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Maquiavéis Brasileiros: Notas sobre Leituras de Maquiavel no Brasil

Josnei Di Carlo
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) , Brasil

Revista TOMO

Universidade Federal de Sergipe, Brasil

ISSN-e: 1517-4549

Periodicidade: Semestral

núm. 33, 2018

revistatomo@gmail.com

Recepção: 19 Junho 2001

Aprovação: 24 Julho 2018



DOI: https://doi.org/10.21669/tomo.v0i33.9392

Resumo: Em 2010, a Penguin-Companhia lançou uma nova tradução de “O Príncipe”, de Nicolau Maquiavel. Entre os paratextos, um prefácio de Fernando Henrique Cardoso. Justamente no contexto da Revolução de 1930, Octávio de Faria publicou “Maquiavel e o Brasil” e as primeiras traduções de “O Príncipe” foram lançadas no país. Assim, direita e es- querda recepcionaram Maquiavel como teórico político da autoridade. Somente a partir dos anos 1980, no campo acadêmico, que seu repu- blicanismo passou a ser enfatizado. Porém, Cardoso, ao escrever seu prefácio para “O Príncipe”, fez a viagem redonda e leu Maquiavel para pensar a liderança política. O objetivo deste artigo, portanto, é fazer uma análise das leituras de Maquiavel no Brasil, a partir de prefácios e comentadores, para entender sua atratividade como manual para go- vernar no campo político.

Palavras-chave: Maquiavel, O Príncipe, autoridade, circulação de ideias, Fernando Henrique Cardoso.

Abstract: In 2010, Penguin-Compania launched a new translation of “The Prin- ce”, by Nicolau Machiavelli. Among the paratexts, a preface by Fernan- do Henrique Cardoso. Precisely in the context of the Revolution of 1930, Octavio de Faria published “Maquiavel e o Brasil” and the first translations of “The Prince” were released in the country. Thus, right and left received Machiavelli as political theorist of authority. Only from the 1980s, in the academic field, that his republicanism came to be emphasized. However, Cardoso, in writing his preface to The Prince, read Machiavelli to think political leadership. The purpose of this arti- cle, therefore, is to make an analysis of Machiavelli’s readings in Brazil, from prefaces and commentators, to understand its attractiveness as a manual to govern in the political field.

Keywords: Machiavelli, The Prince, authority, circulation of ideas, Fernando Henrique Cardoso.

Resumen: En 2010, Penguin-Compania lanzó una nueva traducción de “El Prín- cipe”, de Nicolás Maquiavelo. Entre los textos introductorios, un pre- facio de Fernando Henrique Cardoso. En el contexto de la Revolución de 1930, Octávio de Faria publicó “Maquiavel e o Brasil” y las primeras traducciones de “El Príncipe” fueron lanzadas en el país. Así, derecha e izquierda recibieron a Maquiavelo como teórico político de la autori- dad. Sólo a partir de los años 1980, en el campo académico, que su re- publicanismo pasó a ser enfatizado. Sin embargo, Cardoso, al escribir su prefacio para “El Príncipe”, hizo el viaje redonda y leyó Maquiavelo para pensar el liderazgo político. El objetivo de este artículo, por lo tanto, es hacer un análisis de las lecturas de Maquiavelo en Brasil, a partir de prefacios y comentadores, para entender su atractivo como manual para gobernar en el campo político.

Palabras clave: Maquiavelo, El Príncipe, autoridad, circulación de ideas, Fernando Henrique Cardoso.

Introdução

A obra de Nicolau Maquiavel perpassa a teoria política e a ação política há séculos. Intelectuais, instigados a pensar o poder, re- correm a ela. Políticos e militantes, preocupados em conseguir ou manter o poder, justificam suas ações nela. A influência que ela exerce, destacadamente “O Príncipe”, produz uma miríade de lei- turas do pensamento político maquiaveliano. Além das recepções, com maior ou menor embasamento, ocorreu uma vulgarização de Maquiavel, contaminando os termos derivados de seu nome. O principal deles, maquiavélico, tem na remissão lexicográfica de Bagno (2008) uma riqueza de informações para entendermos sua acepção negativa deslocada da obra maquiaveliana.

Apoiando-nos teoricamente em Bourdieu (2002) sobre a circu- lação de ideias, a investigação proposta neste artigo encontra-se em uma zona cinzenta por partir da recepção de Maquiavel no Brasil, realizada por intelectuais, políticos e militantes. Nossa preocupação, destarte, não é saber se as leituras, embasadas ou não, são fiéis ao pensador florentino. A recepção de uma obra, para nós, não é neutra: se analisada considerando o contexto e o campo em que se deu revela mais o pensamento de seu leitor do que de seu autor. Dada a ambivalência da obra maquiaveliana, ela é exemplar para entendermos seus comentadores e prefacia- dores e não propriamente Maquiavel.

Em 1931, pouco antes de sair, por editoras ligadas à esquerda, as primeiras traduções de “O Príncipe” no Brasil, o conservador Octávio de Faria apoiou-se no pensador florentino para escrever sobre a necessidade de uma autoridade para conduzir os rumos do país; dois anos depois, o trotskista Lívio Xavier tradu- ziu “O Príncipe” para denunciar o autoritarismo e o comunista Maurício de Medeiros prefaciou a tradução de Elias Davidovich enfatizando que a obra ilustrava os perigos do autoritarismo; o liberal Lauro Escorel, ao escrever uma importante introdução ao pensamento político maquiaveliano em 1956, também conclui que a teoria política do pensador florentino tinha de ser supera- da por ter sustentado as experiências autoritárias e totalitárias recentes; o udenista Affonso Henriques, sem o embasamento dos livros anteriores, calcando-se apenas na acepção negativa de maquiavélico, escreveu um panfleto em 1961 apontando as ações maquiavélicas de Getúlio Vargas; por fim, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu prefácio para a nova tra- dução de “O Príncipe” de 2010, da Penguin-Companhia, centrou sua preocupação em falar da necessidade de um homem supe- rior e excepcional em tempos de transição para não levar um país ao caos.

A recepção de Maquiavel no Brasil, portanto, não é dada por seus intérpretes stricto sensu – leitores preocupados apenas em fazer uma exegese de sua obra. Os citados acima, traindo-a ou não, usam-na para interpretar sua realidade contemporânea. A leitura revela sobre o leitor e seu contexto. O pensador florentino, ao ser lido de várias formas, pelos diversos espectros políticos, é rico para entender como um autor clássico é instrumentalizado por leitores preocupados em intervir politicamente na sociedade, revelando, assim, a ação política subjacente à leitura. A filosofia política, como nota Wolin (2013), é pautada pela prática. Maquia- vel esteve pautado, seus leitores discutidos aqui também. Em re- sumo, a recepção de Maquiavel tem um sentido específico para nós: a instrumentalização da obra maquiaveliana.

O problema deste artigo, portanto, é entender por que intelec- tuais, políticos e militantes brasileiros instrumentalizam a obra maquiaveliana. A hipótese é que a leitura instrumental os ajuda a pensar a cena política, dando suporte à ação política deles, di- reta ou indiretamente.

Maquiavel de Octávio de Faria

Antes mesmo de “O Príncipe” ser traduzido para o português no Brasil, Faria (1931) publica um estudo monográfico sobre Nico- lau Maquiavel em 1931 na Schmidt Editor. Pelo levantamento de Salatini (2011), é o primeiro livro brasileiro dedicado ao pensa- dor florentino.

Ao publicar “Maquiavel e o Brasil”, Octávio de Faria era um ensa- ísta político. Conforme periodização de Mokrejs (1980), o pensa- mento octaviano está marcado pela política entre 1930 e 1934, pela religião nos três anos seguintes e pela literatura após 1937. De 1930 é a tese de ingresso ao Centro de Estudos Jurídicos e So- ciais “Desordem no mundo moderno”, em que o autor expõe sua interpretação acerca da Revolução Francesa; de 1933 é o libelo an- tissocialista “Destino do socialismo”. Inferimos com Sadek (1978) que se em ambas as obras Faria critica as massas para refutar a democracia e o socialismo, é em “Maquiavel e o Brasil” que ele se apropria do pensador florentino para sustentar a necessidade de um homem superior e excepcional para conduzir o país. Com o livro de 1931, suas proposições fascistas sustentam-se em Ma- quiavel – “cientista político capaz de justificar o Estado Forte e a presença do homem de exceção”, nos termos de Mokrejs (1980, p. 16). Assim como seu combate ao liberalismo, em razão de “a fonte de todos os males do mundo moderno reside no uso irrestrito da liberdade, já que”, conclui Mokrejs (1980, p. 17) sobre a visão de mundo octaviana, “a verdadeira liberdade é apanágio dos que es- tão investidos de autoridade política e religiosa”.

Apesar de considerá-lo datado e de forte viés fascista, Salatini (2011) não nega as qualidades de “Maquiavel e o Brasil”. Para o autor, o livro é uma interpretação original no Brasil do pensa- mento político do pensador florentino. A pesquisa bibliográfica e histórica de Faria (1931) é rica, em função de estar apoiada em intérpretes como Burckhardt, Franzoni, Gautier-Vignal, Ger- vinus, Prezzolini, Ranke, Villari, entre outros. Dos citados, Mon- teiro (2015) destaca o primeiro por causa de Octávio de Faria inspirar-se em sua acepção de indivíduo. As ideias políticas octavianas se apoiam nos principais pensadores referenciados pelos conservadores no período – Bergson, Carlyle, Gobineau, Maritain e Nietzsche – e nas duas grandes referências conserva- doras brasileiras – Plínio Salgado e Oliveira Vianna.

“Maquiavel e o Brasil” está dividido em duas partes. Conforme Monteiro (2015), Octávio de Faria antecipa seu talento de ro- mancista na primeira ao narrar a história do Renascimento e ao traçar um perfil biográfico de Maquiavel. Entre elas, tem um “Intermezzo mussoliniano”, em que Mussolini é considerado o homem certo surgido na Itália. Depois de apresentar o pensador florentino e ler sua obra para apontar as qualidades de Il Duce enquanto um novo príncipe, Faria (1931) realiza uma in- terpretação da história brasileira na segunda parte. Para ele, a monarquia imperial é um passado a ser apreciado, enquanto a república é marcada por desatinos, depositando sua esperança na Revolução de 1930 para mudar o quadro. Como enfatiza Monteiro (2015, p. 36), “referenciando nomes como Oliveira Vianna e Plínio Salgado e com muitos elogios ao fascismo, o autor clama pelo surgimento de um homem superior e excepcional, o novo herói capaz de sanar os males do país”. A esperança de Faria (1931), portanto, está depositada em Getúlio Vargas, em uma perspectiva fascista de autoridade, como atesta Salatini (2011, pp. 333-334, grifos no original) em sua síntese da obra:

Como resumo geral da obra, o interesse octaviano era o se- guinte: 1) na primeira parte, demonstrar que o núcleo cen- tral do pensamento político de Maquiavel seria a ideia de um indivíduo excepcional (presente no conceito de “príncipe de virtù”); 2) no intermezzo, demonstrar que O Príncipe perfeito pela descrição maquiaveliana seria, ao menos àquela época, ninguém menos que o dulce Mussolini; e, por fim, 3) na se- gunda parte, argumentar que as condições italianas que le- varam Maquiavel a tais reflexões não eram, mutatis mutandis, diferentes daquelas em que vivia o Brasil nos anos 1930. Somando as três ideias, tinha-se clara noção tanto do problema (uma crise política) quanto da solução (a concessão do gover- no central a um indivíduo excepcional). A despeito dos erros de exegese textual e histórica, compreende-se facilmente a ideia: Maquiavel ofereceria a “teoria”; Mussolini, o “exemplo”; e o Brasil, o caso concreto para sua aplicação. [...]

Ao observar a coerência interna do livro e sua originalidade no trato de Maquiavel, Salatini (2011) considera que ele foi supera- do por poucos estudos no Brasil. Qualidades sustentadas por uma pesquisa bibliográfica séria, demonstrando a preocupação didá- tica de Octávio de Faria, e “o empenho em interpretar Maquiavel à luz dos problemas de sua época, aspecto que demostra a viva- cidade de suas ideias”, nos termos de Salatini (2011, p. 33). Mas seu maior defeito é o forte comprometimento ideológico com o fascismo, enfatizado tanto por Sadek (1978) quanto por Salatini (2011). A apropriação de Maquiavel por Faria (1931) é instru- mental, demostra seu posicionamento político na sociedade, enquanto um conservador com proximidades de Oliveira Vianna e Plínio Salgado, mas com suas especificidades, acabando por jogar luz sobre o contexto político marcado pela Revolução de 1930.

As primeiras traduções de “O Príncipe”

Em 1933, “Maquiavel e o Brasil” é reeditado pela editora Civi- lização Brasileira e “O Príncipe” é traduzido para o português no Brasil pela primeira vez. Bagno (2014) noticia apenas a tra- dução de Elias Davidovich1. Ao fazer um levantamento das edi- ções brasileiras do livro no século XXI, Guerini (2015) nota que a primeira publicação da tradução de Lívio Xavier2 é de 1940. Contudo, Bottman (2013a, grifos no original) aponta que se tra- ta de uma reedição: “quanto a’O Príncipe em tradução de Lívio Xavier pela Unitas, no dlit com atribuição ao ano de 1923, talvez caiba uma correção, visto que a efêmera editora Unitas foi fun- dada em 1931. Segundo o historiador Dainis Karepovs”, conclui, “O Príncipe da Unitas teria saído em 1932 ou 1933”. Apesar de o erro tipográfico indicar que a edição é de 1932, em razão de 1923 ser uma inversão dos números, consideraremos que em 1933 vieram a público duas edições de “O Príncipe” no país: uma traduzida por Lívio Xavier para a editora Unitas e outra por Elias Davidovich para a editora Calvino Filho, com prefácio de Maurí- cio de Medeiros3.

A Unitas era ligada à Oposição de Esquerda no Brasil e a Calvino Filho ao Partido Comunista do Brasil (PCB). Pequenas, tiveram um papel importante ao pôr em circulação traduções de obras do pensamento político internacional no Brasil. Em seu levan- tamento sobre as edições de “O Príncipe”, Bottman (2009) afir- ma que a tradução de Lívio Xavier é a mais difundida, servindo de base para outras traduções e ainda circulando em sucessivas edições. Konder (1988) é categórico ao apontar a importância do tradutor, ao afirmar que ele “parece ter chegado a perceber que era necessária uma recuperação da dialética, até mesmo em suas raízes hegelianas”, continua, “tanto assim que ele chegou a fazer uma tradução da Enciclopédia das Ciências Filosóficas, de Hegel, que saiu em três volumes, lançados em 1936 pela edito- ra Athena”. Esta, conforme Bottman (2013b), foi quem passou a relançar “O Príncipe” na tradução de Lívio Xavier em várias reedições a partir de 1938, demonstrando o equívoco tanto ao desconsiderá-la como pioneira quanto afirmar que sua pri- meira edição ocorreu em 1940, como dito por Guerini (2015).

Deslocamos o argumento da Unitas para Lívio Xavier porque o caudaloso estudo de Hallewell (1985) ignorou a existência da pequena editora de propriedade de Salvador Pintaúde e ligada aos trotskistas nos anos 1930, embora ela tenha desempenhado um papel importante na difusão de obras internacionais no país, como atestam as contribuições do crítico de arte Mário Pedrosa e do jornalista Aristides Lobo entre seus tradutores4. Contudo, Hallewell (1985, p. 420, grifos no original), nos apresenta o perfil da Calvino Filho:

[...] A Editora Calvino já existia antes, como Calvino Filho, pelo menos desde 1932. Em 1943, publicava algumas séries, como a “Coleção de Estudos Sociais” (p. ex., Lenine, de D. S. Mirski), “A Verdade Sobre a Rússia” (p. ex., O cristianismo e a nova ordem social, de Hewlett Johnson, o Deão “vermelho” de Canterbury, Missão em Moscou, do antigo embaixador norte-americano Jospeh Davies, Stalin, de Emil Ludwig, Dez dias que abalaram o mundo, de John Reed) e “Luta pela Li- berdade” (p. ex., A China luta pela liberdade, de Ana Louise Strong). Em 1944, a Calvino acrescentou o Anti-Dühring, de Engels e, em 1945, URSS: uma nova civilização, de Sidney e Beatrice Webb, época em que se revelou ser ela o órgão da seção do Partido Comunista. [...]

Sem desconsiderar a remissão lexicográfica de Bagno (2008) acerca das acepções pejorativas de maquiavélico e até mesmo de maquiaveliano, as duas traduções de 1933 tinham como pre- ocupação difundir as ideias originais de Maquiavel no Brasil5.

Entretanto, no contexto da Revolução de 1930, elas tinham sido apropriadas por Octávio de Faria em “Maquiavel e o Brasil” para defender a importância da autoridade frente à degeneração da república. Apoiando-se no pensador florentino, Faria (1931) de- fendia que a autoridade deveria ser exercida por um homem su- perior e excepcional, necessária frente à modernidade, constan- temente degrada desde a Revolução Francesa. Nisto, ignorando o republicanismo maquiaveliano, acentuado somente em um contexto posterior6. Portanto, a difusão das ideias originais con- tidas em “O Príncipe” através de sua tradução era uma denúncia das arbitrariedades do autoritarismo. A violência de César Bór- gia encarnava-se em Vargas, no contexto nacional, e Mussolini e Hitler, no contexto internacional – todos admirados por Faria.

Em relação à edição da Calvino Filho, Monteiro (2014, p. 3) afir- ma que “o livro foi publicado por uma editora carioca de perfil socialista para denegrir a escalada ascensional e estrategista de um Getúlio Vargas ‘maquiavélico’, conforme seu prefácio”. A afir- mação do autor pode ser estendida para a edição da Unitas en- quanto ato político por ela não conter um prefácio, apresentação e/ou introdução. Na ausência deles na tradução de Lívio Xavier, temos o prefácio de Medeiros (1933) para a de Elias Davidovich. Em suas notas sobre a edição da Calvino Filho, Bagno (2014, p. 8) lembra que o prefaciador havia publicado o “ensaio paradig- mático dos conflitos político próprios ao Brasil no começo da década de 1930”, “Outras revoluções virão” pela mesma editora em 1932. Os comentários de Bagno (2014) evidenciam a posição crítica de Maurício de Medeiros com os desdobramentos da Revolução de 1930, chegando a denunciar o fechamento do Parlamento. Oposição também expressa no prefácio de “O Prín- cipe”, cuja tradução se “faz num momento admirável da política brasileira, onde abundam os machiáveis empíricos que lançam a perturbação no meio do povo, cuja escolha”, continua Medeiros (1933, p. V), “tem de se fazer entre os dois princípios eternos que polarizam as formas de governo dos povos: a Autoridade e a Liberdade”. Naquele contexto histórico, os leitores das edições de “O Príncipe” reconheceriam em Vargas os “métodos de gover- no no culto da autoridade”, para usar a expressão de Medeiros (1933, p. V) ao definir o livro como um tratado. Se Maquiavel era lido como teórico político do autoritarismo, como atesta a leitura pioneira octaviana, as edições de sua obra tinham impor- tância enquanto ato político de denúncia dos ataques sofridos pela democracia no Brasil e, também, na Europa.

Maquiavel pós-Estado Novo

Ao ser introduzido no Brasil na década de 1930, Maquiavel foi apropriado pelas diversas tendências políticas em disputa no período. Através da recepção de Octávio de Faria em “Maquiavel e o Brasil” de 1931, a extrema-direita tinha no pensador floren- tino o teórico político da autoridade, a fornecer subsídios para criticar a democracia e o liberalismo. Com as duas primeiras edi- ções de “O Príncipe” em 1933 no país por uma editora ligada ao trotskismo e por outra ligada ao PCB, a extrema-esquerda e a esquerda divulgavam as ideias políticas maquiavelianas no ori- ginal com suas traduções para denunciar o autoritarismo. Tanto ao serem lidas positiva quanto negativamente, uma leitura da autoridade em Maquiavel determinou sua recepção pela intelec- tualidade brasileira. Se o nazismo e o fascismo eram os exemplos empíricos do totalitarismo, o Estado Novo e o getulismo eram do autoritarismo. A recepção da obra maquiaveliana estava con- dicionada não só à acepção pejorativa dos termos derivados de Maquiavel ao longo da história, como demonstra Bagno (2008), mas também à forma como ela foi lida a partir dos anos 1930. Com equívocos, certamente, embora eles tenham ocorrido com embasamento por Faria – dado a riqueza de sua pesquisa biblio- gráfica e histórica – e com a circulação do pensamento político maquiaveliano o mais próximo do original com as traduções de “O Príncipe” para o português – apesar de elas serem um ato político de denúncia do autoritarismo.

Mesmo com o acesso a Maquiavel em âmbito nacional e às teses croceanas7 sobre ele, um contexto marcado pelas experiências antidemocráticas era muito forte para levar a uma recepção de seu republicanismo. Lauro Escorel8, com “Introdução ao pensa- mento político de Maquiavel” de 1956, apresenta o pensamento político maquiaveliano com nuances em relação às obras ante- riores, preservando a leitura de fundo delas. Após observar que o trabalho monográfico anterior publicado sobre o pensador florentino trata-se de “Maquiavel e o Brasil”, editado em 1931 e reeditado em 1933, Salatini (2011, p. 336) considera que o de Escorel é “de longe o mais completo e bem informado estudo sobre Maquiavel escrito no país até a década de 1990, sua influ- ência para a divulgação e o estudo do pensamento político ma- quiaveliano no Brasil foi praticamente monopolística até essa data”, em razão da Editora da Universidade de Brasília (UnB) tê- lo reeditado em 1979 “na forma de um Curso de Introdução à Ciência Política, organizado pelo Centro de Documentação e Re- lações Internacionais da Universidade de Brasília, servindo de material didático para os cursos de ciência política daquela uni- versidade”. A permanência dele não se deve apenas ao mercado editorial, nele também se encontra um esforço de introdução à vida e ao pensamento político de Maquiavel sem similar até hoje no Brasil, conclui Salatini (2011).

O caráter didático do livro expressa-se em sua estrutura: duas partes, com cada uma contendo oito capítulos. Na primeira, Es- corel (1956) sintetiza a vida e o tempo de Maquiavel, com infor- mações retiradas de seus principais biógrafos – a saber, Villari, com a biografia de 1877 Niccolò Machiavelli e suoi tempi, Tom- masini, com a de 1883 La vita e gli scritti di Niccolò Machiavelli nella loro relazione col machiavellismo, e Ridolgi, com a mais in- fluente de todas Biografia di Niccolò Machiavelli, de 1954. Na se- gunda, o autor apresenta o pensamento político maquiaveliano, em que os temas tratados do capítulo 9 ao 16 “vão paulatina- mente desenhando uma interpretação do pensamento político maquiaveliano (de inspiração croceana) já presente por comple- to no prefácio de 1956, e que culminará numa interpretação não muito longe daquela octaviana, embora com sinal trocado”, na observação de Salatini (2011, p. 337).

O didatismo de Escorel não escamoteia a inserção de sua lei- tura de Maquiavel enquanto teórico político da razão de Esta- do que marcou sua recepção inicial no Brasil. “Introdução ao pensamento político de Maquiavel”, portanto, aproxima-se das traduções pioneiras de “O Príncipe”, ao enfatizar as arbitrarie- dades de uma autoridade exercida sem os freios e contrafreios republicanos, que conduziram ao autoritarismo no Brasil e ao totalitarismo na Europa. A ambivalência de Maquiavel era deixa- da de lado para encará-lo exclusivamente como conselheiro de “O Príncipe”. Baldini (2015, p. 14) pergunta se “O Príncipe é um manual para governar ou para se defender dos governantes?” e responde: “Ambas as coisas, ao menos pelos modos como foi interpretado e usado em cada circunstância”. A síntese de Sala- tini (2011, p. 338, grifos do original) acerca das conclusões do livro não deixa dúvida como elas estão marcadas pela recepção de Maquiavel a partir dos anos 1930:

A interpretação escoreliana não poderia ser mais clara e objetiva ao afirmar categoricamente que “o cerne do pen- samento de Nicolau Maquiavel” consiste no “problema cru- ciante das relações da política com a moral”. Presente já em Faria, o tema da relação entre política e moral se tornou comum entre os intérpretes do pensamento político ma- quiaveliano, sobretudo a partir da publicação de Elementi di politica (1925) de B. Croce, obra que inaugura a ideia de que para Maquiavel política é política e moral é moral. Segundo essa interpretação, Maquiavel seria um pensador da política amoral, isto é, da política destituída de qualquer reflexão sobre o bem e o mal, ou simplesmente [...] da política pura, não havendo espaço em suas ideias para o benfazejo tema da moral (que despontam apenas negativamente na obra maquiaveliana, em sua crítica às virtudes cristãs da bonda- de, liberalidade, piedade, etc.). Baseado nessa interpretação, embora confira-lhe uma valoração negativa, Escorel conclui- ria que “o maquiavelismo”, para além de sua importância na história das ideias políticas, deveria “ser ultrapassado” se quisermos que “a vida histórica da humanidade não se re- duza apenas a uma brutal competição pelo poder”. [...]

Após o Estado Novo, o pensador florentino é retomado no pe- ríodo democrático sem abandonar sua recepção precedente no país. Se antes ele foi instrumentalizado no pensamento político octaviano para tecer elogios ao autoritarismo e críticas ao libe- ralismo e seu “O Príncipe” traduzido como peça de denúncia do autoritarismo por duas editoras que divulgavam o pensamento de esquerda, na segunda metade da década de 1950 Escorel jul- gava que o modelo político encarnado por ele tinha de ser supe- rado. “O corolário da interpretação escoreliana de Maquiavel”, destaca Salatini (2011, p. 341), “oferece [...] a mesma conclusão de Faria [...], culpando Maquiavel pelos excessos do totalitaris- mo”. Ao contrário de Faria, porém, a chave de leitura de Escorel é negativa, como as edições de “O Príncipe” da Unitas e da Cal- vino Filho. Mesmo sendo um liberal-democrata, ele traduz com refinamento o ato político contido nelas, de denúncia do autori- tarismo. Conforme Salatini (2011, pp. 341-342), enquanto Faria julgava que Mussolini exemplificava o moderno príncipe, com as mesmas qualidades defendidas por Maquiavel em César Bórgia, “Escorel afirma que ‘Maquiavel errou ao hipertrofiar o valor da política e o alcance da autoridade do Estado’ e que ‘suas pre- missas políticas’ – embora não somente as suas – ‘trouxeram o mundo até o paroxismo totalitário’”. Não é à toa que “Introdução ao pensamento político de Maquiavel” é reeditado em 1979 sem sofrer alterações, demostrando que a experiência autoritária passada do Estado Novo e a presente da Ditadura Militar cria- vam entraves para uma leitura da obra maquiaveliana destituí- da da razão instrumental de fundo de sua recepção no início do século XX.

Maquiavélico enquanto senso comum

Nos anos 1950 e 1960, Vargas era um espectro a rondar o pen- samento liberal brasileiro através de seus herdeiros políticos Juscelino Kubitschek e João Goulart, presidente e vice-presidente entre 1956 e 1961. Sem as qualidades do estudo de Octávio de Faria apontadas, sem ancorar-se em uma tradução como o prefácio de Maurício de Medeiros e sem o rigor da pesquisa de Lauro Escorel, o udenista Affonso Henriques9 apenas apresen- tou uma caricatura de Maquiavel em “Vargas, o maquiavélico” em 1961. O livro ilustra exemplarmente a remissão lexicográfica de Bagno (2008) acerca das acepções pejorativas de maquiavé- lico. Ferreira (2015) lembra que as ideias mais banalizadas das leituras vulgares de “O Príncipe” são a de duplicidade, falsidade e de má-índole de caráter, enquanto as habilidades identifica- das no personagem são a de ardiloso, desleal, malicioso, pérfido, traiçoeiro e velhaco. O objetivo de Henriques (1961) era apenas traçar um perfil biográfico de Vargas. O ato político, portanto, era qualificar a herança varguista como nefasta para o Brasil: “o Brasil até hoje, embora os rótulos tenham mudado, continua sob a ditadura de Vargas, através de uma oligarquia voraz e irres- ponsável”, diz Henriques (1961, p. XXVII) mirando Kubitschek e Goulart.

Após o fim do Estado Novo em 1945, as diversas correntes ideoló- gicas se posicionavam no debate político tendo o getulismo como norte. Em oposição a ele, formou-se o udenismo, uma cultura polí- tica não restrita aos círculos da União Democrática Nacional (UDN) marcada pelo elitismo e antigetulismo, segundo Benevides (1981). “Vargas, o maquiavélico” está marcado pelo udenismo. A novida- de, aponta Ferreira (2015, p. 261, grifos do original),

[...] é inserir a imagem vulgarizada de Maquiavel no debate, caracterizando Vargas como maquiavélico, ou seja, alguém imbuído de uma série de deformações políticas e morais. O termo maquiavélico é definido como um antimodelo de con- duta para a convivência em sociedade. Vargas, no livro, usa diversos meios – como a dissimulação, a duplicidade de ca- ráter, a perversidade, a deslealdade, a traição, entre outros artifícios – para justificar os fins a serem alcançados.

A inserção da vulgata maquiavélica no debate, ao contrário do que diz o autor, não era uma novidade. Conforme Morais (2011), em novembro de 1930, o jornalista Assis Chateaubriand, ao escrever o artigo “Um monstro”, destacava a seus leitores de que Vargas era uma encarnação de Maquiavel no cenário político. Para Chateau- briand, Vargas era mais astuto que Floriano e fazia uso da violência com mais habilidade do que Bismarck. Tendo apoiado a Revolução de 1930, o jornalista escancarou que o líder revolucionário admi- nistrava uma ditadura com a docilidade de seu sorriso, concluindo que sua habilidade política era maior do que a de Maquiavel10.

Se nas referências anteriores ao pensador florentino têm equí- vocos, elas não o reduziram a uma caricatura. Henriques refe- renciou-se não na obra maquiaveliana, mas no grave equívoco histórico em torno do axioma apócrifo apontado por Bagno (2008) de “os fins justificam os meios” em “O Príncipe”. “Var- gas, o maquiavélico” fundamenta-se apenas na acepção pejora- tiva de maquiavélico, como pode ser visto ao acompanharmos passagens do texto de Henriques (1961, pp. 103-104): nem bem completara um ano de governo “entra em ação o maquiavelismo de Vargas”, de “manter-se no poder a qualquer custo”; “graças à ação maquiavélica de Vargas, as forças armadas ficaram assim divididas: os oficiais subalternos (em sua maioria tenentes), de um lado, e do outro, os oficiais superiores e generais”. O livro, conforme Ferreira (2015, p. 270), não passa de “um libelo con- tra Getúlio Vargas sob o ponto de vista dos liberais identificados com o udenismo, recorrendo, para isso, a versões vulgarizadas ao adjetivo conhecido com maquiavélico”.

Assim como Octavio de Faria, Affonso Henriques está no cam- po conservador. Este, porém, ao contrário daquele, tem uma chave de leitura negativa de Maquiavel. Para ambos, Vargas é um novo príncipe: no pensamento octaviano através da discus- são de autoridade na obra maquiaveliana, no pensamento ude- nista através do uso vulgar de maquiavélico. Apesar da carica- tura, “Vargas, o maquiavélico” está inserido na constelação de ideias que regeram as conclusões de Lauro Escorel em “Intro- dução ao pensamento político de Maquiavel” de 1956, crítica ao autoritarismo. Só que em Affonso Henriques autoritarismo se confundia com o getulismo, como os desdobramentos polí- ticos deixaram claro, em razão da UDN ter dado sustentação ao Golpe de 1964.

Fernando Henrique Cardoso, leitor de Maquiavel

Após o livro panfletário de Affonso Henriques, Salatini (2011) e Monteiro (2015) noticiam a publicação de “Idealismo e realismo na obra de Maquiavel”, de Joacil de Brito Pereira, de 1970. Ensaio vencedor do prêmio “Maquiavel e a Renascença”, concedido pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), no ano anterior, durante o V centenário de nascimento do pensador florentino.

De caráter mais acadêmico, investiga o idealismo de “Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio (1513-1517)” e o realismo de “O Príncipe”, seguindo as ideias de Giovanni Sartori, apontam Salatini (2011) e Monteiro (2015). Mesmo ausente uma leitura de fundo instrumental, em razão de sua agenda ter sido dada pela academia e não com o intuito de intervir politicamente sobre a intelectualidade, Salatini (2011) o qualifica como uma monografia ensaística e não como uma acadêmica, em sua cro- nologia da maquiavelística brasileira dividida em duas grandes fases: de monografias ensaísticas e de monográficas acadêmi- cas. Para Salatini (2011), é o trabalho de Joacil de Brito Perei- ra que marca o fim da primeira fase. Da década de oitenta em diante, as monografias sobre o pensador florentino são frutos da pesquisa acadêmica especializada. Salatini (2011) destaca, em ordem cronológica, “A guerra de Maquiavel” (1988), de Luiz A. Hebeche, “Maquiavel republicano” (1991), de Newton Bignotto, “Maquiavel – concepção antropológica e ética” (1996), de José Nedel, “O eterno fascínio do florentino – para uma leitura de Ma- quiavel” (1999), de Edmundo F. Dias, “O Príncipe de Maquiavel e seus leitores – uma investigação sobre o processo de leitura” (2000), de Arnaldo Cortina, “Maquiavel – educação e cidadania” (2002), de Maria L. Rodrigo, “Maquiavel – a lógica da ação polí- tica” (2002), de José L. Ames e “Introdução a Maquiavel” (2004), de Vinícius S. B. Campos. Destas, a mais influente é a de Bignot- to, por tornar-se “referência na atual discussão acadêmica sobre Maquiavel no Brasil, de matriz fortemente republicana”, observa Salatini (2011, p. 351). Mas, mesmo após o pensador florentino ter passado a ser debatido por especialistas, dando um giro em sua leitura, passando a ser investigado seu conceito de liberda- de11, Fernando Henrique Cardoso, em 2010, escreve um prefácio para a nova tradução de “O Príncipe”, publicada pela Penguin-Companhia, a demonstrar a força da leitura de fundo instru- mental do pensamento maquiaveliano.

Cardoso (2010) inicia seu texto com afirmações genéricas de que “O Príncipe” é um clássico e, passados séculos de sua publi- cação, mantém sua atualidade. Afirma que em vez de Maquiavel escrever como filósofo, a buscar leis universais e a verdade, es- creveu como alguém de seu tempo, imerso em uma cultura polí- tica específica e nas lutas contemporâneas. Ao comentar a intro- dução do livro, enfatiza a destreza de Anthony Grafton em iniciar sua narrativa apresentando Savanarola e, conforme a atuação política deste é dada ao leitor, percebemos o poder de síntese do pensador florentino em traduzir as ideias políticas de sua época. Como observador privilegiado, Maquiavel acompanhou a ascen- são e a queda de Savanarola, servindo ao governo sucessor, de Soderini. Supera o mero testemunho de época ao fornecer ar- gumentos consistentes ao longo de seu livro. Apesar de se re- ferenciar em episódios históricos específicos, não é um livro de circunstância. A razão que levou “O Príncipe” a manter sua atua- lidade mesmo sendo produto de um intelectual voltado para seu tempo deve-se “a capacidade demonstrada por Maquiavel para interpretar uma experiência pessoal, datada”, observa Cardoso (2010, p. 12), “sem descuidar do olhar reflexivo, ampliado pela cultura histórica, para tirar de sua vivência ensinamentos que vão além do tempo e do espaço”.

Através de argumentos a afirmação genérica do autor torna-se consistente e entendemos a razão de ele considerar o li- vro um clássico. E, assim, demostra a influência exercida pelo pensador florentino sobre a contemporaneidade, por muitos de seus temas e análises continuarem candentes. Lembra que a questão da diferença entre a moral comum e a do homem político foi recolocada por Weber no início do século XX. O príncipe, para usar o termo maquiaveliano, “não pode cingir-se a respeitar valores absolutos, terá de se haver com a responsabilidade de seus atos, mais do que com os fins nos quais crê”, embora, ao contrário de Maquiavel, Weber julgue que “a separação entre uma e outra moral não exclui a crença em valores nem supõem o amoralismo na ação política”, diz Car- doso (2010, p. 21), concordando com a ressalva weberiana. Depois, Cardoso (2010, p. 21) destaca que “posteriormente Antonio Gramsci, partindo da tradição marxista, retomou o tema do príncipe, renascido como metáfora do partido, não mais do Estado”. Finalmente, Cardoso (2010, pp. 21-22) res- salta Isaiah Berlin, que, “ao discutir as decisões que requerem uma escolha dramática entre dois valores que não se combi- nam, mas convivem no mesmo universo cultural, de alguma maneira dialoga com Maquiavel”. Ao sustentar sua afirma- ção da vitalidade de “O Príncipe”, Cardoso demostra conhe- cer as apropriações do pensamento maquiaveliano no século XX pela intelectualidade internacional. O político atual não abandonou o rigor intelectual do antigo acadêmico, também deixando claro seu conhecimento da literatura atual sobre o pensador florentino, ao citar a pesquisa de Michael White “Maquiavel, um homem incompreendido”.

En passant, o prefaciador elenca vários temas presentes em “O Príncipe”. Sem discorrer, Cardoso (2010, p. 12) fala dos temas “a mudança de uma época”, “a ruptura de paradigmas de interpretação”. Ao discorrer, um parágrafo é exemplar de sua leitura de Maquiavel ser cheia de nuances, ao demostrar a ambivalência de sua obra:

[...] O príncipe era, frequentemente, não apenas o déspota que arrasava inimigos para gáudio próprio, mas, sabendo-o ou não, o instrumento da unificação de vários territórios em um só mercado: o capitalismo se expandia com força no século XVI. No meio desse torvelinho, Maquiavel percebia a inconstância do poder. Patriota, queria que a Itália se unifi- casse; florentino, desejava manter a independência e a for- ma republicana de governo de Florença; realista, sabia que essas formas eram mutáveis – principados, novos e antigos, repúblicas de formato variável, e assim por diante. Não reconhecia, pois não era seu prisma, as ligações entre as for- mas políticas, o desempenho dos príncipes e os movimen- tos da economia. Política, para ele, era um mundo que se explicava por si mesmo, pelas ambições, forças e fraquezas humanas. Essas forças moviam a vida política. Entretanto, por mais que tudo girasse, continuaria a haver dois tipos de gente, os poderosos e os que obedeciam. Uns podiam gal- gar ao poder, outros decair, mas ou se dava continuidade à existência do poder organizado, embora mudando os per- sonagens no comando, ou o conflito levaria ao caos. Não é certo que desprezasse a força dos conflitos, inclusive a dos provocados pelo povo. Tampouco é certo que preferisse o despotismo e a crueldade do príncipe às formas mais or- ganizadas de gerir o conflito permanente entre uns e ou- tros: estas dependeriam do amadurecimento do que hoje se chama cultura política e do fortalecimento das instituições, bem como da “antiguidade” do poder. Com o tempo, a força usada para instalar um príncipe no poder seria esmaecida, dando margem a mecanismos menos chocantes de preser- vação da autoridade (Cardoso, 2010, pp. 20-21).

O cerne do prefácio, entretanto, não passa pelos temas da pas- sagem acima. Está, sim, na razão de Estado. Sua recepção de Ma- quiavel, mesmo devedora da riqueza de estudos provenientes da academia, é instrumental, como aquelas precedentes desta- cadas neste artigo.

Para Cardoso (2010, p. 12), Maquiavel não teve a virtù para al- cançar a relevância política que desejava, mas teve a fortuna “de viver em uma época de forte transição – a passagem do sécu- lo XV ao XVI, do fortalecimento de estruturas governamentais pós Idade Média – e lançou um olhar novo sobre a política”. Ao contrário de Cardoso, cuja fortuna foi viver em uma época de transição, conseguindo ter a virtù de tornar-se um político de tal relevância que foi um dos que conduziram a transição do Brasil de uma ditatura para uma democracia. Só que no caso do pensador florentino, se lhe faltou virtù no campo político, a teve no campo intelectual, ao romper paradigmas de interpre- tação. Contudo, para Cardoso (2010, p. 13), virtù e fortuna estão emaranhadas: Maquiavel não teve a relevância política que almejava em razão de não dispor das condições necessárias para o êxito político, “a fortuna de provir das grandes famílias da época” e “dispor de recursos materiais ou bélicos para al- cançar o poder”. Assim como Savanarola, o pensador florentino era um profeta desarmado.

Após partir da trajetória política e intelectual de Maquiavel, Car- doso introduz o tema da moral quase nos mesmos termos de Escorel (1956), mas com uma chave positiva de leitura. Cardoso (2010, p. 13) enfatiza que o autor do livro prefaciado “não viu na natureza humana [...] a vocação para o exercício do bem, se- não que notou impulsos com motivações egoísticas. O interesse próprio, a ambição, a inveja, a vontade de domínio, motivam a ação dos homens”. Na ausência de um homem político com virtù reinará o conflito e anarquia entre os cidadãos de um Estado. Para Cardoso (2010, p. 13), “a arte da política consiste precisamente em organizar a cidade – o Estado e a sociedade – para evitar que os instintos destruidores prevaleçam”. O poder, no argumento de Cardoso (2010, p. 13), orienta a ação política do príncipe, porque “a própria dominação é ‘um bem’ e nada mais grandioso para alguém do que exercer o poder político e ter ca- pacidade para se manter no mando”. Para ele, a dominação é um bem porque sem ela não se unifica o Estado. Sem príncipes com a virtù de manter o poder, os conflitos se dariam sem regras. “O poder em si mesmo é o objetivo da ação política”, conclui Cardo- so (2010, p. 14). A novidade apresentada por Maquiavel está em sua leitura amoral da política, ao afastá-la “das interpretações dos filósofos da Grécia Antiga, que viam na construção da ‘felici- dade’, do ‘bem comum’, os fundamentos da boa política” e, con- tinua Cardoso (2010, p. 14), “dos romanos, como Cícero, que via a vida pública baseada na cooperação entre homens livres e de boa vontade, movidos pela intenção de bem servir e de obede- cer as leis”. Finalmente, ao destacar a importância do pensador florentino para instituir a política como um campo de ação autô- noma da moral cristã, Cardoso (2010, p. 14) faz uma referência a Rousseau, “estamos mais longe ainda da ideia cristã de ver como virtuoso quem faz o bem ou da utopia posterior, do século XVIII, de que o homem é puro por sua natureza”. Assim, nas entreli- nhas, Cardoso (2010, p. 14), ao enfatizar o realismo político de Maquiavel, situará a filosofia política posterior a ele, identificada em Rousseau, como idealista, “não o preocupam ditames morais, mas formas efetivas de comportamento”.

O movimento do argumento indica que sua leitura de “O Prínci- pe” é unívoca, afastando-se da ambivalência enfatizada por Bal- dini (2015), de que se trata tanto de um manual para governar quanto um manual para se defender dos governantes: “nosso personagem influenciara monarcas, cardeais e mesmo papas com seus conselhos políticos e”, continua Cardoso (2010, p. 14), “não se pejara de tomar como modelo um dos piores príncipes da época, o arquitemido César Bórgia”. Ao comentar as relações deste com o pensador florentino, Cardoso (2010, p. 17) enfatiza as acepções negativas de maquiavélico:

[...] no capítulo VII deste livro [...] estão registradas as pa- lavras justificadoras do comportamento de um príncipe resoluto, cruel, sagaz, dissimulador, mas, ao mesmo tempo, apesar de temido pelo povo, capaz de entender que a boa administração e a atenção aos sentimentos da população ajudavam-no a se perpetuar no poder. Não que o respeito do povo e o bom governo fossem a razão principal da perma- nência no poder. Essa depende sempre da força e das quali- dades de quem governa, desde que os fados não despejem muitos raios que impeçam o êxito. [...]

Através de uma série de ressalvas, Cardoso (2010, p. 18) ameniza a ideia de “os fins justificam os meios”, apesar de em nenhum momento lembrar que o axioma é apócrifo. Cardoso (2010, p. 18), primeiro, lembra que o “julgamento do prín- cipe não é moral, depende de sua capacidade efetiva para obter resultados. Esta, por sua vez, é um jogo entre boas e más circunstâncias e as virtudes”. Depois, enfatiza que Graf- ton mostra em sua introdução “que Maquiavel considerava como virtudes as qualidades necessárias para a perpetuação do Estado e do poder nas mãos do príncipe” (Cardoso, 2010, p. 18). Finalmente, deixa claro sua leitura instrumental do pensamento maquiaveliano, de que o amoralismo, a razão de Estado, é produto exclusivo de um homem superior e excepcional para conduzir o país, aproximando-se de Faria (1931), “é certo que Maquiavel não prega a esmo que os fins justificam os meios; assim como tampouco dá seus conse- lhos aos homens comuns. Só aos príncipes”, continua Cardo- so (2010, p. 18), “em momentos decisivos, caberia ‘fazer o mal’ quando ele fosse necessário para salvar a república ou a si mesmo”.

Em sua leitura instrumental, o prefaciador, mesmo demostrando conhecer as sutilezas da obra maquiaveliana, afasta-se dos ca- minhos abertos pelos estudos acadêmicos recentes e aproxima-se dos intelectuais que a leram para iluminar sua ação política, de apoio a uma determinada forma de construir o Estado brasileiro. Assim como Faria, a chave de leitura de Cardoso é positiva em relação à necessidade de um homem excepcional e superior para organizar o Brasil. Neste, porém, em nenhum momento ocorre a defesa do autoritarismo, como naquele. Cardoso, com seu prefácio a “O Príncipe”, ilumina sua própria trajetória política. Nisto, afasta Maquiavel do republicanismo, como a referência a Rousseau aponta, ao afirmar que “a visão de Rousseau não deriva dos caminhos abertos por Maquiavel” (Cardoso, 2010, p. 14). Apresentando as várias referências ao pensador florentino, Salatini (2014, p. 9) informa:

No século XVIII, Rousseau, herdeiro de leitores republica- nos de Maquiavel como Espinosa e Diderot, afirmaria em O contrato social (1762) que, “fingindo dar lições aos reis, [Maquiavel] deu-as, e grandes, aos povos” e que “O Príncipe de Maquiavel é o livro dos republicanos” (III, VI), completando, numa nota acrescentada na edição de 1782, com a seguinte impressão: “Maquiavel era um homem honrado e um bom cidadão, mas, ligado a casa dos Médicis, via-se obrigado, diante da opressão de sua pátria, a dissimular seu amor pela liberdade. A simples escolha de seu execrável he- rói deixa manifesta sua intenção secreta, e a oposição dos preceitos de seu livro O Príncipe aos de seus discursos sobre Tito Lívio e de sua Historia de Florença demonstra que esse político profundo só teve até aqui leitores superficiais ou corrompidos. A corte de Roma proibiu severamente o seu livro, creio. E essa corte que ele descreve mais claramente” (III, VI). [...]

Enquanto Rousseau era um idealista, para Cardoso, Maquiavel era um realista. O intelectual justifica, com seu prefácio para “O Príncipe”, também sua ação na política como realista. Podemos dizer, portanto, que ela não foi calcada no idealismo de liber- dade, mas no realismo de reconstrução de um país. Em nome de quais interesses? Dado o amoralismo enfatizado pelo autor, não na abstração do bem comum, mas nos interesses da conso- lidação de um tipo de capitalismo no Brasil. Como atesta Beal (2015), o tema da liderança política é central no pensamento po- lítico de Cardoso após seu período na Presidência da República (1995-2003). O que torna compreensível a ênfase dada a ela em sua leitura de “O Príncipe”.

Considerações finais

A obra de Maquiavel, ao ser recepcionada por intelectuais, po- líticos e militantes, é lida dando ênfase na autoridade. A partir da década de 1980 o campo acadêmico passou a enfatizar seu republicanismo. Era de se esperar, em princípio, uma mudança em sua recepção no campo político. Mas a circulação de ideias é complexa. Fernando Henrique Cardoso demonstra em seu pre- fácio de 2010 para “O Príncipe” a força que a obra maquiaveliana tem para explicar a ação de quem governa, em razão de – mesmo conhecendo as pesquisas sobre o pensador florentino, por ser um político de origem acadêmica – enfatizar a necessidade de um homem superior e excepcional em tempos de transição po- lítica. Partindo de “O Príncipe”, a leitura cardosiana justifica sua ação política, como alguém que presidiu o Brasil com o realismo de Maquiavel e não com o idealismo de Rousseau. Fez, assim, a viagem redonda, dialogando, sem o saber, pois não os mobilizou, com a recepção maquiaveliana dos anos 1930 a 1960; anterior, portanto, à consolidação das pesquisas acadêmicas sobre o pen- sador florentino.

Em 1931, Octávio de Faria recorre a Maquiavel para defender a importância de uma autoridade para bloquear o caos provo- cado pela república. Dois anos depois, saem, por duas editoras ligadas à esquerda, as duas primeiras traduções de “O Príncipe” no Brasil, com o objetivo de denunciar o autoritarismo. Direita e esquerda leram Maquiavel pelo viés “absolutista”, esta em uma chave negativa e aquela em uma chave positiva. Nisto, ajudaram a difundir um Maquiavel no Brasil, o dos governantes. Desde o início, portanto, a circulação das ideias do pensador florentino esteve condicionada, no campo político, a fornecer subsídios para os atores políticos. Tanto é que Cardoso, cuja trajetória inicia-se na academia para ingressar na política, recepciona Maquiavel mais como um ensaísta do que como um acadêmico. Com isto, sua leitura de “O Príncipe” denota uma ação política, assim como a de Faria, Lívio Xavier, Maurício de Medeiros, Elias Davidovich, Lauro Escorel e Affonso Henriques entre os anos 1930 e 1960.

As apropriações difundem um pensador no imaginário político. Posto em circulação, inicialmente, no contexto da Revolução de 1930, a obra maquiaveliana foi lida para justificar a instaura- ção do novo regime pela força ou para alertar a sociedade dos perigos do crescente autoritarismo de Getúlio Vargas. Em ou- tros termos, Maquiavel foi recepcionado como um manual para governar e para se defender dos governantes, dependendo do modo como é interpretado e/ou usado em cada momento po- lítico. Em ambos os casos como teórico político da autoridade.

Seu republicanismo, destarte, encerra-se no campo acadêmico. Porém, suas leituras, no campo político, refletem a ação política de quem o recepciona.

Referências

Baldini, Enzo. Maquiavelismo e maquiavelismos. In: Monteiro, Rodrigo Bentes; Bagno, Sandra (Org.). Maquiavel no Brasil: dos descobrimentos ao século XXI. Rio de Janeiro: FGV, pp. 13-30, 2015.

Notas

1 Em seu esforço de tornar a tradução reconhecida no Brasil, através do blog “Não gosto de plágio”, Bottmann (2012) escreve sobre Elias Davidovich.
2 Para mais informações sobre a vida e a obra de Lívio Xavier, consultar Barbalho (2003).
3 A biografia e a atuação política de Maurício de Medeiros podem ser consultadas em Fundação Getúlio Vargas (2001).
4 Ao enumerar os livros lançados pela Unitas, Karepovs (2013) não atribui a tradução de “Revolução e contrarrevolução”, de Trotsky (1933), ao prefaciador Mário Pedrosa. Mas ao consideramos como sendo por causa de Queiroz (1998), ao recordar das traduções realizadas por ela e por ele para Salvador Pintaúde no período.
7 Nas próximas páginas serão apresentadas as teses de Benedetto Croce sobre Maquia- vel, conhecidas não só por Lauro Escorel quanto por Octávio de Faria.
8 Uma síntese da biografia de Lauro Escorel é apresentada em Fundação Getúlio Vargas (s. d.).
9 Para mais informações sobre a vida, a obra e atuação parlamentar de Affonso Henri- ques, consultar o trabalho de Ferreira (2015) que embasou esta parte do artigo.
10 Não há dúvida que a imagem de Getúlio Vargas estava atrelada à vulgata maquiavélica desde a Revolução de 1930. Em 1937, um editorial do jornal gaúcho “A Federação” sus- peitou que o Plano Cohen fosse um pretexto maquiavélico de Vargas para aumentar seu poder, salienta D’Araújo (2000).
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