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Uma Janela no Tempo: a ascensão do Bolsonarismo no Brasil

Fernanda Rios Petrarca
Universidade Federal de Sergipe, Brasil

Revista TOMO

Universidade Federal de Sergipe, Brasil

ISSN-e: 1517-4549

Periodicidade: Semestral

núm. 38, 2021

revistatomo@gmail.com

Recepção: 23 Setembro 2020

Aprovação: 19 Novembro 2020



DOI: https://doi.org/10.21669/tomo.vi38.14356

Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar as condições sócio-históricas nacionais que possibilitaram a ascensão do bolsonarismo no Brasil. Para dar conta dessas questões analisamos: o papel das amplas coalizões no sistema político brasileiro e as condições que conduziram a atual situação de ruptura; a posição ocupada por Bolsonaro no jogo de forças políticas nacionais e, por fim, os principais setores que se favoreceram da crise e que passaram a apoiar o projeto político por ele representado. A conclusão central é a de que a ruptura no sistema de alianças abriu espaço para um conjunto de grupos outsiders, sem poder de voz dentro do executivo e legislativo e com um forte discurso antissistema.

Palavras-chave: Bolsonarismo, Sistema político brasileiro, Sistema de alianças.

Abstract: This article aims to analyze the national socio-historical conditions that enabled the rise of Bolsonarism in Brazil. To address these issues, we analyzed: the role of broad coalitions in the Brazilian political sys- tem and the conditions that led to the current situation of rupture; the position occupied by Bolsonaro in the game of national political forces and, finally, the main sectors that favored the crisis and that started to support the political project he represented. The conclusion demonstrated that the rupture in the alliance system has opened space for outsider groups, with no voice in the executive and legislative branches and with a strong anti-system discourse.

Keywords: Bolsonarism, Brazilian political system, Alliance system.

Resumen: Este artículo tiene como objetivo analizar las condiciones sociohistó- ricas nacionales que permitieron el surgimiento del bolsonarismo en Brasil. Para abordar estos temas, analizamos: el papel de amplias coali- ciones en el sistema político brasileño y las condiciones que llevaron a la actual situación de ruptura; la posición que ocupaba Bolsonaro en el juego de las fuerzas políticas nacionales y, finalmente, los principales sectores que favorecieron la crisis y que empezaron a apoyar el proyecto político que representaba. La conclusión central es que la ruptura del sistema de alianzas ha abierto espacio para grupos de afuera, sin voz en los poderes ejecutivo y legislativo y con un fuerte discurso an- tisistema.

Palabras clave: Bolsonarism, Sistema politico brasileño, Sistema de alianzas.

Introdução

Em outubro de 2018 o Brasil elegeu seu 6º presidente, Jair Messias Bolsonaro, numa democracia de apenas 33 anos. Numa campanha marcada pela forte polarização, os jornais estampavam o fim de um ciclo de vitórias que permitiu ao Partido dos Trabalhadores (PT) eleger-se durante quatro eleições consecutivas. Em um movimento, considerado como inédito, uma ver- dadeira “janela no tempo” difícil de se repetir (Nobre, 2019), um deputado – que já estava no cargo há mais de 25 anos e que era conhecido por falar sozinho na tribuna, além de defender publicamente práticas como a tortura, existência dos grupos de extermínio e a volta da ditadura militar – ganha a cena política com um projeto conservador.

Com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, o então candidato agregou a direita brasileira e criou o espaço para a emergência da inédita extrema direita, fenômeno novo após a redemocratização do País nos anos 1980. Colocando Deus no centro da sua narrativa, a família e a pátria, ele preencheu o vácuo de representação política do conservadorismo no Brasil pós-ditadura militar. Com uma pauta forte sobre temas envolvendo comportamentos e costumes, como projeto contra o aborto e discussões de gênero e educação sexual nas escolas, ele abriu espaço para um discurso conservador e extremista. De um lado representado por diferentes grupos evangélicos, de outro pelos saudosos da intervenção militar.

Além disso, Bolsonaro se apresenta como um político outsider, autodefinido “fora do sistema”, com pouco direito de voz no parlamento e com frequência ridicularizado nos programas midiáticos por suas ideias excêntricas. Por diversas vezes se apresentou como o Johnny Bravo, um personagem de desenho infantil retratado como grosseiro, narcisista e pouco inteligen-

te: “Eu, Johnny Bravo, Jair Bolsonaro, ganhou porra”!1 O sentimento de ter sido desconsiderado pelo establishment político, durante o período em que atuou como deputado federal, foi o combustível para seu discurso antissistema, com intenso ata- que às instituições democráticas centrais, como o parlamento, o jornalismo e o próprio Supremo Tribunal Federal.

Diante desse quadro, uma das principais indagações que tem sido colocada diz respeito à ascensão política de Bolsonaro e como ele foi capaz de preencher um vácuo de representação gerado tanto pela operação Lava Jato quanto pelo impeachment da ex- presidenta Dilma Rousseff. Contudo, apesar dos esforços, pouco se escreveu sobre a sua base principal de alianças, os principais grupos a se aproximarem do seu projeto político e como ele passou a jogar com diferentes aliados. Ainda que a aliança com grupos que se sentiam fora do sistema, do establishment, tenha sido fundamental para a compreensão da ascensão do bolsonarismo, a literatura tem se ocupado, principalmente, em analisar os ciclos de protestos e as estruturas de oportunidades políticas que têm como base as manifestações de 2013 e que culminam no impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff como condições essenciais (Alonso, 2017; Tatagiba & Galvão, 2019; Tatagiba, Trindade & Teixeira, 2015), mas não os grupos de apoio e as condições próprias do sistema político nacional que permitiram a escalada do projeto político representado por Bolsonaro.

Nessa direção, este artigo tem como objetivo preencher essa lacuna e analisar as condições sócio-históricas que possibilitaram a Bolsonaro compor aliança com diferentes grupos sociais e econômicos. O argumento central é que a ascensão do bolsonarismo como projeto político só pode ser compreendida a partir de uma

análise da crise no sistema de alianças e das grandes coalizões, características centrais do sistema político brasileiro. A hipótese central que sustenta a argumentação é a de que foi a ruptura nas coalizões – que marcaram o período anterior – que permitiu a Bolsonaro abrir espaço para um conjunto de grupos outsiders, sem poder de voz dentro do executivo e legislativo e com um forte discurso antissistema. Tais condições foram fundamentais para que ele pudesse jogar com diferentes aliados. Para dar conta dessas questões, partimos de uma análise sócio-histórica que vai desde a configuração do sistema político e partidário brasileiro pós-democratização, passando pela posição ocupada por Bolsonaro dentro deste sistema, fundamental para compreender seu modo político de agir, até sua aliança com novos grupos. Essa análise é realizada a partir do levantamento de um conjunto de dados empíricos que envolve: dados históricos, por meio de pesquisa documental e bibliográfica, e notícias de jornais e revistas com intuito de reconstruir alianças e redes de relações entre aliados.

O artigo está organizado em três momentos principais. Num primeiro momento, será realizada uma breve apresentação acerca do sistema político brasileiro para com isto discutirmos os principais conceitos adotados. Destaca-se o papel das amplas coalizões no presidencialismo nacional e as condições que favo- receram a quebra no sistema de alianças. Num segundo momento, tomaremos a construção de Bolsonaro como ator político e a posição por ele ocupada no jogo de forças políticas nacionais ao longo dos seus 27 anos como deputado federal. Trata-se de analisar a sua posição dentro do sistema de alianças e como a partir disto ele construiu um “modus operandi” de fazer política, característico de um conjunto de atores políticos que, ao contrário do discurso apresentado, age dentro do sistema, favorecendo-se dele. E, por fim, analisaremos os blocos que passaram a apoiar a candidatura e que se articularam em torno deste projeto político. Esses elementos só podem ser compreendidos à luz dos confrontos que possibilitaram uma crise no sistema de alianças,

gerando sua ruptura e consequentemente sua reorganização. Tais condições permitiram a entrada de novos blocos de aliados.

O Presidencialismo de Coalizão e a Quebra no Sistema de Alianças

O processo de redemocratização no Brasil produziu, por um lado, um sistema político multipartidário, estruturado por uma proliferação de legendas e uma legislação eleitoral aberta, e extremamente generosa2, à criação de novas agremiações partidárias. Hoje o País tem 33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral, 30 dos quais possuem representação no Congresso Nacional. Em estudo comparativo recente entre mais de 100 países (Gallagher, 2019), é possível observar o Brasil como o país com o maior número de partidos capazes tanto de disputar as eleições quanto de influenciar o processo político no parlamento3. Por outro lado, as disparidades regionais e as as- simetrias do federalismo exerceram um efeito nas disputas intrapartidárias, provocando uma divisão interna e intensificando o confronto entre facções regionais para o controle partidário,

num modelo similar ao “caciquismo político”4. Nessas condições, os partidos se organizam por lideranças que disputam internamente o comando da legenda. Isto produziu uma dupla fragmentação: múltiplos partidos internamente divididos, conformando o que podemos definir, conceitualmente, como um pluralismo fragmentado. Diferente do que pode ser observado em outros países, como a Itália por exemplo, cuja característica é o pluripartidarismo polarizado (Guarnieri, 2016), o pluralismo fragmentado é caracterizado pela intensa disputa entre lideranças. Nestas condições o que organiza o pluralismo não é a polarização ideológica (direita x esquerda), mas a capacidade de determinadas lideranças, a partir de suas facções, controlar os partidos e realizar alianças com outras legendas. As características principais dessas alianças, contudo, são o pragmatismo e o imediatismo, geridas quase que exclusivamente para garantir a ocupação de espaços e em função de cálculos e necessidades imediatas dos políticos. Tais alianças são fundamentais tanto para disputar eleições, nos diferentes níveis, legislativo e executivo, como para garantir a governabilidade, uma vez eleito.

A diversidade das bases de sustentação política, decorrente dessa dupla fragmentação, gerou a necessidade de amplas alianças com diversas lideranças regionais e não necessariamente com partidos políticos, impedindo uma centralização e institucionalização partidária forte. Nessas condições, o recurso à coalizão e a capacidade de negociação passaram a se tornar essenciais para manter a estabilidade institucional e, também, a governabilidade. Quando essa fragmentação política e partidária chega ao executivo, o acordo e a coligação se tornam mecanismos de sobrevivência política e garantia da governabilidade. A Ciência Política brasileira designou este sistema como “presidencialis-

mo de coalizão”, caracterizado pela instabilidade, já que os laços são fluidos e suscetíveis a mudanças constantes, envolvendo a complexidade das negociações e dependente da capacidade do governante em estabelecer e manter grandes alianças (Abranches 1988, 2019; Pereira & Mueller, 2003).

Esse modelo das amplas alianças ficou mais claro após o impeachment de Fernando Collor de Mello, em 1992, primeiro presidente eleito após décadas de regime militar. O movimento que gerou o afastamento do presidente explicitou que sem uma coalizão multipartidária o executivo se tornaria fraco, suscetível, portanto, a processos de impedimentos. Essa configuração contribuiu para produzir uma “cultura política”, uma crença de que sem alianças com amplos setores os governos estariam sujeitos a processos constantes de enfraquecimento e de impedimento político (Nobre, 2013).

Ocorre que para fazer a grande maioria os partidos que se situavam ao “centro” do jogo de forças políticas nacionais passaram a desempenhar um papel fundamental na organização das alianças. Nos polos se mantiveram PT, de um lado, e PSDB, de outro, marcando a oposição no período democrático. Um dos elementos cruciais para formação de um “centro” político estratégico foi o processo de reorganização da democracia, em que uma ampla aliança, inclusive com setores da ditadura, foi essencial para restaurar o jogo democrático. Nesse processo o PMDB desempenhou um papel determinante como articulador entre diferentes forças, liderando e conduzindo as alianças a partir da formação de um grande centro. Entretanto, ao mesmo tempo em que esse pacto foi fundamental para abrir o sistema e derrubar o autoritarismo, ele também produziu uma espécie de proteção e blindagem contra grandes transformações. A união das forças progressistas para derrubar o regime militar nos 1980 constituiu o que seria a gênese para a produção de uma espécie de bloqueio do sistema político contra transformações mais amplas da sociedade (Nobre, 2013, 2020).

Essas condições contribuíram para a formação de um super- bloco partidário informal – denominado de “Centrão” – com capacidade para neutralizar diversas forças ao longo do período, como movimentos sociais, sindicatos e organizações populares. Com o impeachment de Fernando Collor de Mello, o Centrão se consolidou no processo de formação de maiorias suprapartidárias, demonstrando sua disposição não só de bloquear grandes transformações como também de permitir a “governabilidade”, com força suficiente para inclusive barrar processos de impeachment. Nesta configuração, a negociação no “atacado”, ou seja, através de grandes maiorias parlamentares, se impôs sob a negociação no “varejo”, tornando muito difícil aos governos mante- rem o sistema de alianças sem o apoio do superbloco.

Esse bloco informal já chegou a somar até 13 siglas partidárias e a compor até 47% da Câmara, totalizando aproximadamente 240 deputados5. Nessa lógica, os partidos apresentam-se como instituições instáveis que não dependem da ideologia e que estão submetidos às correlações de força dentro desse bloco. Muitos deles estão no sistema apenas para garantir as alianças, numa pura troca de favores, dando origem ao que se designou chamar de “fisiologismo político”. A frase “é dando que se recebe”6, de um velho político do centro, definiu a senha do fisiologismo. Pequenos partidos e deputados com pouca expressão e influência na Câmara (comumente conhecidos como “baixo clero”) jogam dentro desse bloco para obter força política suficiente para garantir algum tipo de benefício, como liberação de verbas orçamentárias e ocupação de cargos, muitas vezes diluindo-se nas

frentes parlamentares7 dentro do congresso. O chamado “baixo clero8” tende a manter, dentro do bloco, um movimento pendular, ora com pouca projeção negociando pequenos favores, ora numa reação em conjunto deixando os bastidores e buscando espaços relevantes de representação, inclusive com alguma possibilidade efetiva de interferir nas políticas públicas (Pereira, 2020; Ricci, 2009). Este último movimento tende a acontecer, principalmente, em contextos de crise em que as alianças apresentam maior grau de instabilidade e fragilidade, abrindo espaço para maiores negociações e, sobretudo, para aqueles que atuam sob a esfera de influência do superbloco. Como exemplo podemos citar a vitória, em 2005, do deputado federal Severino Cavalcanti, do Partido Progressista (PP), autoproclamado “rei do baixo clero”, para assumir a Câmara de Deputados em plena crise do Mensalão9. E um exemplo mais recente, a vitória do deputado federal Eduardo Cunha, em 2015, então líder do bloco, para presidência da Câmara dos Deputados durante a crise do governo Dilma Rousseff.

Esse modelo das amplas coligações, contudo, apresentou um certo esgotamento e saturação nos últimos anos. Podemos apresentar pelo menos três movimentos recentes como fundamentais para a crise no sistema de alianças que criou as condições para a ascensão do bolsonarismo como projeto político. Primeiro, as manifestações de 2013, sobretudo aquelas que ficaram conhecidas como “jornadas de junho”, funcionaram como gatilho para ascensão de um conjunto diversifica-

do de pautas. Iniciadas em janeiro de 2013, as manifestações apresentaram-se como uma insatisfação ao sistema político e as instituições, de maneira mais ampla, mas foi a partir de junho que elas assumiram pautas mais difusas, como as críticas contra os gastos gerados pela realização da Copa do Mundo, qualidade do ensino e educação, melhorias na saúde pública, o fim da corrupção, dentre outras. Nesse contexto, a corrupção apareceu como uma das principais reivindicações, com 40% das pautas dos manifestantes (Pujol et al., 2014). Aos poucos, elas abriram espaço para grupos políticos que possuíam não só projetos divergentes, como também possuíam pouco poder de voz e orbitavam a periferia do sistema político, criando nesta direção uma oportunidade política inédita. Destacaram-se, nesse processo, principalmente os grupos de direita e de extrema direita (Alonso, 2017; Tatagiba & Galvão, 2019; Tatagiba, Trindade & Teixeira, 2015).

O segundo movimento foi a deflagração da operação Lava Jato em 2014, que absorveu as insatisfações contra o sistema político, a pauta anticorrupção e contribuiu para fortalecer o antipetismo e o discurso antissistema, constituindo-se em um verdadeiro partido. A tradicional polarização PSDB-PT10 – que caracterizou o ciclo democrático brasileiro após a ditadura mi- litar – passou a ser substituída pelo partido da lava jato e o lulismo (Coberllini & Moura, 2019). Com isso as denúncias de corrupção feitas pela operação e o forte apelo midiático conduziram a uma constante desmoralização do sistema político e crítica permanente aos partidos tradicionais e, em especial, ao PT. Tal situação acarretou um enfraquecimento nas coalizões partidárias, e um esvaziamento do centro, conduzindo, portanto, a uma forte polarização. Pesquisas feitas por institutos de sondagem apontavam os líderes dos principais partidos nacio-

nais como os políticos mais corruptos11. Uma das consequências disso foi a perda do protagonismo do PT na disputa política e a incapacidade do PSDB em liderar a oposição. Além disso, um dos principais efeitos da Lava Jato no sistema político foi a quebra no sistema de alianças que sustentava a base dos governos petistas, uma vez que os partidos estavam envolvidos em escândalos de corrupção.

E, por fim, o terceiro movimento foi o impeachment da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, o qual demarcou o fim da chamada “era PT” e do grande pacto entre blocos de poder divergentes inaugurados pelo primeiro governo Lula em 2003. Esses movimentos não só produziram uma ruptura nas alianças conduzindo a um vácuo de lideranças, como também contribuíram para reforçar o sentimento antipetista e antissistema. O escândalo do Petrolão, o avanço das investigações da operação Lava Jato, assim como a prisão do ex-ministro petista José Dirceu e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva engrossariam ainda mais o caldo do antipetismo. Além disso, os escândalos de corrupção e a publicação de delações premiadas pela operação Lava Jato contribuíram para aumentar o descrédito no sistema político e nos partidos tradicionais. Dispararam pesquisas feitas por diversos institutos que demonstravam ser a corrupção um dos principais problemas do País12. Assim, a pauta anticorrupção agregou esses grupos, ampliou o antipetismo, já que o PT era o parti- do que assegurava as amplas alianças do período recente, e trouxe à tona lideranças políticas que estavam à margem do sistema e que disputavam o acesso aos recursos através de alguma liderança partidária. Este conjunto de fatores gerou uma janela de oportunidade para chegada de Bolsonaro ao poder, "uma janela no tempo difícil de se repetir", como afirma Nobre (2019)13.

Da Periferia do Sistema à Presidência da República: o presidente do baixo clero

Jair Bolsonaro entrou para a política após ter sido julgado, no final da década de 1980, pelo Supremo Tribunal Militar e afastado das forças armadas. Como oficial do exército já havia sido punido, com prisão por transgressão disciplinar e hierárquica, devido a uma entrevista que concedeu à revista Veja reclamando dos baixos salários dos militares. A matéria intitulada “O Salário está Baixo”14 relatava o descontentamento dos cadetes e o abandono à carreira no exército devido às precárias condições de trabalho. A repercussão da entrevista lhe rendeu a prisão, mas também uma certa representatividade entre os cabos e soldados, já que não tinha entre os canais hierárquicos superiores.

Um ano depois, Bolsonaro voltou a ser acusado por planejar a famosa “Operação Beco sem Saída”. Tratava-se de um plano para explodir bombas em instalações militares descoberto pela revista Veja. O plano era parte das reivindicações contra o governo por salários e melhores condições. O primeiro presidente após a ditadura militar, José Sarney, enfrentava a resistência dos capitães do exército que estavam insatisfeitos com os aumentos concedidos pelo governo e planejavam explodir bombas em vá- rias unidades militares. Segundo a reportagem da revista, o plano também era uma estratégia para desestabilizar o Ministro do Exército, o general Leônidas Pires, e expô-lo junto ao presidente como um general sem poder de comando sob a tropa. A reportagem colocava o Ministro do Exército em uma situação de fra-

gilidade institucional em um contexto de reestabelecimento das bases democráticas do País. Como consequência foi aberta uma sindicância na Escola de Aperfeiçoamento de Militares (Carvalho, 2019).

Com vários desdobramentos, inclusive o parecer do Conselho de Justificação do Exército que o considerava culpado, o processo contra o capitão chegou ao Supremo Tribunal Militar (STM). Em sua defesa chamou, dentre outros, como testemunha o general da reserva Newton Cruz, ex-chefe da agência central do Sistema Nacional de Informações (SNI) durante a ditadura militar e por quem Bolsonaro tinha forte admiração. Com um passado polêmico, o general – conhecido como “linha dura” – já havia sido acusado de participar do “Atentado do Riocentro”15 e por diversas vezes não hesitou em demonstrar sua insatisfação com o processo de abertura democrática.

Por fim, Jair Bolsonaro foi absolvido, mas colocado na reserva com a patente de capitão (Carvalho, 2019). Foi a partir deste episódio que ele embarca para a sua aventura na vida política. No mesmo ano da sua absolvição foi candidato a vereador no Rio de Janeiro pelo Partido Democrata Cristão (PDC) e foi eleito. Como vereador deu visibilidade às causas militares, permanecendo por apenas dois anos para candidatar-se a deputado federal, também pelo PDC. Em seguida, ocorreram seis mandatos sucessivos por oito partidos diferentes. Suas pautas foram caracterizadas inicialmente como apoio à carreira e às causas militares e depois aos policiais militares e agentes da segurança pública (policial civil, policial federal). Dentre suas proposições, estavam comercialização e registro de armas de fogo, direito especial a militares, isenção de penalidades a condutores de veículos em serviço de segurança pública, dentre outros. Como

deputado federal nestes 27 anos trocou de partido oito vezes16, não presidiu nenhuma comissão nem liderou bancadas, além de estar associado ao “baixo clero”, o qual corresponde a um grupo de congressistas, conforme apresentado no tópico anterior, com pouca projeção e participação e que disputam dentro do “centrão” algum tipo de benefício. Uma das principais características dos parlamentares do “baixo clero” é o fisiologismo, relação de poder político baseado na troca de favores e atendimento a interesses privados e imediatistas. Além disso, um parlamentar do baixo clero é aquele que está mais preocupado com a sua base eleitoral, voltando-se para garantir recursos à sua cidade, atuando muitas vezes na negociação com as prefeituras, como um despachante, ou para mobilizar a câmara para tratar de assuntos que agradem seu eleitorado. Assim ele se volta mais para sua base do que para debater temas de relevância nacional que poderiam lhe render mais visibilidade. Dentre os fatores que favorecem o fisiologismo está a dupla fragmentação, como já descrita anteriormente, partidária e a necessidade de os governos estabelecerem grandes coalizões para conseguirem governabilidade. Nesta lógica, a frequente troca de partidos costuma ser uma das estratégias dos parlamentares sem projeção para obter mais recursos, aliando-se a siglas com maior poder de influência, uma vez que quanto maior a bancada partidária, maior a quantidade de recursos de que eles irão dispor.

Em janeiro de 2018 o pré-candidato à presidência da República abandonou a sigla PSC e, depois de muitas negociações com outros partidos, filiou-se ao PSL, único partido que se dispôs a negociar os cargos internos17. Com General Mourão, do PRTB, como vice e com a coligação “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, Bolsonaro se lança na campanha eleitoral. Dois aspec-

tos aqui precisam ser mencionados. De um lado, os partidos que representam a composição da candidatura. PSL e PRTB representam dois, dos muitos partidos pequenos, com baixa projeção na câmara e número de deputados eleitos. Enquanto o primeiro está associado ao projeto liberal, o segundo apresenta uma linha conservadora do ponto de vista moral e social. Tal característica foi usada para agregar diferentes aliados e apresentar a candidatura como “liberal na economia, conservadora nos costumes”. De outro lado, as alianças entre Bolsonaro e os militares, representadas aqui na figura do General Hamilton Mourão, seu colega de turma da Escola de Brigadas Paraquedistas do Rio de Janeiro. Juntos eles passam a adotar o lema da própria corporação “Brasil acima de tudo, abaixo somente de Deus”. A viabilidade, entretanto, exigiu do candidato uma ampla aliança com os setores dispersos do conservadorismo brasileiro, incluindo os ultraliberais, os militares e a própria Lava Jato. Carregando um modus operandi próprio de um parlamentar do “baixo clero”, como intensa troca de partido, atuação coadjuvante, posição subalterna dentro do superbloco, motivado por interesses particulares e voltando-se, exclusivamente, para sua base eleitoral, Bolsonaro passa a se movimentar no campo político aliando a direita e a extrema direita.

As Alianças do Bolsonarismo

As principais alianças costuradas por Bolsonaro foram, sobre- tudo, com os seguintes segmentos: a burguesia financeira, frações da alta burguesia comercial e industrial, setor importante do agronegócio, alta cúpula das forças armadas e três importantes agrupamentos sociais: o lavajatismo, o olavismo e a bancada evangélica. Cada um destes grupos articula atores específicos que muitas vezes transitam entre esses setores, formando, nestas condições, uma rede, o que contribui, em certa medida, para fortalecer suas posições e criar uma homogeneidade entre os setores que sustentaram a aliança.

A burguesia financeira é representada por grandes grupos de corretoras de investimentos. Elas contam, de um lado, com parte do setor de comunicação (revistas e veículos) e, de outro, com think tanks liberais que funcionam como mecanismos de legitimação do mercado financeiro e de produção e circulação de uma agenda ultraliberal. Dentre as corretoras de investimentos associadas ao projeto está a XP Investimento (vinculada ao banco Itaú), a Empiricus e a BTG Pactual. A forte presença no setor comunicacional pode ser observada no caso da Empiricus que tem participação na revista Crusoé e no site Antagonista; a XP investimentos que comprou a revista Infomoney e a BTG Pactual que controla o grupo Abril e a Revista Exame.

Dentre os nomes que articularam as aproximações desse setor com Bolsonaro está o empresário carioca Paulo Marinho, que se tornou um dos coordenadores da campanha juntamente com o advogado Gustavo Bebbiano. Dono de uma empresa de consulto- ria empresarial, Marinho vive de comprar ações de empresas e agregou ao projeto boa parte do capital financeiro. Outra grande figura a concentrar a relação e a estreitar o vínculo com a elite financeira foi o economista Paulo Guedes, ex-sócio da BTG Pactual e atual Ministro da Economia. A aproximação com Guedes foi feita, de um lado, por Winston Ling, uma das lideranças do movimento liberal18, por intermédio da ex-procuradora Bia Kicis19, aliada de longa data da família Bolsonaro. E, de outro, por Gustavo

Bebbiano, quem de fato cristalizou a aliança. Paulo Guedes, que havia incentivado a candidatura do apresentador Luciano Huck à presidência da República, adere ao projeto de Bolsonaro após a desistência do apresentador.

Além das redes constituídas por Bolsonaro e seus aliados, contribuíram para expandir a aproximação os think tanks. Estes grupos não só se aproximam em termos de concepção como também se organizam em torno de Paulo Guedes. Este é o caso do Instituto Millenium20, do qual Paulo Guedes já fez parte como membro fundador e curador; Instituto Liberal, Instituto Mises21 e Estudantes pela Liberdade. Estes institutos compartilham uma concepção econômica que se situa entre a tradição monetarista da escola de Chicago, centro de formação de Paulo Guedes, e a perspectiva ultraliberal em defesa de um Estado mínimo da escola austríaca. O que mantém esse grupo unido e coeso em torno do projeto bolsonarista é a política liberal econômica de Paulo Guedes.

Outro grupo importante a declarar apoio a candidatura de Bolsonaro foi uma parcela significativa da burguesia comercial. Organizada através de grandes lojas varejistas, este setor é considerado o mais radical, manifestando os apoios mais fervorosos em prol do presidente. Hoje estes empresários se organizam em torno do Instituto Brasil 200 (IB200) com o objetivo de apoiar o governo em torno das reformas, sobretudo as da previdência e do trabalho. Este grupo é o mesmo que no início de 2018 criou o Movimento

Brasil 200, capitaneado pelo empresário Flávio Rocha, dono da rede varejista Riachuelo. Além de atuar em prol das reformas liberais que pregam o Estado mínimo, este grupo também apoiou diversas manifestações – que tiveram o próprio presidente como protagonista – contra o Supremo Tribunal Federal e a Câmara de Deputados, sobretudo na figura do seu presidente Rodrigo Maia. Dentre as suas estratégias está a de colocar o povo contra as instituições e a de convocar atos pelo fechamento do Congresso Nacional e Supremo Tribunal. Juntas essas empresas faturam mais de 40 bilhões de reais. A principal representação desse grupo junto ao governo hoje é o secretário especial da desestatização e desinvestimento, Salim Mattar22, proprietário do grupo Localiza, maior rede de alugueis de carro da América do Sul. Longe de ser apenas um grupo articulado de empresários, o IB200 organizou-

-se de modo que a burguesia comercial pudesse ter mais peso, representatividade e influência nas elaborações de políticas com vistas aos seus interesses de classe. Para fortalecer a pressão sob as reformas, o grupo chegou a abrir um escritório em Brasília e contratar 12 lobistas. Este grupo também mantém conexões com o primeiro por meio dos institutos liberais23. É o caso dos laços entre Salim Mattar e Paulo Guedes, por meio do Instituto Liberal. Foi Guedes que levou a Localiza para o mercado financeiro e foi também dele que partiu o convite para integrar o governo.

No que tange à burguesia industrial, os principais setores estão associados à indústria da construção civil, aço, automobilístico e siderurgia. Liderado pelo então deputado federal Onyx Lorenzoni, hoje ministro da Cidadania, e, também, por Paulo Guedes, um grupo de 10 industriais produziu uma carta de apoio à candidatura de Bolsonaro, aderindo ao projeto do candidato. Esse grupo detém em média 32% do PIB industrial brasileiro. Dentre

eles estão o presidente da USIMINAS e do Instituto do Aço Brasil, Associação Nacional de Veículos Automotores, Associação Brasileira de Máquinas e Equipamentos e Associação Brasileira da Indústria Têxtil. Destaca-se aqui Meyer Nigri, proprietário da construtora e incorporadora Tecnisa, e Elie Horn, sócio da Tecnisa, dono da construtora Cyrela e Crescera investimentos, esta última gestora de recursos de investimentos que tinha Paulo Guedes como sócio. Apesar de estar fora dos contratos públicos federais nos governos anteriores, essas construtoras são consideradas pelos índices da Bolsa de Valores de São Paulo (Bo- vespa) uma das 10 maiores do País. A eleição de Jair Bolsonaro e o efeito da Lava Jato no universo das construtoras nacionais abriram espaço para empresas que não conseguiam compor os contratos públicos. Excluídas do processo, as tradicionais empreiteiras e indústria da construção civil investigadas pelo chamado escândalo do Petrolão dos governos anteriores se veem hoje imersas em acordos de colaboração e leniência.

Além desses grupos já citados, é preciso mencionar um importante setor da economia com forte presença na política brasileira: o agronegócio. Considerado um dos principais setores da econômica brasileira, concentra 20% do PIB nacional e envolve a industrialização da pecuária e da agricultura. Composto de grandes produtores e proprietários rurais o setor, após a redemocratização do País na década de 1980, passou a se organizar politicamente para ocupar vagas na Câmara e no Senado. Hoje, a chamada “bancada ruralista” (bloco parlamentar suprapartidário), é considerada uma das maiores e mais atuantes dentro do Congresso Nacional, com forte poder de decisão e importante papel no jogo político brasileiro. Apesar da regulamentação das bancadas ocorrer apenas em 2005, muitas delas emergem de fato com o processo constituinte. Este é o caso da Frente Par- lamentar da Agropecuária que hoje reúne 257 deputados (44% da Câmara) e 32 senadores (39,5%). O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, do DEM, também faz parte do grupo. A atual Ministra da Agricultura, Teresa Cristina do DEM, havia sido em

2018 presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária. Além dela, outros cargos de real relevância também passam a ser ad- ministrados por parlamentares ruralistas, como Onyx Lorenzoni (DEM-RS) que assumiu a casa civil, Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS) na saúde, Osmar Terra (MDB-RS) na cidadania e Mar- celo Álvaro (PSL-MG) no turismo. Fundamentalmente forma- do por parlamentares de partidos de direita e centro-direita, o apoio à candidatura e ao governo Bolsonaro deve ser compreendida dentro dos acordos com o “centrão”, bloco suprapartidário do qual fazem parte a grande maioria da Frente Parlamentar do Agronegócio. Dentre as principais pautas deste grupo estão a produção agrícola em larga escala, liberação de agrotóxicos, revisão da demarcação das terras indígenas e quilombolas e a revisão do código florestal. Os três partidos com maior número de deputados nessa bancada, estão: MDB, PP e DEM. Ainda durante o primeiro turno das eleições, a então líder da Frente Parlamentar da Agricultura, a deputada federal Teresa Cristina, hoje Ministra da Agricultura, entregou uma carta de apoio ao candidato.

Outro importante setor a aderir à candidatura de Jair Bolsonaro foram as forças armadas, sobretudo na figura do Exército Brasileiro e diversas de suas lideranças. A aliança começa já na composição da candidatura que traz como vice o General Hamilton Mourão. Apesar da intensa participação, vale salientar que não é a corporação militar – enquanto instituição – que aderiu à campanha, mas um conjunto de lideranças distribuídas nas diferentes forças armadas (Exército, Aeronáutica e Marinha), com forte prevalência de generais da reserva do exército. Confrontos com os governos do PT e a retomada do protagonismo político perdi- do após o fim da ditadura militar24 marcam o apoio ao “projeto

Bolsonaro”. Um dos eventos considerados determinantes para que parte das forças armadas se posicionasse contra o projeto político que representava o PT foi a criação da “Comissão da Verdade”, em 2011, no primeiro governo de Dilma Rousseff. As investigações desencadeadas pela comissão e o relatório produzido responsabilizaram os generais que atuaram como Presidentes nos governos militares entre 1964 e 1985. A ala mais radical do Exército se sentiu atingida. Além disso, a Moção do Diretório Nacional do PT, em 2016, denominada “Resolução sobre Conjuntura”, afirmando que errou em não ter reestruturado o currículo das escolas militares, irritou generais que reagiram. Villas Boas, hoje assessor do gabinete de segurança institucional, chegou a afirmar que: “com esse tipo de coisa estão plantando um forte antipetismo no Exército”25. As tensões, contudo, entre as forças armadas e os governos do Partido dos Trabalhadores têm origem já no governo Lula e resultam em parte das estratégias políticas e dos investimentos do governo na reparação das políticas ditatoriais. A chegada do PT ao governo federal trouxe também as principais lideranças contra a ditadura militar as esferas do poder. Destaca-se os dois principais chefes da casa civil: José Dirceu e Dilma Rousseff. Os conflitos envolveram desde uma defesa do governo federal ao resgate da memória da ditadura militar e dos casos de tortura evidenciados até a demarcação de terras indígenas, como o famoso episódio envolvendo o General Augusto Heleno (hoje chefe do Gabinete de Segurança Institucional do governo Jair Bolsonaro) sobre a reserva “Raposa Terra do Sol”26 (Martins Filho, 2010).

Além disso, Bolsonaro ficou conhecido por agregar os setores mais baixos do exército e como deputado já contava com os votos da “família militar”, soldados e sargentos. Nos seus 28 anos

como parlamentar, as forças inferiores do Exército –representa- das por sargentos e a baixa oficialidade – constituíram sua princi- pal base eleitoral. Atualmente, dos 22 ministros oito são militares, além de mais de 2.500 distribuídos em postos de chefia e assesso- ramento. O principal elo é o próprio Palácio do Planalto, uma vez que todos os ministros que nele têm assento são militares.

Os três últimos a comporem apoio à candidatura e, após as eleições, a organização do governo, não são propriamente grupos econômicos, mas estão mais situados no campo ideológico: os evangélicos, o lavajatismo e o olavismo. Importante setor, os evangélicos, assim como os ruralistas, organizam-se em frentes parlamentares e têm forte presença no jogo político. Tal fato é decorrente da ampliação, nas últimas décadas, de um lado, de lideranças evangélicas eleitas para mandatos políticos, fenômeno este que contribuiu para que a frente parlamentar evangélica se tornasse hoje uma das maiores do congresso nacional. Na atual legislatura, ela representa 195 de um conjunto de 513 deputados. De outro lado, a crescente adesão à fé evangélica, sobretudo na periferia dos grandes centros urbanos, permitiu a expansão do chamado “voto evangélico”, que concentra atualmente um terço do eleitorado brasileiro (Casarões, 2020). As duas principais igrejas da Frente Parlamentar Evangélica são Assembleia de Deus e Universal do Reino de Deus, consideradas também as duas maiores igrejas evangélicas do País em número de membros.

Essas igrejas, contudo, se beneficiam da fragmentação partidária, marca central do sistema político brasileiro pós-ditadura mi- litar, buscando alguma sustentação em seus próprios partidos. Este é o caso do PSC (Partido Social Cristão), ligado à Assembleia de Deus, e o Republicanos (antigo PRB), ligado à Universal do Reino de Deus. Este grupo declarou apoio ao presidente, que também é evangélico, ainda durante a campanha eleitoral e lançou uma carta para a próxima legislatura denominada “O Brasil para os brasileiros”. Com uma clara agenda econômica, a carta ainda destacava as principais pautas evangélicas, as quais ver-

sam em torno do conservadorismo nos costumes, voltando-se para a oposição do que chamam de “ideologia de gênero”, sobretudo nas escolas, oposição ao aborto, as pautas LGBT, casamento homoafetivo e a luta contra o chamado “marxismo cultural”, que segundo o grupo é um ataque à fé cristã. O grupo tem ainda forte presença na mídia, com controle sobre a TV Record (segunda maior emissora de canal aberto do País), da Igreja Universal do Reino de Deus, a TV SBT, de propriedade de Silvio Santos, evangélico e apoiador do governo, e a Rede Massa, de propriedade do comunicador Carlos Massa (o Ratinho), também evangélico da Igreja Assembleia de Deus. Na atual composição do governo, os ministros evangélicos são: Onyx Lorenzoni (Cidadania e ex-

-chefe da Casa Civil), o general Luiz Eduardo Ramos (Secreta- ria de Governo), Marcelo Álvaro Antônio (Turismo), André Luiz Mendonça (Advocacia-Geral da União), Abraham Weintraub (Educação) e a pastora Damares Alves27 (Mulher, Família e Direitos Humanos). Estes dois últimos são considerados os mais aguerridos na chamada guerra cultural contra as esquerdas e as forças progressistas. E, em alguns setores, é possível observar uma maior integração entre diferentes blocos. É o caso, por exemplo, das reestruturações e mudanças na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que unem ruralistas, incentivadores de uma diminuição da demarcação das terras indígenas e os evangélicos com claro interesse na evangelização indígena (Casarões, 2020). Outro elemento importante que une os evangélicos aos liberais do mercado é o princípio do empreendedorismo individualista e do Estado mínimo, muito forte na teologia da prosperidade, marca central das igrejas evangélicas.

O lavajatismo, como foi designado por boa parte dos meios de comunicação social, corresponde ao conjunto de apoiadores da

operação Lava Jato, considerada uma das maiores operações de combate à corrupção no Brasil, e é formado por procuradores, juízes, políticos, movimentos sociais e canais de comunicação, sobretudo aqueles vinculados à grande mídia. A força tarefa Lava Jato uniu uma grande parcela do judiciário, do Ministério Público, da classe política, dos veículos de comunicação que divulgavam a operação com conteúdo em primeira mão e de um público, caracterizado por movimentos e atuações nas redes sociais, que identificavam o juiz Sérgio Moro como um ídolo e herói nacional. O enfraquecimento dos partidos tradicionais, sobretudo aqueles investigados por casos de corrupção, fortaleceu ainda mais os protagonistas dessa operação e abriu espaço para movimentos engajados na sua defesa independente dos questionamentos a respeito dos métodos utilizados por ela. Um dos elementos centrais do lavajatismo é o forte antipetismo, marcado pelo ataque direto ao ex-presidente Lula, e o discurso antissistema, com ataque não só à classe política, mas também ao Supremo Tribunal Federal (STF).

A Lava Jato intensificou sua relação com o campo político a partir de 2015 durante a campanha pela aprovação das “Dez Medidas Contra a Corrupção”, proposta elaborada pelo Ministério Público encabeçada pela força tarefa. Nesse processo os movimentos que se aproximaram dos procuradores da operação foram: Movimento Renova BR28; Movimento Liberal Acorda Brasil29; Movi-

mento Vem pra Rua30; Movimento Brasil Livre31 (MBL). Dentre os partidos associados a tais movimentos estão os que se situam no campo da direita e centro-direita, como Partido Novo, PSDB e DEM. Foi também nesse contexto que a aproximação com o deputado Eduardo Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, e Onyx Lorenzoni, hoje ministro do atual governo, começou a ser feita.

Esses grupos em defesa da Lava Jato foram capturados pelo candidato Jair Bolsonaro que - por ter ficado fora do establishment

– lançou mão de um forte discurso antipetista, anticorrupção e antissistema. Tais grupos articulavam na figura do juiz Sérgio Moro, hoje ex-Ministro da Justiça e Segurança Pública, o principal elo de conexão com o governo. A indicação do juiz para o ministério ocorreu durante a campanha eleitoral e foi um dos elementos centrais na aproximação com o candidato. Importante destacar que a aproximação entre Bolsonaro e os lavajatistas ocorreu por meio de Paulo Guedes, homem do mercado financeiro, encarregado de fazer o convite pessoalmente a Sérgio Moro antes, inclusive, do segundo turno das eleições presidenciais. A relação dos procuradores e juízes da operação com o mercado financeiro foi revelada pelo material jornalístico conhecimento como Vaza Jato, o qual – através de um extenso conteúdo obtido por meio de vazamento de conversas dos procuradores no Telegram – revelou desde a participação em eventos secretos entre o procurador Deltan Dallagnol e a XP Investimentos32 para discutir eleições presidenciais e conjuntura política até a blindagem

jurídica a Paulo Guedes33. No Congresso o partido que “veste o figurino da Lava Jato” é o Podemos, carregando as principais pautas associadas à defesa da operação como: a CPI do supremo tribunal federal, conhecido como CPI da Lava Togas, além do fim do foro privilegiado, dentro outras pautas. Hoje o partido é o terceiro maior com número de parlamentares no Senado.

Bolsonaro atraiu esse grupo a partir do momento em que adere tanto ao antipetismo, sua marca central, como à pauta anticorrupção como elemento fundamental de crítica ao sistema político, sobretudo ao establishment. Mesmo tendo sido deputado por 28 anos, compondo, portanto, o quadro político, e fazendo parte de partidos, como o PP e o PTB, alvo de grandes escândalos de corrupção, Bolsonaro ocupava o lugar destinado a políticos pertencentes aos partidos pequenos, com força reduzida no Congresso e que dependem do fisiologismo como elemento central de sobrevivência.

Por fim, mas não menos importante, está o agrupamento denominado de Olavismo, o qual se organiza em torno dos seguidores do guru da extrema-direita brasileira Olavo de Carvalho. Considerado o “Bannon brasileiro”, o ideólogo da ala mais radical do governo concebe a política por meio do viés apocalíptico, cercado de códigos binários (globalistas versus nacionalistas), narrativas que evocam teorias da conspiração e incentivam a existência de uma guerra cultural. Autoproclamado filósofo e astrólogo, Olavo de Carvalho se destacou nas redes sociais através de um curso de filosofia on-line que contribuiu para agregar grande parte do conservadorismo brasileiro. A partir desse curso ele formou um grupo de seguidores (juízes, políticos, advogados, comunicadores) que passaram a ter projeção na política. Destacaram-se pela participação nas redes sociais, a plataforma

Brasil Paralelo, diversos youtubers (com mais de um milhão de seguidores) e comunicadores que depois passaram a ocupar cargos em grandes veículos de comunicação.

No meio político os alunos a darem grande projeção às ideias de Olavo foram os três filhos mais velhos do presidente Jair Bolsonaro: Flávio Bolsonaro (senador), Eduardo Bolsonaro (deputado federal) e Carlos Bolsonaro (vereador pelo município do Rio de Janeiro). A integração entre o olavismo e a família Bolsonaro deu origem ao que boa parte dos analistas chamam de “bolsolavismo”34, representado pela intensa articulação com a direita internacional. Essa articulação ampliou espaço de atuação no governo com nomeações para diversos setores tais como: o setor das relações internacionais, na figura do Ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo, é aquele que mais associado está ao olavismo. Formam o seu time o olavista Filipe Martins, assessor especial da Presidência da República para assuntos internacionais. Outros importantes setores que contam com olavistas são: educação, com o Ministro da Educação Abraham Weintraub e a Secretaria Especial de Comunicação do governo, com o secretário Fábio Wajngarten. Destacam-se também os assessores pessoais do gabinete do Presidente, portanto direta- mente vinculado a ele, e associados aos filhos de Bolsonaro. Esse grupo de assessores, liderado por Carlos Bolsonaro e orientado por Olavo de Carvalho, deu origem ao que se designou chamar de “gabinete do ódio” ou “gabinete ideológico”. Através deste gabinete, tais assessores não só orientam o presidente como comandam também várias páginas nas redes sociais (twitter e facebook), com milhões de seguidores, cujo objetivo é propagar uma campanha de intensa polarização e agressão aos adversários produzindo conteúdo especialmente para sua base eleito-

ral. Mantendo assim uma das principais característica do baixo clero, a mobilização das mídias sociais tornou-se peça central para estabelecer uma relação direta com seus eleitores.

Muitos desses setores hoje encontram-se tutelados por militares que ampliaram sua atuação no governo e que buscam limitar o alcance dos olavistas, estes últimos importantes pontos de tensão no governo. Um exemplo disso é a mais recente substituição do Ministro da Casa Civil, cargo que passou a ser ocupado pelo General Walter Braga Neto. Nomeado em fevereiro de 2020 para assumir o cargo, o General já exonerou assessor olavista e busca controlar o poder de alcance do grupo. Entretanto, é também o olavismo que conecta os militares a Bolsonaro, sobretudo por meio da concepção ideológica que carregam contra as esquerdas e o comunismo.

Portanto, esses grupos compartilham interesses comuns e foi em torno de tais interesses que, em um contexto de crise, o projeto político do bolsonarismo passa a se apresentar como uma alternativa viável. É nesse momento que Bolsonaro passa a jogar com os grupos buscando seu apoio e se favorecendo da fragmentação política.

Considerações Finais

Este artigo buscou demonstrar as condições sociais e políticas nacionais que permitiram a formação do bolsonarismo como projeto político e os diferentes grupos que passaram a apoiá-lo. Como demonstrado acima, a própria configuração do sistema político nacional – estruturado a partir do pluralismo fragmentado – e o vácuo provocado pela ruptura no sistema de alianças geraram as condições para a emergência do Bolsonarismo e sua capacidade para costurar novas alianças. Portanto, um dos argumentos centrais é que os padrões das alianças dependem de como se organiza o sistema político e partidário.

De acordo com o que foi descrito, é possível observar que Bolsonaro realinhou as forças do conservadorismo brasileiro que se encontravam dispersas. De um lado cresceram no jogo político os partidos pequenos, considerados “nanicos”, muitos dos quais tinham um caráter apenas fisiológico, servindo para composição de alianças dentro do chamado “centrão”. Este último, antes controlado pelo MDB, foi aos poucos sendo tomado por partidos evangélicos com inclinação à direita, como o PSL, então partido do presidente no contexto da candidatura. Dentre os fatores que contribuíram para isso está a própria configuração do sistema político que, em contextos de crise, tende a gerar oportunidades para esses partidos. Por outro lado, os militares, sobretudo aqueles que estavam na reserva e que se organizaram como grupo político, alinhados aos pequenos partidos, como é o caso do vice-presidente, serviram de suporte ao novo governo e fia- dores de um presidente cuja base partidária é frágil e fragmentada. Desde o processo de redemocratização, em 1985, que os militares não ocupavam postos relevantes na cúpula do governo federal. Favorecidos, portanto, por um sistema político plural e fragmentado, como o brasileiro, a militarização da política garantiu uma certa estabilidade e legitimidade às alianças frágeis do atual governo. Isso ocorre porque a fragmentação produz alianças imediatistas, exclusivamente para garantir governabilidade em função dos cálculos e necessidades dos políticos. Ao mesmo tempo em que são fáceis de serem estabelecidas, são frágeis, instáveis e suscetíveis a constantes conflitos, uma vez que a necessidade de conciliar interesses diversos produz tensões por espaço e recursos.

E, por fim, parte do judiciário composto pelos membros da operação “Lava Jato”. Assim, a nova configuração a se desenhar coloca em cena uma coalizão entre setores do judiciário, setores da classe política, dividida aqui entre liberais, evangélicos e ruralistas, e os militares. O ativismo anticorrupção é usado para cooptar membros da operação “Lava Jato” e aparece como uma estratégia importante dessa coalizão, apesar das intensas denúncias

de corrupção envolvendo a equipe presidencial do novo governo e o próprio presidente eleito.

Cada um desses movimentos deve ser compreendido e analisado. O primeiro representa as transformações na composição do chamado “centrão”, o que contribuiu para a ascensão dos pequenos partidos e do chamado “baixo clero”. Este grupo tende a articular alianças com outras forças econômicas, como os liberais, setores da burguesia comercial e industrial, que também se favorecem da fragmentação política. Dispersos em várias frentes, o baixo clero tende a atuar na defesa do lobby de bancos e grupos econômicos. O segundo, a retomada do protagonismo político pelos militares perdido após o fim da ditadura militar. O núcleo dos militares resulta, de um lado, da estratégia em dar suporte a um governo de um pequeno partido, sem estrutura e considerado frágil do ponto de vista político. De outro, a forte presença dos militares compõe não só a carga simbólica e ideológica de “um chamamento as forças armadas” para garantir a ordem, mas representa uma estratégia para diminuir as indicações de cunho político-partidário. Os militares apresentam um discurso neutro e imparcial, como agentes comprometidos com a nação, mas distantes dos interesses meramente político-partidários que no passado garantiam a governabilidade. Assim, sua presença cor- responde a uma tática para garantir governabilidade ao presidente e diminuir o poder de barganha dos líderes partidários.

Essas condições contribuíram para que Bolsonaro pudesse jogar com diferentes aliados, unindo seus interesses com os interesses em comum com os economistas ultraliberais, militares e as frações dispersas do conservadorismo brasileiro.

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