visível e incentivar ?lugares? de exterioridade e construções alter-(n)ativas?. Consequentemente, os professores ao pronunciarem o mundo em um ato de insubordinação criativa, dá oportunidade aos alunos de problematizá-lo em um ato de resistência ao que está posto e proposto para eles nas instituições de ensino.
Bandeira (2016, p. 77), nos aponta que a prática pedagógica,
[...] leva os alunos a acreditarem que a aprendizagem de matemática se dá através de um acúmulo de fórmulas e algoritmos, que não é uma construção realizada pela humanidade, que não tem nada a ver com suas vidas, que é um corpo de conceitos verdadeiros, estáticos e neutros do qual não se questiona.
Assim, para ensinar uma matemática que tenha sentido para os alunos é preciso conhecer suas formas de vida, suas culturas, seus anseios e conhecimentos. Faz-se necessário a participação dos indivíduos do grupo para dialogar, interagir, ser agente ativo nesse processo, pois de acordo com Mattos (2015),
Conhecer simplesmente os conteúdos curriculares sem levar em consideração o significado e a importância que eles assumem em nossas vidas cotidianas não faz sentido para o educador e tampouco para o educando. Da mesma forma não tem significado desconsiderar as experiências vivenciadas além dos muros da escola, em um ambiente cultural, tanto para o educando quanto para o educador ( MATTOS, 2015, p. 78).
Os saberes de natureza matemática estão presentes em muitas atividades agrícolas. De modo geral, as pesquisas baseadas no Programa Etnomatemática que vêm sendo realizadas no Brasil, colocam em destaque os conhecimentos gerados a partir das necessidades de sobrevivência dos indivíduos.
Em todos os grupos socioculturais existe uma grande quantidade de conhecimentos próprios que provém da cultura. De acordo com D?Ambrosio (2011, p. 22), ?o cotidiano está impregnado dos saberes e fazeres próprios da cultura. A todo instante, os indivíduos estão comprando, classificando, quantificando, medindo, [...] e, de algum modo, avaliando, usando os instrumentos materiais e intelectuais que são próprios à sua cultura?. Dessa forma, um dos propósitos que a Etnomatemática comtempla, leva em consideração a experiência de vida do indivíduo, a sua história e principalmente a sua cultura.
É de grande importância o reconhecimento de saberes matemáticos dos diferentes grupos socioculturais. ?Cada indivíduo carrega consigo raízes culturais, que vêm de sua casa, desde que nasce. Aprende dos pais, dos amigos, da vizinhança, da comunidade. O indivíduo passa alguns anos adquirindo essas raízes? ( D?AMBROSIO, 2011, p. 41). Assim, buscamos na Etnomatemática um caminho para respaldar os resultados da pesquisa, pois encontramos nessa área da Educação Matemática conceitos que vão ao encontro do nosso objeto de estudo.
A importância da abordagem focada em um problema consiste em promover formas de ensino e aprendizagem que respondam a situações problemáticas próximas à vida real. Para isso, recorre-se a tarefas matemáticas e atividades de dificuldade progressiva, que apresentam demandas cognitivas crescentes para os alunos, com relevância para suas diferenças socioculturais. A abordagem enfatiza o conhecimento relevante para uma situação problemática, apresentada em um contexto preciso específico, que mobiliza uma série de recursos ou conhecimentos, por meio de atividades que atendem a certos critérios de qualidade. A abordagem focada na solução de problemas surge como uma solução alternativa a ser enfrentada em nosso trabalho de ensino: conseguir que o aluno supere as dificuldades do raciocínio matemático; as dificuldades em promover o significado e a funcionalidade do conhecimento matemático; o tédio, desvalorização e falta de interesse em matemática; as dificuldades para o desenvolvimento do pensamento crítico na aprendizagem da matemática; e o desenvolvimento de um pensamento matemático descontextualizado ( GRAHAM, 2010).
3 MATERIAIS E MÉTODOS
De acordo com D?Ambrosio (1996), a pesquisa qualitativa é muitas vezes considerada como etnográfica, participante ou naturalista, pois a investigação é focada na pessoa, enfatizando o ambiente sociocultural. Corroborando esse autor, Brito e Mattos (2016) realizaram pesquisa qualitativa com produtores rurais, com o objetivo de investigar os saberes matemáticos envolvidos nas práticas de produção, armazenamento e comercialização de seus cultivos, estabelecendo relações dos saberes tradicionais com os escolarizados. De acordo com eles:
o poder de síntese de alguns agricultores, o raciocínio lógico apresentado por eles diante de alguns problemas matemáticos reais e a argumentação apresentada diante de suas interpretações, devem ser apreciadas por um sistema escolar, que em sua maioria ainda é desconectada das questões práticas dos envolvidos [...] (BRITO; MATTOS, 2016, p. 36).
Dessa forma, a metodologia que utilizamos está baseada nos pressupostos de pesquisa qualitativa com características etnográficas, visto que foi desenvolvida em comunidades rurais de pequenos produtores. Os procedimentos metodológicos da pesquisa foram: entrevistas; rodas de conversas; diário de campo; fotografias; e observação participante. A análise dos dados foi feita com base nas entrevistas com esses produtores rurais.
O local da pesquisa é a região de Cristalino, município de Nova Venécia, no estado do Espírito Santo ? ES. Os sujeitos são seis produtores rurais (produtor A; produtor B, sua esposa e seu neto; produtor C; produtor D), pertencentes a Associação de Pequenos Agricultores de Cristalino (APAC), e todos concordaram em participar da pesquisa. O presidente da APAC, que assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, solicitou uma cópia do artigo, depois de publicado, para ser arquivado na Associação.
4 RESULTADOS E DISCUSSAO
4.1 Manejo de café
Em visitas realizadas aos agricultores, foi possível identificar conhecimentos matemáticos na prática do produtor rural. O campo apresenta um vasto leque de possibilidades para o desenvolvimento de práticas educativas e para a aprendizagem de conteúdos matemáticos, de forma significativa e articulada com as atividades cotidianas. No contexto da cafeicultura, com respaldo no Programa Etnomatemática, procuramos identificar, nos saberes e fazeres dos agricultores, as estratégias de natureza matemática presentes nas atividades agrícolas, como as respectivas metragens (espaçamentos) na lavoura, conversões de medidas, razão e proporção e cálculos envolvendo frações. Descreveremos a seguir o relato de uma atividade de plantio de café que envolve algumas dessas estratégias de natureza matemática utilizadas por um trabalhador rural, que chamaremos de produtor A, presidente da Associação, que é dono da propriedade juntamente com dois irmãos.
Em seu relato o produtor A disse que a lavoura mais velha tem 18 anos de existência, a colheita é grande a cada ano, porém, a mão de obra é de qualidade ao longo de cada ano que passa, para manter o nível anual e atual das colheitas. Ele mostrou um certo domínio de cálculos mentais envolvendo números racionais simples. Segundo ele, ?a área da terra é um alqueire e meio, um alqueire de terra equivale a cinco hectara, então meio alqueire são duas hectara e meia, que dá um total de sete hectara e meia, que dividido por três, cada um possui duas hectara e meia?.
Os relatos eram sempre com muita clareza e firmeza e, em certos casos, eram exemplificados apontando para o chão e riscando. O produtor A deixou claro que não tem grau de escolarização, porém manuseia com facilidade a matemática apreendida na sua cultura. Ele nos disse que o plantio de maior escala é o café, seguido da pimenta do reino, e que em 2018 foi colhida uma faixa de 300 sacas de café. O produtor A relatou que dos 4.000 pés de café, a parte dele rendeu o equivalente a 107 sacas de café. Já em 2019, somente a parte que lhe cabia, 1.200 pés de café, a colheita chegou a 80 sacos de café maduro, que pilado, rendeu um total de 20 sacas. Segundo ele, ?talvez não tenha dado mais, pelo fato do café ser muito graúdo, cascudo?.
Em outra parte do terreno, onde há uma plantação separada, foram colhidos 70 sacos de café maduro. Ao caminharmos juntos no meio da lavoura onde se encontra o plantio, questionamos ao produtor A sobre o espaçamento de pé em pé de café. Ele disse que usa uma metragem antiga, voltada mais para a prática. Tem lugar que de pé para pé, varia de 2,5m por 2,0m, já em outros locais varia de 3m por 1,5m ou por 1,0m. A desproporcionalidade das metragens é relativa, devido a fertilidade local da terra, alega o produtor A. Ele sempre mostrava com as mãos o processo que seguia o plantio. Ele explicou que:
se plantamos 1.000 mais 2.300 pés é igual a 3.300 plantas por hectares, agora estão plantando 4.000 mil plantas por hectares, não é vantagem, fica elas por elas, quatro mil plantas tem que deixar um galho ou dois e se esticar mais um pouco pode deixar três galhos por planta, vai produzir a mesma coisa que o outro, o café vai ter mais espaço, mais aberto, morre menos.
(produtor A, 20/nov./2019).
Ao ser questionado sobre o porquê de plantar nesse espaçamento maior, o produtor A respondeu que é melhor ?mesmo saindo um pouco mais de mato. E outra! o tronco não é tão grande como os cafés plantados em outras época?. Vemos, assim, que o produtor rural percebe a existência de diversos conceitos matemáticos utilizados em função de diferentes problemas que tem que enfrentar, como problemas numéricos, razão e proporção, estimativas e metragem. À medida que se depara com uma situação-problema, o produtor vai ampliando o seu conhecimento acerca da solução.
4.2 Manejo de psicultura
Na visita realizada, e nos diálogos em rodas de conversas, foi possível identificar conhecimentos matemáticos na prática dos produtores rurais. Esses saberes são presenciados nos estilos e técnicas de lidar com o ambiente natural. Descreveremos a seguir o relato de uma atividade de piscicultura que envolve estratégias de natureza matemática utilizadas por uma família de trabalhadores no seu dia a dia: o produtor rural B de 66 anos, a esposa de 64 anos e o neto de 15 anos. Esses agricultores rurais são sócios da Associação de Pequenos Agricultores de Cristalino ? Nova Venécia/ES.
Ao redor da casa da família há uma represa grande, que segundo o produtor B contém um alto índice de volume d?água e grandes variedades de peixes, com existência de três ?tanques redes?. Esses tanques redes são paralelepípedos retos de base quadrada com lados medindo dois metros e altura de um metro. O produtor B utilizou uma linguagem corporal com as mãos para explicar a figura do tanque. Ele também riscou no chão para mostrar a metragem da base do tanque. Ele relatou: ?quero dizer a vocês que em cada lado há uma identificação feita desses lados que é, dois por dois assim, e dois por dois assim, que vai dá oito metros, é o mesmo que quatro lados de dois metros cada?. Vale ressaltar que os outros dois tanques possuem as mesmas dimensões desse. Na Figura 1, vemos um dos três tanques redes existentes na represa. Observamos que, de um metro de profundidade, 80 centímetros ficam submersos e 20 centímetros ficam fora da água.
O produtor rural B disse que está na hora de reformar os tanques redes, que vão levantá- los e tirá-los para o seco. Disse, ainda, que vai fazer a manutenção dos tanques com arames. O neto dele acredita que não vai estragar. Perguntamos ao produtor B se os peixes eram soltos na represa. Ele disse que sim e relatou que ?colocava em torno de 400 fiotes em cada tanque?, e que acredita que na represa grande tenha muitos peixes soltos na atualidade.
Além dos tanques redes, há também os ?poços terrenos? na propriedade, que são usados para a fase inicial da criação dos peixes. Segundo o produtor B, ?esses poços terrenos são uma espécie de berçários?. A metragem dos poços terrenos, segundo ele, é de 70 cm a 80 cm de profundidade, 15 metros de comprimento e três de largura. Ele disse que ele mesmo estabeleceu essa metragem. ( Figura 2).
Segundo informações do produtor B, responsável:
Em poços terrenos existente na parte de cima da represa maior, no lado da casa de moradia, o processo de criação se inicia, sendo que em 60 dias, o tratamento para crescimento procede, jogando 200 gramas de ração, em um berçário de 1000 fiotes, ai despois de um tempo começa aumentar a alimentação [ração], uma média de 300 gramas pro vez que vai de 900 gramas a um quilo por dia. Em aproximadamente, de 60 a 80 dias, eles vão para o tanque rede, aí começa a jogar um quilo de ração pro vez em média de três quilo por dia.
(Produtor rural, 20/nov./2019).
Ao serem questionados de onde eles tiraram essa base de cálculo para a alimentação, o produtor rural B, chefe da família, respondeu que tem uma tabela, onde no início se baseavam para a alimentação. No processo inicial passaram por várias formações, estudos, até terem uma ideia final formativa de todo o processo. O neto do produtor rural B, respondeu que:
a princípio os tanques redes vieram por meio de verbas municipais, pela Associação de produtores rurais juntamente com materiais, onde foram aplicados variados cursos sobre o assunto, onde apresentavam manuseio de como lidar com os peixes e tabelas básicas com quantidade de alimentação específica. De acordo com o desenvolvimento, o tipo de alimentação era variado, cada qual com diferentes quantidades de proteínas. As formações ocorria na própria casa dos meus avós, a aplicação ocorria por pessoas com formação na área, recebíamos materiais como, livros e DVD.
(Neto do produtor rural, 20/nov./2019).
Questionamos como eles se baseavam no início para realizar os cálculos, sem essa formação. O produto B afirmou que só começaram a criação a partir dessa formação, já que ?na compra dos fiotes, o próprio vendedor passava uma tabela, o produtor rural comprava ração fina com ele?. Questionamos se era via Associação e ele disse que os tanques redes sim, porém os peixes eram individuais:
na época quando iniciou esse trabalho só tinha ele, despois veio o Curió [outro produtor sócio vizinho], a compra dos fiotes, ocorria de forma separada, despois de um tempo a gente começou a comprar as fiotadas via Associação e via secretaria da agricultura, com localização no centro do município de Nova Venécia/ES. A Associação de Pequenos Agricultores se reuniu, fizemos um grupo grande, comprávamos lá em torno de 15 mil fiotes de uma só vez, em lugar que pagávamos R$ 200,00 reais ao milero, passamos a pagar R$ 120,00, já vinham grandes e podia colocar diretamente no tanque rede. Aí podia compra a ração por lá via Associação, aí vinha o caminhão de ração, pagávamos uma taxa, o processo de criação de peixe foi muito grande. Esse processo de criação gira em torno de sete a oito anos, porém em 2019 esse processo reduziu muito.
(produtor rural B, 20/nov./2019).
Sobre os três poços terrenos na represa maior, o produtor B relatou:
O poço pequeno fiço para mim ter fiotes, já o outro é nascente mesmo, o mais de baixo tinha que encher de água, que vinha de fora , despois esvaziava para tirar os fiotes, tinha uma bomba automática, a bomba trabalhava duas horas despois desligava, ficava duas horas desligada e duas horas jogando água, eu tinha uns canos aqui a água saia e circulava de um poço ao outro.
(Produtor rural, 20/nov./2019).
Atualmente parte desses poços se encontra inativa, porém o produtor B nos levou até o local e nos explicou, pausadamente, como arquitetou todo o processo. Ele disse que apesar de não sabe ler nada e de escrever o nome muito ruim, isso não o ?esbarra? em nada. Em visita aos poços pudemos presenciar parte da realidade descrita pelo produtor B. Ele nos mostrou a largura, a profundidade, o volume da água, entre outras coisas. A funcionalidade foi detalhadamente descrita pelo produtor. Ele mediu o comprimento mencionado de 15 metros e a largura de três metros, e explicou o processo de aproveitamento de água.
O processo de escoamento se dá em posição inversa em cada poço devido à circulação da água. No último poço, o ?ladrão? que é um cano para escoar a água ( Figura 2), fica no meio do poço. Dessa maneira, a água vai embora, chegando até a represa maior. A circulação da água era feita por meio de canos colocados nos poços terrenos em sentidos inversos. O produtor B afirma que: ?a água precisa circular, não pode ficar parada, peixe tem que ter água circulando, levando em consideração eu tinha uma talba, tinha uma bombinha, que puxava água e caia dentro, para fazer oxigênio?. O neto complementou que é ?a mesma água?. Ou seja, a mesma água do poço cai e retorna. O produtor B relatou um outro processo criado pelo filho em substituição e esse. Segundo ele:
Despois o meu filho mais velho criou um sistema mais fácil, colocamos uma caixa de 1000 litros na parte superior do poço terreno, com tapagem de telhas. Criou o sistema sozinho. Aquele sistema, ele tinha um canão que caia dentro do poço terreno, enchia a caixa até a boca, despois ela desarmava, e caia dentro do poço, voltava e começava a encher novamente, era como se fosse uma boia automática, porém feita em casa com cano de 100 milímetros, a caixa enchia, caia, depois voltava a encher.
De acordo com o produtor rural, essa ideia surgiu para fins de economia de energia. A água utilizada nesse mecanismo é do cunhado, e percorre cerca de 600 metros até alcançar a caixa d?água. O trabalho dos manejos dos poços terrenos levou em torno de cinco anos. O produtor B disse ainda que:
colocava 1000 fiotes em cada poço, ai quando eles ficavam grande era demais, ai eram colocados no tanque rede dentro da represa, despois que eles saiam do poço terreno onde ficavam em torno de 60 a 90 dias, com mais cinco a seis meses no tanque rede, logo, com sete meses geral já estavam indo embora, porém quando chegavam nos poços terrenos, no chão, eram pequenos, alevinos.
Segundo esse produtor rural, os peixes eram remanejados para o tanque rede em torno de 100 gramas para cima, para que não pudessem fugir pelos buracos existentes no tanque.
O produtor rural B e sua esposa, mesmo sem terem estudado alguns conceitos de matemática na escola formal, como áreas de figuras planas, figuras geométricas, e regra de três, já que têm pouco tempo de escolarização ? o produtor cursou o primeiro ano incompleto e a esposa tem segundo ano completo do ensino fundamental ?, têm uma certa habilidade com esses conceitos. Eles estimam, medem e comparam comprimentos, utilizando unidades de medida não padronizadas e padronizadas, entre estas o metro e o centímetro. Em conversas informais, disseram que adquiriram esses conhecimentos de natureza matemática dentro do próprio ambiente que residem, pois exercem o manuseio no dia a dia.
Ao analisar, a partir de uma perspectiva etnomatemática, o fato de os produtores utilizarem conhecimentos próprios na realização de suas atividades diárias, constatamos que isso facilita o trabalho e confere maior praticidade na tomada de decisões, ou seja, na busca por respostas às necessidades cotidianas de sobrevivência e transcendência, acabam criando técnicas que facilitam seu saber/fazer diário ( D?AMBROSIO, 2011). Nessa perspectiva, a Etnomatemática interessa-se pelos conhecimentos que se apresentam nas culturas. Para compreendê-los buscamos as narrativas que perpassam as práticas socioculturais dos indivíduos em suas diversas atividades profissionais, já que:
[...] São essas narrativas que os constituem como sujeito e como grupo, não se desqualificando, como simplificadamente alguns são levados a pensar, o conhecimento matemático tido como oficial. A Etnomatemática compreende que o acesso ao saber hegemônico é uma questão política e social ( LEITES, 2005, p. 11).
Conforme ainda a autora, para a Etnomatemática o acesso aos conhecimentos hegemônicos é importante, já que são esses conhecimentos que são legitimados na sociedade. Desta forma, a Etnomatemática, ao se preocupar com os saberes populares, não tem como intenção a glorificação da Matemática popular, mas compreender que todos os grupos produzem conhecimentos matemáticos a partir de suas práticas socioculturais.
4.3 Manejo de lascas para provimento de cercas
Em visita a outras terras, nos deparamos com a formação de ?quadrados? feitos de lascas de madeira. Segundo informações do produtor rural C, responsável pela propriedade, que tem experiência de práticas rurais, ?cada quadrado é composto por 12 lascas, empilhadas uma em cima da outra?. Essa arrumação descrita pelo produtor rural é organizada de três em três lascas de madeira em cada lado do ?quadrado?, trançadas para resistir ao tempo. É uma prática comum do produtor rural da localidade. Observamos, ainda, que existem montes espalhados por várias partes da terra. De acordo com o produtor rural C, eles se mantêm no local por um período de 15 anos e que essa ideia foi pensada como meio de prover as divisas das cercas locais.
A Figura 3 mostra a formação de um quadrado contendo 12 lascas de madeiras. O produtor formaliza o processo quando termina o ?lapidamento?, que é dividir as lascas, cortando em tamanhos iguais, usando uma cunha e uma marreta de ferro para rachá-la e dividi- la. Essa etapa de encaixe da cunha na madeira, com uso da força humana, é chamada ?batimento?. Todo o processo é realizado manualmente, desde a etapa inicial na busca da madeira, passando pelo lapidamento, até o empilhamento. Segundo o produtor C, esse empilhamento tem 15 anos de existência. A ?alinhagem? de três em três é uma técnica de somatório usada para facilitar na montagem até o carregamento final. A respeito dessa arrumação, ele explica: ?observa as lascas, formam um L vai depender da forma que você olhar, logo, o outro lado é o suporte, o apoio, é a base?. E continuou: ?debaixo para cima fica mais fácil de entender, tem três em três e três em três?.
Para construir a cerca de arame farpado e evitar a transição bovina no terreno é necessária a utilização das lascas de madeira. O produtor rural relata que a construção da cerca, via metragem realizada em conjunto, tem um espaçamento de 2m a 3m de uma estaca para outra. Segundo ele, essa diferença é normal, devido alguns elementos naturais existirem nas divisas, como por exemplo as pedras. O tamanho proporcional de cada estaca é balanceado pelo produtor no ato de partir a madeira.
Segundo o produtor rural C, ?a madeira utilizada eram árvores secas que se encontrava no meio da floresta local, dependendo a cubagem da árvore o quantitativo de lascas variavam muito de uma para outra?. Ele ainda relata que, em alguns casos, chegavam a produzir em torno de 10 dúzias de lascas. A respeito do cálculo do montante final, ele nos relatou duas versões. Na primeira, ele afirma que: ?Para termos uma dúzia precisamos de 12 lascas, ?certo né, então, 4 x 12 é igual a 48, mais 4 x 12 igual a 48, um total de 48 mais 48 igual 96 lascas, faltando duas dúzias, que são vinte e quatro lascas, para completar as 120, essa estimativa é comum para mim, sempre a fiz?. Para o segundo cálculo ele afirma que: ?Divido toda a madeira existente em lascas, logo, conto de 12 em 12 até finalizar todas as lascas existentes, no final em montes separados conto, totalizando 10 dúzias de 12 lascas cada monte, essa contagem é feita manual, 12 + 12 + 12 + 12 + igual a 120 lascas?.
O produtor C nos mostrou outro quantitativo com 10 estacas de madeiras empilhadas. Ele ressaltou que há uma desproporção frente ao monte presente, pois, na realidade, parte das lascas foram utilizadas para construção de uma cerca local. Apontando com o dedo, descreve que o quantitativo foi reduzido para 10 lascas. Segundo o produtor rural, podemos ver que a contagem é de dois em dois e os cálculos são assim: 2 + 2 + 3 + 3 = 10 lascas, e continua afirmando:
Eu sigo tirando uma lasca de cada parte, para que em tempo de muitas ventanias e de chuvas, evitar que o monte venha a desmoronar, tornando o trabalho mais difícil para mim, então, prefiro trabalhar para que as lascas sejam apoiadas entre si, esse é um dos meios que tenho como hábito em usar.
(Produtor rural, 22/nov./2019).
Os procedimentos de contagem realizados pelo produtor rural da comunidade de Cristalino são fundamentais para a compreensão das maneiras de matematizar a realidade, na tentativa de sanar as dificuldades e necessidades cotidianamente. De acordo com Skovsmose (2001, p. 26) ?matematizar significa, em princípio, formular, criticar e desenvolver maneiras de entender; consequentemente, a matematização deve ter um papel importante no processo educacional [...]?. Essas maneiras de matematizar o mundo permitem às manifestações matemáticas existentes serem repletas em relações com a realidade vivida. Para Skovsmose (2001, p. 27) ?a realidade já vivida deveria ser a espinha dorsal que une as experiências matemáticas?. Consequentemente, é esse tipo de produção matemática que deve ser levado para a sala de aula, dando significado e sentido àquilo que o aluno aprende.
4.4 Manejo na colheita da mandioca
Em visita a um produtor rural, chamado aqui de produtor D, vinculado à Associação, residente no Córrego Central, comunidade de Cristalino, que divide a terra em conjunto com o irmão, observamos em seu relato a maneira como matematiza. Segundo ele, a propriedade tem um total de um alqueire e meio, ou seja, sete hectares e meio, que segundo um agrimensor cada um possui 3,75 hectares. Ele explicou as contas: ?um alqueire é cinco hectara, meia alqueire é duas hectara e meia, quer dizer que são sete e meia?. Ao ser perguntado quanto cada um possui, ele disse que ?um agrimensor falou que é 3 e 75 meu e 3 e 75 do meu irmão?.
Os cálculos de conversão de alqueires para hectares foram realizados mentalmente com bastante clareza. O produtor consegue operar, mentalmente, com alguns números racionais, como a divisão de cinco por dois e a soma de cinco com 2,5. Ele tem 78 anos, reside na propriedade desde que nasceu e não tem escolarização regular. Ele possui Mobral incompleto e disse que foi poucas vezes à escola, apenas para aprender a assinar o nome. Entretanto, ele utiliza algumas estratégias mentais de natureza matemática na hora de fazer conversões de medidas e para fazer contas.
O produtor D demostra um amplo saber e mantém ao longo dos anos fortes traços de tradições culturais, herdadas dos familiares. Em nossa caminhada pela propriedade, ele nos convidou a acompanhar a colheita da mandioca, a qual ele usa para alimentação de animais. Sobre a colheita, ele relata: ?eu levo em torno de dois anos para iniciar a colheita apóis o plantio, sempre uso as mãos para a retiradas das raízes, em tempo de chuva a terra fica mais fofa, as mandiocas saem mais fácil da terra?. No processo da colheita, primeiro ele corta a parte do caule, que logo é puxado para cima. As raízes variavam entre três a quatro mandiocas, em alguns casos chegavam a ter até seis raízes. Na Figura 4 podemos ver o produtor rural no processo de colheita da mandioca. A época era chuvosa, o que contribuía, fortemente, para o manejo das raízes.
Observamos que após colher o necessário para alimentar os animais, o produtor leva a produção para casa em um carrinho de mão. Os animais domésticos, os quais ele alimenta com a mandioca são as galinhas e os porcos. Dessa maneira, vemos um modo sustentável de alimentar os animais, sem prejudicar o ambiente. A sustentabilidade é parte integrante das atividades desenvolvidas por esse produtor rural. De acordo com Mattos e Oliveira (2019, p. 59) ?O etnoconhecimento, aplicado às atividades do cotidiano, garante a utilização dos recursos naturais, necessários à sobrevivência, [...]?. Essa sustentabilidade praticada é própria e intrínseca aos conhecimentos tradicionais do produtor rural.
Para alimentar as galinhas, o produtor D nos explica como é parcelada a mandioca:
Ao colocar a mandioca sobre um pedaço de madeira, com outro de madeira é batido em cima até se quebrar, triturar em pedaços, os animais se junta ao nosso redor para alimentação, o mesmo ocorre sobre os cuidados da agricultora em datas pelas manhã, é tradição familiar, já para os porcos é partido em pedaços maiores, utilizo o facão que penduro na cintura.
O produtor informa que, atualmente, possui:
um quantitativo de dois porcos, as galinhas variam em torno de 35 galinhas, é um período que a família está lidando com reprodução, onde seis no total se encontra chocando, duas das seis saiu com um total de dez pintinhos, uma galinha chocou três e a outra sete. As outras quatro se encontra chocando, duas está chocando um total de vinte e oito ovos, quatorze ovos em cada galinha residente próximo à casa, já as outras duas que se encontra em outras partes do terreno não se sabe por exato o quantitativo de ovos. Nós proprietários, eu e minha esposa, em caso como esse, percebemos com mais clareza quando as galinhas chegam em casa com os pintinhos, usamos canjiquinha feito de milho para alimentação, a moeção do grão desse milho ocorre de forma manual em nossa propriedade, o moinho possui aproximadamente um metro e meio de altura, é antigo, gostamos muito dele.
(Produtor rural, 22/nov./2019).
Esse conhecimento tradicional faz parte das raízes culturais dos produtores rurais. De acordo com D?Ambrosio (2011, p. 42), ?reconhecer e respeitar as raízes de um indivíduo não significa ignorar e rejeitar as raízes do outro, mas, num processo de síntese, reforçar suas próprias raízes?. Segundo o autor, essa é a vertente mais importante da Etnomatemática e uma estratégia promissora para a educação. Entendemos que a Etnomatemática, ao dar visibilidade à cultura dos alunos, possibilita a reafirmação da identidade deles, ao mesmo tempo que cumpre o papel de empoderá-los para uma postura decolonial de luta e de resistência.
Nessa perspectiva, a dimensão educacional da Etnomatemática fortalece as raízes dos indivíduos, pois se enquadra em uma visão holística e intercultural de educação. A interculturalidade exige respeito à própria cultura como a do outro. A dinâmica cultural do encontro agrega conhecimentos e dá visibilidade aos indivíduos. Para D?Ambrosio (2009, p. 4) ?[...] o fenômeno da dinâmica cultural é fundamental?, já que as culturas estão em constante transformação, justamente por ocorrerem encontros culturais. Essas transformações são baseadas nos desafios impostos aos seres humanos que se caracterizam de sobrevivência, de subsistência e de preservação do ambiente; além de desenvolverem a criatividade e possibilitarem a adoção de tecnologias existentes.
As estratégias mentais de natureza matemática utilizadas por agricultores são importantes e devem ser utilizadas na escola da comunidade, pois segundo Brito e Matos (2016):
Entendemos que o estudo desses saberes matemáticos não escolarizados que são produzidos e utilizados por agricultores, é de grande relevância para o ensino e a aprendizagem em uma escola que atenda aos filhos destes trabalhadores, visto que é oportunidade para desenvolver metodologias que possibilitem ao aluno o desenvolvimento cognitivo e social através da interação com a realidade, permitindo o desenvolvimento de habilidades e competências para a compreensão da disciplina de Matemática ( BRITO; MATTOS, 2016, p. 14-15).
Esses autores corroboram a necessidade de levar para a sala de aula a cultura dos alunos, tal qual aquilo que eles já sabem e que está ancorado na estrutura cognitiva dos mesmos. Da mesma forma, nós concordamos e acreditamos que essas estratégias dão possibilidades para o desenvolvimento de aprendizagem significativa ( AUSUBEL, 2000). Nessa lógica, de acordo com Mattos e Brito (2012):
O trabalho do campo é repleto de saber matemático, dando-nos a oportunidade de atravessarmos as fronteiras da sala de aula, para conhecermos a realidade do nosso aluno e, assim, compreendermos as dificuldades que eles enfrentam na escola, quando da aplicação dos conteúdos distanciados de seu contexto ( MATTOS; BRITO, 2012, p. 969 - 970).
Utilizar as maneiras de matematizar dos produtores rurais, em sala de aula, é um meio para dar sentido e significado aos conteúdos matemáticos escolares que os alunos precisam aprender. É, ainda, um caminho promissor para valorizar os conhecimentos tradicionais desse grupo social, diminuindo a distância entre os conhecimentos que os alunos utilizam cotidianamente e os conteúdos matemáticos escolares. Dessa maneira, esses conhecimentos podem ser utilizados como recursos para contextualizar os conceitos matemáticos abstratos contidos na matemática acadêmica e impostos aos alunos por meio da matemática escolar.
Esse mecanismo nos leva à dimensão política da Etnomatemática, pois quando abordamos um currículo imposto, estamos admitindo que uma cultura se sobressaiu sobre as demais, tornando-se hegemônica e, ao mesmo tempo, inferiorizando as demais. A remoção da cultura implica no apagamento da historicidade dos grupos socioculturais dominados. Entendemos que os alunos quando chegam à escola trazem suas raízes culturais. D?Ambrosio (2011, p. 42) nos alerta para as dinâmicas culturais escolares ?que se manifestam sobretudo no exercício do poder e na eliminação ou exclusão do dominado?. Consequentemente, essas dinâmicas culturais escolares impõem uma cultura escolar que produzem, muitas vezes, resultados desastrosos.
5 CONSIDERAÇÕES
A solução de situações-problema é uma competência matemática importante que nos permite desenvolver habilidades matemáticas. As habilidades matemáticas são desenvolvidas com base nas experiências e expectativas dos alunos, em situações reais de problemas. Uma proposta pedagógica para a aprendizagem significativa da matemática escolar, que leva em consideração o desenvolvimento de habilidades matemáticas, utiliza os conhecimentos tradicionais dos alunos que estão contidos na matemática do cotidiano. Podemos afirmar que a contextualização é parte essencial dessa proposta e como tal, evoca o conhecimento, por parte do professor, daquilo que o aluno já sabe e que está ancorado na sua estrutura cognitiva.
Os produtores rurais têm um leque de conhecimentos tradicionais que são aplicados cotidianamente e naturalmente. Dentre eles, há maneiras de matematizar o ambiente, estratégias utilizadas para resolver necessidades locais do dia a dia. Esses conhecimentos podem e devem ser levados para a sala de aula, contextualizando os conteúdos matemáticos escolares. Nessa perspectiva, ocorre o respeito à cultura dos alunos, filhos dos produtores rurais. Além disso, reforça a identidade por assegurar o pertencimento local e dá empoderamento sociocultural. É, assim, uma forma de dar visibilidade aos conhecimentos gerados e difundidos pelos produtores rurais, passados de geração em geração.
Esses conhecimentos tradicionais estão relacionados aos conhecimentos escolares por meio de cálculos de área, volume, medidas, formas geométricas, razão e proporção. A intenção é libertar-se do eurocentrismo universal da matemática dita acadêmica e procurar entender, dentro do próprio contexto sociocultural do produtor rural, seus processos de pensamento e seus modos de explicar e entender sua realidade.
Cada um dos conceitos matemáticos mencionados mostram a importância de processos metodológicos com respaldo na Etnomatemática, que parte da relação entre matemática e cultura, e envereda por um campo de investigação de dimensões políticas e pedagógicas decolonias. Além de apresentar uma relação interdisciplinar com outras áreas do conhecimento, como a psicologia, a antropologia, a sociologia, a história e a didática da matemática, ajudando a fortalecer e valorizar o conhecimento tradicional, contextualizando conteúdos escolares e empoderando o grupo.
Constatamos ao longo da investigação algumas estratégias de natureza matemática utilizadas pelos produtores rurais, entre elas, o cálculo mental como forma de executar suas atividades cotidianas. Não podemos deixar de lado, em sala de aula, a cultura dos alunos e, para isso, a Etnomatemática é um viés que permite aproveitar essa cultura para enriquecer os conteúdos matemáticos escolares. Além disso, buscamos a Etnomatemática como recurso para desenvolver posturas decolonais, permitindo o diálogo entre culturas e favorecendo todas ao mesmo tempo. Entendemos que essas ações restauram a dignidade sociocultural dos produtores, respeitando suas raízes. E quando levadas para sala de aula, proporcionam a autonomia dos alunos.
A pesquisa nos permitiu conhecer as estratégias mentais de natureza matemática utilizadas pelos produtores. Também, percebemos o sentimento positivo com respeito aos conhecimentos tradicionais que possuem e são repassados de geração em geração. Essas ações são formas de resistência, mesmo que não explícita, contra a colonialidade ainda operante no nosso sistema produtivo e educativo. Walsh (2009) traz a interculturalidade como um dos caminhos para aliar a cultura hegemônica com as diferentes culturas dos grupos socioculturais. Segundo a autora, a interculturalidade refere-se às complexas relações, negociações e trocas culturais, buscando desenvolver interações entre pessoas, conhecimento, práticas, lógicas, racionalidades e princípios de vida culturalmente diferentes.
Nessa lógica, a interculturalidade impulsiona ativamente os processos de trocas que, por meio das mediações sociais, políticas e comunicativas, permitem construir espaços de encontros, diálogo, articulação e associação entre as pessoas e os saberes, os sentidos e as práticas, as lógicas e as racionalidades distintas ( WALSH, 2009). Como vemos, a resistência dos produtores rurais passa pela necessidade da união entre as culturas que em sala de aula respaldam conhecimentos tradicionais, tanto das práticas cotidianas quanto dos modos de utilização das estratégias mentais para solucionar problemas momentâneos.
Necessária se faz a reinvenção das práticas docentes, admitindo as subjetividades dos alunos, seus saberes e suas dificuldades. Portanto, assume-se diferentes formas de construir o conhecimento para que os alunos possam exercer a cidadania e a democracia. Aos professores cabe, também, essa reinvenção, utilizando novas formas de organizar o espaço e tempo escolar; de dinamizar os processos de ensino e de aprendizagem, de articular direitos e promover a equidade; de construir culturas de inclusão, aliando teoria e prática no cotidiano escolar.
Ressaltamos que não queremos rejeitar a matemática escolar, muito pelo contrário. O que buscamos é incorporar valores éticos e desenvolver uma postura docente que nos permita conhecer a cultura dos alunos, para nela nos embasarmos em nossa prática. Desenvolver uma nova dinâmica cultural escolar é, por assim dizer, garantir resultados mais justos e equitativos. Nessa lógica, para que isso ocorra há que se desenvolver um novo olhar sobre os conhecimentos que nossos alunos trazem, demonstrando respeito e acolhimento.
REFERÊNCIAS
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