Artigos
Relações de poder-saber sobre o gênero e a sexualidade: observações em uma escola pública da cidade de Goiânia - Goiás[1]
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 14, núm. 2, 2017
Recepção: 14 Outubro 2017
Aprovação: 21 Novembro 2017
Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar e analisar as relações de poder-saber sobre o gênero e a sexualidade presentes em uma escola pública estadual da cidade de Goiânia - Goiás. Para tanto, utilizando da Análise do Discurso de vertente foucaultiana, almejou-se identificar, rastrear e examinar os discursos nos enunciados do Projeto Político Pedagógico (PPP), Regimento Escolar (RE) e no funcionamento da instituição, particularmente aqueles capazes de promover a normatização e normalização do gênero e das expressões da sexualidade. Como resultado compreendeu-se que a escola analisada era governada por uma complexa prolixidade discursiva, na qual os ?ditos? e os ?não ditos? criavam uma trama de estratégias que contribuíam para a normalização e normatização das experiências, construções das subjetividades e para a manutenção de uma ordem social apoiada no gênero e na heterossexualidade.
Palavras-chave: gênero, sexualidade, escola, discurso, poder-saber.
Abstract: This article aims to present and analyze the power-knowledge relations on gender and sexuality present in a public school in the city of Goiânia - Goiás. For this purpose, using the Discourse Analysis of Foucauldian perspective, it was sought to identify, to trace and examine the discourses present in the utterances of the Political Pedagogical Project (PPP), School Regiment and the functioning of the institution, particularly those capable of promoting the normalization and standardization of gender relations and expressions of sexuality. As a result, it was understood that the analyzed school was governed by a complex discursive prolixity, in which "sayings" and "not said" created a scheme of strategies that contributed to the normalization and standardization of experiences, constructions of subjectivities and for the maintenance of a social order based on gender and heterosexuality.
Keywords: gender, sexuality, school, discourse, power-knowledge.
Resumen: Este artículo tiene como objetivo presentar y analizar las relaciones de poder-saber sobre el género y la sexualidad presentes en una escuela pública estatal de la ciudad de Goiânia - Goiás. Para ello, utilizando el Análisis del Discurso de vertiente foucaultiana, se anheló identificar, rastrear y escrudiñar los discursos presentes en los enunciados del Proyecto Político Pedagógico (PPP), Regimiento Escolar (RE) y en el funcionamiento de la institución en el funcionamiento de la institución, particularmente aquellos capaces de promover la normalización y la estandarización de las relaciones de género y de las expresiones de la sexualidad. Como resultado se comprendió que la escuela analizada era gobernada por una compleja prolícidad discursiva, en la cual los "dichos" y los "no dichos" creaban una trama de estrategias que contribuían a la normalización y estandarización de las experiencias, construcciones de las subjetividades y mantenimiento de un orden social apoyado en el género y la heterosexualidad.
Palabras clave: género, sexualidad, escuela, discurso, poder-saber.
Introdução
Como todas as instituições sociais, a escola reflete a sociedade na qual está inserida, servindo como uma ferramenta estratégica para a preservação e repasse de valores, normas e concepções sociais importantes para a manutenção da ordem social. Entretanto, mas não paradoxalmente, a escola também se tornou um espaço de grande importância para a luta contra as desigualdades, para a construção de questionamentos acerca de algumas dessas ordens sociais e para o confronto entre diferentes posicionamentos discursivos. Um cenário de tamanha inquietação que, mesmo sendo regido e fortemente regulado por leis, decretos e concepções político-ideológicas, tem sido capaz de construir e fazer espalhar seus próprios discursos.
Ao descrever e analisar uma das inúmeras escolas da Região Metropolitana de Goiânia, este artigo almeja trazer à cena e problematizar alguns enunciados que possivelmente não soarão para muitos e muitas como estranhos, pois o tempo e as constantes reiterações dos seus discursos os tornaram verdades, sendo, portanto, ainda timidamente questionados. Enunciados que, em suas funções e ao cruzarem um mando de estruturas e unidades possíveis, tomaram o contorno de uma ideia concreta no tempo e no espaço, estabelecendo-se como verdades absolutas (FOUCAULT, 1972).
Mediado por duas categorias analíticas ? gênero e sexualidade ?[3], este artigo pretende expor uma análise já concluída e que foi parte do corpusda minha dissertação de mestrado, intitulada ?Performances e Performatividade: negociações de gênero e de sexualidade em aulas de Educação Física?, produzida através de observações participantes, de entrevistas e pelas análises de dois documentos diretivos ? Projeto Político Pedagógico (PPP) (SEDUC-GO, 2012)[4] e o Regimento Escolar (RE) (SEDUC-GO, 2011) de uma instituição escolar nomeada aqui de Escola Estrela Azul[5] (EEA). Porém, reforço, como já fez inúmeras vezes Michel Foucault, que esses documentos, por serem constituídos por uma rede discursiva que se emaranha em práticas destinadas à normalização, normatização[6], enquadramento, disciplinamento e ordenação de corpos, atitudes, condutas, desejos e poderes, não dão condições para a procura das origens metafísicas dessas estratégias, mas, talvez, permita expor as relações de poder-saber postas em funcionamento e a possível visibilidade de alguns dos seus efeitos.
A intenção de visibilizar as relações de poder-saber será importante porque, conforme reiterou Foucault (2011b), o poder produz saber e essa produção não é resultado de um ?sujeito de conhecimento? livre do sistema de poder. Ao contrário, ?[...] não é a atividade do sujeito de conhecimento que produziria um saber, útil ou arredio ao poder, mas o poder-saber, os processos e as lutas que o atravessam e que o constituem, que determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento? (FOUCAULT, 2011b, p. 30).
Para tanto, o espaço discursivo, ou seja, os documentos que mediarão a minha procura por referências ? no sentido de saber de onde partiram os discursos que a escola utilizou para mediar a construção dos seus documentos diretivos ? será composto pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação ? LDB (1996) e pelos Parâmetros Curriculares Nacionais ? PCN - (Temas Transversais ? Orientação Sexual) (1998).
Essa conduta permitirá que, a partir da materialidade do discurso sobre o gênero e a sexualidade nos documentos da escola, e paralelamente com o espaço discursivo delimitado, seja possível observar a dinâmica dos enunciados, identificando-os e analisando-os, problematizando a política de verdade dada pelos discursos que os constituem, além de expor, em formas concretas, os ordenamentos prescritivos presentes no espaço escolar e para quem tais ordenamentos têm sido direcionados.
A escola e a procura pela normatização e normalização num espaço repleto de frestas e cantos
Como qualquer outro espaço social que tenha como objetivo a mediação da formação humana, a escola promove o atendimento de certas normas, influencia no processo de subjetivação, reforça valores e representações, sobretudo aqueles focados em noções de ?normalidade? socialmente construídos que, todavia, são também transgredidos e subvertidos. Nesse processo contínuo de construção, a escola possibilita e incentiva a criação de teias de relações que ligam e interligam pessoas, elaborando redes nas quais as diferenças, as distinções e as desigualdades são produzidas, reproduzidas, afirmadas e negadas constantemente. O que significa dizer que a escola, como a própria sociedade, está em constante transformação, sendo um campo instável e altamente produtivo.
Desse modo, para Guacira Lopes Louro (2011), a instituição escolar sempre exerceu uma ação distintiva, pois ela se incumbiu de diferenciar os indivíduos que tinham acesso a ela daqueles para os quais o acesso foi negado. Uma distinção que também perdura internamente, já que o funcionamento da escola se apóia numa multiplicidade de ferramentas utilizadas para classificar, hierarquizar, ordenar, disciplinar e docilizar corpos (FOUCAULT, 2011b). Função que pode ser observada na regularidade dos discursos presentes na Lei de Diretrizes e Bases da Educação - LDB nº 9394/96 (BRASIL, 1996) que instigam a organização do processo educacional em séries anuais, períodos semestrais, ciclos e alternância regular de períodos de estudos, pelas separações dos alunos e alunas com base na idade, na competência e em outros critérios que o processo de aprendizagem recomenda.
O que parece ser coerente afirmar é que a escola, ao longo de sua história, manteve-se sempre fortemente estruturada a partir de premissas afluentes, aptas a ajudarem na construção dos indivíduos, subjetivando-os e direcionando-os para a inserção social e, desse modo, valorizando-os como indivíduos úteis e produtivos. Um bom exemplo dessa função pode ser vista no segundo parágrafo do primeiro artigo da LDB nº 9394/96 (BRASIL, 1996), que estabelece a vinculação da educação formal ao mundo do trabalho e às práticas sociais. Inclusive, de tão importante, a palavra ?trabalho? foi utilizada vinte e quatro vezes no texto da LDB, e em doze delas o sentido semântico aparece intimamente ligado à atividade profissional regular e remunerada.
Por meio da manutenção desses discursos tributários, a escola tem (re)afirmado o que pode e o que não pode ser feito, seja em termos de escrita, fala, comportamentos, gostos, atitudes, desejos e prazeres, ou seja, para quem ou o quê os desejos dos alunos e alunas poderão ou não ser direcionados. Isso torna a escola um ambiente apto à subjetivação, sobretudo, as que decorrem de uma ?pedagogia da sexualidade? (LOURO, 2010b, p. 30-31) que legitima algumas identidades e práticas ao passo que tenta reprimir, marginalizar e ocultar outras.
De tal maneira, Luiz Mello et al (2012), ao analisarem as políticas públicas de educação para a população LGBTTI ? lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, travestis e intersexuais no Brasil ?, afirmaram que tais políticas têm encontrado grandes resistências de parlamentares ligados à posições LGBTTIfóbicas e de fundamentalistas religiosos. Resistências que contribuíram, por exemplo, para a suspensão da distribuição do kit anti-homofobia feita a partir de uma determinação da ex-presidenta Dilma Rousseff em maio de 2011.
Tal conflito de interesses e disputas ideológicas somente mostra como a falta de um arcabouço legal de proibição explícita da discriminação por orientação sexual e identidade de gênero bem como a garantia de cidadania plena e direitos humanos da população TLGB ainda fere de morte muitas das ações, projetos e programas que integram políticas públicas propostas pelo Governo Federal, no sentido da promoção de uma sociedade que não trate os que não se enquadram nos limites da norma heterossexual como párias e escória em seu próprio país. (MELLO et al, 2012, p. 119)
Sendo um espaço legitimado e legitimador, a escola possibilita que os discursos externos e aqueles criados internamente sejam vivenciados por meninas e meninos através dos seus gestos, dos movimentos, dos sentimentos e das suas posturas, constituindo um processo que, muitas vezes, torna-se eficaz na incorporação dos discursos sobre o uso dos corpos e na interdição de formas de desejo e prazer diferentes da heterossexualidade. Impregnados em seus corpos, tais discursos passam a habitá-los, se acomodam e serão carregados, vividos e experimentados como verdades. Judith Butler (2002) sustenta que somos tão impregnados desses discursos como os nossos músculos são banhados de sangue. Todavia, Butler (2002) nos adverte que essa incorporação nunca é um processo completo ou preciso, pois ainda que os discursos façam parte do nosso próprio sangue, eles não deixam de causar estranhamentos, enfrentamentos, transgressões e subversões; possivelmente seja essa a justificativa para a necessidade de sua constante reiteração.
Esse processo de incorporação, para Pierre Bourdieu (2016), se dá através das regularidades características do meio, que promovem uma interiorização da exterioridade e uma exteriorização da interioridade, ou seja, a própria incorporação do social. Trata-se de um processo que se daria pela força mediadora e conformadora do habitus, já que este seria um ?[...] sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações? (BOURDIEU, 1983, p. 60-61). Um sistema arranjado de tal forma que passa a agir como elemento ordenador, sendo distribuído, comungado, reforçado, mas também enfrentado.
Em vista desse processo, para garantir a materialização das práticas e das representações, da incorporação do social e das distinções, a escola faz uso de dispositivos de poder que estão presentes nos currículos, nas metodologias, nos conteúdos, na didática das aulas, nos direitos e deveres garantidos por regimentos, na organização arquitetônica, na funcionalidade dos espaços do ambiente escolar, enfim, em uma trama intrincada de mecanismos que orquestram uma regulação regular, ditada pela obediência, disciplina, organização e enquadramentos.
Como bem considerou Bourdieu (2016), estamos imersos numa ordem gerada por uma infinidade de indícios e prescrições que designam as coisas que podemos ou não fazer, como se as possibilidades de existências/experiências já se apresentassem a nós como desenhos pontilhados por um universo social e economicamente diferenciado. Porém, como quaisquer dessas linhas pontilhadas, essas também apresentam ?lacunas?, espaços não preenchidos e, portanto, passíveis de serem desalinhados, sobrepostos, intercambiáveis, cruzados; ocorrências comuns quando os indivíduos lidam com o poder e com as resistências que nascem a partir dele.
Chamada a lidar com a pluralidade das identidades, subjetividades, práticas e posicionamentos, a escola tem sido constantemente incitada a rever ?verdades?. Assim, se viu obrigada a lidar com uma demanda que lhe tem causado grande desconforto, afinal, nós, educadores e educadoras, bem como a escola, como uma instituição ?estabelecida?, não nos sentimos muito confortáveis com as novas ideias de precariedades, instabilidades e incertezas que os discursos contemporâneos têm trazido (LOURO, 2010a). Desconforto que muitas vezes se materializa pela negação, omissão ou (re)enquadramento daqueles e daquelas que ousam se erguer contra os discursos ?verdadeiros?, inquestionáveis e tidos como permanentes que a escola e uma parte da sociedade civil apresentam ? vide o exemplo da suspensão do kit anti-homofobia ou mesmo a morosidade para a implementação efetiva do ensino da história e cultura afro-brasileira e indígena prevista na lei nº 10.639 de 2003 (TARGINO, 2012).
Entre exclusões e inclusões, liberdades e repressões, o modelo educacional com o qual temos tido contato tem agido realmente como uma das ramificações de um poder difuso e descentralizado que, para ser obedecido, não somente recusa, mas também consente, pois, como demonstrou Foucault (1979), esse poder não se sustentaria se fosse apenas proibitivo.
Justamente por essas características, as negociações baseadas nas relações de gênero, sexualidade e/ou outras expressões, farão do ?chão da escola? (CANDAU, 2011, p. 241) um campo de batalha. Um mundo habitado por alguns indivíduos com pouco capital cultural, social ou econômico em constante conflito, sobretudo porque suas existências ? compostas por orientações sexuais incompreendidas, raças/etnias não valorizadas, crenças religiosas ameaçadoras, corpos tidos como não funcionais ou fora dos padrões, pela presença do sexo ?frágil? das mulheres, dentre outras ? disputarão espaços, direitos e atenções contra meninos e meninas brancas(os), heterossexuais, ?sem deficiência?, magras(os) e cristãs(ãos), dentre vários outros marcadores sociais considerados positivos, ficando para os de menor poder os espólios dessas disputas.
Assim sendo, podemos observar que os marcadores sociais são inúmeros e as possibilidades de interseccionalidades muito variadas, por isso este artigo se aterá somente a dois: gênero e sexualidade, mantendo, contudo, abertas as análises de exclusões ocasionadas pela classe social, raça, deficiência física/mental/cognitiva, morfologia corporal, etc.
Como ferramenta de análise, o conceito de gênero adotado aqui, aproxima-se daquele cunhado pelas feministas pós-estruturalistas inspiradas nas teorizações de Michel Foucault e Jacques Derrida. Nele, a linguagem toma centralidade e é entendida como locus de produção das conexões que a cultura engendra entre corpo, sujeito, conhecimento e poder.
Segundo Dagmar E. Estermann Meyer (2010), ao aproximar o conceito de gênero dos estudos pós-estruturalistas, a categoria passa a aglutinar os modelos utilizados na construção social, cultural e linguística que, entrelaçados com os dispositivos que diferenciam mulheres de homens, abrangem também aqueles que produzem seus corpos, diferenciando-os, distinguindo-os e separando-os como corpos dotados de sexo, gênero e sexualidade.
Pensado como categoria analítica e histórica na perspectiva apresentada por Joan Scott (1995), o gênero será compreendido como resultado da intersecção entre duas proposições, sendo uma ?[...] elemento constitutivo das relações sociais baseadas nas diferenças percebidas entre os sexos e [...] uma forma primária de dar significado às relações de poder? (SCOTT, 1995, p. 86). Nesse sentido, o gênero deverá, também, de acordo com Scott (1995), implicar na inter-relação com mais quatro elementos. Primeiro serão os símbolos que a cultura disponibiliza e que evocam representações simbólicas e, muitas vezes, contraditórias: luz/escuridão, inocência/corrupção, homem/mulher, etc., nos moldes das relações observadas por Derrida (1972), onde o primeiro item apresenta e detém a possibilidade de existência do segundo. Um bom exemplo dessa concepção na linguagem é a utilização do gênero gramatical masculino como ?gênero neutro?.
Na segunda inter-relação estarão os conceitos normativos que explicitam as interpretações que damos aos significados dos símbolos, inclusive como reprimimos possibilidades alternativas. Esses conceitos são abertamente colocados por doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas, etc., e sempre tomam como forma a oposição binária fixa, por exemplo, os significados do homem e da mulher, do masculino e do feminino. Como terceiro aspecto estarão as análises que incluem uma concepção política e suas referências às instituições e organizações sociais, não restringindo o conceito a sistemas como parentescos, relações de classe, etc. Por fim, o conceito de gênero deverá agregar um quarto aspecto, que será sua identidade subjetiva, ou seja, como as ?[...] identidades generificadas são substantivamente construídas e relacionar seus achados com toda uma série de atividades, de organizações e representações sociais historicamente específicas? (SCOTT, 1995, p. 88).
Já as sexualidades serão compreendidas a partir de duas proposições que, apesar de diferentes em alguns aspectos, acabarão por possibilitar a construção de uma ferramenta analítica mais densa e efetiva. Para tanto, a sexualidade será pensada como resultado de inúmeras estratégias de poder-saber que controlam os indivíduos e a utilização de seus corpos.
A sexualidade seria o nome que se pode dar a um dispositivo histórico: não à realidade subterrânea que se apreende com dificuldade, mas à grande rede da superfície em que a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências, encadeiam-se uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder. (FOUCAULT, 2011a, p. 116-117)
E, reforçando o conceito foucaultiano, também interpretarei a sexualidade a partir da sustentação de Louro (2008), para quem a sexualidade e a construção do gênero se dão em distintas situações, através de inúmeros aprendizados e práticas, sendo delineados de modos explícitos ou velados por um conjunto inesgotável de instâncias sociais e culturais (família, escola, igreja, instituições legais e médicas, etc.), sendo sempre um processo minucioso, sutil e inacabado.
Descrição, contextualização e Análise do Discurso: uma incursão no campo
A Escola Estrela Azul (EEA) faz parte do quadro de escolas/colégios administrado pelo Governo do Estado de Goiás, situa-se no Setor Jardim América, que de acordo com o Anuário Estatístico baseado no Censo de 2010 seria o maior bairro da Região Metropolitana da cidade de Goiânia, com aproximadamente 41.012 habitantes, composto por 19.024 homens e 21.988 mulheres (GOIÂNIA, 2010). Sua localização, segundo o (PPP), flexibilizaria e facilitaria o acesso de alunos e alunas de várias regiões de Goiânia e até mesmo de outras cidades próximas, uma vez que o bairro Jardim América seria bem servido de transporte coletivo, o meio de mobilidade urbana característico da comunidade discente da escola.
De acordo com o PPP, a instituição, inaugurada em 1977, contava em 2012 com 1079 alunas(os), distribuídas(os) em 14 salas de aulas voltadas para os níveis de Ensino Fundamental (6º a 9º anos), Ensino Médio (1º ao 3º ano) e Educação de Jovens e Adultos (EJA). As salas de aulas comportavam em média 35 alunos e alunas, sendo apoiadas pedagogicamente por um laboratório de ciências físicas e biológicas, uma biblioteca com livros literários, didáticos e de pesquisa, uma quadra coberta para a prática de diversos esportes, sala de professores, sala de coordenação, uma cozinha, secretaria e diretoria.
As salas de aulas eram separadas das salas da coordenação, direção e dos professores por portões e grades, ou seja, os alunos e alunas ao entrarem na escola tinham acesso somente às suas salas e aos espaços para os quais recebiam autorização de adentrarem. Desse modo, as suas movimentações eram ordenadas pela presença regular de auxiliares disciplinares e de um conjunto arquitetônico que, juntos, tinham como função direcionar a eficiência do tráfego de chegada e saída do estabelecimento escolar.
Dispositivos que faziam funcionar a vigilância e se caracterizavam, juntamente à ordem estabelecida pelo PPP e o RE, por uma constante reiteração da funcionalidade disciplinar focada sobre os indivíduos, já que, além de mantê-los em seus espaços, reiterava seus direitos e deveres e garantia um dos princípios da disciplina ? a criação de uma ?economia do tempo e dos gestos? (FOUCAULT, 2011b, p. 142-143) como forma de melhorar a produção, reduzindo as possibilidades de conflitos e os agrupamentos temerários à funcionalidade do sistema.
Como em muitos outros mecanismos disciplinares, o que foi visualizado na EEA também não admitia a existência de campos fixos de dominados e dominadores, dado que os poderes estavam sempre em confronto, poucas vezes nítidos e muitas vezes difusos (FOUCAULT, 2011a). Ordem que, se por um lado dava a sensação de uma aparente harmonia do funcionamento da EEA, por outro, permitia a visualização de confrontos entre diferentes instâncias de poderes que se davam entre os(as) discentes e seus pares e/ou deles(as) contra a maquinaria disciplinar ? auxiliares disciplinares, dispositivos arquitetônicos, normas e regras ditadas pelo PPP e RE ? e mesmo contra o habitus da instituição. As resistências ora se manifestavam a partir das tentativas do alunado em ?invadir? os espaços onde eles(as) não eram permitidos(as), como a sala dos professores, sala da coordenação ou mesmo outras salas de diferentes séries ou turmas; ora a partir dos gritos, dos empurrões, das risadas, das chacotas, dos gestos que contradiziam a ?economia? desejada. Comportamentos corriqueiros que pareciam ser ignorados, mas que eram, na verdade, espreitados por uma gama de olhares e de possibilidades ordenadoras, uma maquinaria disciplinar preparada para intervir a qualquer momento.
Foucault (2011b) sustentava que algumas pessoas, quando submetidas aos ordenamentos disciplinares do poder, poderiam criar resistências violentas e, frequentemente, fadadas ao sacrifício. Isso exigiria do maquinário disciplinar a construção de estratégias para intervir o mais rápido e eficaz possível, algumas vezes antecipadamente. O regimento da EEA, por exemplo, criava essa sensação de controle, já que antecipadamente elencava e previa sanções para diferentes atos infracionais. As penalidades iam da advertência verbal que se destinava à punição das agressões leves; advertência escrita (comunicação aos pais[7]) para as reincidências e o encaminhamento ao Conselho Tutelar e/ou Ministério Público daqueles casos graves de inobservância das regras do regimento, especificamente para os(as) alunos(as) menores de dezoito anos (SEDUC-GO, 2011, p. 25).
Já o PPP se antecipava no controle e na manutenção da disciplina ao elencar uma gama de intervenções anuais a ser implementada para lidar com os enfrentamentos/resistências/conflitos a partir da diminuição ou erradicação do bullying, da necessidade de discussões sobre orientação sexual, sobre a pluralidade cultural e ética, das estratégias de combate ao racismo, etc. Intervenções que deveriam ser executadas por projetos educacionais sazonais, mormente em datas comemorativas.
Em outras palavras, os enfrentamentos propostos pelos documentados analisados eram engendrados muito mais por projetos pontuais do que por um habitusinstituído pelos dispositivos do cotidiano escolar, dentre eles aqueles como conteúdo, metodologia e didática das aulas, que capacitariam a construção diária de discussões sobre os temas. Daí observa-se que a efetivação real das propostas do PPP estaria atada à relação pouco contextualizada e altamente demarcada de sua execução. Ou seja, a partir desses projetos se comemoraria e/ou se problematizaria o ?Dia do índio?, ?Dia da mulher?, ?Dia da consciência negra? naqueles dias especificamente voltados para isso, como se essas discussões não fossem imprescindíveis para os outros dias do ano.
No tocante à sexualidade, ainda dentro dos PPP e do RE, as discussões deveriam se dar nos dias voltados à conscientização de luta contra as infecções ou contágios de doenças sexualmente transmissíveis, principalmente pelo vírus HIV, ou para a tentativa de diminuição da gravidez precoce. Discussões que se davam, muito problematicamente, pelo viés das ciências biológicas ? ?naturalizadas?, fragilmente alinhavadas às concepções socioculturais, altamente vinculadas às necessidades reprodutivas, fortemente baseadas na heterossexualidade como norma, vinculadas ao combate da gravidez precoce como responsabilidade das mulheres e/ou como forma de prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
Para mais, o discurso presente no PPP pareceu demonstrar que a instituição escolar analisada lidava com a sexualidade como aquilo que Santomé (1998) chamou de ?currículo de turistas?:
Currículos nos quais a informação sobre comunidades silenciadas, marginalizadas, oprimidas e sem poder[8] é apresentada de maneira deformada, com grande superficialidade, centrada em episódios descontextualizados, etc. Sua forma mais generalizada se traduz em uma série de lições ou unidades didáticas isoladas, destinadas a proporcionar aos estudantes uma tomada de contato com realidades e problemas de grande atualidade. Trata-se de propostas de trabalho desligadas das programações vigentes no centro escolar, temáticas que não cabem nos recursos didáticos mais usados, os livros-texto. Fazer um currículo de turistas é trabalhar esporadicamente, por exemplo, um dia por ano, em temas como a luta contra os preconceitos racistas, ou dedicar-se a refletir sobre as formas adotadas pela opressão das mulheres, ou da classe trabalhadora, pesquisar a poluição, as guerras, os idiomas oprimidos, etc. As situações sociais cotidianamente silenciadas e que, em geral, são apresentadas como questões problemáticas nessa sociedade concreta na qual está situada a instituição escolar (as etnias oprimidas, as culturas nacionais silenciadas, as discriminações de classe social, gênero, idade, etc.) passam a ser contempladas de uma perspectiva distante, como algo que não tem nada a ver com cada uma das pessoas que se encontram nessa sala de aula, algo estranho, exótico, ou mesmo problemático. Além disso, habitualmente se esclarece que sua solução não depende de ninguém em concreto, que está fora do nosso alcance; as situações são contempladas, porém afirma-se que não temos capacidade de incidir sobre elas. (SANTOMÉ, 1998, p. 147-148)
Aqui é importante ressaltar que a implementação de projetos pontuais e através de contextualizações muito demarcadas, presentes nos enunciados analisados, difere daquelas propostas pelo PCN ? Temas Transversais (Orientação Sexual) (BRASIL, 1998), uma vez que este incentiva as discussões acerca da sexualidade como práticas contínuas e sistemáticas. Todavia, é importante dizer que o próprio PCN, além de não servir como instrumento de lei, já que só tem a função de parametrizar, deixa também várias brechas para a não efetividade de suas propostas, quais sejam: 1) a família tem o direito de não aceitar os ensinamentos que a escola propõe acerca das relações de gênero e sexualidade, ou seja, os alunos e alunas advindos de famílias contrárias ao que está sendo ensinado podem ser dispensados dessas atividades (p. 332); 2) em algumas partes, o PCN apresenta discordância de conceitos, isto é, em parte conceitua gênero como uma relação de poder construída na proposição de diferenças socioculturais entre os sexos e em outras admite a relação de gênero como uma relação binária (masculino e feminino), não insistindo no amparo à possíveis interseccionalidades (classe social, raça, cor, localização geográfica, presença de alguma deficiência física, cognitiva ou mental, etc.); 3) praticamente em sua totalidade o PCN utiliza o gênero masculino como flexor gramatical para exprimir todo o corpo discente, docente e técnico-administrativo, abarcando no substantivo masculino todas os/as outros/as; 4) ao propor ações acerca da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis e AIDS, o PCN dá como exemplo somente relações heterossexuais, invisibilizando outras formas de expressão da sexualidade.
Dessa forma, possivelmente fazendo uso de partes dos PCN e de outros espaços discursivos como a LDB nº 9394/96, PNE ? Plano Nacional de Educação, etc., a EEA construiu um projeto político pedagógico pouco instrutivo e ineficaz para o enfrentamento do preconceito, discriminação ou das relações de gênero não equânimes. O que, a meu ver, parece ter ajudado no engendramento das relações entre os alunos e alunas com maior poder de dominação, como as que foram vistas durante o período da minha observação participante.
Esses conflitos se davam principalmente entre um grupo de estabelecidos versus alguns/algumas alunos(as) que poderiam ser categorizados(as) como outsiders. Analisados a partir da teoria de Norbert Elias e John Scotson (2000), os estabelecidos e estabelecidaspareciam deter e fazer uso de um poder instituído pela percepção de pertencerem a um grupo ?majoritário? ou de maior tempo naquele espaço, contra aqueles(as) que, por alguma razão instituída e/ou reforçada pelos discursos de ?normalidade? do ordenamento social acerca das orientações sexuais, capacidades físicas, morfologias corporais, classes sociais, raça/cor, procedências geográficas, etc., eram tratados(as) como outsiders, uma vez que suas vivências pareciam transitar entre as fronteiras do permitido, do proibido ou do não desejável socialmente (ELIAS & SCOTSON, 2000).
No cenário observado na EEA, os estabelecidosocupavam espaços mais ?centralizados? do ambiente, particularmente aqueles dispostos no pátio nos períodos de intervalos (recreios) quando os grupos e rodas de conversas se formavam. Já os outsiders ficavam às margens, sendo ora ou outra integrados(as) nos grupos dos estabelecidos, mas frequentemente circulando, convivendo e coexistindo nas fronteiras sociais e físicas da escola.
O fundo da escola, os corredores que circundavam a quadra e os banheiros, apesar de serem vistos como locide transgressão e subversão dos estabelecidos e outsiders, eram também os espaços nos quais as distintas expressões da sexualidade poderiam existir, já que um dos maiores problemas das escolas, e não só da Escola Estrela Azul, é crer que a sexualidade não deveria ser vivida no ambiente escolar, em particular, as sexualidades não heterossexuais. O que cabe dizer é que, enquanto para as alunas e alunos heterossexuais aqueles espaços eram possíveis locais de encontro, onde as regras da escola poderiam ser transgredidas, para gays, lésbicas, transexuais e bissexuais aqueles espaços eram seus ?lugares?. Para esses sujeitos, mais do que transgredir regras, aqueles locais eram vitais para a manutenção, preservação e experimentação de partes importantes de suas próprias subjetividades.
Apesar das críticas, é preciso afirmar que a EEA não deixava de questionar suas próprias verdades ? pelo menos é o que propunha o PPP em sua página quatorze (SEDUC-GO, 2012). Nela a instituição anunciava o desejo de que o conteúdo aprendido, seja ele qual fosse, nunca deveria ser tomado como um fim em si mesmo, mas como um pretexto para aprender e questionar o próprio conhecimento adquirido. A escola reiterava que não pretendia a reprodução de verdades alheias, mas que as alunas e alunos aprendessem a olhar o mundo colhendo dados, interpretando-os, transformando-os e tirando suas próprias conclusões.
Todavia, mesmo com esse discurso, a instituição omitiu, nos dois documentos analisados, qualquer necessidade de enfrentamento das relações desiguais entre os sexos ou de ações para a proteção de grupos sexualmente estigmatizados (gays, lésbicas, travestis, transexuais, bissexuais, intersexuais), o que pode ser considerado uma prova de que o discurso de proteção e amparo para esses grupos não seria uma prioridade. Esse fato parece configurar que a omissão/ocultação de enunciados voltados para a proteção, problematização e/ou enfrentamento dos problemas de alguns grupos sociais não deveria ser visibilizado ou discutido, já que assim esse grupo se manteria preso ao limbo do ?não dito? e do ?não aceito? da ordem social. Parafraseando Foucault (2000), tudo o que sobrevém ao discurso formular se faz presente na articulação entre a permissão e a interdição de se falar de/sobre algo, o que significaria que o ?não dito? seria mais uma das faces do mesmo discurso que permite o ?dito?.
Eni Puccinelli Orlandi (2007) afirma que com as novas formas de ler instituídas pela análise do discurso, o dizer está em estrita relação com o não dizer e, por isso, precisa ser acolhido como um dado importante para a análise. Portanto, para o(a) analista do discurso, essa omissão deve ser sempre problematizada, já que o ato de dizer, de ?presentificar? uma posição, informar sobre algo ou alguém, se sustentaria nas possibilidades dadas por uma memória discursiva que foi gestada também por aquilo que não foi dito ou na ausência de um discurso. Desse modo, Orlandi (2007) reitera que os dizeres da escola não são apenas mensagens a serem decodificadas, mas são efeitos de sentidos que, ao serem produzidos, deixam vestígios. São pistas que devemos seguir para compreender os sentidos produzidos, colocando-os em relação a sua exterioridade e às condições de sua produção. Dessa forma, ?Esses sentidos têm a ver com o que é dito ali, mas também em outros lugares, assim como o que não é dito, e com o que poderia ser dito e não foi. Desse modo, as margens do dizer, do texto, também fazem parte dele? (ORLANDI, 2007, p. 30).
Pelos vestígios deixados nos dois documentos analisados, é possível assegurar que a não ?naturalidade? das sexualidades, mais especificamente aquelas não filiadas à heterossexualidade, têm sido utilizada como dispositivo de poder para assujeitar, negar e omitir o direito à sua existência por parte do poder público, das instituições religiosas e ou de outras formações discursivas como a própria educação formal. Isso tem permitido transformar gays, lésbicas, travestis, transexuais, bissexuais em ?bodes expiatórios?, responsáveis pela desordem social e, portanto, devendo manter suas vivências na ordem do ambiente privado e não no espaço público da escola, sob pena de que acaso comparecessem naquele espaço, as ?opções sexuais? e os ?comportamentos? dessas pessoas poderiam ser ?naturalizados? e se tornarem comuns, influenciando os(as) alunos(as) ?normais? a tomarem o mesmo caminho.
Infelizmente sabemos que a manutenção das sexualidades e das práticas sexuais como de responsabilidade da família fará recair sobre as(os) transgressivas(os) as culpas pelos infortúnios dos seus familiares, criando um continuum difícil de ser rompido.
Ninguém de fora irá intervir, porque há a percepção de que os assuntos de família são privados e intocáveis. A estrutura familiar e sua intocabilidade predominam. Então, porque a pessoa gay não tem apoio total de sua família, ela por sua vez se torna o bode expiatório ideal. Na sociedade, assim como na família, ninguém irá intervir. A sociedade não irá intervir na família e a família não irá intervir na sociedade. É uma relação dialógica de opressão. (SCHULMAN, 2010, p. 76)
Esse discurso de que a sexualidade deve ser de responsabilidade do âmbito privado ? algo a ser discutido em família e não na escola ? tem privado alunos e alunas de informações que poderiam desmistificar a centralidade da heterossexualidade no roll das sexualidades, problematizar a insistente dependência entre reprodução e ato sexual, criar questionamentos sobre os discursos que instituem as mulheres como ?segundo sexo? (BEAUVOUIR, 1980), possibilitar discussões sobre como as interseccionalidades são capazes de promover inclusões ou exclusões e mesmo desmascarar e, talvez, enfraquecer os discursos que supõem que as sexualidades de crianças, adolescentes, jovens, professores(as) e do quadro administrativo não deveriam estar presentes na escola ou mesmo fazer parte dela.
Para bell hooks[9] (2010), a ausência ou negação do erótico, do desejo como mola propulsora para o aprendizado, tem fadado o corpo a uma anulação, fazendo-o passar despercebido no contexto escolar, onde essa pedagogia feita na contemporaneidade não tem dado condições para que os alunos e alunas se (re)conheçam melhor e vivam plenamente seus processos de aprendizagem. A pesquisadora sustenta que uma educação feita pelas metades não contribui para que os alunos e alunas carreguem em seus corpos tanto desejos quanto curiosidades, não sendo, dessa forma, uma educação completa. Discurso presente no enunciado abaixo:
Artigo 30 ? É vedado ao aluno:
V ? Ter consigo, durante o período de aulas, livros, impressos, gravuras ou escritos de qualquer gênero, inconvenientes à boa instrução e aos bons costumes;
VIII ? Praticar, na Unidade Escolar, atos ofensivos à moral e aos bons costumes;
XIII ? Namorar dentro da unidade escolar e ter atitudes que causem constrangimento aos demais [...]. (SEDUC-GO, 2011, p. 2, grifos meus)
Para Débora Britzman (2010) a sexualidade não é um problema, mas algo no qual os problemas se afixam, portanto, os enunciados destacados nos fazem crer que existem discursos morais que devem ser seguidos, caso contrário, algumas penas deverão ser impostas, sobretudo se tais discursos forem afrontados por comportamentos fora daquilo que se considera como ?normal?.
Paradoxalmente, a mesma instituição de ensino que abre espaço para o questionamento das ?verdades? apresentadas no seu interior, prega o respeito a outras ?verdades?, que a própria, às vezes, questiona. Portanto, me parece anacrônico que uma instituição escolar insista no seguimento de regras baseadas nos ?bons costumes?, pois o que foi considerado como ?constrangedor? durante um tempo, hoje se tornou comum ? ou deveria ter se tornado. Ao que tudo indica o processo pedagógico não apenas da EEA, como de inúmeras instituições de ensino, está de alguma forma alinhado à manutenção de um status quo, dispositivo que a meu ver carece ser questionado constantemente sob pena de que não avancemos contra as desigualdades nos afligem diariamente.
Aparentemente, controlando a movimentação do poder-saber, eficientemente feito do nível do detalhe (corpo/indivíduo) para o nível da massa (grupo/população), a ambiência escolar tem promovido a constituição e o enquadramento dos(as) alunos e alunas bem próximos daquilo que uma parte da sociedade espera, que seria a formação de indivíduos aptos e produtivos ao modelo econômico de produção contemporâneo. O PPP, por exemplo, deixa claro que esse seria o objetivo da Escola Estrela Azul:
[...] trabalhando com organização, disciplina, dedicação e respeito ao ser humano, visam a educação do cidadão, como também, formando-o para a vida plena e em harmonia com a sociedade, despertando para a criticidade produtiva que enaltece a civilidade. (SEDUC-GO, 2012, p. 7)
Por fim, mas de modo algum findando as condições de análise, os dois documentos analisados condicionavam a representação da população escolar ao gênero gramatical masculino. Em todo o corpo dos documentos, o gênero gramatical masculino foi utilizado como o ?gênero neutro?, sendo, desse modo, o feminino o ?gênero diferente?, aquele que para existir precisa contrariar a regra. Tanto é que os dois únicos momentos nos quais o sexo feminino foi citado, tanto no PPP como no RE, se deram em função do processo reprodutivo, tido problematicamente como inerente e identitário ao sexo feminino. No primeiro deles era enunciado que a participação da ?mulher que [tivesse] filhos? seria facultativa para as aulas de Educação Física (SEDUC-GO, 2011, p. 52) e, no outro, as mulheres grávidas apareciam como merecedoras de tratamento especial, sendo tratadas como os(as) discentes portadores(as) de algum problema de saúde.
Art. 179 - É merecedor de tratamento especial o aluno portador de afecções congênitas ou adquiridas, infecções, traumatismos ou outras condições mórbidas, determinados distúrbios agudos ou agudizados, comprovados por laudo médico; e a estudante em estado de gravidez, a partir do 8° mês. (SEDUC-GO, 2011, p. 71)
Sabendo que o discurso nunca é neutro ou inocente e que a linguagem não serve apenas como instrumento de comunicação ou como suporte de pensamento, as problematizações até aqui expostas parecem revelar as intencionalidades dos discursos, quais sejam: a manutenção de uma ordem social dada pela diferenciação entre os sexos; a reiteração do valor moral e ?natural? da heterossexualidade; a criação de indivíduos obedientes porque seguem as normas e ?normais? porque se enquadram nos padrões de comportamento ditados e esperados pela ordem social do gênero e da sexualidade.
Considerações finais
No que tange às questões de gênero e sexualidade, os documentos analisados demonstraram ser bastante prolixos, cheios de ditos e não ditos. Mas pode-se afirmar que os enunciados rastreados e analisados reverberam claramente as estratégias de poder disciplinares enredadas na normalização e normatização dos integrantes da escola, bem como promovem a manutenção de uma hierarquia baseada nas relações entre os sexos e entre as distintas expressões da sexualidade.
Nos enunciados, em parte omitidos, pude observar que a instituição escolar analisada se fundamentava em um espaço/lugar no qual o gênero e a sexualidade eram discursivamente arquitetados e reproduzidos em operações voltadas para a constituição disciplinar de alunos e alunas. Essa constituição, aparentemente, estava amparada primeiramente pelo disciplinamento investido diretamente no corpo e, em segundo, nas identidades e representações condicionadas pela interação social. O que quero dizer é que, por meio de diferentes estratégias de poder, a escola produzia uma articulação corpo-social, que exercia a função de moralizar e disciplinar os corpos, atitudes e desejos considerados ?transgressores?, com um estatuto de ?verdade? instituído por práticas sociais disciplinares externas e reestabelecidas internamente. Contudo, vale lembrar que, nesse exercício de poder, também existiam lugares de resistências e de liberdade que, entretanto, não foram ?visibilizados? nos enunciados analisados, pois, em sua maioria, as resistências compareciam nos comportamentos, nas frases proferidas pelos(as) alunos(as) e pelo corpo pedagógico, nos olhares desviados, nos movimentos não comedidos ou meticulosamente praticados, na formação de grupos, nas reticências ou nos ? et ceteras? presentes nos documentos.
A problematização do gênero e da sexualidade, a partir do investimento nas operações de funcionamento dos discursos produzidos na escola analisada, permitiu compreender as suas condições de existência, a sua produtividade e a sua funcionalidade. Ou seja, através de atravessamentos ocasionados por documentos estatais (LDB, PCN), a escola, ao redigir seus instrumentos diretivos, demonstrou que sobre gênero e sexualidade existem injunções fortemente heterogêneas com um caráter normalizador e normatizador machista e heterossexual.
Os documentos analisados permitiram pensar sobre as capacidades que os discursos têm no tratamento das questões sobre gênero e sexualidades e como eles podem instituir modos de ser, por meio de saberes diversos, e da construção de relações de poder múltiplas e complexas que disciplinam o corpo, definindo normas, verdades e, consequentemente, o poder. Enfim, que as análises apresentadas neste artigo possam auxiliar na construção de processos educacionais e documentos diretivos de forma mais crítica, questionando os agenciamentos de forças e as práticas vivas nos discursos construídos ou repassados na ambiência escolar.
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Notas