Artigos
Mahragan: Classe, Lazer e Política no Cairo*
Revista TOMO
Universidade Federal de Sergipe, Brasil
ISSN-e: 1517-4549
Periodicidade: Semestral
núm. 31, 2017
Recepção: 24 Setembro 2017
Aprovação: 08 Outubro 2017
Resumo: Para os jovens homens dos bairros populares do Cairo, a música mahragan tornou-se, desde meados dos anos 2000, uma forma de mídia importante para criticar sua condição de marginaliza- ção. A música mahragan já era popular entre todos os grupos sociais quando ocorreram os eventos políticos de 2011 no Egito, tendo se espalhado por toda cidade do Cairo, se tornando uma expressão cultural associada aos discursos de contracultura. Mahragan desafia a marginalização dos jovens Cairenes de clas- se baixa. Este artigo examina como os produtores e consumido- res de mahragan (re)produzem espaços sociais informais para organizar suas próprias “festas” noturnas - tradução literal do termo mahragan - no Cairo. O argumento é que essas raves po- pulares representam uma alternativa à marginalização cultural de jovens Cairenes das classes baixas. O artigo fornece uma visão de como o mahragan representa independência e de como esses jovens encarnam um desafio direto por mudanças nas formas de soberania do Estado e no campo da governança neoliberal da cultura no Egito contemporâneo.
Palavras-chave: Jovens, Música Mahragan, Cairo, Marginalização.
Abstract: For the young men of the Cairo neighborhoods, mahragan music has become, since the mid-2000s, an important media form to criticize its condition of marginalization. Mahragan music was already popular among all social groups when the 2011 political events took place in Egypt, having spread throughout the city of Cairo, becoming a cultural expression associated with counter culture discourses. Mahragan - challenges the marginalization of young, lower-class Cairenes. This article examines how pro- ducers and consumers of mahragan (re) produce informal social spaces to organize their own night “parties” - a literal translation of the term mahragan - in Cairo. The argument is that these po- pular raves represent an alternative to the cultural marginaliza- tion of young Cairenes of the lower classes. The article provides insight into how the independence that the mahragan repre- sents and affords these young men embodies a direct challenge to state sovereignty and neo-liberal governance in the field of culture in contemporary Egypt.
Keywords: Young, Mahragan Music, Cairo, Marginalization.
Resumen: Para los jóvenes hombres de los barrios populares de El Cairo, la música mahragan se ha convertido, desde mediados de los años 2000, en una forma de medios importante para criticar su condici- ón de marginación. La música Mahragan ya era popular entre todos los grupos sociales cuando ocurrieron los eventos políticos de 2011 en Egipto, extendiéndose por toda la ciudad de El Cairo, convirtién- dose en una expresión cultural asociada a los discursos de contra- cultura. Mahragan desafía la marginación de los jóvenes Cairenes de las clases bajas. Este artículo examina cómo los productores y consumidores de mahragan (re)producen espacios sociales infor- males para organizar sus propias “fiestas” nocturnas -la traducci- ón literal del término mahragan- en El Cairo. El argumento es que esas raves populares representan una alternativa a la marginación cultural de jóvenes Cairenes de las clases bajas. El artículo propor- ciona una visión de cómo el mahragan representa independencia y de cómo estos jóvenes encarnan un desafío directo por cambios en las formas de soberanía del Estado y en el campo de la gobernanza neoliberal de la cultura en el Egipto contemporáneo.
Palabras clave: Jóvenes, Música Mahragan, Cairo, Marginalización.
Introdução
We made music that would make people dance but would also talk about their worries (Músico de mahragan: Alaa 50 Cent)
Dar as Salam é um bairro popular com cerca de 100.000 pessoas localizado em frente à ilha de Dahab, no Cairo. Todos os anos, redes informais de moradores organizam o Sidi Al Agami mu- lid, que é celebrado na segunda semana do mês de Yumada al Thani1. Para tal mulid2, jovens se organizam em redes informais e alugam quartos e equipamentos portáteis, contratando DJs, como aqueles que são comumente encontrados em casamen- tos locais. O DJ mistura músicas inshad, músicas shabi e ritmos elétricos e - fazendo eco à citação Alaa 50 Cent que inicia este tópico - improvisa letras sobre as condições relacionadas à sua vida cotidiana, bem como às suas restrições e aspirações sociais locais3. O resultado é uma música informalmente produzida e consumida por homens jovens de classe baixa.
Como o Kuduro em Angola (Marcon e Tomás, 2012), o Raï na Argélia ou o Rap na Palestina, o shabi pode ser entendido como música de resistência. Nesse caso específico, a música e as le- tras denunciam desigualdades sociais e de classe no Egito, como fizeram os cantores shabi nos anos 80 e 90. A continuidade do legado da música shabi é crucial para entendermos porque as classes dominantes locais consideram esta música produzida e consumida por jovens de classe baixa masculina de Cairene como “vulgar” e “inculta”. No entanto, o desdém por este tipo de música também tem muito a ver com o fato de que essa expres- são musical - que é popularmente chamada de música mahragan - desafia a marginalização dos jovens de classe baixa de Cairene. O que desafia as oportunidades e padrões de consumo locais de lazer, (re)produzidos e controlados tanto localmente quanto na- cionalmente pela classe social dominante. Em outras palavras, a principal preocupação das classes dominantes no Cairo seria a ruptura que a música mahragan representa para integrar as regras do mercado neoliberal no Egito contemporâneo. As polí- ticas liberais começaram no Egito com o chamado impulso “In- fitah” de Saddat, que abriu o país para investimentos privados, principalmente dos Estados Unidos. As políticas de privatiza- ções foram totalmente completadas pelo regime de Mubarak, como observam Ayubi (1999), Mitchell (1988) e Belov (2001).
Para os jovens homens dos bairros populares do Cairo, a música mahragan tornou-se, desde meados dos anos 2000, uma forma de mídia importante para criticar sua condição de marginaliza- ção. A música mahragan já era popular entre todos os grupos sociais quando ocorreram os eventos políticos de 2011 no Egito, que se espalhou por toda cidade do Cairo e se tornou uma ex- pressão cultural associada aos discursos de contracultura. Seu “minuto de glória” foi durante 2012, quando alguns DJs e canto- res populares foram levados para Londres, onde jornalistas oci- dentais e documentaristas procuravam algo parecido com uma “revolução rock” egípcia. Por exemplo, diversos projetos sociais, como Cairo Calling, foram financiados pelo British Council (ver http://music.britishcouncil.org/projects/cairo-calling).Seis anos depois de 2011, no entanto, o mahragan foi marginalizado como resultado de sua corrente articulação com o secularismo e as orientações ideológicas religiosas da cena noturna do Cairo.
Este artigo examina como os produtores e consumidores de mahragan (re)produzem espaços sociais informais para organi- zar suas próprias “festas” noturnas - tradução literal do termo mahragan - no Cairo. O argumento é que essas raves popula- res representam uma alternativa à marginalização cultural de jovens de classe baixa Cairene. O artigo fornece uma visão de como o mahragan representa independência e de como esses jovens encarnam um desafio direto por mudanças nas formas de soberania do Estado e no campo da governança neoliberal da cultura no Egito contemporâneo.
Marginalização de Classe, tempo de lazer e Maghragan
De acordo com Wacquant (2007), os processos de margi- nalização não são residuais, cíclicos ou de transição, mas estão organicamente ligados aos setores mais avançados da economia política contemporânea e, principalmente, ao capital financeiro. A marginalização é entendida aqui como um processo no qual certas atitudes, ideologias, valores, práticas, discursos e crenças são excluídos da esfera pú- blica. Ou seja, é um processo que envolve elementos sim- bólicos, culturais e materiais que nega e subordina alguns grupos, como os jovens homens de classes baixas no Egito. Como observa Saad, podemos considerar dois tipos de pro- cesso de marginalização que afetam essa marginalidade demográfica: cultural e social (Bayat, 2013).
Uma análise sobre as atividades de lazer de jovens do Egito nos fornece informações sobre essa marginalização. Os resultados do Estudo da Juventude da SAHWA (2016) mostram que as prá- ticas de lazer de jovens mulheres e homens no Egito estão relacionadas principalmente às atividades grupais e às relações sociais. O uso da Internet também está diretamente relacionado com suas práticas de sociabilidade: uma proporção significativa de 64% usa a Internet para participar de redes sociais, enquanto 57% dos 9860 entrevistados da SAHWA a utilizam para conver- sar com amigos. No que diz respeito a outras práticas de lazer, como ir ao cinema, teatros, concertos, clubes, espetáculos espor- tivos ou exposições, o consumo cultural juvenil é praticamente inexistente, devido a uma série de dificuldades. A falta de au- tonomia econômica, dificuldades laborais e responsabilidades financeiras com a família são os motivos mais significativos que explicam as desigualdades sociais e de classe quanto ao nível de acesso a essas instalações culturais e de entretenimento. Embora ultrapasse o escopo deste artigo, pequenas opções de transporte e mobilidade, problemas com infraestrutura e outros problemas de governança também contribuem para moldar as oportunida- des e restrições de lazer (Sánchez García e Feixa, 2016).
Como em muitas outras cidades globais, as paisagens no Cairo estão claramente segmentadas social, racial e espacialmente. No caso das paisagens urbanas no Egito, essa disjunção está claramente associada à classe, mas enquanto se podem encon- trar facilmente atividades de lazer noturnas orientadas para jovens da classe média e alta em áreas centrais do Cairo ou Ale- xandria, várias outras atividades de lazer noturnas ocorrem de forma oculta em bairros e vias informais em ambas as cidades. Esses espaços mais informais são importantes como espaços onde a música mahragan desempenha um papel fundamental no estabelecimento de agendas politicamente alternativas para a juventude de classe baixa Cairene. Este grupo cria ao mes- mo tempo um espaço onde seus próprios discursos sobre a(s) sua(s) realidade(s) cotidiana(s) são produzidos livremente, reproduzidos (e consumidos). Em outras palavras, a música mahragan permite aos jovens de classe baixa Cairene manifes- tar politicamente suas próprias posições na esfera pública egíp- cia (às vezes auto engajadas).
Além das dificuldades geralmente experimentadas no acesso a outras formas de lazer e espaços culturais por parte da juventude masculina de classe baixa no Cairo, a marginalização da música mahragan é tipicamente baseada em letras que se referem direta- mente aos cairotas da classe média alta, que ignoram amplamente os registros morais múltiplos, muitas vezes contraditórios na so- ciedade egípcia, e os desejos complexos que moldam a vida coti- diana das pessoas (jovens). Pode-se facilmente ter a impressão de que o país está sob uma forma de governança secular-liberal que enfatiza os constrangimentos políticos e econômicos. No en- tanto, a cultura liderada pelo Estado no Egito visa representar a nação globalmente como árabe, secular, liberal e livre das com- plexas contradições culturais, sociais, geracionais ou religiosas. Isso explica porque, na visão das classes dominantes, a música mahragan deve ser apresentada simplesmente como resultado de ignorância e atraso. O governo egípcio procura desenhar “a verdadeira música egípcia” sobre a melhor prática musical ocidental, misturada ao mesmo tempo com elementos locais, encar- nando autenticamente a especificidade e o cosmopolitismo do Egito. Por sua vez, a “música verdadeiramente egípcia” não pode incluir temas considerados vulgares ou desagradáveis, ou seja, as três partes da trilogia proibida da produção cultural egípcia con- temporânea: sexo, religião e política. Esta é uma trilogia que os músicos mahragan costumam usar de maneira semelhante à cena da música rock ocidental (sexo, drogas e rock and roll). Nesses termos, a marginalização dos jovens homens de classe baixa não está especificamente relacionada à falta de estruturas de lazer à sua disposição, mas, sim, uma marginalização política da cultura material que produzem e consomem.
Na verdade, algumas expressões informais de resistências so- ciais, políticas, culturais e até generacionais levadas a cabo por jovens de bairros informais das maiores cidades egípcias, como Cairo e Alexandria, foram vistas como perigosas pela maioria dos discursos islâmicos no Egito, isto é, dos shayks oficiais aos pregadores salafistas, com exceção das irmandades sufis. Essas preocupações “oficiais” são muito devotadas em contrariar a imoralidade de produções cinematográficas e musicais especí- ficas, produzidas informalmente e altamente orientadas para a juventude, já que ambos os shayks e os pregadores salafistas argumentam que tais produtos culturais informais e politizados podem colocar em risco o processo de construção da Umma4. De fato, os discursos islâmicos dominantes que operam atualmente no Egito sobre o que constitui a boa arte e cultura e o potencial desta boa arte e cultura para civilizar a nação, alinham com os discursos dominantes das instituições culturais egípcias, que também ressoam com os do Iluminismo Europeu e da Moder- nidade. Essa longa política de afiliação e orientação cultural é semelhante ao ser “culto”. O oposto da cultura (thaqafa) é a ignorância (jahl) e é assim que os artistas mahragan de Cairene são estigmatizados, como também ocorreu com cantores de shabi. Esse é o contexto político atual da música popular no Egito, que tem sido frequentemente usado como “barganha” entre os gru- pos Estatais e Salafistas, que eram dominantes na vida política do país antes dos eventos de 2011 (Schielke, 2006).
A Estética Mahragan
A seção introdutória deste artigo mostrou como mahragan pode ser entendido como uma prática criativa informal que é produzida e consumida em oposição aos circuitos culturais formais existentes no Egito, como, por exemplo, shababiya, que é a música liderada pelo Estado para jovens. As músicas shababiya, interpretadas por artis- tas como Amr Diab ou Cairokee (entre outros), parecem muito com a música de dança global e podem ser vistas como um método de elite, conduzido pelo Estado, para reviver inshads canções (árabes). Em contraste, o mahragan incorpora elementos tanto da música sha- bi quanto das músicas inshads tradicionais que são reorganizadas e ressignificadas a partir de uma perspectiva geracional e de classe. As melodias adquirem a atmosfera da espiritualidade sufí, estão cheias de harmonia emocional e são reforçadas com a repetição de convic- ções religiosas conhecidas inseridas pelos DJs de forma profunda- mente ambíguas. Em mahraganscapes, o amor ao Profeta e ao Wali pode ser percebido como amor não correspondido, frustrado pelas relações de gênero rígidas que ainda hoje estão em vigor e impostas pela ordem social no Egito. É por isso que a maioria das expressões verbais e não-verbais do mahragan é simultaneamente associada a músicas inshads tradicionais (Sánchez García, 2010).
O mahragan também está conectado com noções de autentici- dade e herança para as jovens classes baixas do Egito através do uso de música shabi e inshad, como mencionado acima. Embora este último esteja relacionado com eventos ocorridos em outros lugares e com outros estilos em todo o mundo islâmico, ambos os estilos de música são percebidos como tipicamente egípcios e servem como marcadores de identidade. Como essa autenticida- de cultural tira proveito de algum patrimônio local (como o uso de alguns elementos das músicas inshad tradicionais), o mahragan é tolerado por adultos de classes shabi, apesar da profanação e vulgaridade que pode ser ouvida em algumas músicas. Através do uso de eletrônicos, amostragens e remixes, o mahragan cria ma- terial genuíno com vários estilos vocais e temas como: frustração sexual, emprego informal e a busca por narcóticos.
Depois dessa explanação sobre o mahragan, este não deve ser visto como uma forma de cultura islâmica que abalou o mundo muçulmano, nem é uma forma de nova música mundial enraiza- da na tradição islâmica sufí. O mahragan é um estilo musical sem concessões aos gostos ocidentais, longe dos delicados tons de fusão étnica da World Music e da nova e refinada emergente cena da música islâmica. Em contraste, é sombrio, afiado, brincalhão e ambíguo, como as paisagens urbanas em que vivem os músicos e os consumidores de mahragan, que estão associados ao mau gosto, à vulgaridade e às classes mais pobres.
O mahragan é amplamente difundido entre seus seguidores através do compartilhamento de cartões de memória e dispo- sitivos MP3. Ele também é carregado em plataformas de redes sociais, como o YouTube. Ao fazê-lo, seus seguidores tornam-se agentes ativos de certo cosmopolitismo complexo, não-linear, variado, mas particular, que está relacionado aos modos de res- significar as noções de autenticidade e patrimônio cultural local. As gravações de música mahragan se espalharam por outros es- paços urbanos da cidade e também por outros grupos sociais
- o que ouvi também quando realizei trabalho de campo em um shopping. O que possibilita a divulgação da mensagem política desse tipo de música a grupos não marginalizados na socieda- de egípcia. Em suma, a divulgação formal e informal da música mahragan e a sua crescente popularidade, especialmente a par- tir de 2013, possibilitaram que ela extrapolasse seu “berço” – de uma pequena pista de dança em um bairro informal do Cairo até a presidência de El Sisi. Apesar disso, o mahragan ainda é conceituado de acordo com a classificação da classe para jovens grupos de shabi no Egito e continua a funcionar como um tipo de marcador étnico como ibn al balad (El Messiri, 1978). O que demonstra sua importância crítica na divulgação dos discur- sos Pós-Tahrir no Egito, onde jovens blogueiros, fãs de futebol e qualquer tipo de crítica política juvenil, estão proibidos e são violentamente reprimidos pelo regime neoliberal do general El-Sisi, apoiado pelo G20.
No sampling e na remixagem das canções inshad de tradição Sufi (embora não seja a “versão culta” promovida pelo Minis- tério egípcio da Cultura) e a música shabi (mas não a música mainstream árabe), os seguidores mahragan, cantores e músi- cos produzem o que Willis descreve como uma “cultura comum” (1990). A criação do que se poderia chamar de estética base- ada no mahragan, seguindo Willis, permite uma compreensão desta forma cultural como ligada à semântica local, constituindo uma resposta a outros estilos tradicionais da juventude, como Shababiya. Essa estrutura estética se torna visível em outras ex- pressões que também transformam a imagem corporal, as for- mas de dança e o comportamento cotidiano, como no Rap e no Hip Hop. Os cabelos longos, bonés de beisebol e camisetas de equipes de futebol podem parecer exóticos para os vizinhos, e o uso de drogas e álcool em suas reuniões pode facilitar a crença de que esta é uma ordem social desviante. As letras da músi- ca mahragan mudaram quando a revolta anti-Mubarak entrou em erupção em janeiro de 2011. Naquele tempo, Abdel-Aziz, um músico mahragan, cantou uma música chamada The People and the Government.
O povo e o governo, as metralhadoras e os discípulos do Egito se levantaram, e mesmo aqueles que não roubaram mergulharam nele. Eu falarei sobre aqueles que estão de pé, os sobreviventes e os mortos. Eu falarei sobre a igreja, a mesquita e a Irmandade. As pessoas querem a queda do regime. As pessoas querem cinco libras de crédito para o celular5.
Após a revolução Tahrir, no Egito, em 2011, as letras mahragan foram politizadas e atraíram diferentes gerações e grupos sociais, mesmo que “você não entenda três quartos das letras, mas en- tão você ouve algo bom e percebe que toda a música se relacio- na com você”, como explica um garçom de 47 anos. Isso levanta o principal perigo para o regime do general El-Sisi: a capacidade do mahragan de estender um discurso político resiliente como o Rap, nos Estados Unidos, ou como os banlieurs6, em Paris, que são produzidos a partir dos bairros das maiores cidades do país por uma juventude masculina desviante. Em suma, o mahragan é simultaneamente percebido como algo intrinsecamente egípcio, assim como a música shabi dos anos 1980 e 1990, e, como an- tes, considerado potencialmente perigoso pelas classes médias e altas ocidentalizadas: “Criamos uma música que faz as pessoas dançarem, mas que também fala sobre suas preocupações”, como diz Alaa al-Din Abdel-Rahman, também conhecido como Alaa 50 Cent, um mahraganian de 23 anos, durante meu trabalho de cam- po: “Todos podem escutar e ouvir o que está em suas mentes”.
Mahragan como prática de lazer no Cairo
Os Mawlid e as noites de casamento, entendidos aqui como “hipernoites”7, são os principais espaços populares utilizados para executar o mahragan8. Essas festividades têm um caráter multitudinário e, ao mesmo tempo, são eventos ambivalentes. Os sufis apreciam os mawlid pelo fervor religioso dos rituais, po- rém, ao mesmo tempo, os moradores constroem um sentido de identidade coletiva organizando desfiles de caráter carnavelesco onde tanto as autoridades religiosas islâmicas como governo são abertamente criticados. Como observa Schielke (2003), a mulid é criticada por sua própria ordem, flexível e ambígua, bem como pelo tipo de atividades que ela implica. Seu caráter inculto e vulgar é amplamente afirmado como uma “invenção” (bid’a), por atores culturais liderados pelo Estado, instituições oficiais e vários gru- pos islâmicos que propõem sua proibição. O efeito dessas críticas levou a diferentes tentativas para reformar essas festividades. Em primeiro lugar, as instituições culturais lideradas pelo Estado fize- ram um esforço para transformar as festividades em eventos que mostram uma aparência mais civilizada e organizada. Apesar dis- so, seu caráter foi bastante modificado, especialmente nos últimos anos, em grande parte devido à introdução de novas práticas sha- bi que simbolicamente transformaram o mulid em um lugar onde há uma suspensão da ordem cotidiana. Por conseguinte, a mulid se opõe não apenas ao laicismo da hegemonia cultural ocidental e ao puritanismo islâmico, mas também à imposição de ambos os tipos de valores morais na vida cotidiana dos bairros locais.
Apesar de dominar a opinião islâmica e que o Egito contempo- râneo considere o mulid como religiosamente herético, não há dúvida sobre sua autenticidade cultural - asl ‘- em termos seme- lhantes a outros tipos de manifestação da religiosidade popular no país. Além disso, o mulid é categorizado como uma atividade cultural shabi que influencia os participantes além da compre- ensão rigorosa da religião entre os grupos salafistas e outros islâmicos. Durante a festa, é decretado o reinado dos Shabi e os participantes são obrigados a seguir o comportamento “correto”, como comer com as mãos, e mostrar solidariedade e hospitali- dade aos peregrinos e a todas as pessoas que desejam participar das festividades. Portanto, a mulid é uma forma de internalizar a ideologia e os referentes simbólicos que a contracultura popu- lar propõe. Esta é, na verdade, uma das principais razões pelas quais a juventude popular masculina se sente fortemente atra- ída a participar dessa festa que corresponde ao seu potencial de rejeição política aos discursos hegemônicos do atual regime autoritário e da ordem social considerada opressiva.
Nessas circunstâncias festivas, alguns jovens em Dar as Salaam ocupam espaços vazios no bairro e instalam sistemas de som e luz portáteis. As redes informais estabelecidas ao longo do ano permitem a coleta de doações para alugar equipamentos que são semelhantes aos usados por DJs nas festas de casamento. Nesses espaços-tempo, os jovens dançam dhikr adaptado, com movimentos dos braços e mãos similares ao rap e breakdance. Os jovens ultrapassam os limites do que normalmente é permi- tido na atual ordem social no Egito, embaraçando a divisão entre o sagrado e o profano e tentam reproduzir os estados mentais alcançados tipicamente no mulid Sufi, mas com um caráter ori- ginal. Eles juntam o irreverente ao sério, mas dentro de alguns limites. Apesar da sua ambígua aproximação à espiritualidade, a festiva atmosfera mulid permite que a geração de jovens e adul- tos shabi geralmente considere a celebração como hallal9.
No Egito, Farah é uma palavra que descreve a atmosfera festiva de um casamento local. Essa é a mesma palavra que é usada para descrever a atmosfera nas celebrações de rua, como os mulids li- derados pela juventude. A percepção geral entre os participantes é que a mulid permite a quebra das fronteiras sociais. A música, a dança e o uso do corpo desafiam a separação entre os gêneros, entre “o sagrado” e o “profano”, entre “público” e “privado”, entre haram e hallal. No entanto, preservam o caráter espiritual asso- ciado às demonstrações sufi alegres tradicionais, fazendo desta orientação jovem mulid um elemento particular, mas intrínseco, de veneração a Deus, ao Profeta e ao Wali. Sem dúvida, a ambi- valência dos mulids orientados para a juventude pode parecer como se fossem dramaticamente diferentes dos mulids sufíes. O mulid jovem representa uma transição temporária da ordem profana para uma ordem sagrada e anormal (Leach, 1971). Du- rante o mulid o mundo é bom, livre de opressão e ganância, as preocupações cotidianas desaparecem e não há ansiedade so- bre o futuro. Essas transgressões da ordem social em relação ao gênero, à geração e às práticas religiosas permitem a criação de um discurso novo e a-secular (Agrama 2012), isto é, religioso e secular ao mesmo tempo.
Quando as festas progridem para hipernoites nos bairros infor- mais, bango (marihuana) e álcool ajudam os jovens a encontrar o tarab10 através de ritmos trance como aqueles usados no dhikr. A presença de mulheres jovens vestidas de forma “decente” e “moderna” ao mesmo tempo não é incomum (um lenço de cabeça para esconder os cabelos, mas com blusas e jeans). Os jo- vens dançam e provocam as mulheres jovens encorajando-as a acompanhar as danças sensuais da maneira descrita acima. As jovens parecem ter vergonha, mas, ao mesmo tempo, demons- tram prazer em ser um objeto de desejo para seus parceiros de sessão. É uma atmosfera festiva, sem restrições, e homens jo- vens dançam em círculos em que aqueles que ocupam o centro entram em competições. Isso é feito para demonstrar suas habi- lidades na frente das mulheres jovens e envolve exagerar na sua virilidade. Os DJs improvisam elogios orais ao santo do bairro, ao Profeta, Deus e ao principal patrocinador da festa. Os dança- rinos (homens) respondem a ele em coro, enquanto seguem a batida e o ritmo, deixando-se ir, movendo o tronco para frente e para trás até chegarem ao esgotamento. O dhikr desse jovem é apreciado minuciosamente, mas não é levado a sério como um ritual místico. O que se torna um jogo frenético alimentado pela mistura de música moderna inshad (mahragan), álcool e bango (maconha). A admiração e irreverência simultâneas pela música sufi são uma ambiguidade que eles incorporam ao seu cotidiano, sem que ela possa ofender a sensibilidade de qualquer partici- pante piedoso.
Nos termos descritos acima, a celebração agrupa seus participantes assumindo uma alteração radical da vida cotidiana no Cairo neoliberal. O delírio festivo é tal que os participantes pare- cem estar em transe, como se suas personalidades comuns fos- sem suplantadas por outras. Nesses termos, a sessão funciona como uma vacina, que injeta na vida social uma dose controlada e inofensiva de transgressão, inversão e caos ordenado, princi- palmente devido à mistura de gêneros; estando situado no plano do utópico e do impossível na vida cotidiana.
A Política do Mahragan
A música mahragan gravada é o gênero resultante da transformação da música Sufi Mulid em música de dança de rit- mos variados que pulou para a cena musical Cairene em 2011. A seção anterior mostrou como a marginalização da música mahra- gan poderia ser explicada como um espaço liminar entre o secu- larismo e as orientações ideológicas religiosas que ocorrem em espaços públicos noturnos durante a celebração de uma mulid. É também onde uma relação complexa e caleidoscópica entre reli- gião e política, que se tornou um elemento-chave no atual Egito a-secular. Segundo Agrama (2012), as gramáticas e práticas dos músicos e consumidores mahragan são expressas em termos seculares ou religiosos, mas não abraçam nenhum deles. Como o autor argumenta: «No sentido de que ele [mahragan] vinha antes da religião e da política e que era indiferente à questão de sua dis- tinção, a base da soberania manifesta pelos protestos iniciais es- tava fora do espaço-problema do secularismo” (Agrama, 2012, p. 29). O maharagan, em outras palavras, oferece aos jovens de bair- ros informais novas maneiras de compreender e ver o seu mundo.
Por outro lado, enquanto durou a Revolução Tahrir em 2011, ar- tistas do mahragan, como DJ Islam Chipsy, podiam tocar no Al Azhar Park (um complexo de lazer entre Muqattam e El Hour- reya no centro do Cairo), hoje, a música mahragan voltou para os becos dos assentamentos informais nos arredores do Cairo. As autoridades seculares e islâmicas continuam nos dias de hoje a criticar a música mahragan com os mesmos argumentos que foram empregados antes da Revolução de 25 de janeiro: sendo entendido como mau gosto e como influência vulgar e ocidental. De maneira significativa, entender o mahragan como essencial- mente secular ou religioso é analiticamente insignificante para a análise etnográfica, o interessante é observar como o secular, o religioso e as ordens sociais normativas propostas por esses relatos devem ser examinados através das formas particulares que adquirem em diferentes contextos sociais.
Foi em 2011 que o mahragan se espalhou dos becos dos bairros pobres do Cairo para centros comerciais localizados em áreas centrais da cidade, casamentos de alta classe e programas de TV. Ao mesmo tempo, jovens homens de classe baixa e seguido- res da música mahragan disseminaram suas ideias (de alguma forma politizadas) através de canais de mídia social. Em contra- partida, os programas culturais liderados pelo Estado - criados, implementados e administrados pelas classes altas urbanas - são fortemente orientados à promoção da ideia de nação egíp- cia através das artes em que o Islã é um aspecto entre muitos outros. Isso ocorre porque o regime egípcio pós-Tahrir continua a ver a “cultura” como um “processo civilizador” (na terminolo- gia de Norbert Elias) para as classes shabi egípcias. Mas, como afirmado anteriormente, esses programas políticos e culturais dirigidos pelo Estado ignoram os múltiplos e muitas vezes con- traditórios registros morais e desejos que moldam a vida coti- diana dos jovens de classe baixa no Egito. Um exemplo seria o número de reivindicações feitas por funcionários e intelectuais seculares que trabalham (ou trabalham para) no Ministério da Cultura, que argumentaram amplamente a urgência de abordar iniciativas de combate à ignorância e ao atraso que o mahragan representa. Para a intelligentsia oficial, uma cultura hegemôni- ca baseada na mistura entre expressões locais e o “melhor” das artes ocidentais deve possibilitar que se construa com sucesso um novo cosmopolitismo egípcio, social, moral e politicamente sanitizada. No caso da música, como uma arte, esta deve pressu- por a criação do gosto público através do ensino das artes para as crianças na escola - desenhando edifícios, realizando filmes, obras de teatro ou canções consideradas como belas desde os cânones da estética oficial.
Esta seção mostrou como o mahragan desafia a sensibilidade de muitas elites religiosas e secularmente orientadas, que defen- dem claramente a liderança do Estado na implantação de ideias e projetos que evitem a vulgaridade na música, civilizando não só a música shabi, mas também os eventos relacionados à sua performance, como os descritos anteriormente (mulid). Um exemplo dessa estratégia de sanitização moral das práticas cul- turais populares dos jovens liderada pelo Estado seria o apoio do governo a alguns DJs pertencentes à cena musical oficial no Egito, como Amr Diab ou Cairokee. O regime de El-Sisi recente- mente facilitou o investimento nacional e transnacional na cons- trução dessa nova cena musical, social, política e moralmente sa- nitizada, promovendo o surgimento de um novo corpo de jovens empreendedores apoiados (e controlados) pelo Estado. Muitos pregadores promovem um imaginário capitalista “pacífico” de cosmopolitismo empresarial e sucesso pessoal. Esse “imagi- nário capitalista pacífico”, juntamente com a cena da música juvenil sanitizada liderada pelo Estado, mencionada anterior- mente, orienta-se a produzir e reproduzir a nova imagem dos “muçulmanos”: bem-sucedidos internacionalmente, cosmopoli- tas, empresários, competitivos, urbanos, educados, civilizados e vestindo o mais atual da moda ocidental.
No entanto, a nova imagem dos “muçulmanos” está longe do mundo semiótico dos músicos, produtores e seguidores do mahragan. Para este último, a capacidade de quebrar a dicotomia secularista/ religiosa significa a capacidade de contestar a ordem neoliberal, repressiva, social e política no Egito pós-Tahrir. É por isso que, ao definir, de igual forma, as gramáticas e práticas que os produto- res, cantores e seguidores mahragan realizam nas noites urbanas informais do Cairo, podemos entender melhor o conjunto muito complexo e caleidoscópico de significados que a música mahra- gan - vista como uma criação cultural de juventude de classe baixa - tem hoje na esfera pública egípcia.
Algumas notas finais
Este artigo mostrou como a música mahragan no Cairo pode ser vista como uma prática inovadora e criativa que os jovens em bairros informais da capital egípcia produziram para escapar da sua marginalização social, cultural, geracional, política e econômica. Nas atividades imediatas do dia a dia, eles lutam compartilhando serviços urbanos, estratégias econômicas al- ternativas, meios de produção alternativos e formas alternati- vas de comunicar seus sentimentos, expectativas e frustrações. Eles estão reivindicando seu “direito ao lazer”, parodiando as palavras bem conhecidas de Lefevbre (1968), e o seu sentido de “direito à cidade”. Os “prosumidores”11 de maharagan no Cairo criaram espaços sociais para estabelecer e auto gerenciar suas composições musicais, que representam uma alternativa à sua marginalização política e cultural. Por sua vez, as novas TICs e as mídias sociais permitem que esses jovens “prosumidores” de maharagan divulguem mais amplamente seus sentimentos contra as classes adultas hegemônicas. Os milhões que acabam por assistir os vídeos com as canções de maharagan no YouTu- be tomam consciência das preocupações, aspirações e discur- sos dos jovens homens de classe baixa, que residem em bairros informais e populares do Cairo. As festas noturnas celebradas no espaço social representado pelo casamento, mulids e outros eventos festivos noturnos especiais, desafiam o mercado domi- nante e a espacialização do consumo de lazer no Cairo.
A economia da música mahragan significou a distribuição de milhões de cópias informais de músicas produzidas pelas prin- cipais figuras do gênero. Essas cópias são vendidas principal- mente nos mercados informais do Cairo, que se tornaram canais econômicos alternativos para aqueles que escapam do controle do Estado e do mercado neoliberal atualmente dominante. Pa- ralelamente, a música maghragan tocada nos bairros populares do Cairo durante horas da noite e ouvida durante o dia pode ser vista como uma expressão da capacidade desses jovens produ- tores de romper com a hegemônica dicotomia secularista / religiosa, não só no consumo de lazer, mas na sociedade Egípcia como um todo. A soberania coletiva e popular que representa a produção e o consumo de música mahragan contrasta com a soberania do Estado repressivo ou a “soberania nua”, na termi- nologia de Agrama (2012). Portanto, não seria arriscado sugerir que vejamos a música mahragan como uma contrapartida cul- tural para os recentes processos de neoliberalização econômica realizados no Egito antes e depois da Revolução Tahrir de 2011, colonização cultural ocidental e dicotomias da modernidade, como a formada pelo “secular” e “religioso”. Nesse sentido, sob os tempos atualmente repressivos, a música mahragan tornou-se o principal meio cultural para que os jovens de classe baixa nos bairros informais do Cairo possam recuperar a plenitude de suas expectativas e experiências de vida e protestar contra a re- pressão “adulta”.
A música mahragan significa muito mais do que simplesmente fazer de seus seguidores e artistas assuntos políticos. Permite a criação de espaços novos, informais e não reprimidos de (auto) identificação, tanto quanto novas oportunidades de (auto)em- poderamento, a fim de que eles possam encontrar caminhos fora de sua classe social e de sua subsequente marginalização impos- tas pela ordem social no Egito. As classes dominantes veem a música mahragan como um conhecimento “subjugado” sem o nível de erudição exigido para se tornar parte do atual proje- to nacional-cultural moral e politicamente sanitizado do Egito. Além disso, e simultaneamente como resultado desse “proces- so civilizador” no Egito, a marginalização resultante ocorrida em bairros informais no Cairo tem consequências inegáveis na subjetivação e estilos de vida juvenis. Em particular, os jovens egípcios de classe baixa parecem ter internalizado as representações negativas sobre seus estilos de vida, ideologias e gostos transmitidos pela mídia convencional, mas isto não os impede de estar conectados a redes sociais virtuais e que as uti- lizem para os seus próprios propósitos. A marginalização pare- ce também favorecer os sentimentos de desconfiança que eles sentem em relação a instituições específicas, o que é expresso pelo distanciamento da juventude no que diz respeito às inicia- tivas culturais do governo. Deve-se notar que, no caso da música mahragan, não se questiona os pilares dominantes da sociedade egípcia. Enquanto o trabalho, a escola e a família continuam a ser espaços privilegiados em que os jovens ancoram sua (auto) identidade e seu (auto)reconhecimento, mahragan e mulids re- presentam um desafio ao mainstream do Cairo, comercializado, das noites das classes altas. Se por um lado o mahragan desafia os canais oficiais do consumo de lazer e os discursos políticos hegemônicos, por outro lado não rejeita as regras sociais domi- nantes das classes Shabi.
Referências
AGRAMA, Hussein Ali. Reflections on Secularism, Democracy, and Politics in Egypt. American Ethnologist, v. 39, n. 1, pp. 26–31, 2012.
Notas