Dossiê
APANHADORES DE FLORES, A VIDA ENTREMEIO SERRAS, CAMPOS E SEMPRE VIVAS
Argumentos - Revista do Departamento de Ciências Sociais da Unimontes
Universidade Estadual de Montes Claros, Brasil
ISSN: 1806-5627
ISSN-e: 2527-2551
Periodicidade: Semestral
vol. 15, núm. 2, 2018
Recepção: 23 Janeiro 2018
Aprovação: 24 Janeiro 2018
APANHADORES DE FLORES, A VIDA ENTREMEIO SERRAS, CAMPOS E SEMPRE VIVAS
As imagens reunidas neste ensaio fotográfico foram produzidas quando da minha inserção no projeto ?Imagens Humanas[2]?, que na oportunidade se dedicava ao registro do cotidiano e das iniciativas de comunidades tradicionais que se mobilizam em rede no norte de Minas Gerais, tendo em vista a composição de um banco de imagens voltadas para apoio às suas lutas por reconhecimento social e acesso a direitos constitucionais. Através deste projeto buscamos desenvolver uma fotografia de qualidade, mas também uma fotografia engajada, pois comprometida com as comunidades envolvidas. O projeto apoiou a realização de oficinas, a exposição de fotografias produzidas e a sua veiculação das imagens em papel fotográfico junto aos grupos sociais. Em campo, buscamos registrar os sujeitos em seu contexto social e em seus lugares de vida e produzir fotos que pudessem ser utilizadas pelas entidades de apoio e pelas próprias pessoas e comunidades como forma de ampliar suas habilidades discursivas e suas estratégias de comunicação social.
Nossa inserção junto às comunidades de Apanhadores/as de Flores SempreVivas se deu através da Comissão em Defesa do Direito das Comunidades Extrativistas (CODECEX), que atua na porção meridional da Serra do Espinhaço em Minas Gerais e do diálogo estabelecido com pesquisadores e instituições que trabalham junto às comunidades e que vêm apoiando suas iniciativas.
As visitas às comunidades para o trabalho fotográfico foram precedidas por uma reunião que aconteceu na cidade de Diamantina em Minas Gerais, na qual colaboradores da CODECEX nos introduziram no universo dos apanhadores e apanhadoras de flores, relataram um pouco da sua história de resistência e os conflitos atuais que levaram as comunidades a se mobilizarem em busca de reconhecimento e pela efetivação de políticas públicas e dos direitos culturais instituídos pela Constituição Federal de 1988. Nesta reunião, apresentaram um roteiro com nomes de comunidades a serem visitadas e pessoas de referência em cada comunidade. Depois percorreram conosco os caminhos que conectam a cidade de Diamantina às comunidades, para nos guiar e introduzir nos grupos e, assim, aproximar fotógrafos e fotografados, dirimindo possíveis arestas. Foram selecionadas cinco comunidades para a realização do trabalho fotográfico, dada a sua inserção na CODECEX e abertura a receber os fotógrafos, até então desconhecidos: Mata dos Crioulos, Vargem do Inhaí, Raiz, Galheiros e Macacos[3].
No período de 28 de janeiro a 20 de fevereiro de 2015 visitamos as comunidades, fomos acolhidos e hospedados em suas casas e, através dos olhares privilegiados dos nossos anfitriões, conhecemos um pouco cada comunidade e seus moradores, suas histórias e dinâmicas sociais. Durante os dias que passamos em cada comunidade registramos os comunitários em ação, em suas moradias e roças, seus espaços de sociabilidade e lazer como, a escola, a sede da associação, a igreja, a casa de culto, o ribeirão e também os campos de coleta nas imediações. Bem como, acompanhamos um dos grupos na realização de mutirões de manutenção da sede da associação e do sistema de abastecimento de água comunitário e outro grupo no seu deslocamento semanal para a cidade de Diamantina, levando arranjos de flores nativas e artesanato de sempre-vivas[4] a ser comercializado[5].
Posteriormente, no intuito de complementar os registros, retornamos a Diamantina no mês de abril, para acompanhar a panha de flor no período da safra, quando os campos ficam cobertos de flores. Momento em que fica ainda mais evidente a dinâmica de deslocamento realizada pelos grupos, sua forma de convivência com e nos campos altos da Serra do Espinhaço, o modo como acessam e se valem dos recursos ali existentes, de modo especial, a criação de gado na solta, a panha de flores e botões de sempre-vivas, o extrativismo de plantas medicinais e de produtos como musgo e restos florais de palmeira.
Nesta oportunidade, subimos o campo que denominam Chapada em companhia de uma família da comunidade Mata dos Crioulos, quando foi necessário fazer uso de animais de montaria para o transporte de boa parte das bagagens. Lá ficamos arranchados numa gruta conhecida como Lapa de Joaquim Lotero durante três dias, nos protegendo da chuva fina e do frio, que se acentuava ao anoitecer. Essa lapa é conhecida pelo nome de seu antigo morador, que ali viveu com a família por décadas, até a criação do Parque Estadual do Rio Preto. Entretanto, no processo de implantação desta unidade de conservação de uso restrito, este antigo morador e muitas outras famílias de apanhadores de flores passaram a ser ameaçadas e proibidas de realizar suas práticas culturais pelos agentes ambientais do parque[6].
No presente os campos de panha de flor, os espaços de vida e trabalho destas comunidades estão ameaçados pela expansão de empreendimentos minerários e agropecuários, que têm degradado extensas áreas de cerrado e pela implantação de unidades de conservação de proteção integral, criadas sem consulta públicas e em sobreposição aos seus territórios de ocupação tradicional, como o Parque Estadual do Rio Preto e o Parque Nacional das Sempre-Vivas.
Ao longo das últimas décadas os apanhadores e apanhadoras de flores semprevivas se viram encurralados pela grilagem de terra, pela implantação dos parques e pela expansão da monocultura que incide sobre os campos altos onde realizam a coleta de flores, protegem nascentes e áreas de cerrado ? importante fonte de produtos extrativos utilizados pelas comunidades no seu auto abastecimento, como plantas medicinais e frutos nativos, a exemplo do pequi, cagaita, mangaba, rufão, panã, entre outros.
As fotografias elaboradas no contexto do projeto Imagens Humanas vêm sendo utilizadas pela CODECEX para colocar em evidencia as comunidades tradicionais, seus modos de vida e suas especificidades culturais e sua luta por reconhecimento e direitos, principalmente através da produção de materiais institucionais de divulgação como banner, flyer, folder, calendários, elaboração de relatórios e apresentações em eventos7.
A metodologia de trabalho do projeto Imagens Humanas, costuma ser resumida por João Roberto Ripper8, na prática, da seguinte forma: ?é conversar muito e fotografar na medida em que as pessoas não se sintam agredidas?. Neste sentido, buscamos em campo interagir com as pessoas, acompanhar suas atividades e sermos guiados por eles, ou mesmo, identificar limites e constrangimentos manifestos, tendo em vista fazer do ato fotográfico uma construção negociada e o menos invasiva possível, o que significou compartilhar experiências, visões de mundo, afinidades e afetividades. Para tanto, nos valemos da possibilidade de partilhar fotografias durante o trabalho, através do manejo do visor da câmara e do uso do notebook para tratamento das imagens; pela utilização de data show para projeção em espaço coletivo e também optamos por retornar a uma das comunidades após alguns meses para nova incursão complementar. Tudo isso foi importante no sentido de romper estereótipos e visões pré-concebidas e construir relações de confiança, o que nos levou a conhecer lugares e situações que a princípio não se evidenciavam como possibilidade de interação aos olhos dos fotógrafos.
Ao final de cada dia de trabalho, quando as famílias se preparavam para dormir na comunidade, iniciávamos um segundo turno de trabalho para descarregar as fotos, fazer a identificação, seleção, tratamento e uma cópia de segurança. Atividade conduzida pela fotografa Valda Nogueira com mais expertise nessa área e em algumas situações com acompanhamento e contribuições de alguns dos nossos interlocutores. Alguns deles inclusive se utilizaram de câmaras disponibilizadas pelo projeto para produzir imagens do seu cotidiano e nos presentear, desta forma, compartilhando leituras e sentidos ali expressos.
Nossa equipe permaneceu por períodos de três a quatro dias em cada comunidade e, ao final de cada incursão, antes de nos deslocarmos para uma nova comunidade, organizávamos um momento coletivo com as famílias, uma pequena reunião, para apresentar de forma dialogada as fotos produzidas. Nestas oportunidades projetávamos as imagens com uso de um data show, o que permitia uma melhor apreciação pelo grupo. Nestes momentos Ripper apresentava a perspectiva do nosso trabalho, destacava a importância das fotos como um caminho de bem querer e problematizava que naquele trabalho as fotos boas são aquelas em que eles se sentem representados e caso eles não gostassem de alguma foto bastava dizer, que ela seria apagada dos nossos arquivos imediatamente[7]. Nessas oportunidades, ao projetar as fotos acompanhávamos atentos e buscávamos registrar as expressões, cochichos, intervenções e comentários das pessoas ali reunidas.
As reuniões serviram para compartilhar leituras, não só na forma de imagens, mas também de performances[8], evidenciando um processo de interação que não se esgota, mas que se alimenta da e na produção de imagens. Dando a ver o que foi apreendido pelas câmaras em conexão com registros de saberes e fazeres narrados como parte da tradição pelos comunitários e também compartilhados na forma de cantos, artesanatos, brincadeiras e artefatos variados como, bandeiras, vasilhas e mobiliários. Ao final das reuniões um pen drive com cópias de todas as imagens produzidas era entregue para os representantes das comunidades, com o compromisso de enviarmos posteriormente uma seleção do material impresso, o que foi realizado por meio da CODECEX[9].
Estes momentos coletivos foram também oportunidade para ver, ouvir e observar o grupo em interação e, desta forma, acompanhar os primeiros resultados desta edição do projeto Imagens Humanas. O que nos levou a acompanhar apresentações e rituais e, na condição de fotógrafo, registrar a confecção de artesanato de sempre-vivas por homens, mulheres, jovens e crianças em Galheiros e Raiz; a noite cultural organizada por um grupo de jovens da comunidade evangélica de Raiz; a cerimônia católica e a festa de casamento reunindo famílias da serra e do sertão em Macacos; a representação do canto da pastorinha preparado pelas jovens de Várzea do Inhaí, sendo esta última uma prática tradicional atualmente interditada; além de participar, como convidados, do culto celebrado pelo pastor da comunidade Mata dos Crioulos, quando fomos orientados a não levar nossas câmaras fotográficas.
Ao descrever minha experiência no projeto Imagens Humanas sou levada a pensar a minha relação com a fotografia, refletir sobre como a produção de imagens qualifica meu olhar e como o manuseio de imagens me provoca, oportunizando outros olhares através da Antropologia. Despertei para a possibilidade de conjugar fotografia e pesquisa de campo nos trabalhos que realizei junto a organizações de agricultores e movimentos sociais do Vale do Jequitinhonha e Norte de Minas. Naquele momento anterior, na minha atuação como agrônoma, ao visitar as comunidades apoiadas pelos projetos institucionais levava comigo sempre a máquina fotográfica para registrar viagens e caminhadas, quando enveredava pelas trilhas grota abaixo ou pisava fundo no acelerador para vencer as extensas chapadas. Assim, já naquela época a máquina era um instrumento de trabalho, que permitia reter e, ao mesmo tempo, compartilhar um pouco daquelas vivências, lugares, pessoas, situações[10]. As fotografias produzidas foram utilizadas para subsidiar a elaboração de relatórios institucionais e materiais didáticos e são, por vezes, apontadas como uma marca do meu trabalho[11].
Ao analisar retrospectivamente minha experiência como fotógrafa, percebo que a produção de imagens significou a utilização de outra linguagem, de outra forma de me expressar e interagir, que revela minha atração pelos detalhes e sutilezas do cotidiano nos lugares visitados. As fotografias daquela época registram meu estranhamento e, ao mesmo tempo, meu encantamento em relação às pequenas cidades e comunidades no interior do norte e nordeste de Minas, quando me deparava com a singularidade dos seus modos de vida, uma aparente simplicidade complexa. As imagens reunidas permitem também historiar intervenções e projetos levados à frente pelos grupos e coletivos. Por sua vez, a produção de imagens e seu manuseio subsidiaram e continuam subsidiando reflexões sobre as dinâmicas sociais e processos de mudanças que incidem sobre os grupos camponeses, atualmente definidos como populações tradicionais, bem como, suas experiências de mobilização política através dos sindicatos de trabalhadores rurais, das associações comunitárias e dos diferentes movimentos sociais que buscam fortalecer e dar materialidade à reinvindicações e projetos de mudança construídos nestes espaços.
A minha aproximação com a fotografia me levou à antropologia e esta a refletir sobre a minha experiência por trás das câmaras nas situações de interação e de manuseio das imagens durante e depois de finalizada a etapa de campo. Neste caso, ao mirar as imagens retidas em papel e, atualmente, em meio digital, me sinto interpelada a revisitar aqueles contextos de interação. Assim, confronto leituras construídas no diálogo com membros das comunidades, com outras que considero externas aos grupos, o que passa por relativizar enquadramentos, problematizar noção de pobreza, de beleza, de trabalho, de autonomia, de liberdade.
No Imagens Humanas, ao acompanhar o fotógrafo Ripper em sua abordagem de documentarista me chamou atenção a forma humanitária como reage as representações hegemônicas sobre a ?pobreza?. Seu trabalho é uma evidencia de que dignidade humana existe em qualquer contexto, mesmo em situações degradantes como de trabalho escravo[12]. A documentação por ele produzida ressalta que, embora vivenciando situações de extrema violência e exclusão, as pessoas reafirmam afetivamente e por meio do trabalho valores humanos que lhes conferem dignidade. Ao se inserir nestes contextos sociais, ele busca capturar imagens belas e humanizadas de pessoas empobrecidas.
Hoje, tão importante quanto denunciar, é mostrar a beleza das populações que sofrem esse enorme processo de censura, de exclusão de sua beleza e, portanto, de segregação, de estigmatização através da violência, de marginalização e de criminalização.
Os estereótipos produzidos pela repetição contínua de uma só informação são calcados na diferença entre as pessoas, reforça as desigualdades. Ao contrário, as diferentes histórias sobre uma pessoa ou uma comunidade apostam na aproximação das pessoas, reforçam sua identidade, seu sentimento de pertencimento e seu reconhecimento. Estereótipos ferem a dignidade das pessoas. Quando um jornalista ou um documentarista consegue ser um elo de bem querer entre o documentado e quem vê a documentação, resgata a dignidade das pessoas[13].
Neste ensaio, minha experiência de campo foi revisitada por meio da organização de uma sequência de 15 imagens, selecionadas para aproximar o espectador das situações vivenciadas e da leitura construída na interação com os Apanhadores/as de Flores Sempre-Vivas, na porção meridional da Serra do Espinhaço em Minas Gerais. A observação participante desenvolvida no contexto de produção das imagens fundamenta a interpretação ?do outro? através da apreensão de significações que lhes são próprias, de modo especial, as formas de apropriação, classificação e significação dos seus lugares de vida e trabalho informam usos e sentimentos de pertencimento ao território, bem como, as representações que compartilham sobre ele. Pois como argumenta Barthes ?a vivência do fotógrafo não consiste em ?ver?, mas em estar lá? (BARTHES, 1984, p.76). De modo que, a fotografia para aquele que atuou como fotógrafo se espraia para além do que ficou registrado na imagem.
No Espinhaço em Minas Gerais entremeio a serras, encontramos extensas áreas de relevo aplainado conhecidas como campos, famosos por sua abundância em flores nativas. Segundo narram apanhadores e apanhadoras de flores, cada lugar, cada palmo da serra, cada campina tem um nome. Nos arredores da comunidade Galheiros o campo Joana Carneiro é uma referência à antiga moradora, outros tem o nome associado às particularidades da paisagem e situações vivenciadas pelos mais velhos, como Capão da Onça, uma pequena mata com nascentes em meio aos campos e Serra do Galho, uma crista de quartzito de fácil identificação. A coleta de sempre-vivas compõe a memória social dos grupos e permite apreender como eles se vinculam afetivamente e objetivamente a esses lugares.
As flores das campinas depois de cuidadosamente secas perduram bonitas e viçosas por muitos anos, mantém a cor e a beleza e os caules ganham variedade de tons de marrom e dourado. O termo sempre vivas, empregado no plural, é utilizado para designar dezenas de flores e botões encontrados nas campinas e manejados pelos Apanhadores/as de Flores SempreVivas, que há gerações percorrem os campos em busca de flores da época, quando compõem pequenos buquês, que serão depois utilizados na confecção de arranjos, artesanatos e comercializados, inclusive, fora Brasil.
Telhado de pindoba, paredes de enchimento barreadas de argila, bica d?água correndo no quintal e ao fundo a Serra da Bicha. A casa e os utensílios confeccionados pelo morador com materiais do lugar encantam os visitantes, que ali chegam. À noite, quando o silêncio toma conta da Mata dos Crioulos o riacho se mostra ainda mais forte. Aqui, como em outras comunidades de Apanhadores/as de Flores Sempre-Vivas a energia elétrica não chega, a estrada transitável é uma demanda antiga, a falta de manutenção dificulta o acesso dos alunos à escola no tempo das águas e tem levado muitos a manter parte da família na cidade.
A panha da sempre-vivas compõe as estratégias econômicas das famílias que há gerações habitam o Espinhaço, sendo realizada de forma associada a outras atividades, como os cultivos de roças e quintais, a criação animal, o garimpo de diamante e cristais em algumas localidades. Subir a serra ou ir aos campos acontece em diferentes épocas do ano e pode significar a permanência das famílias por semanas nos campos geladinho de flor, no pico da safra. Nestes momentos eles costumam arranchar, ou seja, construir ranchos com materiais ali encontrados ou utilizar as lapas como moradia, quando confeccionam colchões de capim nativos e fogões cobertos com argila, como é o costume no lugar.
Na safra, ocupam o dia percorrendo os campos e seletivamente realizando apanha de flor e a noite se reúnem em volta do fogo para comer, pentear as flores, conversar, quando aproveitam para visitar os parentes arranchados nas imediações. Segundo nos contou um dos nossos anfitriões em Mata dos Crioulos, no tempo de sua avó tinha forró dos bons na sua lapa e, embora na comunidade as casas fossem espalhadas, no tempo da flor na Chapada todos se encontravam, do seu ponto de vista era o melhor lugar para negociar gado e também para encontrar uma noiva.
As flores, depois de colhidas, são transportadas longas distâncias por apanhadores e apanhadoras de flores, o que é feito muitas vezes a pé ou com uso de animal de serviço, alguns utilizam veículos automotores como moto e camionete para realizar parte do trajeto. As variedades de sempre-vivas são secas e manejadas ao sol ou em local coberto e ventilado depois de colhidas, o que é uma tarefa importante, principalmente, no período chuvoso, quando a umidade atinge índices elevados no Espinhaço. Os maços de flores assim manejados, são elevados a condição de mercadoria e são guardadas em pequenos galpões junto da casa.
O cotidiano das famílias envolve cuidados com casa e quintal, roça e criações. A responsabilidade com a cozinha é assumida pelas mulheres. Os homens assumem tarefas que os levam a circulam mais e lidam com os de fora. Entretanto, a família é atravessada por outros espaços sociais e ?necessidades?, como: ir à escola; trabalhar fora como identificamos em algumas famílias; participar da luta, associação, de cultos e espaço religiosos; conviver com os vizinhos, muitos deles parentes, retribuir favores e dádivas; fazer uso da tecnologia para se informar e também para se comunicar com os parentes e afins, que colocam em destaque as redes e a complexidade da vida social do grupo.
A família desperta cedo. Os homens muitas vezes se dedicam à lida do gado, criado conjugando pastagens familiares cercadas e soltas nos campos, o que impõe subir e descer a Chapada periodicamente para realizar cuidados de cura, acompanhar as crias novas, ou mesmo, mudar de pasto. As mulheres diuturnamente cuidam da casa, o que envolve zelar das criações pequenas e do quintal, o que incluir realizar colheitas e processar alimentos que compõem a dieta alimentar do grupo. No tempo das águas plantam variedade de plantas no quintal e roça, tanto nas imediações (mancha verde clara na sua porção superior da foto), como em posses mais afastadas, prevalecendo o protagonismo das mulheres nos cuidados da roça.
As roças são formadas normalmente em terrenos contíguos ao quintal e, por vezes, em posses constituídas distantes da casa, o que realizam levando em conta as tarefas cotidianas e a mão de obra disponível. Os quintais ao entorno das moradias são ocupados com frutas, verduras, temperos, variedades de plantas comestíveis e medicinais, que crescem consorciadas com espécies nativas e onde reproduzem amostras de milho, feijão, mandioca que almejam multiplicar nos próximos ciclos, ou mesmo, de acesso mais fácil para o consumo diário. Nas roças e quintais, assim como nos campos, os mais novos acompanham os mais velhos, aprendem praticando, aprendem como diversão, o que no futuro farão como parte do seu trabalho.
A cozinha é um importante espaço de sociabilidade do grupo, como registramos durante nossas visitas. Onde a labuta em torno do fogão e o comer se alonga em conversações sobre os acontecidos e por fazer, as brincadeiras e dar a ver com constroem entendimentos. Prover a família e as visitas com uma alimentação farta nos padrões do grupo é um papel levado à frente pela dona da casa. Estando lá, observamos que estas construções sociais são bem marcadas em algumas famílias e mais frouxas em outras, com o homem tomando iniciativas e se inserindo com mais um braço para prover a mesa.
A culinária evidencia o manejo de agroambientais e a forma como utilizam as chamadas ?plantas nativas do cerrado?, que medram espontaneamente nas terras altas e nas áreas entorno das moradias, o que realizam tendo como referência saberes e fazeres compartilhados pelas gerações mais velhas. O aproveitamento do pequi para produção de óleo comestível e sua utilização no preparo de uma variedade de pratos, assim como, o uso do broto de samambaia (ver imagem 9) compõem as estratégias alimentares que garantem qualidade alimentar e maior autonomia econômica às famílias.
Nas últimas décadas, algumas comunidades de Apanhadores/as de Flores SempreVivas têm se dedicado a confecção do artesanato de flores e produtos coletados nos campos, com a venda das peças compondo a renda familiar, juntamente com a comercialização das sempre-vivas ?in natura? e de excedentes agrícolas. Assim, o que no passado era considerada uma habilidade de poucos e principalmente das mulheres, se tornou uma boa alternativa para muitos, que aprenderam com os mais velhos esse fazer e vêm buscando se qualificar, inclusive, através da participação em oficinas, compondo pequenos grupos que reúnem pessoas com diversas habilidades e ofícios.
Quando a família se ocupa da panha da flor, do manejo das criações, de plantar roça, práticas e representações sobre estes espaços sociais são compartilhadas. Os mais novos aprendem vendo e observando os mais velhos em suas habilidades. Aprendem ouvindo fatos antigos narrados pelos mais velhos, os nomes e os significado dos lugares e também o valor do produto, o tempo certo de colher. A menina convive de perto com a avó artesã, principalmente depois que ela se tornou viúva e com quem foi morar para fazer companhia. E, ao tecer um arco de flores nativas se colocou junto do pai, indagou, observou, quem sabe, almejando no futuro possuir a mesma destreza dos mais velhos.
A sedinha colhida nos campos nas imediações da comunidade de Raiz é utilizada na confecção de brincos, anéis, colares, pulseiras, presilhas para o cabelo e também na produção de peças maiores como chapéus, potes, bandejas e vasos usados na composição de arranjos de sempre-vivas, muito apreciadas por aqueles que visitam a região e a comunidade e também por profissionais que atuam no comercio de artesanato. A beleza, o bom acabamento da arte em capim dourado desenvolvido pela comunidade são artigos valorizados nas feiras, com os adornos ganhando status de semijóia.
Os Apanhadores/as de Flores Sempre-Vivas vêm sendo ameaçados pela expansão de empreendimentos econômicos como monocultura de eucalipto e mineração e por restrições impostas pelas unidades de conservação de proteção integral, que impedem o acesso ao território e recursos naturais e criminalizam a panha de flor. Entretanto, eles resistem cotidianamente ?nos moldes da tradição do grupo? e também se mobilizam em defesa do seu modo de vida. Cientes da peculiaridade dos seus sistemas produtivos, eles se candidataram ao selo de Sistemas Importantes do Patrimônio Agrícola Mundial (SIPAM) e podem se tornar o primeiro sistema brasileiro reconhecido pela FAO/ONU.
Bibliografia
BARTHES, Roland. A Câmara Clara. Nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora UNESP, 1998.
MONTEIRO, Fernanda Testa. Os(As) Apanhadores(as) de Flores e o Parque Nacional as Sempre-Vivas (MG): travessias e contradições ambientais. Belo horizonte: UFMG, dissertação mestrado em Geografia, 2011.
RIPPER, João Roberto. (Org.) GASTALDONI, Dante e MARINHO Mariana. Imagens humanas. Rio de Janeiro: Dona Rosa Produções Artísticas, 2009.
Notas
https://imagenshumanas.photoshelter.com/index
https://imagenshumanas.photoshelter.com/p/o-que-penso