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O turismo como instrumento de lazer e transformação
El turismo como instrumento del ocio y transformación
Tourism as a transformation and leisure tool
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes, vol. 20, núm. 1, pp. 82-106, 2023
Universidade Estadual de Montes Claros

Dossiê

Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 2527-2551
ISSN-e: 1806-5627
Periodicidade: Semestral
vol. 20, núm. 1, 2023

Recepção: 09 Fevereiro 2023

Aprovação: 18 Março 2023


Este trabalho está sob uma Licença Creative Commons Atribuição-NãoComercial-Não Derivada 4.0 Internacional.

Resumo: O presente estudo observa a relevância dos processos interculturais presentes na atividade turística e o papel multidisciplinar do turismo como fonte de lazer, cultura e qualidade de vida. Demonstrar o papel educacional do turismo e a relevância da atividade turística como ferramenta de lazer, transformadora e capaz de contribuir para o desenvolvimento de competências interculturais, é o objetivo do trabalho, que observa não apenas o desenvolvimento de competências em grupos específicos de turistas, mas os impactos positivos e negativos nas populações envolvidas na atividade turística. A partir de indicadores aplicados à educação para o turismo, onde foram analisados os impactos das atividades turísticas de cunho educacional no desenvolvimento de competências naqueles que participam direta ou indiretamente dessas atividades, o presente estudo ilumina, nas atividades de lazer em geral, um potencial formador e mobilizador. Trata-se de uma pesquisa fundamental qualitativa intensiva, com complementação de dados quantitativos e técnicas mistas de recolha de dados, dada a diversidade etária e sociodemográfica do público-alvo. Os resultados do estudo corroboram a relevância dos impactos das atividades turísticas nos mais diversos setores da sociedade e em escala global.

Palavras-chave: Competência intercultural, Comunicação intercultural, Educação, Lazer, Turismo.

Resumen: El presente estudio observa la relevancia de los procesos interculturales presentes en la actividad turística y el papel multidisciplinar del turismo como fuente de ocio, cultura y también calidad de vida. Demostrar el papel educativo del turismo y su relevancia como herramienta de ocio, transformadora y capaz de contribuir al desarrollo de competencias interculturales, es el objetivo de este trabajo, que observa no sólo el desarrollo de competencias en grupos específicos de turistas, sino los impactos positivos y negativos sobre las poblaciones involucradas en la actividad turística. Desde indicadores aplicados a la educación para el turismo, donde se analizaron los impactos de las actividades turísticas de carácter educativo en el desarrollo de competencias en quienes participan directamente o no directamente en estas actividades, el presente estudio trae claridad, en las actividades de ocio, un gran potencial para formar y movilizar. Se trata de una investigación fundamental cualitativa intensiva, con complementación de datos cuantitativos y técnicas mixtas de recolección de datos, dada la diversidad etaria y sociodemográfica del público objetivo. Los resultados del estudio corroboran la relevancia de los impactos de las actividades turísticas en los más diversos sectores de la sociedad y en una escala global.

Palabras clave: Competencia intercultural, Comunicación intercultural, Educación, Ocio, Turismo.

Abstract: The present study observes the relevance of intercultural processes present in the touristic activity and tourism's multidisciplinary role as a source of leisure, culture, and welfare. The aim of this work is to demonstrate tourism's educational role and the relevance of touristic activity as a transformative leisure tool that can contribute to the development of intercultural competences. This study not only assesses the development of competences in specific tourist groups but also the positive and negative impacts to the populations involved in the touristic activity. Through applying education indicators to the field of tourism, where the impacts of touristic activities with educational purposes on the development of competences in those who directly or indirectly participate of said activities have been analysed, the present study sheds light on a formative and mobilizing potential of the leisure activities in general. It is a fundamental intensive qualitative research, with quantitative data complementation and mixed technique of data collection, given the age and sociodemographic diversities of the target group. The study's results confirm the relevance of the touristic activities' impacts on the most diverse sections of society and on a global scale.

Keywords: Intercultural competence, Intercultural communication, Education, Leisure, Tourism.

Introdução

A pesquisa aqui apresentada identifica no turismo, como fenômeno social, sua potencialidade e responsabilidade social, nomeadamente no que tange ao seu desenvolvimento e necessidade de competências para sua prática, como atividade de lazer que perpassa transversalmente pela sociedade, interferindo em diferentes setores, como difusor e gerador de representações simbólicas e competência intercultural. O trabalho é parte integrante de pesquisa para obtenção do grau de mestre em Turismo e Comunicação[1]da autora.

O estudo demonstra a relevância dos processos interculturais presentes na atividade turística e o papel multidisciplinar do turismo como fonte de lazer, cultura e qualidade de vida. Analisar o papel educacional do turismo e a relevância da atividade turística como ferramenta de lazer, transformadora e capaz de contribuir para o desenvolvimento de competências (inter)culturais, é o objetivo do trabalho, que observa não apenas o desenvolvimento de competências em grupos específicos de turistas, mas os impactos positivos e negativos nas populações envolvidas na atividade turística. Tendo como base teórica o conceito de desenvolvimento de competência (inter)cultural, estudos sobre a comunicação intercultural no turismo e os processos de aculturação e enculturação decorrentes dessas relações, o trabalho ilumina pontos de intersecção entre o turismo e a educação não formal, descortinando janelas de oportunidade para a sensibilização das gerações futuras e suas práticas interculturais. A partir de indicadores aplicados à educação para o turismo, onde foram analisados os impactos das atividades turísticas de cunho educacional no desenvolvimento de competências naqueles que participam direta ou indiretamente dessas atividades, o presente estudo aponta para um potencial formador e mobilizador nas atividades de lazer em geral. Trata-se de uma pesquisa fundamental qualitativa intensiva, com complementação de dados quantitativos e técnicas mistas de recolha de dados, dada a diversidade etária e sociodemográfica do público-alvo.

Os resultados do estudo corroboram a relevância dos impactos das atividades turísticas nos mais diversos setores da sociedade e em escala global. Considerando, para este trabalho, a busca por lazer e entretenimento nas atividades turísticas em geral e a comunicação intercultural inerente à prática do turismo como alternativa de lazer, aponta-se para a responsabilidade, dessas duas áreas, por impactos na dinâmica sociocultural e socioambiental dos lugares visitados, promovendo construção e desconstrução de estereótipos e desempenhando um papel protagonista nos processos interculturais presentes nas experiências de viagens.

O lazer de uns e o lazer de outros

A necessidade de um olhar mobilizador para a sensibilização de classes privilegiadas da sociedade para as desigualdades geradas e, algumas vezes, perpetuadas pelo turismo de lazer, torna também possível observar os benefícios que o turismo pode trazer à sociedade, quando se agrega valor cultural às atividades propostas, partindo das necessidades de todos os envolvidos, sendo esses: i) o lugar de visitação, ii) a comunidade local, iii) os stakeholders do turismo e, por fim, iv) o turista.

É necessário, antes da observação das possibilidades do turismo como ferramenta de transformação, uma análise rápida e resumida dos objetivos de cada um dos grupos envolvidos, separadamente.

i) O lugar de visitação:

Sem a pretensão de adentrar aqui, em temas pertinentes a outras áreas do conhecimento, não menos importantes, mas que também requerem análises mais específicas, como no campo das ciências ambientais, por exemplo, cabe registrar que o lugar visitado é sempre um espaço em que, mesmo quando não habitado por humanos, sofre o impacto da visitação em seus ecossistemas, seja esta visitação contemplativa ou interativa. Em termos populares e bastante reduzidos, pode-se afirmar que quando interagimos com a natureza, plantando uma árvore ou subindo nela, outras espécies, para além da árvore em questão, também são impactadas.

ii) A comunidade local:

Para as comunidades locais, que têm seu cotidiano alterado pelos fluxos de turistas, o lazer só estará presente quando houver participação em atividades espontâneas que atendam à expectativa daquela cultura, seja como experiência exótica, que normalmente só contempla o turista, seja na experiência habitual de lazer local, incluindo os visitantes de forma igualitária, o que nem sempre faz parte da programação do turista. Considera-se também a questão de interesse econômico na exploração do lazer turístico pela população local, porém, é preciso identificar os verdadeiros beneficiados do ponto de vista socioeconômico, lembrando que nem sempre os recursos econômicos do turismo são aplicados no lugar onde o turismo é praticado, para o desenvolvimento da região explorada e para os habitantes locais. Além disso, há ainda aqueles que não estão envolvidos no processo, mas sofrem os impactos da exploração turística, distanciando-os, muitas vezes, de seu lazer habitual ou preferido, para dar lugar ao lazer turístico de visitantes de fora ou descaracterizando a cultura local para dar lugar a uma autenticidade encenada, como define MacCannell (1973) em seu trabalho que fomentou muitas discussões e estudos sobre o tema da autenticidade no turismo.

iii) Os stakeholders do turismo:

Os objetivos dos empresários, gestores e outros grupos interessados no desenvolvimento do turismo podem se diferenciar conforme a amplitude de seu público-alvo consumidor. Os guias, por exemplo, podem ser agentes de lazer que contribuem para o bem-estar do turista e da população local, a depender de sua competência intercultural e comunicacional, além de sua dedicação e habilidades para a mediação tão delicada e necessária a esta função. Já os empresários, de um modo geral, mesmo quando engajados em causas socioambientais e socioeconômicas que envolvem a atividade turística, têm foco no crescimento de seu negócio. Não é incomum observar a evasão de grandes grupos empresariais de lugares onde antes investiam em grandes empreendimentos e propunham empregabilidade para os habitantes locais, quando o crescimento dos negócios é limitado por qualquer questão legal e/ou ambiental. A comunidade local, neste caso, muitas vezes se vê diante de uma descaracterização cultural e desarticulação social que está longe de ir ao encontro do que propõem os discursos para o desenvolvimento econômico local, à ocasião dos investimentos iniciais. A agenda 2030 da Organização da Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável, em seus Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável (ODS) 8, 11 e 12[2], senão em todos os 17 ODS propostos (UNESCO, 2015), tem como base, a implementação de práticas sustentáveis, redução das desigualdades e consumo responsável, entre outros eixos de igual teor, o que nem sempre acontece na indústria do turismo de lazer, ainda que a proposta seja de promover desenvolvimento socioeconômico. É necessário um olhar cuidadoso e multicultural na interpretação e aplicação de tais metas, que devem ser adequadas a cada contexto e realidade sociocultural, sob pena de fomentar a degradação ao invés da sustentabilidade local.

iv) O turista:

De um modo geral, considerando a diversidade de tipologias de turismo e de lazer ofertadas no turismo e, sobretudo, considerando que o conceito de lazer pode incluir uma infinidade de ações ou não ações, pode-se dizer que o turista que busca lazer no seu sentido mais genérico e contemplando a diversidade cultural e econômica de cada sociedade, tem em comum a expectativa de ser bem recebido pela comunidade anfitriã. Outras expectativas mais específicas, por dependerem de cada opção de lazer, não serão mencionadas neste trabalho, pois seria necessário um estudo específico das várias representações do lazer em cada sociedade, considerando seus valores, cultura e outros fatores relevantes (PRONOVOST, 2011).

É comum se observar no turismo de lazer, atividades em que não há interação com a comunidade local, sob a justificativa de minimizar conflitos e desconfortos por parte do turista. Nas atividades contemplativas e no turismo mais tradicional e convencional, o turista geralmente é observador, busca fazer fotografias e, quando surgem questões a serem esclarecidas se dirige ao guia intérprete ou aos seus próprios companheiros de viagem. Tais situações não são observadas apenas onde há a barreira da língua estrangeira, mas também podem acontecer onde há diferenças culturais mais acentuadas e o contrário disso, ou seja, a necessidade de comunicação entre anfitrião e turista, pode significar uma “quebra de contrato” ou situação de constrangimento entre fornecedor e consumidor, quando o turista não vê, na possibilidade de intercâmbio cultural ou de esforço de comunicação intercultural, uma forma de lazer. Em outra perspectiva, alguns obstáculos que surgem ao longo de uma experiência turística, podem significar descobertas gratificantes para o turista, se este for capacitado e orientado para a prática intercultural.

Os objetivos dos turistas das últimas décadas têm sido focados na experiência e não na contemplação, o que não exclui o lazer como experiência. Vale lembrar, porém, que a “experiência de lazer” na atividade turística envolve o lugar visitado e a comunidade anfitriã, além de outros impactos diretos e indiretos da atividade, que precisam ser considerados e analisados, como é proposto a seguir.

O desconforto global em relação à necessidade urgente de convergência entre as dinâmicas sociais e o desenvolvimento sustentável, bem como a necessidade atual e premente do lazer como válvula de escape ao trabalho compulsivo da sociedade de consumo e, também, do lazer como forma de consumo explorada pelo capitalismo, colocam o turismo no centro das atenções. O turismo impacta negativa ou positivamente em todos os setores da sociedade e no ambiente, a depender do contexto em que se pratica a atividade turística e com que propósitos.

Algumas comunidades anfitriãs, tradicionais ou não, que hoje têm o turismo como maior fonte de rendimentos, direcionam esforços e alteram sua dinâmica cultural para a construção e manutenção de um ambiente receptivo, que atenda às necessidades do mercado.

Com a pandemia de COVID-19 e suas já conhecidas consequências para o turismo, essas mesmas comunidades perceberam-se distanciadas de suas tradicionais formas de subsistência e reféns de uma atividade provedora de rendimentos e desenvolvimento econômico, mas que não está sob o controle da comunidade ou nos domínios de suas competências e experiência, como outros hábitos e costumes endógenos, com os quais já sabem lidar e contornar dificuldades. A fluidez do mercado turístico e das próprias dinâmicas de comportamento da sociedade contemporânea do ocidente vêm contribuindo para a fragilização de comunidades menos estruturadas, sujeitas a influências externas, nem sempre compatíveis com suas habilidades e competências (UNESCO, 2006). Assim como o ambiente natural, as populações são impactadas por fatores exógenos inerentes às práticas interculturais, nomeadamente, à prática turística de lazer, considerando sua característica comercial e hedonista. Para que este impacto seja positivo e fomentador de desenvolvimento socioeconômico, há que se envolver as comunidades locais, respeitando suas limitações e necessidades (TRIBE & AIREY, 2007).

O turismo, o lazer, a educação e os processos interculturais

A questão que se apresenta neste trabalho como provocação para ações e estudos no âmbito de outras áreas do conhecimento, para além da educação, mas nas ciências sociais de um modo geral, é o reconhecimento da necessidade de se vincular o lazer à formação do indivíduo, já que ele está incorporado ao cotidiano da sociedade contemporânea, deixando de ser apenas eventual, mas fazendo parte do cotidiano da maioria das organizações sociais, familiares e de trabalho, já há algumas décadas (LAGE & MILONE, 1995). Não obstante, cabe retomar a questão do potencial difusor de conhecimento, inerente à atividade turística e de lazer, avaliando o seu uso como ferramenta de transformação de comportamentos para que se promova um real e sustentável desenvolvimento socioeconômico e socioambiental, passando pela análise e avaliação, também e não apenas, de alguns fatores: i) “onde” a atividade promoveria este desenvolvimento; ii) em que momento; iii) com que frequência e carga e, principalmente, iv) de quem seria a prerrogativa das decisões e da dinâmica de práticas nesse sentido. Esta última questão, necessariamente, deve ser delegada às comunidades anfitriãs, respeitando seu modus operandi, de forma a colocar o turismo de lazer como atividade resultante de um desenvolvimento social que suporta e sustenta a visitação, como ferramenta agregadora de valor àquela cultura e, também, com o objetivo de potencializar o seu desenvolvimento econômico, suprindo demandas pontuais e locais, sem sobrepor-se às práticas de subsistência tradicionais e já estruturadas do ambiente. Esse cuidado se faz necessário para garantir que lugares de visitação não se tornem reféns de tendências de mercado, que se alternam entre as necessidades das mais diversas indústrias e fomentam o consumo, criando tendências e demandas de mercado que superam, na maioria das vezes, em ritmo e estilo, a capacidade humana de absorção, análise e compreensão crítica (APPADURAI, 1990).

Nas relações interculturais, que em geral estão presentes na atividade turística, os processos de aculturação são comuns, pois é a partir das relações entre duas ou mais culturas que, em alguns casos e em determinadas circunstâncias, ocorre a absorção da “outra” cultura em detrimento da própria, caracterizando a aculturação, porém, não necessariamente anulando a cultura de origem. Entretanto, podem causar significativas mudanças de comportamento e personalidade (RUDMIN, 2009).

Processos de aculturação e enculturação resultam de uma comunicação intercultural não estruturada em princípios éticos que considerem a heterogeneidade cultural, como argumenta Albu (2015), em seu trabalho Comunicação Intercultural no Turismo. A autora também ressalta que os processos interculturais no turismo são passíveis de representações e usos arbitrários e, na maioria das vezes, de forma hegemônica, por se tratar de uma relação de consumo onde o produto é a cultura anfitriã que, ainda que não diretamente, mas, necessariamente, envolve os anfitriões em sua oferta de serviços. Assim, se estabelece uma comunicação intercultural, já constituída, em sua origem, pelo interesse comercial de ambas as partes.

Questões como a desvalorização do próprio patrimônio em detrimento de interesses econômicos, por parte dos anfitriões, ou o não conhecimento dos elementos étnicos envolvidos, por parte do turista, podem ser, muitas vezes, os causadores de grandes equívocos de interpretação, avaliação e desenvolvimento da oferta turística, para além de facilitarem a criação e difusão de estereótipos positivos e negativos e de interferir nas dinâmicas culturais, resultando em processos de descaracterização cultural e ambiental (CÔRTES, 2022). Já num processo de enculturação, ainda segundo Albu (2015), ambas as culturas envolvidas são levadas a absorver conhecimento de cada uma delas, sem sobrepor tais hábitos ou conhecimentos à sua cultura de origem, além de contribuir para o desenvolvimento sustentável do lugar e preservar seu patrimônio tangível e intangível.

Observou-se no estudo de caso demonstrado na sequência deste trabalho que, questões de caráter socioambiental são abordadas com frequência em atividades turísticas, mas ainda é frágil a autonomia das comunidades anfitriãs em relação ao controle de fluxos e esgotamento de carga e, a responsabilização do turista como impactante é quase inexistente.

O desenvolvimento pessoal e o lazer podem estar mais próximos e conectados, numa relação em que se retroalimentem e beneficiem a sociedade. Quando se pensa, por exemplo, em educação para todos, é preciso considerar que uma educação sustentável e para todos, respeitando diferenças culturais e dando acesso igualitário a todos, deve incluir a comunidade jovem nas decisões, buscando, não só a manutenção de tradições, mas o direito à mudança e implementação de recursos que atendam a população jovem, criando um ambiente de intercâmbio intergeracional e valorização do conhecimento e da experiência, paralelamente, para um desenvolvimento sustentável para todos, atendendo às necessidades dos indivíduos e da coletividade, respeitando a heterogeneidade cultural e estimulando as novas gerações para a valorização do patrimônio (LIBÂNEO, 2012).

Da perspectiva da educação, a competência cultural é um conceito amplo e pode ser percebida e desenvolvida ao longo da vida do indivíduo, principalmente quando este interage com outras culturas, tendo a oportunidade de observar e trocar experiências, adquirindo novas habilidades e, como consequência, desenvolvendo competência (inter)cultural, onde a prática favorece o desenvolvimento do conhecimento e o conhecimento estrutura o indivíduo para a prática da interculturalidade (DEARDORFF, 2009).

A partir de uma perspectiva da sociologia, Gilles Pronovost (2011) faz referência ao argumento de Dumazedier (1974), que considera que o lazer pode produzir novos valores sociais, assim como o próprio Gilles Pronovost (2011, p.136) demonstra em todo o corpo de sua obra aqui citada que “O estudo do lazer constitui uma verdadeira introdução ao conhecimento da vida cotidiana”. O autor inclui o desenvolvimento pessoal e não só, como uma das funções sociais do lazer.

A relevância da educação para e no turismo vem sendo discutida há décadas por estudiosos como Krippendorff (2002, p. 145) que propõe que o turista seja mais preparado para a prática das atividades turísticas, incluindo a possibilidade de inclusão do tema nas escolas para melhor preparar o turista. Porém, percebe-se uma contradição quando o autor argumenta que, no período de lazer, o turismo não deve se tornar um meio de educação e o turista deve “fazer o que gosta”. O autor supracitado propõe a educação para o turismo ao mesmo tempo em que se defende que o turismo esteja apartado da educação, distanciando e separando claramente a educação do lazer, pelo menos no que tange ao turismo de lazer, e ignorando a possibilidade de se educar, também, através do lazer ou do turismo.

Diante do cenário global, com um novo perfil de juventude, que questiona paradigmas das últimas décadas nas mais diversas áreas do conhecimento, assim como nos mais diversos temas e/ou ambientes, pode ser necessária uma “revolução” nos métodos e conceitos utilizados, tanto na educação, quanto no turismo e no lazer. Essas duas primeiras áreas, incorporando também o lazer em suas práticas, tão abrangentes e impactantes, requerem mudanças profundas na forma como se aplicam à sociedade, na busca por maior adequação e adesão daqueles que as consomem e daqueles que as aplicam, implantam e gerem.

Os impactos do turismo do século XXI não têm se mostrado menos danosos ao ambiente e à sociedade, mesmo quando se trata de novas propostas como, por exemplo, o turismo de voluntariado, turismo social, turismo de experiência e outras incontáveis tipologias criadas à medida da demanda do mercado consumidor. Stakeholders de todos os setores criam as tais novas tipologias e tendências de mercado que, a despeito de alegarem ir na direção contrária do turismo de massas, valorizando a experiência de “imersão” nas comunidades anfitriãs, atividades personalizadas e comportamentos mais participativos, provocam um impacto direto ou indireto nas culturas e ambientes visitados, justamente pela condição de imersão e interferência direta naquela cultura ou lugar, muitas vezes, sem nenhuma previsibilidade de fluxos ou conhecimento prévio, considerando a autonomia do turista atual.

A dinâmica cultural das comunidades é direcionada de forma hegemônica e por interesses econômicos, que têm como referência e ponto de partida, a demanda do consumidor, numa relação hierarquizada a partir de valores externos à cultura local que, muitas vezes, já sofre com os processos de aculturação decorrentes da incessante intervenção e necessidade de satisfazer o “consumidor-provedor”.

O lazer, inserido no contexto da prática do turismo, muitas vezes, é responsável pela aceleração desses processos, por ser objetivo principal e final, que deve ser satisfatório a todo custo. Daí a necessidade de intercâmbio entre o turismo de lazer e a educação, tornando as relações de consumo menos danosas ao ambiente e às comunidades anfitriãs e orientando consumidores turistas para um comportamento ético e respeitoso.

Como argumenta Georges Snyders (1988, p.210), mencionando a educação informal como fonte de lazer que não exclui a educação formal, e acrescentamos aqui a educação não formal, como é o caso do turismo de cunho educacional utilizado por escolas, o lazer estruturado a partir da educação pode ser a ferramenta para o desenvolvimento cultural e emancipatório para todos os envolvidos, proporcionando acesso e apropriação da cultura, assim como Paulo Freire (2010) propõe em sua obra Pedagogia da Autonomia.

É sabido que o indivíduo quando busca uma atividade de lazer, com liberdade de escolha, está pré-disposto à diversão e aceitação da proposta oferecida. Esta é a janela de oportunidade que se apresenta para o lazer, através de agentes bem-preparados, mostrar de forma verdadeira o que é possível conhecer e experimentar sem, contudo, ultrapassar os limites da ética na prática da interculturalidade e do turismo de maneira geral.

Gilles Pronovost (2011) em sua obra “Sociologia do Lazer”, considerando toda a abrangência histórica, sociopolítica e de consumo, argumenta sobre a relação entre o tempo livre e a educação, afirmando que “... o tempo livre é também um tempo para solidariedades e para as redes de sociabilidade, de aprendizagem fora da escola, para a formação contínua, para as práticas culturais e científicas” (PRONOVOST, 2011, p.120).

Percebe-se a partir de uma breve revisão da literatura, que o lazer, ao longo de décadas, já vem ocupando um espaço significativo no cotidiano das novas gerações, o que nos remete à sua potencialidade de transformação e necessidade de aprofundamento nos estudos deste tema.

Um estudo de caso brasileiro

A pesquisa para obtenção do grau de mestre em Turismo e Comunicação desta autora, como já mencionado anteriormente, é a base do presente trabalho e contribui para tal, demonstrando o impacto de atividades turísticas de cunho educacional, incluindo lazer, em jovens estudantes, tornando a experiência turística mais consciente e a atividade pedagógica mais prazerosa, além de ser representada pelos próprios estudantes como atividade de lazer, em alguns casos, mais desejada do que a viagem familiar de férias.

Através do estudo de caso brasileiro supracitado, em que se observou o resultado da prática de turismo educacional (TE)[3] na competência (inter)cultural de um público-alvo que contemplou estudantes, educadores, profissionais de turismo e populações anfitriãs envolvidas nessas práticas turísticas, para este estudo, foi feito um recorte iluminando os resultados obtidos nos 4 grupos populacionais pesquisados, no âmbito da representação do turismo como atividade de lazer. Embora não tenha sido discutida a questão do lazer como prioridade, o que se percebeu ao longo das entrevistas e grupos focais, foi um posicionamento, por parte da maioria dos envolvidos, colocando o turismo educacional, para além de atividade pedagógica, como atividade de “lazer” que agrega conhecimento e desenvolvimento pessoal. A partir desta percepção, o objetivo deste recorte e, portanto, do presente trabalho, é chamar a atenção para o potencial das atividades de lazer, especificamente, através do turismo, na formação e desenvolvimento de competência intercultural nos participantes, fomentando comportamentos éticos e desconstruindo representações de lugares e pessoas, muitas vezes estereotipadas pelos meios de comunicação.

Foram extraídos, portanto, alguns trechos da dissertação onde é possível identificar a metodologia utilizada e alguns dos dados coletados, como falas de entrevistados que façam referência ou inferência ao foco deste estudo, demonstrando, mas não isolando, a questão do lazer inserido no contexto da escola e do turismo. Os dados coletados dentre todas as técnicas de recolha utilizadas para a pesquisa original foram selecionados, aglutinados e reanalisados, para este trabalho, com foco nas representações do lazer contidas nas falas dos participantes, o que justifica a autocitação em alguns casos.

As viagens de estudo do meio[4], têm finalidades específicas e, prioritariamente, de desenvolvimento de conteúdos do currículo regular das escolas. Contudo, a transversalidade da experiência, por si só, promove o surgimento de questões que vão para além dos conteúdos escolhidos para o trabalho escolar, criando um ambiente fértil para questionamentos e reflexões, a partir da observação direta de situações cotidianas, interligadas a esses mesmos conteúdos que, na escola, parecem distantes da realidade do estudante. Soma-se a isso a oportunidade desses turistas “iniciantes”, curiosos e dispostos a novas experiências, terem acompanhamento de especialistas. Em determinados momentos do processo de recolha dos dados, também foi possível observar em vários dos entrevistados, um “insight”, identificado durante as entrevistas e a respeito das viagens escolares, colocados por eles próprios como uma experiência de lazer e desenvolvimento pessoal, proporcionada no “tempo não livre”, durante o período de trabalho ou estudo. A partir desta observação iluminam-se os pontos de intersecção entre turismo e lazer, com foco no desenvolvimento de competências para uma educação para a cidadania global, de um público praticante de atividades de lazer, num mercado que tem o desafio de criar novas propostas para a sustentabilidade socioambiental e socioeconômica, não apenas do turismo, mas também, das diversas áreas onde perpassa, transversalmente, impactando de diversas maneiras (CÔRTES, 2022).

Para o fim de possibilitar a triangulação das informações obtidas, foram determinados os 4 grupos diferenciados por características etárias, profissionais e sociais, que interferem no tratamento dos dados e se complementam na análise dos resultados obtidos (CRESWELL, 2009).

No mapa do processo de desenvolvimento da coleta de dados (figura 1) e na tabela demonstrativa das técnicas utilizadas para recolha dos dados (tabela 1), ambos apresentados a seguir, é possível reconhecer as características e o quantitativo elencado para a investigação original que deu origem, também, à seleção de dados para este trabalho.


Figura 1
Processo de desenvolvimento da coleta de dados
Dissertação de mestrado em Turismo e Comunicação na Universidade de Lisboa e Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, intitulada: O papel educacional do turismo no desenvolvimento de competência (inter)cultural de estudantes de 2° e 3° ciclos no Brasil (CÔRTES, 2022).

Corrobora-se com isto, a abrangência do turismo e sua comunicação com as mais diversas realidades e pelas mais diversas vias de acesso, modificando ambientes e pessoas e determinando paisagens culturais (BRYMAN, 2012).

A tabela demonstrada na sequência, quantifica o total de participantes por grupo, cabendo ressaltar que, para o presente trabalho, foram extraídos apenas os dados coletados, que fazem inferência à questão do lazer como produtor de conhecimento ou da busca por conhecimento como forma de lazer. Questão essa, que foi a motivação original para este trabalho.

Ainda que não represente o total dos dados coletados, percebeu-se na investigação, que todos os participantes vinculam de alguma forma o turismo e o lazer ao ganho de competências culturais. Em muitos casos pode-se observar o ganho de competência (inter)cultural como consequência inevitável às práticas turísticas, nem sempre percebido pelo próprio participante-turista.


Tabela 01
Demonstrativo das técnicas utilizadas para recolha dos dados
Dissertação de mestrado em Turismo e Comunicação na Universidade de Lisboa e Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, intitulada: O papel educacional do turismo no desenvolvimento de competência (inter)cultural de estudantes de 2° e 3° ciclos no Brasil (CÔRTES, 2022).

A partir do levantamento de dados referentes à questão do lazer e do turismo como produtores de conhecimento e como ferramenta educacional, dentre outras percepções, estão transcritos a seguir, alguns trechos de falas consideradas de maior relevância para demonstrar o papel das atividades turísticas e de lazer, sejam elas educacionais ou não, já que se trata de um público diverso e com expectativas diversas.

A técnica de grupo focal foi utilizada para coleta de dados do grupo de estudantes, com o objetivo de facilitar a espontaneidade e desinibição dos participantes, devido à faixa etária ser entre 13 e 22 anos. Cada grupo foi formado com até 8 estudantes.

Grupo Focal 02 (estudantes do 9.° ano do ensino fundamental, de escola participante da pesquisa):

“Com relação ao aprendizado acho que é o menos importante. O que fica na memória é a experiência pessoal e o aprendizado com experiências que a gente vive. A troca com colegas no quarto e com tudo que envolve: as pessoas diferentes, os lugares. Por exemplo, eu nunca iria para o manguezal numa viagem normal. Na hora é desconfortável, mas com certeza eu iria de novo, mas com a escola e com amigos. Não com família”.

“Acho que a gente acaba aprendendo sem perceber. Conheci algumas coisas que nunca iria conhecer”.

Grupo Focal 05 (estudantes recém-formados no 3.° ciclo, que viajaram em 2019):

“Com os pais a gente é muito protegido e na viagem com a escola todos são amigos, inclusive os professores e monitores. Encontramos pessoas na rua e conversamos com estranhos, conheci um britânico que nos falou sobre o BREXIT e outras coisas assim. Jamais teria feito isso se estivesse com meus pais. Num ambiente desconhecido e pessoas desconhecidas te tiram da sua zona de conforto. Pessoas que não fazem parte do seu cotidiano”.

“Dificuldade eu tive logo na chegada em Paraty[5] porque não tinha luz e o banho estava frio e foi sofrido, mas, num segundo momento, foi muito interessante estar com os pescadores da ilha e observar a cultura deles, entrevistar artesãos, etc”.

No caso que será demonstrado a seguir, o senso crítico desenvolvido ao longo das experiências de vida é justificado, por alguns participantes, pelo fortalecimento de princípios éticos, originalmente trabalhados nas viagens. O exercício da alteridade e empatia foram os mais mencionados, quando um dos participantes levantou a questão da importância da distribuição de renda para as comunidades anfitriãs, que nem sempre são contempladas pelos benefícios econômicos do turismo, segundo o participante, em outras tipologias ou maneiras de fazer turismo.

Grupo Focal 04 (estudantes graduandos que viajaram em 2015):

“Hoje tenho uma referência sobre lugares que fui e agora estou interagindo. Já tenho uma base para interagir com essas culturas e olhar de outra forma. A primeira experiência é uma surpresa. Agora é um olhar de uma forma mais respeitosa”.

“Quando você viaja você acha que todo mundo faz a mesma coisa e viaja com a escola e tem a mesma vida que a gente. A gente não tem noção de como funcionam as coisas e como as pessoas vivem. Aprendemos com o tempo sobre a relação com quem a gente não conhece. Acho que essas viagens educacionais ensinaram muito isso”.

“No meu caso, hoje eu consumo só do mercado local porque percebi, lá em Minas[6], que você não vai ajudar o lugar se for consumir no shopping, por exemplo. Eu sempre insisto em consumir dos locais”.

“Acho que na escola é tudo muito separado e a viagem une os assuntos”.

“O turismo educacional deixa uma sementinha boa para que sejamos melhores turistas”.

Percebeu-se que, na medida em que são convidados à reflexão, a percepção do outro se dá de forma responsável, admitindo falhas e construindo uma relação de empatia a partir do resgate da experiência, o que demonstra o ganho de competência, segundo Deardorff (2006). Uma das participantes do grupo focal 5 que, para além de estudantes, também foi analisado como comunidade anfitriã, por serem cidadãos da cidade turística de Santos[7], posicionou-se a respeito do seu sentimento como anfitriã e chamou a atenção para a questão da alienação do turista em geral, quando perguntada sobre os impactos positivos ou negativos na comunidade anfitriã.

Grupo Focal 05 (estudantes da cidade de Santos que viajaram em 2019):

“Acho que depende. Porque depende da situação de quem está lá para te receber. As populações que dependem do turismo são treinadas para nos receber bem. Mas se você vem, por exemplo, para Santos, você não será bem tratado. Eu odeio turista de São Paulo porque eles vêm, sujam tudo, fica tudo lotado (...) porque eles não vêm para conhecer a cidade. Eles vêm porque é a praia mais próxima de São Paulo”.

Como argumenta Barreto (2003), em relação ao paradoxo da relação turista-anfitrião e a escassez de estudos mais aprofundados nesse sentido:

“ajudar a entender os processos psicossociais desencadeados pelo fenômeno turístico, as expectativas, desejos, satisfações e frustrações das populações anfitriãs e dos turistas (...) a busca para além da simples viagem (...) a diversidade de interesses e necessidades sociais que o turismo afeta (...) seria uma enorme contribuição das ciências sociais para o planejamento equilibrado de um turismo responsável” (BARRETO, 2003, p. 26).

Os comentários de outros envolvidos na pesquisa, dos grupos de não estudantes, demonstrou sempre alguma carga emocional, sobre um comportamento adquirido como turista, a partir de uma experiência com turismo educacional, sobretudo acompanhando jovens estudantes, como nos exemplos citados abaixo.

Coordenador de Educação Física:

“Eu fiz viagem de TE com os alunos para as cidades históricas de Minas Gerais e depois eu levei minha família pra lá”.

Perguntado sobre os motivos desta escolha:

“Por que eu quis levar? Porque eu vi significado nessas viagens e quando eu fui pra lá com a minha família, eu vi outras coisas (...) quando você vai com a família você tem esse olhar, que você aprendeu com a viagem de TE, e consegue passar isso para a família e consegue curtir [gíria que significa aproveitar] também o turismo daquele local, que não é só o turismo educacional. Tem o turismo de visitas, de passeios, de igrejas que a gente viu, de teatro, de apresentações..., mas isso, quem proporcionou? Essa viagem de estudo do meio. Esse TE que proporciona eu fazer o turismo pessoal e familiar”.

Perguntado se antes da experiência, escolheria os mesmos destinos:

“Talvez eu nem fosse pra lá! (...) Sem conhecer eu podia achar que era só igreja, só coisa antiga, né? Eu posso falar pra você que foi uma das melhores viagens que eu fiz pra família. Foi pra cidades históricas (...) e se eu não tivesse feito lá o TE, eu não teria levado a minha família pra lá. E foi uma das melhores que eu fiz com toda a minha família. Meus filhos, que hoje são grandes (...anos e ...anos e na viagem tinham ... e ...), eles lembram! (...) eles lembram de detalhes!”

Profissional de recreação e lazer:

“Sendo muito honesto com você: eu era aquele tipo de turista que, assim, eu estou indo pra um lugar, eu estou indo pra curtir [aproveitar], eu estou pagando e é isso, não estou muito preocupado com o que acontece...”.

“Quando você começa a vivenciar algumas coisas... (...) comecei a respeitar muito mais as pessoas dos espaços porque a gente vê tudo que eles passam”.

E como stakeholder do turismo (recreador)?

“Tem um ponto que é o seguinte: Quando você vai para um acampamento, (...) você é o “palhaço” (...) [não no sentido pejorativo, mas só para distrair e divertir]. (...) quando você está numa viagem pedagógica, que você tem outras questões, você consegue atrelar a atividade recreativa à vivência da pessoa que está ali. (...) cria uma relação da criança com aquele espaço (...) agrega muito [valor] à atividade recreativa”.

Numa análise longitudinal de grande parte dos entrevistados, pode-se assumir que a experiência no turismo educacional faz a diferença na competência (inter)cultural por um processo de enculturação e, para além disso, melhorando, segundo os próprios entrevistados, sua qualidade de vida, com momentos de lazer e cultura, e a qualidade de vida de todos os envolvidos na atividade, desenvolvendo competências e promovendo percepções sobre o próprio comportamento antes e depois da experiência. O envolvimento emocional demonstrado nos remete à demanda de apropriação e envolvimento do participante, ao contrário da proposta de alienação, muitas vezes vinculada ao lazer.

A descontração das entrevistas e reações às questões levantadas revelaram a representação do turismo nas relações interculturais para os grupos analisados neste estudo, demonstrando como é possível fazer uso da atividade turística e de lazer como alternativa para uma educação mais significativa para as novas gerações e para a cidadania global, além de desenvolver competências (inter)culturais e tornar os cidadãos mais ativos, mas, também, torná-los mais livres e capazes de se solidarizar com outras causas, para além do que acontece no seu cotidiano.

O turismo é uma área que desperta o interesse dos mais diversos nichos da sociedade, seja para o estudo acadêmico, para o desenvolvimento econômico ou pelo simples interesse em viajar e conhecer lugares. Contudo, é preciso que se observe a divergência, tanto na formação dos profissionais de turismo quanto na formação de futuros turistas, onde se percebe tendências de direcionamento aos interesses comerciais e de entretenimento, ao mesmo tempo que são esperadas soluções sustentáveis para a prática do turismo, nomeadamente, pelas comunidades anfitriãs. Observa-se, ainda, um gap nos estudos de áreas como o turismo e o lazer, que devem exigir reflexão sobre seus impactos e potencialidades, sob um olhar menos economicista e mais voltado às necessidades humanas (CÔRTES, 2022).

A dinâmica cultural de comunidades ou mesmo de grandes populações é direcionada por interesses econômicos e de forma hegemônica, que têm como referência e ponto de partida, a própria cultura, em geral, uma cultura de consumo, hierarquizada a partir de valores externos à cultura visitada. Valores estes que, muitas vezes, já estão “a-culturalizados” pelos processos contínuos de aculturação e “estereotipação”, sob os quais se mantêm ao longo de séculos. O resultado desse processo é a aculturação generalizada e global, que torna superficial e banaliza patrimônios tangíveis e intangíveis, além de transformar a cultura em produto descartável à medida das demandas do mercado, transcendendo e perpassando os mais diversos campos da vida humana e em sociedade.

Considerações finais

Nota-se uma imensa lacuna nos questionamentos e debates sobre algumas tipologias do turismo ou impactos que ele possa causar, no que tange a dar voz às comunidades, não apenas sobre suas necessidades econômicas ou de desenvolvimento sustentável do ambiente natural, mas dar voz aos anseios culturais daquelas populações, dando-lhes direito à mudança e/ou à manutenção de suas tradições, proporcionando acesso a tecnologias que possam fortalecer sua cultura e interagir com outras. Estudos que contemplem o cotidiano das comunidades anfitriãs, sejam elas tradicionais ou contemporâneas, e que desenvolvam propostas de interação, com participação representativa dos diversos perfis de habitantes locais, com conhecimento profundo das culturas envolvidas, ainda são raros e, algumas vezes, datados e desconectados dos interesses das novas gerações. As atividades de lazer dos anfitriões nem sempre são conhecidas ou estão dimensionadas na roteirização turística. Algumas atrações, como é comum no turismo de aventura, ecoturismo ou mesmo no turismo urbano, como o turismo de favela do Rio de Janeiro, por exemplo, nem sequer permitem interação entre os visitantes e os habitantes locais, assim como, muitas vezes, se criam estruturas e equipamentos totalmente estranhos àquele ambiente (FREIRE-MEDEIROS, 2007).

Da perspectiva desta pesquisadora e a partir do contato profissional com o público-alvo da pesquisa por várias décadas anteriores a este estudo, o turismo para o século XXI, sendo um fenômeno social responsável por tantos impactos positivos e negativos, precisaria interagir com áreas pelas quais ele já perpassa, como protagonista de práticas interculturais sustentáveis. A representação da prática do turismo como fenômeno degradador e alienante é reforçada, ainda hoje, pela compulsão por consumo fomentada pelo capitalismo.

Estudos acadêmicos não devem ignorar tendências de comportamento dos jovens em idade de formação intelectual, que alertam para as expectativas e intenções dos consumidores do futuro, assim como o mercado, e não apenas turístico, não pode ignorar os estudos acadêmicos que alertam para mudanças profundas e duradouras de comportamento de visitantes e turistas, que podem determinar o futuro das práticas turísticas e alterar paisagens.

Assim, pode-se concluir que a expansão do turismo, sem a preocupação com a educação do turista e questões socioambientais, contribui para a vulnerabilidade sociodemográfica de regiões, em função das migrações provocadas por processos de aculturação que levam populações à desvalorização da própria cultura, sem nem mesmo ter tido a chance de "re-conhecê-la” e “reproduzi-la”.

Conclusão

Espera-se que não apenas o turismo e a educação, mas as ciências humanas de um modo geral, contribuam com mais estudos e mais aprofundamento no sentido de reconhecer o turismo como fenômeno global que deve estar na pauta da formação do indivíduo desde o início de sua socialização. Assim, acredita-se que desenvolver competências através de práticas educativas e interculturais é a janela de oportunidade para que, não apenas o turismo, mas a cidadania global se desenvolva de forma sustentável e menos desigual.

Convergir com interesses das novas gerações, sensibilizar as classes já empoderadas e empoderar as menos favorecidas, conectando o lazer com o aprendizado prazeroso e o crescimento pessoal, pode ser a grande vocação educacional do turismo, ainda sem a atenção merecida e necessária. Fazer compreender a relação do indivíduo com o mundo e sua participação na coletividade, construindo a sociedade global em que vivemos é tarefa da qual o turismo e o lazer não podem se eximir.

Admitindo que cada viajante, reconhecidamente turista ou não, é um potencial promotor de sua cultura de origem, pelo seu comportamento e influências, sua experiência cotidiana e suas expectativas, e que cada comunidade anfitriã (lugares visitados e sua população) é alvo de apreciação e uso, podendo ou não influenciar esses visitantes, mas inevitavelmente sendo impactada por eles, pode-se considerar que a comunicação intercultural é inevitável, porém, nem sempre positiva para os envolvidos.

Desenvolver competências (inter)culturais torna os cidadãos mais ativos, mas, também, os torna mais livres e capazes de se solidarizar com outras causas, para além do que acontece no seu cotidiano. É preciso conhecimento mais amplo e aprofundado de tudo o que permeia a relação do homem com o espaço.

A intenção deste estudo é de que se tenha um olhar para o lazer, seja no turismo ou em outras esferas, vinculado sempre à formação necessária dos envolvidos nas atividades propostas, numa dinâmica retroalimentar e contínua com a educação, onde um dependa do outro e ambos se fortaleçam, atendendo às necessidades humanas e se adaptando às possibilidades de cada ambiente e realidade. Momentos de lazer ou tempo livre nem sempre precisam estar vinculados a atividades culturais, mas a cultura deve ser respeitada e reconhecida por todos em todos os momentos da vida em sociedade.

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Notas

[1] Dissertação para obtenção do grau de mestre em Turismo e Comunicação na Universidade de Lisboa e Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, intitulada: O papel educacional do turismo no desenvolvimento de competência (inter)cultural de estudantes de 2° e 3° ciclos no Brasil (CÔRTES, 2022).
[2] Objetivos para o Desenvolvimento sustentável (ODS): Objetivo 8. Promover o crescimento econômico sustentado, inclusivo e sustentável, emprego pleno e produtivo e trabalho decente para todas e todos. Objetivo 11. Tornar as cidades e os assentamentos humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis. Objetivo 12. Assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis.
[3] O turismo educacional (TE), como é praticado no Brasil, se propõe a possibilitar aos estudantes e seus professores uma vivência in loco, no que contemplaria o objeto de estudo elencado para cada roteiro. Trata-se de uma tipologia geralmente praticada apenas por estudantes acompanhados de seus professores, com a finalidade de desenvolver um estudo do meio, ferramenta pedagógica muito utilizada pela geografia, mas não somente.
[4] O estudo do meio é uma metodologia de ensino que tem como objetivo geral o estudo de uma realidade específica, através da imersão em determinado ambiente e da observação por método interdisciplinar (PONTUSCHKA, 2007).
[5] A cidade de Paraty está localizada no estado do Rio de Janeiro, a 268 Km da cidade de São Paulo. Patrimônio Mundial pela UNESCO, reconhecido por cultura e natureza, é uma das cidades mais procuradas para o turismo de várias tipologias, contemplando atividades para diversos estilos de turistas.
[6] Ouro Preto é a cidade à qual se referiu o participante do grupo focal 4. Localizada no estado de Minas Gerais, é uma cidade histórica do período colonial e foi declarada patrimônio cultural da humanidade pela UNESCO.
[7] Santos é uma cidade costeira no estado de São Paulo que, para além de abrigar o maior porto da América Latina, tem como uma de suas principais atividades o turismo, tanto de lazer, quanto cultural, por seu centro histórico.

Autor notes

i Mestre em Turismo e Comunicação pela Universidade de Lisboa e Escola Superior de Hotelaria e Turismo do Estoril, Portugal. E-mail: cortes.luciliaalvim@gmail.com . Orcid: https://orcid.org/0000-0002-3137-6129

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