Artigos

Que Direita é Esta? As Referências a Trump na Nova Direita Brasileira Pós-Michel Temer

Ariel Finguerut
Centro Universitário SENAC, Brasil
Marco Aurélio Dias de Souza
Universidade Federal de Sergipe, Brasil

Revista TOMO

Universidade Federal de Sergipe, Brasil

ISSN-e: 1517-4549

Periodicidade: Semestral

núm. 33, 2018

revistatomo@gmail.com

Recepção: 30 Junho 2018

Aprovação: 27 Julho 2018



DOI: https://doi.org/10.21669/tomo.v0i33.9357

Resumo: O artigo analisa o conturbado momento da democracia contemporâ- nea, tendo como ponto de partida a reestruturação dos movimentos ligados à nova direita no Brasil (sob a ascensão e o governo Michel Temer) e nos EUA (sob a administração de Donald Trump). Seu obje- tivo é demonstrar como as mudanças na política e na sociedade des- ses países, marcadas por “Não Lugares” e tentativas de construções de “Guerras Culturais”, inseriram estratégias e mobilizações que to- leram atuações que beiram os limites da democracia. Neste sentido, autoritarismos, nostalgias, teorias da conspirações, pós-verdades e construções de inimigos idealizados ganharam uma dinâmica especial nas manifestações políticas desses movimentos, sendo rapidamente emuladas em sua expansão no Brasil e no entendimento de mundo de alguns de seus principais atores.

Palavras-chave: Nova direita, Guerras Culturais, EUA e Brasil, Donald J. Trump, Jair Messias Bolsonaro.

Abstract: This article analyzes the troubled moment of contemporary demo- cracy, starting with the restructuring of the movements linked to the new right-wing in Brazil (under the rise and government Michel Te- mer) and in the USA (under the administration of Donald Trump). We will demonstrate how the changes in politics and society in these coun- tries, marked by the spirit of “No Places” and attempts to construct a “Cultural Wars” have inserted strategies and mobilizations that tole- rate actions that push´s the borders and the limits of the democracy. In this sense, authoritarianism, nostalgia, conspiracy theories, post-truths and constructions of idealized enemies gained a special dyna- mism in the political manifestations of these movements, being quickly emulated in their expansion in Brazil and in the understanding of the world of some of their main actors.

Keywords: New Right-Wing, Cultural Wars, USA and Brazil, Donald J. Trump, Jair Messias Bolsonaro.

Resumen: Este artículo analiza el turbulento momento de la democracia contem- poránea, comenzando con la reestructuración de los movimientos vin- culados a la nueva derecha en Brasil (bajo el gobierno Michel Temer) y en los Estados Unidos (bajo la administración de Donald Trump). De- mostraremos cómo los cambios en la política y la sociedad en estos países, marcados por el espíritu de “No Lugares” e intentos de construir una “Guerra Cultural” han insertado estrategias y movilizaciones que toleran acciones que empujan las fronteras y los límites de la demo- cracia En este sentido, el autoritarismo, la nostalgia, las teorías cons- pirativas, las post verdades y las construcciones de enemigos idealiza- dos ganaron un dinamismo especial en las manifestaciones políticas de estos movimientos, siendo rápidamente emulados en su expansión en Brasil y en la comprensión del mundo de algunos de sus enemigos actores principales.

Palabras clave: Nueva derecha, Guerras Culturales, Estados Unidos y Brasil, Donald J. Trump, Jair Messias Bolsonaro.

Introdução

No dia 29 de outubro de 2016, o “Juntos pelo Brasil” realizou, em conjunto com outros pequenos movimentos1 ligados ao espec- tro da “nova direita brasileira2”, um evento na Avenida Paulista, São Paulo, em apoio à candidatura de Donald Trump à presidên- cia dos EUA. De uma maneira geral, a manifestação foi retratada com uma certa ironia por grande parte da mídia. Isso ocorreu pelo fato das lideranças que a convocaram jamais terem pisado em solo estadunidense e, obviamente, por manifestarem apoio a um candidato ao qual sequer poderiam votar. Não obstante, uma análise mais detalhada do evento traz à tona os resultados de uma profunda e, cada vez mais, confusa polarização política que, refor- çada por movimentos gerados ou que ganharam visibilidade no Brasil durante a última década, vem obtendo terreno no país.

Como características centrais desses novos movimentos estão simplificações e atropelos teóricos, ausência de maturação de pautas e ideias, rejeição ao papel de especialistas e da academia como produtores legítimos de pensamento, reconstrucionismo históricos e uma pressa salutar em se lançar à vida pública, ao mesmo tempo em que seus membros esforçam-se para apresentar-se como uma alternativa “apolítica” à crise institucional e política vivenciada no país. Estas características derivam de uma compreensão radicalizada de que a sociedade brasileira vivenciaria uma ruptura moral entre lados incomunicáveis e in- tolerantes entre si, ou, como foi denominado por sociólogos e cientistas políticos, uma Guerra Cultural3.

O notável dentro deste processo é que, enquanto esses movimen- tos se agarraram a fomentação dessa polarização, os desejos, es- tratégias e pensamentos dos movimentos ligados à nova direita ao redor do mundo passaram por reconfigurações, causando uma sensação de deslocamento temporal do exemplo brasileiro, afinal, aqui a polarização se coloca como uma ruptura forçada entre se- tores e ideias que em determinados momentos migram e movi- mentam-se entre os campos da direita e da esquerda.

Dentro dessa interpretação o artigo debate, a partir de um referen cial teórico embasado na Sociologia Política e na Teoria Política, as reestruturações dessa nova direita. Compreendendo os movi- mentos surgidos no Brasil como reflexo de um fenômeno externo que atribuem descontentamentos, significados e estratégias de mobilização semelhantes. Essa interligação estabelece similitudes e paralelos entre o cenário estadunidense e o brasileiro, ora pelas atitudes antidemocráticas dos presidentes que assumiram o gover- no em ambos países, ora por um sentimento de crise social, deses- perança e medo que multiplicam estratégias políticas autoritárias.

Dessa forma o artigo, para além desta rápida introdução, divide-se em quatro partes: 1- estabelece interrelações entre as presidências de Michel Temer e Donald Trump a partir do autoritarismo e da impopularidade que levam seus governos e a própria ideia de Democracia aos limites da ingovernabilidade. 2- Discute a reestruturação da nova direita no Brasil e nos EUA. 3- Demonstra como o contexto estimula lideranças apolíticas e o radicalismo ideológico. 4- Contextualiza e debate a transposição da retórica de Guerra Cultural na sociedade brasileira, estabele- cendo relações com a sua fomentação no Brasil e novas formas de mobilização política, ao mesmo tempo em que indica as plu- ralidades e até mesmo contradições existentes na nova direita brasileira a partir da análise de alguns de seus autores sobre a eleição e presidência de Trump.

Michel Temer e Donald Trump testando os limites da Democracia

“Se você quer ter paz evite ser popular” A. Lincon

Um está no começo de seu mandato, o outro no final. Ambos, há cinco anos ou menos, eram nomes improváveis para ocupar a presidência de seus respectivos países. Donald Trump e Mi- chel Temer têm muitas diferenças, mas ambos são presidentes impopulares e caminham a passos largos para a lista dos mais impopulares da história.

Com apenas 5%4 de avaliação “excelente”, Temer é impopular mesmo se comparado a outros presidentes considerados his- toricamente impopulares como Itamar Franco ou José Sarney. Mesmo se comparado à Dilma Rousseff, às vésperas do Impeach- ment, Temer está no mínimo tão impopular quando sua suces- sora. Trump, com 36%5 de aprovação, está bem abaixo da popu laridade que nomes como Richard Nixon e Jimmy Carter tinham com pouco mais de 100 dias na Casa Branca. Tanto Nixon como Carter terminaram seus governos como presidentes impopula- res, apoiados por 24% e 29% respectivamente. Os números de Trump com seis meses de governo são similares aos de Clinton em seu primeiro mandato. Clinton até hoje é um presidente visto como popular6, o que pode servir de estimulo para Trump.

Tanto Trump como Clinton parecem sofrer de um problema re- lativamente comum na história contemporânea dos EUA, com muita atenção à campanha, e vencendo uma eleição polarizada e desgastante, o eleito chega ao poder não de forma triunfante, mas de forma confusa e desorganizada. No balanço de seus 100 dias7, um dos secretários mais importantes de Clinton, Leon Pa- netta, dizia que o presidente precisava “escolher quais lutas iria lutar”. E Trump parece que já percebeu que ser presidente não é tão divertido quando ser candidato. E, sobretudo, o caso do atual presidente dos EUA é sensível por que trata-se de alguém que – talvez mais do que qualquer predecessor – se preocupa com o que as pessoas pensam sobre ele e como sua imagem chega na opinião pública.

Michel Temer foi de um lado do espectro político para o outro em um curto intervalo de tempo. De um articulador da base de centro–esquerda que sustentou politicamente Lula e Dilma (por pelo menos 10 anos) para um articulador de centro-direita re- criando uma base que no passado sustentou Fernando Henrique Cardoso por oito anos. Temer passou a encabeçar um projeto que se apresenta como “reformista”, “modernizador” e ao mes- mo tempo “semiparlamentarista”.

Trump se apresentou como candidato republicano e com ban- deiras conservadoras num projeto político totalmente outsider. Até 2009/2010, Trump era tão provável como candidato quanto Tom Tancredo, deputado republicano pelo Colorado cuja plata- forma era centrada na necessidade de barrar os imigrantes la- tinos, apresentados como violentos e a razão do declino americano. As credencias conservadoras de Trump nunca foram seu “cartão de visitas” tanto que ele e toda sua família eram registra- dos como democratas até 17 anos atrás8.

Tanto Trump como Temer são vistos com desconfiança desde co- meço de suas respectivas ascensões. Sobre o primeiro há a som- bra da influência e da intervenção russa que não só teria auxiliado sua candidatura com informações de contraespionagem como também teria dificultado e exposto a candidatura da oponente, Hillary Clinton. Sobre Temer há a sombra de ter, ainda como vice-

-presidente, articulado e trabalhado politicamente para derrubar a então presidente, contando para isto com apoio do então aliado (hoje preso) e presidente da câmara, Eduardo Cunha.

Ambos sofrem recorrentemente com a exposição de declarações e consequências de seus comportamentos privados. No caso de Trump é notório sua misoginia e sua obsessão narcisista. Temer foi gravado em “conversas não republicanas9”, como a mídia clas- sificou, com empresário envolvido em vários crimes e querendo do presidente apoio para frear novas investigações. Temer tam- bém deixou de lado sua agenda “reformista e modernizadora” para “abrir os cofres” e com apoio de 264 deputados (num univer- so de 513) conseguir barrar o avanço de uma dentre várias inves- tigações que partem do procurador da república e que o acusam, entre outros crimes, de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Acuados, ambos partem para o ataque, abusando da cultura do medo, da polarização e tentando sempre resgatar a sombra de ini- migos políticos, no caso de Temer, Lula e o PT, e no caso de Trump, Obama e os democratas. Em ambos os casos, os ataques não pou- pam se quer membros de seu próprio gabinete10.

Trump num primeiro momento tentou ser mais “esperto” que Temer e diante das investigações em curso coordenadas pelo FBI sobre a influência russa nas eleições de 2016, simplesmente demitiu quem coordenava as investigações11. A estratégia não funcionou e acabou expondo ainda mais o “núcleo duro” de seu governo. Desde então vários secretários deixaram o gabinete e alguns de seus filhos e parentes estão na mira das investigações. Tanto Trump, em relação à Rússia, como Temer, em relação à corrupção, tentam em vão considerar o assunto algo já superado, contudo, em ambos os casos, o tema volta recorrentemente a in- comodar. Desta forma ambos passam a agir num modo “à revelia da opinião pública”; Trump chega a declarar a mídia como inimi- ga, e Temer como uma espécie de “déspota esclarecido” declara não se importar com a popularidade. Ambos negam que querem impedir as investigações e até afirmam suas manutenções, mas não deixam de tentar manipulá-las e com argumentos alarmis- tas se consideram “vítimas” de uma “caça às bruxas” ou de uma “conspiração de traidores da República”.

Diante desse quadro eles parecem perceber uma oportunidade política rara de aproveitar a impopularidade para implementar e defender ideias impopulares. No caso de Temer há desde teses impopulares de reforma política, com um bilionário financia- mento público para os partidos políticos, ou implementação às pressas do parlamentarismo12 somado à expectativa de muitos de uma espécie de “acordo político” que acomodaria os interes- sados em frear e acabar com investigações e grandes projetos de combate à corrupção. No caso de Trump, sua impopularidade o permite sair do Acordo sobre Mudanças Climáticas de Paris e propor um orçamento para 2018 com cortes duríssimos nas pesquisas de inovação e fontes de energia renováveis. Além de atender demandas de setores até então em declínio no conser- vadorismo americano, como as pautas anti-LGBT13 e de pedir dinheiro público para construir seu famoso muro na fronteira com o México. E ambos também não deixam de aproveitar o mo- mento impopular para, por exemplo, aumentar impostos14.

No caso de Temer, sua impopularidade o leva a propor uma troca política na qual de um lado há a busca pela sobrevivência imediata e, do outro, setores retrógrados da economia brasileira interessados em manter privilégios. No saldo dessa troca, seto- res como Ciência e Tecnologia15, a Cultura ou mesmo a Política Externa16 tornam-se secundários e operam a reboque desta po- lítica draconiana.

Tanto Temer como Trump usam de suas impopularidades como um gatilho para priorizar um fim em si mesmo, que é manter-se no poder e longe das investigações da justiça. Tanto no caso dos EUA como do Brasil temos democracias cujos presidentes não são exatamente democratas. Trump age muitas vezes como um autocrata e Temer como um déspota. É na crise política que identificamos o melhor e o pior das potencialidades da ideia de democracia. E sem ouvir do conselho de Lincoln, o problema de Temer e Trump é que no fundo eles adorariam ser “populares”.

São casos de políticos em crise que de certa forma implodem o sistema democrático numa espécie de Contrato Faustiano. São casos que, sobretudo, implodem um conceito democrático fundamental: a moderação17. Governar sem moderação como alertado por clássicos da ciência política é dar vazão a vozes in- transigentes, é alimentar multidões sedentas por violência e co- locar em cheque conceitos fundamentais como a ideia de “bem comum”, de senso comum, de diálogo e de equilíbrio entre e de poderes. Um líder sem moderação tem sede de vingança e go- verna norteado pelas paixões cujo papel da política seria justa- mente de controlá-las.

A militância nos “Não Lugares” e novas configurações ideológicas

A tese do “não lugar”, ao lado da sociologia das relações líqui- das, é uma das poucas propostas de uma “grande teoria” para explicar alguns dos dilemas e das mudanças de comportamento contemporâneos. Um de seus debatedores, o antropólogo Marc Augé (2008), propõe uma etnologia da solidão. Os não lugares refletem o avanço dos “mundos virtuais”, são espaços nos quais fazemos mais coisas simultaneamente, fazemos muito e fazemos ao mesmo tempo. São espaços transitórios, nos quais consumo, informação e publicidade parecem uma coisa só. Como morar dentro de um Shopping Center ou estudar num aplicativo que de cinco em cinco segundos te convida a um click. Ao mesmo tempo nós sentimos os “excessos”, sentimos os vazios e as ausências. Por isso a ideia de “não lugar”, é esta contradição entre o real/ virtual e o excesso/falta.

Os não lugares afetam as relações de trabalho, as relações so- ciais, afetivas, as relações de amizade e também o comporta- mento e o posicionamento político das pessoas. Por um lado, há uma leitura que poderíamos chamar de esquerda deste processo que diante de uma conjuntura política de crise democrática, de desmobilização de setores tradicionais da economia industrial (como a ideia de proletário ou de sindicato por exemplo) cria a ideia que filósofos como Alain Badiou ou sociólogos como Slavoj Žižek chamam de “alternativa única”, ou seja, é a ideia do capi- talismo como “alternativa única”. Tanto esquerda como direita partiriam desta mesma base: democracia precisa tanto do capi- talismo quanto vice-versa e, portanto, a diferença entre direita e esquerda seria que a primeira enfatizaria o rigor econômico em detrimento da justiça social enquanto a esquerda priorizaria a justiça social em detrimento do rigor econômico.

A mobilização política não mais ocorreria em torno de partidos como os clássicos “partido conservador”/“partido trabalhista”, “Progressistas”/“Conservadores”, mas estaria dispersa em torno de projetos, sejam projetos de emancipação, ligados às identida- des raciais, étnicas ou à sexualidade, como as bandeiras LGBT ou temas comportamentais como consumo, privacidade, liber- dades individuais ou meio ambiente, direito dos animais , refu- giados, sejam voltados para temas específicos como “ mulheres”, “armas”, “impostos” e “imigrantes”. No clássico debate sobre Direita e Esquerda feito por Bobbio (2011), a esquerda agrupa- ria movimentos políticos que enfatizam o que temos em comum enquanto a direita enfatizaria as diferenças. Na visão tradicional da esquerda, a política seria um instrumento para atingirmos uma igualdade (uma vez que somos todos iguais) e combater as desigualdades (algo que não pode ser aceito a não ser excepcio- nalmente). Neste ponto, direita e esquerda poderiam dialogar e muitas vezes construir alianças como de “centro-esquerda” ou de “centro-direita”. A esquerda mobilizaria suas forças buscando uma “sociedade de iguais” (em termos jurídicos, políticos, so- ciais e econômico) e a direita enfatizaria que algumas desigual- dades não podem ser eliminadas seja por razões sociais, econô- micas, seja culturais e teológicas.

O declínio dos partidos tradicionais ocorreu na Europa desde meados dos anos de 1990. E o mesmo podemos dizer em todo ocidente. Contudo, a desconstrução das ideias de “esquerda” e “direita” criou um duplo movimento. Por um lado, se acirrou o contraste, a oposição e a polarização, por outro, aumentou o niilismo, a descrença e a indiferença em relação à democracia e ao processo eleitoral. Em linhas gerais, direita e esquerda estão menos moderadas, ideias autoritárias contaminam ambos os lados e os extremos do espectro políticos se tornam mais atra- entes do que o centro, moderado, negociado e que exige conces- sões. Neste aspecto, autores como Scruton (2014) ao discutir as bases ideológicas da Nova Esquerda argumentam que mais do que a busca pelo poder, são autores preocupados com o conceito de coerção e que buscam superá-la mesmo que para isto tenham que construir “uma nova sociedade” e um “novo homem”.

Assim, a Nova Esquerda buscaria no limite, segundo Scruton (2011), uma sociedade sem instituições e sem oposição. Ela se voltaria contra qualquer forma de negociação, pois quem nego- cia tem poder e quem tem poder tem coerção. Uma vez que a ideia é acabar com a coerção seria preciso acabar com qualquer divisão, qualquer oposição. A esquerda precisaria ter a hegemo- nia nos termos de Antonio Gramsci e dominar o aparato ideoló- gico do Estado nos termos de Althusser. Acabando assim com a opressão do poder seja sobre o indivíduo, seja sobre as classes socais.

Já nos termos de uma Nova Direita o foco está nas formas de le- gitimar o poder, por isto ganha relevância o debate em torno da constituição (que limitaria o poder) e com sua base moral, nes- te caso o indivíduo. A Nova Direita buscaria desmantelar uma aliança que funcionou e sustentou a recuperação econômica pós-segunda Guerra Mundial, a aliança de centro-esquerda tam- bém conhecida como socialdemocracia. Há também como alvo a centro-direita, conhecida como o liberalismo – democrático, centrado nas ideias de John M. Keynes, cujo auge da influência ocorreu entre 1930 e 1973. A chamada “era keynesiana” é tam- bém conhecida como a era dos direitos, direitos civis, políticos e sociais. A proposta da Nova Direita, com foco nas forças de mercado, é focar na criação de riqueza tendo como base moral o indivíduo. De certa forma a Nova Esquerda e a Nova Direita têm como um inimigo comum a coerção, mas com finalidades distintas, a esquerda quer emancipação, quer algo novo, e a di- reita quer resgatar a liberdade. Tanto a Nova Esquerda quanto a Nova Direita são alianças de vários atores e vários movimentos distintos.

As chamadas Novas Esquerda e Direita tiveram ascensão e que- da no período pós-Guerra Fria entre meados dos anos de 1990 e 2000. Com a chegada do século XXI, se projetou grande otimismo nas formas de comunicação e ativismo feitos à distância, via internet e outras formas de comunicação remota. Barack H. Obama, o primeiro presidente declaradamente negro dos EUA, talvez não conseguiria ser eleito sem toda mobilização, financia- mento e campanha virtual que teve.

Num primeiro momento o impacto da internet na política pare- cia favorecer movimentos libertários/liberais e funcionava bem em países com ditaduras militares ou autocracias com movi- mentos de mulheres por emancipação, jovens querendo democracia. Contudo, se olharmos para o contexto contemporâneo, considerando os últimos 10 anos (2007 – 2017), percebemos uma dupla reação. Por um lado, regimes autoritários estão mais atentos e controlam, censuram a mobilização política também na internet, e movimentos não liberais, extremistas, estão mais fortes e aprenderam a usar as potencialidades virtuais para recrudescer seus movimentos.

É nesse ponto que Marc Augé (2008) e o debate sobre “não lu- gares” nos ajudam a entender o comportamento político con- temporâneo. Diante de uma aparente multidão que a internet cria, seja em redes sociais, fóruns de debate, seja simplesmente em blogs e comentários deixados em sites, cria-se a sensação de reação ou de um grande movimento político em torno de ideias não consensuais. São teorias conspiratórias, notícias falsas ou movimentos minoritários que aproveitam do não-lugar, sem certo ou errado, com pessoas sem contato com o mundo real, para recrutar e manipular através de um discurso de ódio e com figuras muitas vezes apresentadas como líderes ou posturas au toritárias.

A forma como movimentos ou líderes autoritários recrutam e crescem não é algo novo, movimentos como o Fascismo e o Na- zismo do século XX já foram amplamente estudados, a novida- de é como a política tradicional de certa forma sucumbiu e está fortemente influenciada por estes movimentos, seja de cunho nacionalista, patriótico, seja simplesmente autoritário e extre- mista.

Novos Comportamentos políticos: o apelo dos outsiders e do voto ideológico

Anticandidatos, anti-intelectuais, movimentos políticos distan- tes dos partidos tradicionais, o mundo contemporâneo passa por uma inflexão ou para uma reação que pode ser classificada como reacionária, nacionalista ou populista conforme o autor.

Em todos os casos observamos movimentos excludentes com lí- deres que flertam ou que se apresentam como “homens fortes” propondo uma nova coalizão que não é nem de direita nem de esquerda, nem conservadora nem progressista. Ao mesmo tem- po candidatos ou mesmo partidos buscam crescer explorando bandeiras de nicho ou plataformas ideológicas que também flo- resceram no debate contemporâneo.

Figuras populistas colocam em cheque conceitos tradicionais como Esquerda e Direita. Quando no poder, colocam em questão a própria ideia de democracia. O impacto dessa onda populista ou autoritária, como argumenta Puddington (2018), muda os valores da cultura política. Como argumenta Chico de Oliveira (2018), valores políticos como democracia, republicanismo e liberalismo estão enfraquecidos, enquanto valores e comporta- mentos como o conservadorismo dos costumes, as ideias rea- cionárias e o sentimento anti-intelectual estão fortalecidos. Candidatos que tentam se beneficiar dessa transição acabam tendo dificuldades para dosar e achar algum equilíbrio entre as ideias liberais e a defesa dos valores mais conservadores.

Para intelectuais que atuam na opinião pública e que defendem ideias conservadoras, como por exemplo Rosenfield (2008)18, se o voto do eleitor for norteado por “valores”, “costumes” e pelo sentimento de indignação contra a corrupção, as chances de vi- tória de candidatos conservadores é alta. Segundo as pesquisas apresentadas por ele, o brasileiro quer reduzir a maioridade pe- nal (85% de aprovação), é contra o aborto (79%), a legalização da maconha (67%) e o estatuto do desarmamento (51%).

Somada à essa mudança na cultura política, enfatizada por Rosen- field, há também uma mudança no campo demográfico e religioso. A população evangélica cresce mais que as demais e tem um perfil mais jovem, espalhado pelo país e cada vez mais mobilizada por atores, partidos e políticos. O eleitor evangélico, segundo pesqui- sas, tem se comportado em duas frentes, uma é a defesa dos cos- tumes e de um discurso conservador, como por exemplo, contra o aborto, contra direitos LGBT e contra a agenda da diversidade na educação. Outra linha é mais estratégica e busca alianças ou mes- mo hegemonia em partidos políticos visando assim eleger o maior número possível de políticos ligados às igrejas e ao movimento evangélico como um todo. Em ambos os casos, os evangélicos estão conscientes de seu peso eleitoral e usam disto como instrumento de barganha nas coalisões, o que força também os candidatos a se posicionarem em relação aos temas de sua agenda19.

Na base católica há também um crescimento dos religiosos que defendem bandeiras conservadoras. Críticas internas à Confe- rência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) aparecem mais re- correntemente no debate público e há vários pequenos grupos católicos que buscam aliança com outros movimentos conserva- dores, desde os de viés liberal, como o Instituto Millenium, até aproximação com grupos que defendem a volta da monarquia20, ou mesmo grupos tradicionais que reúnem conservadores cató- licos, como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP), Arautos do Evangelho ou a Instituto Plinio Corrêa de Oliveira (IPCO).

Outro fenômeno contemporâneo é a “descoberta” pelo público jovem das ideias liberais e em paralelo da mobilização contra a esquerda acadêmica / estudantil. Tanto alguns think thanks e institutos brasileiros de perfil liberal como Instituto Millenium, Instituto Ordem Livre, Estudantes Pela Liberdade, o Instituto Ludwig von Mises – Brasil, bem como outros vários pequenos grupos de estudos em universidades privadas e públicas do Bra- sil, abrem um espaço para a mobilização do eleitorado jovem21. Segundo pesquisa do Datafolha22, 37% dos jovens brasileiros se colocam à direita, 28% se posicionam à esquerda, 23% se situ- am ao centro e 12% não responderam. Esse perfil mais “à di- reita” foi central para o êxito de movimentos que surgiram de uma mobilização virtual pelo impeachment da Dilma Rousseff (a partir de 2014 , com o auge em 2016), como o Movimento Brasil Livre (MBL), Vem pra Rua e Revoltados Online, bem como revitalizou grupos que estavam desmobilizados como o Institu- to Liberal e o Instituto Von Mises, que passaram a divulgar pan- fletos e revistas, lançar livros traduzidos de liberais clássicos e criar grandes eventos, como o Fórum da Liberdade, organizado pelo Instituto de Estudos Empresariais em Porto Alegre, ou o Congresso do Movimento Brasil Livre (MBL) realizado em São Paulo. Em ambos, além de grande público, atraiu autores, políti- cos e jornalistas de perfil conservador ou que defendem ideias liberais. Esses grupos liberais/jovens, como discute Alexia Oli- veira Barbieri (2017), se organizam mais por engajamento do que por militância e circulam entre debates de perfil liberal na economia, na teoria política ou na mobilização partidária.

A plataforma liberal nesses termos incluiria um foco econômico com o intuito de privatizar empresas estatais, cortar gastos com funcionários públicos, corte de impostos e incentivar o empre- endedorismo. Na cultura e nos costumes nem todos grupos ou defensores do liberalismo econômico seguem uma tendência que seria libertária – nos termos do debate dos EUA –, a tendên- cia é propor um recuo da atuação e intervenção do Estado, mas deixando espaços para conservadores sociais e culturais.

Há também um recorte que não pega nem o eleitor liberal nem o conservador. Trata-se de um apelo autoritário, antiliberal. Em parte, essa parcela da população esteve presente, principalmen- te nas primeiras manifestações pelo Impeachment em 2014, pe- dindo por uma intervenção militar. Passado a queda do governo do PT, às vésperas das eleições de 2018, o movimento voltou a ganhar destaque em parte se misturando às manifestações dos caminhoneiros em junho de 201823. Outro vetor da linha auto- ritária se articula em torno do deputado federal24, candidato à presidência, Jair Messias Bolsonaro.

A candidatura de Bolsonaro se sustenta num discurso político re- lativamente simples, que desqualifica todos os políticos, todos os partidos, e prega contra o “politicamente correto” falando supos- tamente “a língua do povo” e pregando contra os Direitos Huma- nos, contra minorias (seja religiosas, linguística, a população LGBT e povos indígenas). Ao estilo Trump, Bolsonaro fala o que vem à cabeça, sendo por isto recorrentemente processado e questiona- do por declarações racistas, machistas ou misóginas. Na mesma linha de Bolsonaro uma série de “celebridades virtuais” entre jor- nalistas, artistas e escritores fazem sucesso e também consideram se candidatar criando um conjunto de candidatos “bolsonaristas”, ou seja, identificado com a figura de Jair Bolsonaro.

Enxergando influências “esquerdistas” em todos os setores (mídia, judiciário, cultura, academia etc.) muitos questionam a viabilidade de se viver no Brasil e defendem uma revolução li- derada de fora para dentro, e outros tantos buscam se alinhar à candidatura de Bolsonaro e disputar cargos legislativos e execu- tivos. São parte de um movimento que enxerga um “perigo” mui- to maior que o representado pelo Partido dos Trabalhadores. Trata-se de uma ideia que no Brasil a democracia, a Constituição e a ideia de República estariam se não já dominadas, ao menos contaminadas por uma ideologia de esquerda – muito mais peri- gosa do que a esquerda representada por Lula, Dilma ou pelo PT. Neste quadro, defendem uma reação reacionária com o retorno aos “bons costumes”, o fim do estatuto do desarmamento, uma nova constituição com pena de morte e declaradamente cristã, uma limpeza ideológica da mídia, escolas, judiciário, etc., um re- alinhamento com o Ocidente e reposicionamento internacional se afastando dos “regimes” de esquerda.

Diante desse quadro uma candidatura como a de Jair Bolsonaro tenta se equilibrar com dificuldade entre uma plataforma liberal, principalmente na economia, com uma plataforma conservado- ra, principalmente no campo social e político, sem se prender ou exigindo coerência ideológica especifica. Mais importante do que a economia ou a plataforma conservadora é a ênfase na “linha dura” no combate às drogas, aos políticos corruptos e à criminalidade em geral. Neste ponto novamente se afastam do liberalismo ou mesmo da tradição intelectual conservadora e flertam com o populismo anti-intelectual.

Novamente lembrando Trump, Bolsonaro diz se assessorar e, uma vez eleito, criar um gabinete com militares25 – desconhe- cidos do establishment político –, elogia nomes polêmicos da história do regime militar brasileiro26, e infla discursos radicais sem exatamente endossá-los27.

Bolsonaro manipula a nostalgia da ditadura militar, flerta com ares messiânico ao estilo “homem forte” e, tal como Trump, pro- mete, sozinho, resolver todos os problemas. A ideia de “ditadura” chega a seu eleitorado não como uma ruptura democrático ou como um momento político não liberal, mas remete à ideia de uma gestão eficiente, um capitalismo triunfante (com crescimento anual acima de 10%), com uma burocracia totalmente técnica, sem qualquer vestígio ideológico. A ideia de governar numa ditadura desperta o imaginário de um poder absoluto, com coação total, sendo assim capaz de resultados rápidos e uma melhora geral imediata. Neste sentido, Lilla (2018) contri- bui para o entendimento deste processo ao apontar esse movi- mento como reacionário e não propriamente conservador, uma vez que ele não parte da ideia de que a sociedade estaria cami- nhando rumo a melhoras progressivas e, sim, que ela estaria se degenerando. Por essa leitura, a busca por um local nostálgico, muitas vezes imaginado, se coloca como meta e possibilita a ide- alização como reflexo de uma busca por segurança.

O apelo ao discurso da segurança pública e das forças arma- das busca despertar na população a ideia de que a polícia e as forças armadas são as únicas livres de qualquer contaminação ideológica de esquerda e as únicas capazes de garantir que a República não seja uma “República Sindicalista” – no caso de um uma vitória de esquerda, ou de uma República de “Esquerda” - no caso de uma vitória liberal. Desta forma, a nostalgia dos tempos ditatoriais, galvanizada pela figura do candidato Bolsonaro, funciona com a promessa de um presidente que combaterá a corrupção, fará com que o congresso e todo funcionalismopúblico seja eficiente e livrará de uma vez por todas o risco e asinfluências escondidas no país. Como quem já teve uma chance,mas não completou a lição, os nostálgicos da ditadura sonhamem não perder uma segunda chance. Bolsonaro surge nesse contexto como um nome de ocasião, um oportunista político que,tal como Trump em relação ao conservadorismo americano, éum outsider na política. No caso brasileiro, percebendo que asociedade está mais orientada à direita, ele infla a nostalgia domilitarismo e da ditadura. Diante do que Chico Oliveira (2018)classifica como “socialdemocracia subdesenvolvida”, as ideias deBolsonaro tal como de Trump operam nos “não lugares”, manipulando medos, nostalgias, jogando como candidato antissistema, sem qualquer constrangimento diante da alcunha de autoritário desde que seja sinônimo de “homem forte28”.

A transposição retardatária da retórica da Guerra Cultural.

O debate em torno de formas radicalizadas de polarização políti- ca não é propriamente uma novidade histórica. Sua reincidência é motivada por transformações socioculturais que posicionam, em rota de colisão, conjuntos de valores e morais antagônicas, ou o que foi definido pelos intelectuais como Guerra Cultural29.

Os recentes acontecimentos da política brasileira indicam simi- laridades e correlações com essa perspectiva teórica, o que am- plia a importância deste referencial. O conceito resgatado por Hunter (1991) para compreender a radicalizada polarização da política nos EUA, que passou por inúmeros debates e críticas30, considerou uma ruptura na sociedade entre dois conjuntos mo- rais antagônicos, marcados por um ethos moral progressista e um ortodoxo. A Guerra Cultural tomaria conta do espaço públi- co sob a forma de disputa de opiniões contrárias em luta pela hegemonia política e seria identificada na sociedade a partir de conflitos culturais.

Assim, essa passagem concentra-se em duas preocupações: 1- dar indícios de como os movimentos surgidos no Brasil emula- ram estratégias e apropriaram-se da retórica de Guerra Cultural como ferramenta para atingir o poder. 2- Demonstrar como es- ses movimentos relacionaram a eleição de Donald Trump com a suposta Guerra Cultural. Para isto, é vital compreender a leitura feita por esses movimentos sobre Trump, apontando os seus es- forços para classificar e encontrar similaridades entre as pro- postas do presidente estadunidense e as leituras da realidade que partem de uma compreensão de mundo plenamente dividi- do em polos opostos de moralidade.

A questão concentra-se no fato de que a Guerra Cultural se de- senvolveu com uma incrível força na sociedade estadunidense, datando a utilização de sua nomenclatura nos anos após a de- cadência do Império Soviético e o consequente desaparecimen- to do principal rival externo31 do país norte-americano. Neste contexto, a retórica da Guerra Cultural representou uma transferência direta da oposição ao “comunismo real”, para uma de resistência a uma suposta tentativa de dominação de “marxistas culturais” sobre os valores e a cultura32 estadunidense. Esta mu- dança possibilitou a reprodução de uma narrativa por parte de setores da nova direita que respondia a grande parte das crises estruturais e conflitos internos existente no país. Com isto, contradições geradas pela própria sociedade capitalista passaram a ser consideradas frutos de uma suposta infiltração cultural que enfraqueceria as características que historicamente tornavam a sociedade estadunidense vitoriosa.

Sob a retórica da nova direita, a Guerra Cultural passou a ter três importantes papéis: ela amenizava o desconforto com as nar- rativas que entraram em colapso durante os anos 1980 devido aos resultados das medidas neoliberais adotadas pela adminis- tração Ronald Reagan. Como exemplo, as que destacavam que no país todos que se esforçassem alçariam a classe média e a de que os imigrantes que se sujeitassem à assimilação seriam plenamente incorporados na vida socioeconômica. Isto signi- ficou que, com a popularização da retórica de Guerra Cultural, reforçou-se a ideia de que a pobreza e a violência advinham de tentativas de desestruturação externas à cultura do país. Dentro deste cenário, ela possibilitava o deslocamento dos problemas advindos dessas políticas para a arena cultural, ou seja, intelectuais da nova direita apoiavam-se nas ideias de valores culturais e de capital social/cultural para justificar os maus resultados de determinados grupos no interior do país33.

Como segundo papel, ela possibilitou a homogeneização das dis- putas culturais, que vinham em um crescente desde as décadas de 1960 e 1970, ao colocar todos os movimentos por direitos civis, identidade e acesso ao sonho “americano” sob o mesmo rótulo do marxismo cultural. O interessante sobre esse proces- so estava no fato de que embora essa ideia fosse repetida como um mantra na obra dos principais autores da nova direita es- tadunidense, não existiu uma grande preocupação em definir claramente quem eram esses marxistas, ou seja, a tentativa de dominação por parte destes atores apresentava-se muito mais em termos retóricos e classificatórios de rivais políticos do que propriamente por um conjunto ideológico definido. Movimen- tos que defendiam pautas contrárias à coalisão da nova direita tinham seus sentidos esvaziados, ao serem acusados de revan- chistas e fomentadores de uma crise cultural. Isto ocorria pois a pluralidade de correntes e agendas no interior da nova direita34 fazia com que, no momento da construção de alianças, os rivais de cada uma dessas correntes fossem apontados e enquadra- dos como pertencentes a uma mesma nomenclatura. Com isto, a ideia de crise cultural/moral passou a ser observada como re sultado de esforços e influências externos aos valores do país e não como frutos desta própria sociedade estadunidense.

A fomentação da ideia de crise cultural/moral levou ao tercei- ro papel da Guerra Cultural para a nova direita e concentrou-se na possibilidade de organizar alianças entre movimentos com agendas e objetivos bastante diversos para o combate desse novo inimigo em comum. Neste sentido, se até a década de 1980 todos os movimentos da nova direita tinham em comum em suas pautas o combate ao regime soviético, a década de 1990 prolife- rou alinhamentos em torno da ideia de crise e disputa cultural. Isto se tornou ainda mais visível quando se observa a resistência conservadora à presidência de Bill Clinton e as sucessivas tenta- tivas de embarreiramentos à sua agenda e pela própria tentativa de impeachment do presidente que partiram dessa aliança reacionária.

Corroborando com a leitura de que a Guerra Cultural teve um papel central na unificação da nova direita e que seu fortaleci- mento data da queda do império soviético, percebe-se que au- tores das principais correntes da nova direita estadunidense, como Alan Bloom (1989) e David Horowitz (1998), entre outros, no decorrer das décadas de 1990 e 2000, propagaram a ideia de que as crises vivenciadas na sociedade estadunidense eram resultado de uma única crise cultural e generalizaram que os responsáveis por ela eram as disciplinas ensinadas na univer- sidades, a mobilização de minorias (retratadas como revanchis- tas), os movimentos feministas e de imigrantes. Ou seja, a partir desse momento, os principais temas de conflito da sociedade passaram a encontrar sua origem em um ponto comum, a cul- tura contestatória dos anos 1960/1970 e o marxismo cultural35.

Horowitz (1998) foi um dos que reforçou essa leitura, para ele os movimentos dos anos 1960 foram base para a unificação en- tre radicais36 e liberais clássicos37 que fez com que na história estadunidense os socialistas desaparecessem sobre a nomencla- tura progressista. Ou seja, para o autor, enquanto espectros não ligados à esquerda passaram a ser identificados como conserva- dores e reacionários (até mesmo defensores do liberalismo ra- dical), socialistas passaram a ser nomeados como progressistas. Isto ocorreu, segundo a leitura do autor, no momento em que os radicais dos anos 1960 inseriram-se nos quadros universitários durante os anos 1980, fazendo com que as ideias radicais pas- sassem a ser tratadas como moderadas.

Como resultado disso, em um primeiro momento, a retórica de Guerra Cultural se mostrou bastante eficaz para esses mo- vimentos, principalmente, devido a três fatores ligados à políti- ca e à sociedade do país: o primeiro vem da estrutura eleitoral que orbitou as eleições entre o Partido Democrata e o Partido Republicano. Embora estes partidos funcionassem mais como grandes máquinas de arrecadação do que como agrupamentos ideológicos38, ao longo das décadas, com a intenção de diferen- ciar propostas do partido rival, eles foram atraindo e repelindo grupos políticos mais radicalizados39que estavam afastados da vida política por não verem suas agendas representadas nesses partidos.

O segundo fator foi a crescente percepção de uma crise de credi- bilidade nas instituições do país, principalmente, após o gover- no Nixon (1974) e o escândalo Watergate, fazendo com que elas passassem a ser questionadas por grande parte da população. Dentro desse conceito a credibilidade do congresso, do executi- vo, do judiciário e do exército entraram em queda40.

O terceiro fator foi o crescimento da credibilidade da mídia que se iniciou após a sua atuação durante os episódios que levaram a queda do governo Nixon e fez, nos anos 1990, com que os meios de comunicação abraçassem a ideia de Guerra Cultural. Isto sig- nificou que grande parte das corporações que monopolizava as notícias focasse temas que envolviam discussões culturais e as narrasse a partir de fontes que fomentavam a polarização41. O resultado dessa transformação nos noticiários do país fez com que a audiência buscasse canais de notícias que contassem nar- rativas que mais se aproximavam ao seu alinhamento político.

Esses três fatores reunidos tornaram a ideia de Guerra Cultural bastante presente na política estadunidense, possibilitando sua aceitação dentro dos dois principais partidos do país. O marco desse processo foi a convenção republicana de 1992, quando membros da nova direita tomaram conta do palanque concla- mando a existência de uma Guerra Cultural e a necessidade de vencê-la42.

A questão central envolvendo a ideia de Guerra Cultural é que durante duas décadas ela foi fomentada no país, ao ponto de ge- rar a sensação de que a população estaria dividida ao meio entre defensores de ideias progressistas e defensores de ideias con- servadoras43, ao mesmo tempo que ela rapidamente entrou em declínio ao ponto de sua nomenclatura desaparecer da mídia, dos partidos políticos e, até mesmo, dos debates das principais organizações ligadas à nova direita. Isto ocorreu pelo desgaste causado por quase 20 anos de narrativas radicalizadas44, o que levou organizações e movimentos conservadores a procurar respostas mais sofisticadas às suas pautas, ou seja, alguns movi- mentos da nova direita passaram por um processo de moderni- zação e moderação em seus discursos, resultado do processo de institucionalização na vida pública.

O enfraquecimento da ideia de Guerra Cultural não desapareceu com a polarização, embora reestruturou as alianças da nova di- reita e possibilitou o surgimento de novas correntes como o Tea Party45 e atualmente os Alt Right46. Essa reestruturação se deu a partir da utilização da internet como ferramenta política que criou alternativas ao poder das grandes redes de comunicação que perderam força como principais mediadoras das disputas políticas e culturais. James Ball (2017) demostrou como esse processo desencadeou o fenômeno definido como pós-verdades que tomou conta do debate político. Como resultado ocorreu o abandono da autoridade presente no binômio verdade e men- tira, proliferando-se narrativas que além de radicalizadas não geravam questionamentos sobre sua veracidade. Denominadas Bullshits, estas narrativas eram construídas por distorções de acontecimentos verdadeiros e passaram a ser utilizadas de for- ma recorrente no dia a dia do debate político.

Nesse sentido, durante os últimos anos foram disseminadas uma ampla variedade de posicionamentos através da internet, contrapondo a centralidade do controle da informação por parte da mídia para blogs, redes sociais e páginas, rapidamente ocu- pados por ativistas e formadores de opinião. Esta pulverização dificultou o controle sobre a veracidade das informações, o que se agrava com o esforço de alguns desses novos meios de trans- missão de opiniões para se confundirem com jornais e canais de notícias já consolidados47. Esse processo foi acentuado pela constatação de que toda a informação presente na internet é au- tomaticamente tida como verdade por grande parte das pessoas.

Vale notar que a estratégia narrada acima foi adotada em larga escala durante a última campanha eleitoral nos EUA e vem sen- do recorrente na mobilização política dos novos grupos, tanto do espectro político da direita quanto da esquerda, que surgi- ram no Brasil. O problema dessa nova estratégia política está na negação da responsabilidade pelo conteúdo publicado, uma vez que grande parte desse conteúdo surge e se prolifera por redes e comunidades virtuais, o que colabora ainda mais com a construção de uma polarização política radicalizada.

No caso brasileiro, ocorreu uma transposição da ideia de Guerra Cultural, porém, já estruturada dentro de uma lógica contempo rânea de pós-verdade. Ou seja, as táticas que foram constantemente utilizadas durante os anos 1990 e 2000 pelos movimen- tos da nova direita nos EUA, como embarreiramentos políticos, reconstrucionismo históricos, tentativas de controle dos currí- culos e, principalmente, a tentativa de encontrar um inimigo cul- tural, passaram a ser engendradas aqui com pouca mediação de partidos políticos e dos meios de comunicação48.

A nova direita brasileira acompanhou as tendências estadunidense, contudo, sem contar com os avanços trazidos pelo proces- so de amadurecimento e institucionalização que acompanhou os movimentos daquele país. O que fez com que ela repetisse as perspectivas recorrentes nos anos 1990 e 2000, defendendo que eram perseguidos e não possuíam espaço para expor suas ideias em ambientes acadêmicos, de que as minorias se vitimizam, im- pedem a liberdade de opinião e corrompem a moralidade, que a pobreza é resultado de preguiça e que os programas sociais resultam em problemas para o país49e, especialmente, que todos estes fatores são causados por uma conspiração cosmopolita e culturalmente liberalizante, influenciada por um marxismo cul- tural50, não definido, que estaria à espreita para tornar qualquer país desavisado em uma nova Cuba.

O problema envolvendo essa transposição é que, enquanto os movimentos da nova direita estadunidense tiveram origens atre- ladas a um arcabouço teórico definido a partir de intelectuais e correntes políticas que desde os anos 1960 estavam disputando espaço na democracia e existiam de forma embrionária na forma- ção e na mentalidade do país, no caso brasileiro, os movimentos surgiram de maneira retardatária, como reflexo da crise econo- mica, política e de uma narrativa de combate à corrupção, pas- sando por este motivo por algumas oscilações em suas pautas e agendas. Ou seja, alguns desses grupos retomam discursivamente o período da ditadura como momento ideal do país, apontando para um declínio da moralidade na sociedade, enquanto outros concentram-se suas críticas ao tamanho do Estado51 brasileiro, contudo, ambos classificam o mesmo “marxismo cultural”, que aqui também englobaria os movimentos de caráter social e iden titário sobre suas fileiras e seria para eles o grande rival.

Esse desenvolvimento retardatário explica o motivo da retomada de estratégias ligadas à Guerra Cultural, uma vez que as suas fontes teóricas são transferências diretas da literatura da nova direita estadunidense do início dos anos 199052. A rápida expansão do acesso às leituras conservadoras causou no Brasil sua absorção sem que houvesse uma contextualização adequa- da, tanto da pluralidade de suas correntes quanto de seu contexto específico dentro do debate cultural estadunidense. Isso fez com que obras das mais variadas correntes fossem recebi- das, por parte desse público, de forma bastante fragmentada e superficial. Isto resultaria em estranhas fusões de pensamen- tos, como o recente exemplo de atores ditos libertários, flertando com intervencionismos em suas tentativas de controlar eventos culturais e artísticos53.

Como forma de comprovar essa hipótese retoma-se à eleição de Donald Trump, selecionando declarações e manifestações de al- guns nomes e grupos proeminentes da nova direita brasileira. A leitura feita por eles sobre Trump é importante, visto que, em- bora o candidato republicano tenha profundas dificuldades em ser classificado como um conservador, um neoliberal ou mesmo como um cristão conservador e tenha sido rejeitado, durante o período eleitoral, por uma grande leva de lideranças conserva- doras, sua eleição foi, em determinados momentos, glorificada no Brasil como uma vitória contra a “esquerda”.

Isso ocorreu porque grande parte desse movimento ganhou es paço na política a partir de uma leitura bipolar de mundo, cons- truída sobre o “risco” de implantação de um modelo comunista, constantemente associado por eles às reeleições de presidentes do Partido dos Trabalhadores e à implementação de políticas com enfoque na diminuição da desigualdade. Essa ameaça par- tia do combate à expansão de governos de esquerda na Améri- ca Latina durante os anos 200054 e generalizava-se não apenas pelos países de origem destes novos movimentos, mas também pela crença de que ela parecia “ameaçar” as nações centrais do capitalismo mundial.

Por esse motivo, ao observar a eleição estadunidense, boa par- te desses novos movimentos interpretou-a como mais uma eta- pa da luta entre “capitalismo” e “comunismo”. Percebe-se isso ao analisar que entre as principais alegações das lideranças do movimento que organizou o evento em São Paulo em apoio ao candidato republicano estava a crença que a candidata Hilary Clinton seria a Dilma Rousseff americana e que ela levaria o país norte-americano ao bolivarianismo55. O que fazia com que eles concluíssem que ambas teriam cometido crimes, teriam um passado “comunista” e seriam absolutamente inaptas para co- mandar um país. Para essas lideranças, Hilary representaria um risco dos EUA se tornarem Cuba ou Venezuela, enquanto Trump seria o candidato perseguido pela mídia por ser contrário a uma suposta elite globalista.

Entender as manifestações da nova direita brasileira sobre a elei- ção e as primeiras medidas aprovadas por Donald Trump passa pela necessidade de debater o nível de organização, engajamento na ideia de Guerra Cultural e até mesmo a compreensão teórica defendida pelos seus membros. Neste sentido, resgata-se comu- nicações, artigos, mensagens de redes sociais como Twitter, entre outros, com o intuito de mapear a amplitude de posições em tor- no da figura do político republicano. Ao fazer isso, já em uma aná- lise inicial, percebesse que, para a maioria desses atores políticos, a figura de Trump representou antes de mais nada uma vitória sobre o Partido Democrata e a possibilidade de frear uma suposta tendência de “esquerdização” do continente americano.

Os primeiros a adotar esse discurso foram Amendola e Hollanda (2016), que congratularam o político Republicano, elogiando os americanos heroicos e patriotas que o escolheram esponta- neamente como presidente. Esses estadunidenses cumpriram seu dever com a pátria e com os valores da nação, resistindo ao poder maligno representado pela capacidade financeira e midi- ática dos apoiadores de Hillary Clinton. Trump garantiria a es- tabilidade nacional e possibilitaria uma aproximação entre um Brasil, “que se insere perfeitamente na Civilização Ocidental” (Amendola; Hollanda, 2016)56, e os EUA, representando uma vi- tória contra o “Consórcio Globalista”. Processo que seria reforça- do pelo impeachment de Dilma Rousseff e pela posse do hábil e capaz presidente Michel Temer.

Se a leitura inicial sobre a eleição de Trump foi bastante otimis- ta, outros membros do Instituto Liberal passaram a fazer uma autocrítica sobre o apoio dos liberais brasileiros a ele, principal- mente quando o presidente estadunidense começou a tomar de- cisões de caráter protecionista. Melo (2017) apontou que Trump era tão protecionista e não defensor do livre mercado como to- dos os governantes populistas da América Latina e que a rejei- ção à Clinton não precisava ter se tornado um apoio a Trump.

Outro membro do Instituto Liberal, Sachida (2017), segue a mesma linha ao afirmar que a política economica de Trump é a mesma adotada pelos governos Lula e Dilma, com a proteção das indústrias e ao mercado de trabalho e, por isto, levaria a re- sultados semelhantes (crise econômica e recessão). Para o autor, o presidente estadunidense deveria observar o exemplo e não repetir os erros dos governos brasileiros.

Vale destacar que embora em termos político-econômicos Trump fosse percebido por Melo (2017) e Sachida (2017) como um protecionista e populista, de uma maneira geral, os autores posicionam-se de forma semelhante a outros setores da nova di- reita brasileira. Com o primeiro autor pontuando a necessidade de impedir a expansão de um globalismo e identificando as ins- tituições multilaterais como responsáveis pelo declínio estadu- nidense e o segundo considerando que a crise econômica brasi- leira poderia servir de exemplo para evitar uma crise econômica nos EUA.

Nesse sentido, pode-se diferenciar os pontos considerados po- sitivos e negativos de Trump adotados pelo Instituto liberal a partir da fala do seu presidente Constantino (2017) que enfatizou que Trump foi eleito para “desafiar um establishment podre, furar a bolha da esquerda caviar, fechar as torneiras das ONGs “progressistas”, expor o viés escancarado da mídia mainstream (a verdadeira Fake News)” (Constantino, 2017). Ao mesmo tempo apontando que o presidente estadunidense também faria coisas absurdas do ponto de vista liberal e receberia críticas por estas medidas.

Já o Instituto Von Mises- Brasil57 mostrou-se bem mais cético com a possibilidade de resultados benéficos trazidos pela elei- ção de Donald Trump. No texto de Tucker (2016) discute-se que com Trump os republicanos ao menos deixaram de fingir defen- der alguma forma de livre mercado em sua campanha. Acres- centando que logo assegurou sua nomeação como candidato, Trump concedeu entrevistas propondo aumento dos impostos, do salário mínimo e a possibilidade de imprimir dinheiro para o pagamento da dívida pública. Isto mostrava que tanto Clinton quanto Trump enxergavam o cargo de presidente como uma ma- neira de ampliar o poder do Estado. Porém, embora não fosse o candidato ideal para os libertários, Tucker (2016) enxergava nele algumas qualidades como a desdenha ao politicamente cor- reto, o posicionamento contrário ao desarmamento e a negação da existência de aquecimento global provocado pelo homem.

Outro documento relevante publicado pelo Instituto Von Mises-Brasil foi uma carta aberta aos progressistas, na qual apontava que o medo dos progressistas sobre o presidente estadunidense era similar ao medo que os conservadores tiveram no período de implantação das políticas de Barack Obama, apontando tam- bém que:

Igualmente, os brasileiros de esquerda se deliciaram a cada investida progressista feita pelo governo nos últimos 13 anos. Aclamaram medidas como o kit-gay nas escolas pri- márias, operações de mudança de sexo pelo SUS, a tentativa de implantar “conselhos populares” (à moda dos soviets), a distribuição de dinheiro de impostos para blogs progressis- tas, todas as políticas de ação afirmativa e, claro, sem falar em todas as medidas populistas adotadas na economia, am- plamente apoiadas por vocês, e que levaram à destruição da mesma (Instituto Von Mises Brasil, 2016).

Dentro dessa leitura, o medo da vitória de um candidato é relacional ao poder concentrado no Estado, assim, os progressis tas deveriam apoiar a redução do poder estatal, o que limitaria a capacidade de ação de um candidato indesejado, acrescentando: “o fato é que, em algum momento, alguém que vocês desprezam irá controla-lo” (Instituto Von Mises Brasil, 2016).

A partir do artigo de Tucker (2016) e do conteúdo da carta nota-se algumas características que envolvem fusionismos e a permanência da ideia de Guerra Cultural no discurso dos setores neoliberais da nova direita brasileira. Primeiramente, no que se refere às questões que envolvem gênero e direito ao corpo fica visível que eles constroem uma agenda conser- vadora que vai muito além da ideia de liberdade econômica e individual. Da mesma forma, a crítica ao politicamente correto é recorrente utilizada como oposição às demandas de grupos minoritários, colocando as reclamações e críticas com relação a preconceitos como exageros e bloqueios à liberdade de opi- nião e expressão.

Se por parte dos grupos e movimentos neoliberais ainda existe a construção de um diálogo interno e de uma autocrítica, princi- palmente, quando se tratou do apoio de alguns de seus membros a eleição de Trump, outras correntes radicalizaram a perspecti- va do benefício que a vitória de Trump traria para o mundo. Essa crença fez com que não importasse quais medidas o candidato republicano tomaria em seguida, desde que a rival considerada esquerdista e “apoiada” pela mídia fosse derrotada na eleição.

Nesse caminho, Kim Kataguri do MBL (Kataguri apud Senra, 2016) comentou a vitória de Trump partindo de suas diferenças com Clinton, dando um enfoque positivo ao fato do presidente estadunidense não propor taxações sobre grandes fortunas e elencando a possibilidade da indicação de juízes conservadores para a suprema corte. Já o líder dos Revoltados Online, Marcello Reis (Reis apud Senra, 2017), declarou estar feliz após a vitó- ria do presidente republicano, ao estabelecer uma relação entre as propostas políticas de Hillary e o comunismo, acrescentan- do que a candidata democrata ridicularizou os homens brancos protestantes e que Trump governaria por eles.

Outro a comentar a vitória de Trump foi Olavo de Carvalho, que defendeu que Trump apresentou a realidade que a imprensa mascarava, acrescentando que isto também ocorre no Brasil. Olavo é sem dúvida um dos principais autores conservadores a fomentar a ideia da existência de uma Guerra Cultural, cons- tantemente acusando a mídia e uma elite globalista de manipu- larem a população em geral. Vem de Olavo de Carvalho a ideia que se tornou forte no Brasil de que os marxistas culturais utili- zavam de estratégias Gramscianas para realizar uma revolução cultural58 como é comumente retratado em seu canal Mídia Sem Máscara.

Por fim, atores relacionados a setores da direita religiosa, como o pastor Silas Malafaia, argumentaram que a vitória de Trump mostrou que a elite liberal globalizante estava desconectada da realidade e que com o advento das redes sociais ela perdeu o monopólio da informação e consequentemente a capacidade de manipular a população. “Hoje temos redes sociais” (Malafaia, 2016). Concluindo suas críticas à mídia, Malafaia comparou a vitória de Trump com a de Marcelo Crivella, na disputa pelo go- verno do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo em que declarava seu apoio ao candidato Jair Bolsonaro nas eleições de 2018:

Incrível! Crivella e Trump venceram o preconceito, a mídia, políticos e esquerdopatas. O povo não é bobo, está perce- bendo as coisas. Vergonhoso! Ver a mídia, quer no Brasil ou nos EUA, não apenas apoiando a esquerda – é até um di- reito – mas ridicularizando os contrários. Nos EUA, a mídia, sempre escolheu um dos lados, faz parte da cultura deles, mas nessas eleições, resolveram ridicularizar o oponente. No Brasil, a mídia, finge que é imparcial, que não tem lado, mas sempre favorece a esquerda e ridicularizam o pensa- mento contrário. Hipócritas! Aviso à mídia brasileira: não vai adiantar ridicularizar o Bolsonaro, como fazem hoje, se continuarem assim, vão acabar elegendo ele em 2018 (Malafaia, 2016).

Para a direita religiosa brasileira, assim como para as outras correntes da nova direita no país, a mídia é tendenciosa, res- ponsável pela propagação de ideias de esquerda e pela queda moral e crise cultural da sociedade. A fala desses membros da nova direita brasileira demonstra a estratégia de construção de uma Guerra Cultural, amarrada à negação de fontes de infor- mação que divirjam das ideias propagadas por estas lideran- ças e na existência de um inimigo sorrateiro que enganaria e corromperia as características que levariam o país ao suces- so. No caso americano isso surgiu com a intenção de justifi- car o declínio da qualidade de vida e barrar transformações sociais que se colocariam contrárias aos interesses da maioria branca/protestante que domina o país desde sua formação. No caso brasileiro, ela surge para impedir o avanço de medidas que ampliavam direitos da maioria da população que vive em condições de pobreza devido à grande desigualdade de renda presente no país. Ou seja, a fomentação de um debate em torno de valores culturais e moralidade dissimula o debate propos- to pelas correntes que historicamente traçaram a necessidade de eliminar a desigualdade como condição vital para se atingir melhores patamares. Neste sentido, a oposição comunismo/ capitalismo mascara o real debate político/econômico presen- te no país marcado pela tentativa de hegemonia de uma agenda reacionária/conservadora. Subtraindo a relevância de debates que seriam bem mais palpáveis na política do país, como o en- tre desenvolvimentistas e as correntes neoliberais, as correntes autoritárias e as liberais, entre os princípios democráticos e as rupturas e deslegitimações da democracia. Questões que se per- dem em meio à radicalização e ao constante discurso de crise moral e degeneração.

Referências

Amendola, Gilberto; Holanda, Marianne. Organizadores de ato de apoio ao Trump em São Paulo são ex-petista e ex-Passe Livre. Estado de S. Paulo, 23 de outubro de 2016. Disponível em: geral,organizadoresdeatoemapoioaotrumpemsaopaulosaoexpetistaseex- mpl,10000083802>. Acesso em: 05 de maio de 2017

Notas

1 O Direita São Paulo e o Crítica Nacional.
2 Utilizamos o termo nova direita brasileira com o intuito de esclarecer que os movi- mentos surgidos no Brasil na última década têm, ao menos em suas origens, bases inspi- radoras semelhantes aos movimentos denominados nova direita que surgiram nos EUA durante as décadas de 1960 e 1970.
3 Hunter (1991), Wolfe (1998) Fiorina, Abrams e Pope (2006), entre outros.
4 O Estado de S. Paulo – Aprovação de Temer cai para 5%. Cf. em < http://politica.esta- dao.com.br/noticias/geral,aprovacao-de-temer-cai-para-5-entre-marco-e-julho-segun- do-ibope,70001908268> Acessado em 06/08/2017.
5 Gallup – Presidential Job Approval. Cf. Pesquisa em < http://www.gallup.com/inte- ractives/185273/presidential-job-approval-center.aspx?g_source=WWWV7HP&g_ medium=topic&g_campaign=tiles > Acessado em 06/08/2018.
6 Los Angeles Times – The Legacy of Bill Clinton Cf. em < http://www.latimes.com/ nation/politics/trailguide/la-na-democratic-convention-2016-live-bill-clinton-s-lega- cy-1469576026-htmlstory.html > Acessado em 06/08/2017.
7 The New York Times – Bill Clinton 100 hundred Days. Cf. < http://www.nyti- mes.com/1993/04/29/opinion/bill-clinton-s-hundred-days.html > Acessado em 06/08/2017.
8 Em debate na Fox News, Trump respondeu que mudou de Democrata para Republicano em 1999. Muitos de seus filhos, registraram-se como republicanos apenas às vésperas do dia da eleição.
9 Valor Econômico – Transcrição diálogo Temer e Joesley Batista < http://www.valor.com. br/politica/4973614/leia-transcricao-do-dialogo-de-temer-e-joesley-sobre-cunha > Acessado em 06/08/2018.
10 The Washington Post – Trump attacks Sessions. Cf. em < https://www.wa- shingtonpost.com/world/national-security/trump-launches-new-attacks-on-ses- sions/2017/07/26/e2e10a8e-720b-11e7-8839-ec48ec4cae25_story.html?utm_term=. c31bf150e9da > Acessado em 06/08/2017.
11 The Washington Post – Trump pardon himself. Cf. < https://www.washingtonpost. com/politics/trump-says-he-has-absolute-right-to-pardon-himself-of-federal-crimes- but-denies-any-wrongdoing/2018/06/04/3d78348c-67dd-11e8-bea7-c8eb28bc52b1_ story.html?noredirect=on&utm_term=.88412f0eb910> . Acessado em 07/06/2018;
12 ISTOÉ – Temer defende parlamentarismo. Cf. < http://istoe.com.br/temer-defende-parlamentarismo-para-2018-e-diz-que-sofreu-processo-kafkiano/ > Acessado em 06/08/2017.
13 Cf. em < https://www.nytimes.com/2017/08/02/us/politics/trump-conservative-republicans.html?ribbon-ad-idx=2&rref=politics > Acessado em 06/08/2017.
14 The New York Times – Trump rises taxs Cf. em < https://www.nytimes. com/2017/05/03/opinion/donald-trumps-good-idea-raise-gas-tax.html > Acessado em 06/08/2017. E em < http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/07/1902669-governo-decide-elevar-tributos-sobre-combustiveis.shtml > Acessado em 06/08/2017. 15
15 O Estado de S. Paulo - Suspensão de Bolsas Cf em < http://ciencia.estadao.com.br/blogs/ herton-escobar/cnpq-atinge-teto-orcamentario-e-pagamento-de-bolsas-pode-ser-suspenso/ > Acessado em 06/08/2017.
16 Folha de S. Paulo – Brasil perde prestígio internacional Cf. < http://www1.folha.uol.com. br/mundo/2017/07/1903635-queda-em-ranking-expoe-falta-de-prestigio-da-politica-externa- -brasileira.shtml> Acessado em 06/08/2017.
17 AEON – Moderation in Politics Cf. debate sobre moderação política em Acessado em 06/08/2017.
18 O Estado de S. Paulo – O fator Conservador Cf. artigo em < https://opiniao.estadao. com.br/noticias/geral,o-fator-conservador,70002327118 > Acessado em 04/06/2018.
19 Como exemplo notório destaca-se o segundo turno das eleições presidenciais de 2014, no qual, Dilma Rousseff, ao tratar do tema do aborto, teve de se posicionar cau- telosamente para não perder apoio dos setores contrários à sua descriminalização em uma tentativa clara de atrair o máximo de votos religiosos/evangélicos para a sua base. 20 O movimento monarquista brasileiro é bem articulado e participa em várias frentes da chamada nova direita ou deste revival conservador que descrevemos. O movimento monarquista muitas vezes se apresenta como um “poder moderador “capaz de frear tan- to o populismo da esquerda como o risco do “fascismo” de direita.
20 O movimento monarquista muitas vezes se apresenta como um “poder moderador “capaz de frear tanto o populismo da esquerda como o risco do “fascismo” de direita.
21 Segundo dados do TSE de 2014, cerca de 60% dos eleitores brasileiros têm menos de 45 anos e se declaram solteiros. Tribunal Superior Eleitoral – estatística do eleitorado brasileiro. Cf. em < http://www.tse.jus.br/eleitor/estatisticas-de-eleitorado/estatistica- -do-eleitorado-por-sexo-e-faixa-etaria > Acessado em 04/06/2018.
22 Instituto Datafolha – o perfil dos Jovens Brasileiros. Cf. em < http://datafolha.folha. uol.com.br/opiniaopublica/2008/07/1224167-jovens-brasileiros.shtml> acessado em 04/06/2018.
23 ISTOÉ – Caminhoneiros pedem Intervenção Militar. Cf. notícia relacionada em < https://istoe.com.br/em-grupos-do-whatsapp-caminhoneiros-pedem-intervencao-militar/ >. Acessado em 07/06/2018. Ver fotos em < https://www.huffpostbrasil. com/2018/05/29/manifestantes-em-apoio-a-greve-dos-caminhoneiros-defendem-in- tervencao-militar-em-sp-e-no-df_a_23445890/ > Acessado em 07/06/2018.
24 Eleito pela primeira vez nas eleições de 1990. Atualmente no sétimo mandato. Na eleição de 2014, referente ao atual mandato, Bolsonaro foi o candidato mais votado em seu estado, RJ, com 464 mil votos.
25 Jornal Agora – Bolsonaro quer gabinete com militares. Cf. em < http://www.ago- ra.uol.com.br/brasil/2017/03/1865966-bolsonaro-promete-militares-em-meta- de-do-ministerio.shtml > Acessado em 07/06/2018.
26 BBC – Bolsonaro faz referência a torturador da ditadura Militar Cf. em < https:// www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160415_bolsonaro_ongs_oab_mdb > Acessado em 07/06/2018.
27 Folha de S. Paulo – Bolsonaro faz declaração sobre paralisação dos caminhonei- ros. Cf. em < https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/05/a-paralisacao-precisa-acabar-nao-interessa-a-mim-ao-brasil-o-caos-diz-bolsonaro.shtml > Acessado em 07/06/2018.
28 Há um debate e tendência global de apelo a ideia de “homem forte”. New Statesman– The Strongman. Cf. debate em < https://www.newstatesman.com/world/2018/05/ how-we-entered-age-strongman > Acessado em 07/06/2018.
29 Casos de Guerras Culturais são reincidentes na história como o exemplo da Kul- turkampf de Bismark durante a unificação alemã ou o exemplo mais contemporâneo na ideia de Culture Wars que despontou nos EUA dos anos 1990/2000.
30 Wolfe (1998) e Fiorina, Abrams e Pope (2006) se esforçaram para demonstrar que a ideia de Guerra Cultural era mais um esforço de ativistas e da mídia do que uma real divisão da sociedade.
31 Antes do final dos anos 1980, embora existissem disputas relacionadas a questões culturais, membros de grupos da nova direita, principalmente os ligados à direita religio- sa, utilizavam a ideia de Guerra Pela Alma da América, denominando-se “Guerreiros de Cristo”. A ideia de Guerra Cultural acabou englobando a aliança de movimentos variados em uma luta política única, o que possibilitou o fortalecimento da agenda da nova direita no interior do Partido Republicano.
32 Cultura aqui entendida por esses atores políticos como única e universal, à qual, os EUA teriam a liderança moral sobre uma ideia de progresso humano linear.
33 Como exemplo o trabalho de Fukuyama (1996).
34 Entre elas o apoio a Israel, a crítica aos programas governamentais assistencialistas, o liberalismo econômico, os debates sobre aborto, educação sexual, controle da imigração, entre outras.
35 É importante destacar que essa passagem não está defendendo que o modo de vida estadunidense não sofreu oposições no interior de sua sociedade durante as décadas de 1990 e 2000, nem afirma que a compreensão e dinâmica envolvendo o conflito entre ideias ditas progressistas e reacionárias se restringiram apenas a esse período. O que está em foco aqui é que, a partir da década de 1990, a ideia da existência de uma Guerra Cultural transportou-se para o centro da narrativa política do país e virou o principal componente aglutinador de correntes ligadas aos setores da nova direita no país.
36 Entendido por Horowitz (1998) como socialistas e marxistas.
37 A base política que se firmou no interior do Partido Democrata sob forte influência das políticas Rooseveltianas.
38 Uma vez que correntes semelhantes estiveram presentes no interior de ambos parti- dos até os anos 1960.
39 Principalmente a partir de 1964 com a candidatura de Barry Goldwater para a presi- dência do país pelo Partido Republicano a partir de uma agenda conservadora.
40 Segundo Kaspi (2002) apenas a imprensa (escrita e televisionada) aumentou sua cre- dibilidade durante os escândalos envolvendo Nixon.
41 Fiorina (2007) debateu que a Guerra Cultural em realidade nunca ocorreu no país, uma vez que a maioria dos estadunidenses demonstrava pouco interesse sobre questões políticas e era pouco disposta a entrar em conflito por temas relacionados a questões culturais. Para ele, apenas uma pequena parcela da população estaria disposta a batalhar em torno desses temas, contudo, toda vez que a mídia tratava sobre qualquer tema relacionado à cultura ela optava por procurar pessoas engajadas para opinar sobre estes assuntos.
42 Essa convenção ficou marcada pelo discurso realizado por Pat Buchaman (1992).
43 Fiorina (2007) argumenta que a maioria dos estadunidenses possui pontos de vistas progressistas e conservadores, dependendo do tema ou contexto.
44 Um exemplo disso pode ser percebido pela mudança no campo da própria direita re- ligiosa, com um visível enfraquecimento de lideranças que adotavam um discurso mais radicalizado.
45 Com um forte enfoque em uma leitura rígida da constituição.
46 Que tem como característica a utilização da internet para retomar questões raciais e de supremacia branca que tinham perdido a influência dentro dos movimentos ligados à nova direita em décadas anteriores.
47 Um exemplo disso pode ser apontado no caso do site alinhado à nova direita folhapolitica. org que foi batizado com um nome que é facilmente associado a jornais reconhecidos no Bra- sil e produz um material jornalístico sem qualquer preocupação de neutralidade.
48 O que se vê no Brasil é muito mais uma corrida desenfreada por parte deles no intuito de incluir esses novos atores. Isto explica a busca dos partidos políticos por eles e a contratação de membros destes movimentos por meios de comunicação consolidados.
49 Aqui as três teses da intransigência, como apontadas por Hirschman (1991), apare- cem frequentemente, fazendo com que para esses atores os programas sociais fossem interpretados como algo que atingem pessoas que não merecem, não produzem os resultados esperados ou ainda são um risco para a democracia.
50 Isso possibilita a negação de qualquer fonte científica e notícias que não convenham ao discurso desses novos movimentos.
51 Logicamente esses dois pontos contemplam duas correntes diferentes no interior da ideia de nova direita: conservadores tradicionais e libertários.
52 Resultado da abertura economica dos anos 1990, da expansão da venda de livros pela internet, do interesse e admiração de atores que buscavam explicações para os problemas do país a partir de intelectuais estadunidenses e do esforço de grupos estadunidenses que durante as últimas décadas organizaram eventos, workshops e palestras para propagar suas ideias por grande parte da América Latina (entre eles a Atlas Foundation, a American Tax Reform e a grande maioria dos grupos da direita religiosa).
53 Como nos recentes eventos envolvendo o MBL.
54 Mesmo com esses governos em sua maioria adotando modelos neodesenvolvimentistas que não rompiam com os compromissos com o mercado financeiro internacional e raramente propondo projetos de estatização ou de coletivização dos modos de pro dução.
55 Como presente na reportagem publicada no Estado de S. Paulo e realizada por Amendola e Holanda (2016).
56 Nota-se um esforço por parte do autor para enxergar um Brasil que possui origens cultu- rais semelhantes aos EUA, embora, nenhum autor da nova direita estadunidense tenha sequer considerado o Brasil como possível membro da dita civilização Ocidental.
57 Fundado em 2007 por Hélio Coutinho Beltrão.
58 Mídia Sem Máscara – canal disponível em < https://www.youtube.com/ watch?v=OlR8soGjPtc.> Acessado em 12/06/2018.
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R