Artigos

Pejotização: O Ardil Jurídico do Empresário de Si Mesmo e o Novo Espírito do Capitalismo

Attila Magno e Silva Barbosa
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
Juliani Veronezi Orbem
Universidade Federal de Pelotas, Brasil

Revista TOMO

Universidade Federal de Sergipe, Brasil

ISSN-e: 1517-4549

Periodicidade: Semestral

núm. 33, 2018

revistatomo@gmail.com

Recepção: 07 Setembro 2017

Aprovação: 27 Julho 2018



DOI: https://doi.org/10.21669/tomo.v0i33.7205

Resumo: No Brasil, o Direito do Trabalho, a partir das décadas de 1980 e 1990, passou a sofrer os efeitos de uma disputa entre duas ideologias que estão associadas aos modos de justificação das atividades econômicas capitalistas. Com isso em vista, o objetivo deste artigo é demonstrar que a pejotização é uma modalidade de externalização alinhada ao ter- ceiro espírito do capitalismo e apresentada como uma expressão jurí- dica do discurso do empresário de si mesmo. Quanto à metodologia da pesquisa: primeiro, foram analisadas 123 jurisprudências do TRT da 4ª Região/RS e do TST, correspondentes ao período de 01/01/2008 a 15/07/2014; e posteriormente foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas com magistrados do TRT da 4ª Região/RS, visando compreender as suas percepções sobre o papel da Justiça do Trabalho, a pejotização e o enquadramento desta nas fronteiras entre o Direito Civil e o Direito do Trabalho.

Palavras-chave: Direito do Trabalho, Pejotização, Empresário de Si Mesmo, Terceiro Espírito do Capitalismo.

Abstract: The aim of this article is to analyse the so-called independent contrac- tor policy (ICP) as a form of outsourcing that is inserted in ‘the third spirit of capitalism’, which is presented as a legal expression of the ‘en- trepreneur of himself’. The Labour Law in Brazil began to suffer, from the 1980s onwards, the effects of a dispute between two ideologies as- sociated with the modes of justification of the capitalist economic acti- vities: the formal/regulated labour relations and the self-employment. The investigation draws on a multi-scalar methodological framework which includes: Firstly, an archival analysis in which it was analysed 123 case law of the TRT, from the 4th Region/RS and of the TST, from 01/01/2008 to 07/15/2014. Secondly, seven semi-structured in-dep- th interviews with magistrates from the TRT of the 4th Region / RS, aiming to understand their perceptions on the role of the labour courts on the ICP and on the inclusion of ICP as something in the border be- tween civil and Labour Law.

Keywords: Labour Law, Independent Contractor Policy, Entrepreneur of Himself, Third Spirit of Capitalism.

Resumen: En Brasil, el Derecho del Trabajo, a partir de las décadas de 1980 y 1990, pasó a sufrir los efectos de una disputa entre dos ideologías que están asociadas a los modos de justificación de las actividades económicas capitalistas. Con esto en vista, el objetivo de este artículo es demostrar que la pejotización es una modalidad de externalización ali- neada al tercer espíritu del capitalismo y presentada como una expre- sión jurídica del discurso del empresario de sí mismo. En cuanto a la metodología de la investigación: primero, se analizaron 123 jurispru- dencias del TRT de la 4ª Región/RS y del TST, correspondientes al pe- ríodo del 01/01/2008 al 15/07/2014; y posteriormente se realizaron siete entrevistas semiestructuradas con magistrados del TRT de la 4ª Región/RS, buscando comprender sus percepciones sobre el papel de la Justicia del Trabajo, la pejotización y el encuadramiento de ésta en las fronteras entre el Derecho Civil y el Derecho del Trabajo.

Palabras clave: Derecho del Trabajo, Pejotización, Empresario de sí mismo, Tercer Espíritu del Capitalismo.

Introdução

No Brasil, a partir das décadas de 1980 e 1990, o Direito do Trabalho passou a sofrer os efeitos de uma disputa entre duas ideologias associadas aos modos de justificação das atividades econômicas capitalistas. Aqui, o termo ideologia não é enten- dido em um sentido redutor, associado a um discurso morali- zador que encobre interesses materiais e que habitualmente é desmentido pelas práticas, mas, sim, como “um conjunto de crenças compartilhadas, inscritas em instituições, implicadas em ações e, portanto, ancoradas na realidade” (Boltanski e Chia pello, 2009, p. 33). Em outras palavras, trata-se de uma dispu- ta entre dois modos de justificação moral que tentam impor-se como espírito do capitalismo. Nos termos de Max Weber (1990), trata-se do estabelecimento dos motivos éticos que justificam para o indivíduo o seu engajamento no capitalismo.

A esse respeito, para Ramos Filho (2012), a Constituição Federal de 1988 expressaria uma disputa entre o segundo e o terceiro espíritos do capitalismo, pois consagrou tanto o princípio do valor social do trabalho quanto o da livre iniciativa. Em termos sociológicos, o segundo espírito afirmaria a relação de emprego e as garantias sociais dela decorrentes, o que corresponde à proteção jurídica do trabalhador. Já o terceiro espírito manifes- tar-se-ia na forma de medidas de flexibilização e/ou desregulamentação que promovem modalidades de contrato de trabalho de inspiração civilista, visando reduzir ou mesmo eliminar pro teções trabalhistas e, consequentemente, fortalecer a livre iniciativa. A pejotização é uma dessas modalidades.

O objetivo deste artigo é compreender a pejotização, isto é, a conversão do trabalhador em pessoa jurídica prestadora de ser- viços, enquanto uma forma de externalização que se inscreve no terceiro espírito do capitalismo e como uma expressão jurídica do discurso do empresário de si mesmo, procurando identificar a posição prevalente no âmbito da Justiça do Trabalho brasileira sobre o tema.

Para fins metodológicos, na pesquisa que deu origem a este arti go, utilizamos a ferramenta de busca avançada de jurisprudência nos sites do Tribunal Regional do Trabalho – TRT - da 4ª Região/ RS e do Tribunal Superior do Trabalho – TST, visando identificar e analisar apenas os acórdãos1 que continham a denominação pejotização. A esse respeito, identificamos 123 jurisprudências proferidas no período de 01/01/2008 a 15/07/2014. Aqui, faz-se necessário ressaltar que a pejotização também é conhecida como contratação entre empresas, interposição de empresas, “PJs” ou empresa do “eu sozinho”. Porém, a denominação pejotização foi utilizada pela primeira vez no âmbito do TST no ano de 2008 e do TRT da 4ª Região/RS em 2011, daí o recorte temporal da pesquisa, considerando também que a mesma foi finalizada em 2014. Da mesma forma, entre agosto e novembro de 2014, foram realizadas sete entrevistas semiestruturadas com juízes do TRT da 4ª Região/RS, mais especificamente, um desembargador e seis juízes da Justiça do Trabalho. O propósito das en- trevistas foi identificar as posições dos magistrados sobre a pejotização e os seus entendimentos de como a justiça do trabalho deve atuar diante do tema.

As mutações do emprego formal no Brasil

A regulação das relações de trabalho inaugurada com a Conso- lidação das Leis Trabalhistas – CLT, quando da sanção do Decre- to-Lei nº 5.452 de 1º de maio de 1943, pelo então presidente Getúlio Vargas, foi estruturada em torno do emprego formal assalariado, expresso no contrato de trabalho por prazo inde- terminado. Todavia, desde o início, reconheceu-se o trabalho au- tônomo, correspondente ao exercício de atividade profissional sem vínculo empregatício. Com o tempo, outras modalidades de contrato surgiram, como o contrato individual de trabalho por obra certa ou serviço certo, instituído pela Lei nº 2.959/56, de prazo determinado para a prestação de “serviços específicos” na construção civil.

Entre as especificidades do mercado de trabalho brasileiro pós-CLT, a informalidade das relações de trabalho apresenta-se como um componente estrutural (perene, enraizado e marcan- te), jamais como um dado conjuntural (transitório, contingente e irrelevante). Nesse processo, como indica Cacciamali (2000, p. 166) “duas categorias de trabalhadores (...) são predominantes (...): os assalariados sem registro e os trabalhadores por conta própria”. A maior parte dos que compõe a primeira categoria é “contratada à margem da regulação do mercado de trabalho, à margem das regras dos contratos por tempo indeterminado e em tempo integral e da organização sindical” (Cacciamali, 2000, p. 166). Quanto à segunda, o seu elemento caracterizador, consi derando particularmente o caso de microempresários que ope- ram com “baixo nível de produtividade com relação às empresas capitalistas, é que compreende indivíduos com pouco nível de capital fixo ou humano, que são simultaneamente patrões e em- pregados de si mesmos” (Cacciamali, 2000, p. 167).

Não obstante a regulamentação do mercado de trabalho no Bra- sil ter sido estruturada em torno da relação de emprego assalariado, quando se considera o processo de industrialização intensivo ocorrido a partir dos anos de 1950, cumpre enfatizar a fragilidade da disseminação deste modelo estruturante. A esse respeito, à margem do emprego formal protegido pela legislação trabalhista, sempre existiu um contingente considerável de tra balhadores atuando na informalidade, em atividades como microempreendimentos, trabalho por conta própria e trabalho sem registro ou assalariamento sem registro2 (Cacciamali, 1989, 2000; Leite, 2009).

Em decorrência da vulnerabilidade das condições de vida de grande parcela da população, um número elevado de pessoas migrou para os principais centros urbanos no referido período, atraído pela formação da indústria nacional e pela promessa de acesso a direitos como salário mínimo, educação, saúde e previ- dência social. Todavia, o processo de inclusão nesse universo de direitos deu-se de forma desigual e intermitente. Apesar de uma adesão expressiva dos trabalhadores à solicitação da carteira profissional3, acreditando ser possível incorporarem-se no mer cado formal em consolidação, nem todos conseguiam ter acesso ao emprego formal e protegido (Cardoso, 2010).

Isso significa dizer que, no caso brasileiro, a condição salarial não se constitui como um sistema universal de direitos, pois a proteção social trabalhista e previdenciária não se espraiou a todos os segmentos da sociedade. Entretanto, em que pese o fato de não ter sido efetivada uma sociedade salarial, como por exemplo, efetivou-se na França, não podemos desconsiderar que, no período compreendido entre os anos de 1930 e 1980, houve uma estruturação do mercado de trabalho urbano e industrial

Para fins elucidativos, a sociedade salarial consiste em um ar- ranjo sociopolítico de enfrentamento da chamada questão social, isto é, do problema da pauperização da classe operária na Europa Ocidental do século XIX. Nela, instituiu-se a condição salarial, entendendo-se que assalariar alguém significa prender sua disponibilidade e competências em longo prazo, em oposição à condição mais precária de assalariado, que consistia em alugar um indivíduo para executar uma tarefa pontual. Como resultado, assegurou-se aos trabalhadores um conjunto de sub venções extratrabalho (auxílio doença, auxílio acidente, seguro desemprego, aposentadoria, etc.) e a inscrição ampliada na vida social pela via do acesso ao consumo de massa, à instrução primária, ao lazer e à habitação popular (Castel, 2003).

No Brasil, se não é possível falar em sociedade salarial, ao me- nos, quando se considera a análise realizada por Wanderlei Gui- lherme dos Santos (1979) sobre a política econômico-social do pós-1930, pode-se falar em “cidadania regulada”. Um tipo de ci dadania que corresponde não a um código de valores políticos, mas, sim, a um sistema de estratificação ocupacional definido por norma legal, no qual é considerado cidadão todo aquele cuja ocupação é definida por lei. Em outras palavras, não se trata do reconhecimento de que se é membro de uma comunidade política, mas, sim, do exercício de uma profissão, isto é, do lugar ocupado na estrutura produtiva.

No que se refere às regras originalmente previstas na CLT, pode-se dizer que a relação de emprego teve na Lei nº 5.107/66, isto é, a lei que criou o regime do Fundo de Garantia de Tempo de Serviço – FGTS, a sua primeira inflexão flexibilizadora. Isto porque, ao ser substituído o regime da estabilidade decenal, reconheceu-se o poder do empregador resilir o contrato de trabalho unilateralmente a qualquer tempo. O que se seguiu depois foi uma série de leis autorizando a subcontratação em casos especí ficos ou em certas circunstâncias.

Em 1967, com o Decreto-Lei nº 200/67, surge no direito brasi- leiro a primeira previsão legal dispondo de forma direta e explícita sobre a permissão da subcontratação. O seu conteúdo refere-se à descentralização do serviço público visando a melhor execução das tarefas de planejamento, coordenação, supervisão e controle, assim como impedir o crescimento desmesurado da máquina administrativa. Para tal, autorizou para toda a Administração Pública Federal a contratação de serviços por empresa privada suficientemente desenvolvida e capacitada a desempenhar os encargos de execução.

Em 1974, com a sanção da Lei n° 6.019/74, a chamada Lei do Trabalho Temporário, autorizou-se que empresas contratassem empresa especializada em fornecimento de mão de obra temporária em situações justificadas4. O período de contratação per- mitido era de três meses5, prorrogável por mais 45 dias, caso comprovada a necessidade mediante autorização do Ministério do Trabalho. A intermediação foi permitida para atender à ne- cessidade transitória de mão de obra, isto é, para substituição temporária de pessoal regular e permanente ou em casos de acréscimo extraordinário de serviços. A referida lei em si não precariza direitos, pois, na vigência do vínculo empregatício, as- segura todo um conjunto de garantias6 ao trabalhador temporário. O que não significa que não esteja inscrita em um esforço de construção de suportes legais de desoneração de encargos trabalhistas com a contratação direta de pessoal.

Para além da retórica política, de um ponto de vista jurídico, a flexibilização das relações de trabalho não necessariamente cor- responde à precarização de direitos, por mais que, com certa frequência, manifestem-se hibridizadas no mercado de trabalho brasileiro. Nos casos concretos é preciso verificar as garantias que permanecem dispostas em lei, em convenções coletivas e em acordos coletivos, e em que medida a ofensiva flexibilizadora e/ou desregulamentadora atua no sentido de, se não desman- telar direitos trabalhistas, no mínimo torná-los menos efetivos. Por sua vez, de um ponto de vista sociológico, a emergência de formas mais flexíveis de contrato de trabalho representa bem mais do que o desenvolvimento de estratégias empresarias de redução de custos visando o aumento da competitividade e a adequação às novas configurações dos mercados no capitalismo globalizado. Elas estão no cerne da reestruturação da acumu- lação capitalista, atuando na gestação de formas menos rígidas de valorização do capital, apoiando-se assim na flexibilidade dos processos de trabalho, dos mercados de trabalho, dos produtos e dos padrões de consumo (Harvey, 2004).

Ademais, como esclarece Cardoso (2013, pp. 74-75):

(...) o mercado de trabalho brasileiro sempre foi flexível e precário ao longo do tempo. Isso quer dizer que esse mercado não pode ser caracterizado, sem maiores e extensas justificativas, pelos termos “precarização” ou “flexibiliza- ção” de relações de trabalho antes universal ou majoritaria- mente formais ou reguladas. Esses termos são comuns na literatura sobre os países da Organização para a Coopera- ção e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que analisa as transições nos mercados de trabalho durante a onda neoli- beral dos anos 1980 e 1990 e também nos anos 2000, e eles denotam um processo de deterioração de empregos antes regulados e “bons”. É verdade que a urbanização significou condições cada vez melhores do mercado de trabalho (mas, ainda assim muito ruins) por comparação com o emprego rural, ao menos até meados dos anos 1970, quando a taxa de formalização dos empregos atingiu 60% da PEA. Mas essa taxa se mostrou um teto para as relações de trabalho reguladas pelo Estado, que caíram a menos de 50% durante os anos 1980 e a perto de 42% nos anos 1990, de 50% du- rante os anos 1980 e perto de 42% nos anos 1990, apenas para retornar aos mesmos 50% em anos mais recentes.

Feito esse esclarecimento, é preciso considerar que, devido a violações frequentes de direitos relacionados ao então crescen te fenômeno da subcontratação, o TST decidiu editar em 1986 o enunciado nº 256, no qual entendia que a subcontratação lícita caberia apenas em duas hipóteses excepcionais ao padrão esta belecido pela CLT: 1ª) contratação de trabalhadores por empresa interposta, como disposto na lei do trabalho temporário; e 2ª) nos casos dos serviços de transporte de valores e de vigilância bancária, como disposto na Lei nº 7.102/83.

Em 1993, o TST reviu o enunciado nº 256 e editou a Súmula nº 331, ampliando as hipóteses permissivas do uso da subcontratação para serviços de conservação e limpeza, bem como para serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador de serviços, desde que inexistentes a pessoalidade e a subordinação direta do trabalhador. Na prática, mais do que ampliar suas possi- bilidades de uso, reconheceu-se sua licitude. A partir daí o Direito do Trabalho brasileiro, então baseado primordialmente em um modelo bilateral de contratação, admitiu um modelo trilateral, consagrando o que passou a ser chamado de terceirização.

Nos países capitalistas, de um modo geral, com maior ou menor intensidade, dependendo do tipo de rede de proteção jurídica do trabalho instituída no período pós-segunda guerra, o cenário configurado a partir dos anos de 1970 com a deflagração da lógica da reestruturação produtiva e da flexibilização das relações de trabalho promove uma perda gradativa do predomínio do contrato de trabalho por tempo indeterminado e em tempo inte gral. Segundo Castel (2003; 2005), esse tipo de contrato possibi lita aos trabalhadores vislumbrarem certa estabilidade em suas vidas devido ao sistema de proteção social que lhe é inerente.

Em um cenário como esse, a precarização de direitos passa a caracterizar as novas formas de ocupação e impele os trabalha- dores a adaptarem-se às situações de vulnerabilidade social que elas promovem. Deste modo, transitar em um mundo de instabi lidade e insegurança torna-se um traço recorrente na trajetória de vida de grande parte dos trabalhadores. O trabalho precário, como destaca Tiddi (2002, p. 25) em sua análise da flexibilização das relações de trabalho na Itália, encontra-se “em uma frontei ra entre a ocupação e não-ocupação”, o que acarreta a incerteza do reconhecimento jurídico de direitos sociais.

No caso brasileiro, na década de 1980, com a desarticulação do modelo de desenvolvimento industrial baseado na substituição de importações foram deflagradas profundas transformações na estrutura do mercado de trabalho, dentre elas: um forte desloca- mento das ocupações do setor industrial para o setor terciário; a ampliação das categorias de trabalhadores sem carteira assinada, entre os quais pequenos empregadores, trabalhadores por con- ta própria e trabalhadores não remunerados; precarização dos postos de trabalhos, caracterizada, entre outras coisas, por situ- ações de desassalariamento formal e perda de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários; estagnação da remuneração dos postos assalariados; agravamento da má distribuição de renda; e, por fim, aumento dos níveis de desocupação e desemprego, que se manifestou com mais intensidade nos anos de 1990 (Medeiros & Salm, 1994; Mattoso & Pochmann, 1998; Cardoso Jr., 2001).

Nessa mesma década, inicia-se no país a implantação de processos de reestruturação produtiva no setor industrial, contribuindo dire tamente para um cenário de desemprego estrutural e forçando um deslocamento de postos de trabalho para o setor de serviços. Como consequência, eclodiram modalidades de contrato de trabalho até então tidas como “atípicas”, distintas do contrato de trabalho em tem po integral e por prazo indeterminado celebrado na origem da CLT como modalidade contratual caracterizadora da relação de emprego formal (Druck e Thébaud-Mony, 2007; Lima, 2007; Carelli, 2010).

A abertura econômica iniciada no governo Fernando Collor de Mello (1990-1992) e as privatizações promovidas no governo Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) também foram decisivas para o fomento de novos arranjos no mercado de trabalho brasileiro. No que concerne mais especificamente ao segundo, adotou-se um receituário de inspiração neoliberal7 que, entre outras coisas, promoveu medidas flexibilizadoras da legislação trabalhista, legitimando modalidades de contratação alternativas à relação de emprego celebrada na CLT8.

Ressignificação das relações de trabalho e o advento da pejotização

Na década de 1990, os discursos empresariais apresentaram a reestruturação produtiva como mitigadora de estruturas organi- zacionais hierárquicas e de práticas de gestão autoritárias. Des- de então, têm sido promovidas relações de trabalho nas quais a subordinação é ressignificada pelo modelo de empresa flexível e pela exigência de um novo perfil de trabalhador. Aqui, nos ali- nhamos à Kovács (2001), quando ela afirma que as empresas flexíveis são ricas em formas de contrato de trabalho, mas po- bres em emprego, pois a focalização na atividade central cria um número reduzido de empregos de base, bem pagos, estáveis e com perspectivas de desenvolvimento profissional.

O perfil de trabalhador ora exigido não mais corresponde à ima- gem do especialista que basicamente responde aos comandos ge- renciais, mas a um trabalhador multifuncional, proativo, engajado subjetivamente nos objetivos e metas da empresa. Não por outra razão, ocorre uma conversão discursiva do trabalhador à condição de colaborador, mesmo que na prática relações assimétricas de poder permaneçam, se não mais na forma de controles rígidos e autoritários, expressos em moldes disciplinares definidos por uma repartição do espaço em meios fechados, entre os quais as fábricas com suas ordenações, então como modulações ou moldagens que expressam formas de controle mais fluídas e produzem uma inter- penetração dos espaços do trabalho e do não-trabalho pela via de modelos de gestão que instauram um tempo contínuo no qual os indivíduos encontraram-se submetidos à uma situação de forma- ção e avaliação permanente (Deleuze, 1992; Costa, 2004).

O advento da empresa flexível e a exigência desse novo perfil de trabalhador promoveram uma inflexão no modelo do posto de trabalho, associando o trabalhador à imagem de um ‘colaborador’ que almeja certa ‘autonomia’ no ambiente laboral. O referido modelo, gradativamente construído a partir do final do século XVIII e celebrado pela racionalização do trabalho taylorista no final do século XIX, triunfou sobre o modelo da profissão herdado das corporações de ofício e impôs-se como padrão de formação profissional nas fábricas de inspiração fordista durante boa parte do século XX. No modelo do posto de trabalho, “o trabalhador é um simples “portador de capa- cidades” (...) as capacidades eram, sobretudo, físicas: destreza manual, habilidade gestual, força física e resistência” (Zarifian, 2011, p. 38).

Nas empresas flexíveis, o que se testemunha é a celebração do modelo da competência como supressor do modelo do posto de trabalho pela via de uma apropriação discursiva dos departa- mentos de RH das empresas. Deste modo, é evocada a figura do “empreendedor de si mesmo”, convertendo-se a ‘autonomia’ e a autorresponsabilização em critérios de acesso e manutenção de um emprego qualificado. No modelo da competência:

A autonomia é definida pelo contrário das normas. Ganha-se em autonomia pela diminuição das normas [...]. É uma verdadeira inversão de valores em relação à tradição taylorista; a diminuição das normas se torna algo benéfico, o que mostra, indiretamente, que os empregos com mais normas são, se não um mal, pelo menos uma situação pouco desejável e valorizada (Zarifian, 2003, p. 52).

Nesse sentido, pode-se dizer que o molde disciplinar do posto de trabalho sai de cena e a modulação da autorresponsabilidade pela aquisição das habilidades, competências e conhecimentos que viabilizam a permanência na condição de empregabilidade impõe-se como um exercício contínuo de engajamento. Além das capacidades físicas, cognitivas e da formação educacional adequada, é demandado do trabalhador o desenvolvimento de habilidades relacionais, pois o isolamento no posto de trabalho é substituído pelas células de produção, pelo trabalho por proje- tos e pelo trabalho em redes.

A exigência desse novo perfil de trabalhador é uma estratégia empresarial inscrita no que Boltanski e Chiapello (2009) chamam de terceiro espírito do capitalismo, no qual o que está em curso é a substituição das aspirações típicas do segundo espírito do capitalismo, isto é, a substituição das aspirações ligadas ao estabelecimento de uma trajetória de vida pessoal fortemente associada à vida profissional e do emprego como sinônimo de trabalho protegido por aspirações de maior “autonomia” na con dução das tarefas e de maior possibilidade de desenvolvimento pessoal no ambiente de trabalho. O que se tenta disseminar é que esses novos arranjos apresentam remunerações mais satis- fatórias e maior realização profissional e pessoal.

Esse terceiro espírito do capitalismo enfatiza, enquanto regi- me de justificação moral, a busca pela satisfação profissional e pessoal a partir de formas de relações de trabalho dissociadas do trabalho subordinado. No quadro socioeconômico que lhe é correspondente são disseminadas modalidades de trabalho não mais estabelecidas sob a égide do contrato por prazo indetermi- nado e em tempo integral, como por exemplo: o trabalho tem- porário; o trabalho em tempo parcial; o trabalho por conta pró- pria; a terceirização; e mais recentemente a pejotização. Estas modalidades são apresentadas como incentivadoras da imagem de um indivíduo que se responsabiliza por sua empregabilidade e que se dispõe a aderir aos objetivos das empresas pelo tempo que estas estiverem dispostas a lhe empregar (Barbosa, 2011).

Nessa nova ordem social fomentam-se formas de individualis- mo que implicam na valorização de uma lógica de competitividade contínua entre os indivíduos e na fragilização de laços de solidariedade de classe que possibilitam a defesa de interesses comuns. Nela, a ênfase está na autorresponsabilidade como caminho para o acesso a melhores níveis de renda e de padrão de consumo. Assim, o termo assalariamento, como expressão do trabalho livre e protegido, cede lugar ao termo empregabilidade, que de modo instrumental é apresentado como expressão de atributos pessoais e como um ato de engajamento contínuo do indivíduo na busca por adaptar-se às exigências do mercado de trabalho (Silva, 2003).

O modelo de organização flexível do trabalho consiste, funda- mentalmente, em uma estratégia de minimização dos custos com contratação e gestão direta de mão de obra mediante formas de externalização baseadas em contratos de trabalho flexíveis. Ele dá suporte prático-discursivo às ações patronais no sentido de justificar a utilização de formas de trabalho até então considera- das “atípicas”. Dentre essas, outra que assume destaque, ao lado da terceirização, é a contratação de empresas individuais. Aqui, os discursos empresariais tentam construí-la como dotada da potencialidade de autonomização individual em relação ao poder patronal, uma modalidade de relação de trabalho que impe le o trabalhador a alterar sua personalidade jurídica de pessoa física contratada para pessoa jurídica prestadora de serviços.

No Brasil, essa modalidade de contratação tem sido designada no meio jurídico pelo neologismo pejotização, remetendo ao ente da pessoa jurídica. Assim, o trabalhador que constitui uma pessoa jurídica para prestação de serviços passa a ser designado pela abreviação PJ – ‘pejota’. Nos termos propostos por Foucault (2008), em sua análise sobre o neoliberalismo, entendemos ser possível dizer que estamos diante da objetivação jurídica da imagem do empresário de si mesmo. Vejamos o que ele nos diz a esse respeito:

Homo oeconomicus como parceiro da troca, teoria da utilidade a partir de uma problemática das necessidades: é isso que caracteriza a concepção clássica de homo oeconomicus (...). No neoliberalismo – e ele não esconde, ele proclama isso -, também vai-se encontrar uma teoria do homo oeconomicus, aqui, não é em absoluto um parceiro da troca. O homo oeconomicus é um empresário, e um empresário de si mesmo. Essa coisa é tão verdadeira que, praticamente, o objeto de todas as análises que fazem os neoliberais será substituir, a cada instante, o homo oeconomicus parceiro da troca por um homo oeconomicus empresário de si mes- mo, sendo ele próprio seu capital, sendo para si mesmo seu produtor, sendo para si mesmo a fonte de [sua] renda (Fou- cault, 2008, pp. 310-311).

A pejotização, enquanto forma de externalização, de modo si- milar à terceirização, é uma estratégia empresarial de redução de custos com a contratação direta de mão de obra. O ardil consiste em transformar o trabalhador assalariado (pessoa física) em empresário (pessoa jurídica), desconstituindo o seu status de sujeito de direitos trabalhistas. Em outras palavras, o contra- to, ao ser celebrado entre empresas, passaria a ser regido por normas de direito comercial, configurando assim uma situação na qual supostamente prepondera uma relação “entre iguais” na pactuação dos termos contratuais.

No Brasil, a imposição unilateral de condições pelo empregador para a contratação é uma prática usual, vide o que se seguiu à instituição do regime do FGTS pela Lei nº 5.107/66. No período compreendido entre o advento desta e a promulgação da CF/88, no qual o regime era opcional, os empregadores pressionavam os empregados para que fizessem essa opção. Com o estabeleci- mento da obrigatoriedade de adesão ao regime fundiário pelo texto constitucional, a estabilidade decenal prevista no art. 492 da CLT caiu em desuso.

Além disso, existe um conjunto de fatores que faz com que par- te considerável da população economicamente ativa, a fim de acessar uma fonte de renda, acabe submetida a postos de traba- lho desprotegidos pela legislação trabalhista. Entre tais fatores destacam-se: a estrutura limitada dos órgãos de fiscalização; os baixos valores das multas, que se não chegam a incentivar, tam- pouco desestimulam o descumprimento da legislação trabalhis- ta; a morosidade da Justiça do Trabalho e a sua quase conversão a uma justiça dos desempregados, em que, por vezes, força-se o trabalhador a aceitar acordos nos quais se renuncia a direitos trabalhistas, em princípio irrenunciáveis; a fragilização dos sindicatos como organizações representativas; o desemprego estrutural promovido pelo uso de novas tecnologias; e a recorrência histórica da má distribuição de renda no país, o que torna comum a aceitação de relações de trabalho desprovidas de garantias sociais e direitos trabalhistas.

Para Cardoso (2013), nas localidades mais afastadas do centro decisório do capitalismo global, a rarefação dos mecanismos de coordenação do mercado (dinheiro e contratos), do Estado (leis e instituições) e das redes materiais e virtuais de informação que sustentam as relações econômicas é fator determinante para a informalização das relações de trabalho; o que não implica na inexistência de mecanismos de coordenação, mas apenas na sua menor densidade. Assim, quanto mais rarefeitos os mecanismos acima descritos, mais as redes de sociabilidade dos indivíduos funcionam como meios de acesso não apenas ao trabalho, mas também de minimização dos custos implicados na constituição e no exercício da atividade empresarial, incluindo-se aqui, aque- les ligados à relação de emprego formal.

A despeito das normas protetivas conferidas pela CLT nunca te- rem sido plenamente generalizadas e de sua questionável efetividade em muitos casos, a ofensiva neoliberal busca impor-se incitando um movimento de retração destas. A esse respeito, Oliveira (2009) assevera que a intenção é promover uma “vira- gem ontológica” do Direito do Trabalho, pois se passaria a prote- ger o posto de trabalho gerado pela empresa e não o trabalhador hipossuficiente. Na prática, esse ramo do direito, de caráter emi nentemente social, seria convertido em uma espécie de Direito da Empresa, pois passaria a ter como objetivos a harmonização das relações de trabalho e o asseguramento de condições de competitividade.

Segundo Oliveira (2009), o Direito do Trabalho afirma a centra- lidade da proteção ao trabalhador, almejando, desta maneira, rejeitar a exploração do homem pelo homem. A razão disso seria a desigualdade existente entre contratado e contratante, visto que, com frequência, ao primeiro cabe apenas aceitar, premido pela necessidade, a imposição unilateral das cláusulas contratuais. É a hipossuficiência do trabalhador, então, que sinala a ne- cessidade de proteção ante o poder econômico do empregador.

Diante de um quadro socioeconômico fomentado por tecnolo- gias redutoras de mão de obra e por modelos de organização do trabalho flexíveis nos quais são utilizadas formas de contratação individuais, associadas ao trabalho autônomo, a ofensiva neoli- beral propõe formas de regulação das relações de trabalho mais ligadas ao Direito Civil. O discurso veiculado é o de que a CLT e a Justiça do Trabalho não acompanham adequadamente a dinâmi- ca dos mercados e as especificidades de cada ramo de atividade econômica. Por isto, dever-se-ia ampliar a ação da livre iniciati va sobre a dinâmica das atividades empresarias. A construção da pejotização como forma lícita de contratação insere-se nesse esforço.

Olhares jurídicos sobre a pejotização sob um olhar sociológico

O atual estágio de desenvolvimento capitalista tem promovido relações de trabalho cada vez mais multiformes em suas possi- bilidades jurídicas, fazendo emergir formas de contratação com contornos mais flexíveis e, com certa frequência, precarizantes. Tais formas são usualmente chamadas no campo jurídico de “novas” ou “atípicas”, como, por exemplo, o trabalho temporário, o trabalho em tempo parcial, a terceirização, os cooperados, os estágios, os falsos autônomos, os contratos como pessoa jurídi- ca, dentre outros (Carelli, 2010).

Do ponto de vista jurídico, os contratos atípicos só podem ser definidos como tais porque se toma como referência os chama- dos contratos típicos, assim, pode-se entender que os contratos “atípicos” não se alinham ao modelo legal originalmente cele- brado pela CLT, isto é, no âmbito do Direito do Trabalho no Bra sil, o referente legal e socialmente tido como típico é a relação de emprego baseada no contrato de trabalho por prazo indetermi- nado, prestado por pessoa física, de maneira pessoal não eventual, com onerosidade e subordinação.

Para Reimann (2002), os contratos “atípicos” são criados como alternativas para a contratação tradicional do trabalho a fim de atender às demandas do mercado de trabalho em função da implantação de processos de reestruturação produtiva. Usual- mente, trata-se de contratos que causam alterações no tempo de duração da relação de trabalho e também no grau de subordina- ção dos empregados em relação ao empregador. Esses contratos representam um avanço da influência do civilismo na esfera do direito do trabalho. Não por outro motivo, procura-se afastar a lei para que se permita que as partes disponham como quise- rem a respeito do conteúdo da relação de trabalho. Neste cenário, uma perspectiva neocontratualista, de indisfarçado matiz neoliberal, procura ganhar força visando valorizar a autonomia da vontade das partes, o que permitiria uma multiplicação dos contratos “atípicos” e uma revalorização do trabalho autônomo, resgatando, assim, valores próprios do Direito Civil.

Aqui, entendemos que se faz necessário esclarecer nossa res- salva ante ao uso costumeiro da terminologia dos contratos “atípicos” nos estudos das relações de trabalho no Brasil, isto é, ao entendimento de que, apesar do modelo de contratação típica baseado no emprego formal protegido não ter sido efe- tivamente generalizado, vide os históricos e recorrentes níveis de informalidade no mercado de trabalho brasileiro, o mes mo confere certa inteligibilidade à realidade das relações so- ciais protegidas que a regulação pública estatal visa efetivar. No tocante a este ponto, levamos em conta que o termo típico remete ao sentido de algo que é característico de alguma coisa, no caso em questão, do tipo de contratação originalmente celebrado como padrão pela CLT. Dito isto, como estamos falando de justificações morais, concebidas para os indivíduos engajarem-se em relações sociais capitalistas, não podemos perder de vis- ta que a própria CLT, no decorrer de sua história, foi flexibilizada pela recepção de formas de contratação não alinhadas ao tra- balho por prazo indeterminado e em tempo integral e que tais formas foram recepcionadas pela ordem jurídica, a despeito das resistências que lhes foram e são impostas. Com isto em men- te, perguntamos: na medida que essas tornam-se reconhecidas pela própria regulação pública estatal, elas não acabam tornan- do-se típicas?

Esclarecida nossa posição, voltemos nosso olhar aos olhares ju rídicos. A esse respeito, Ramos Filho (2012) indica que entre os diferentes processos de externalização destacam-se a terceirização, a pejotização e a subordinação do consumidor9. Os dois primeiros não devem ser confundidos, pois, enquanto na ter- ceirização a execução de determinadas atividades é transferida para empregados de uma empresa prestadora de serviços, na pejotização contrata-se pessoa física sob a forma de pessoa jurí- dica para prestação de serviços de natureza pessoal.

Em termos jurídicos, a pejotização é uma relação em que o contratante para efetivação da contratação exige que o trabalha- dor, pessoa física, constitua uma pessoa jurídica, seja firma individual, seja sociedade empresária, para a prestação de serviços de natureza personalíssima10. Assim, realiza-se um contrato de prestação de serviços de natureza civil para a execução das atividades, sendo tal modalidade de contratação regulamentada, então, pelo Direito Civil. Todavia, no campo específico do Direito do Trabalho existe uma disputa entre aqueles que a entendem como lícita e os que a entendem como ilícita ou fraudulenta.

Aqueles que entendem a pejotização como forma lícita de contratação dividem-se em duas vertentes. A primeira, majoritária, compreende que a constituição de pessoa jurídica para a prestação de serviço é uma modalidade legal de contratação, pois se trata de um contrato de natureza civil, sendo a execução do serviço feita por trabalhador autônomo, vide Lei complementar nº 128/08, que instituiu a figura do Microempresário Individual – MEI. A segunda, minoritária, defende que se trata na realidade de uma relação comercial entre empresas e não de uma relação de trabalho, não havendo, portanto, a figura do tra- balhador, mas apenas um contrato civil entre empresas.

Para ambas vertentes, a pessoa que deseje tornar-se ‘pejota’ basta dirigir-se a um Cartório Civil ou Comercial a fim de ob ter um número de CNPJ – Cadastro Nacional de Pessoa Jurídica

– que lhe confira uma identidade como pessoa jurídica. Assim, pode passar a prestar serviços como trabalhador autônomo regulamentado como MEI, passando a emitir nota fiscal e não mais Recibo de Pagamento Autônomo – RPA. A empresa que contra- tar um trabalhador autônomo como pessoa jurídica beneficia-se do não pagamento de encargos trabalhistas e fiscais11, usufrui de carga tributária reduzida e conta com uma prestação de serviço ininterrupta pelos 12 (doze) meses do ano, pois não há direito ao gozo de férias.

Os defensores da pejotização alegam que a empresa contratan- te, ao deixar de utilizar um contrato de trabalho para usar um contrato comercial, reduz os seus custos operacionais, pois tal modalidade não apareceria mais no setor de recursos humanos, mas, sim, no setor de compras da empresa. Para os trabalhadores, ela seria atrativa, entre outras coisas, porque se pagaria im- posto de renda como pessoa jurídica e não como pessoa física e se recolheria os encargos sociais na condição de empresário, o que permitiria auferir uma renda maior12, possibilitando a pres- tação de um trabalho com maior autonomia.

A pejotização ganhou ares de legalidade com a edição da Lei 11.196/0513, visto que no seu art. 129 autoriza-se a contratação de trabalhadores para a prestação de serviços intelectuais por intermédio de pessoa jurídica, servindo, inclusive, como incenti- vo fiscal tanto para os trabalhadores como para os contratantes. Desde então, os entusiastas dessa prática passaram a defender que cabe ao trabalhador e ao empresário a escolha do modo de vinculação da prestação de serviços intelectuais; tratando-se, assim, de uma modalidade contratual legalmente autorizada que ressalta os princípios da livre iniciativa, auto-organização e liberdade de contratação. Contudo, a partir da referida previsão legal, empregadores passaram também a contratar “pejostas” para prestação de serviços não apenas de caráter intelectual. Essa expansão tem sido justificada com base na própria CLT, pois no parágrafo único do art. 3º menciona-se que não deve haver distinção entre o trabalho intelectual, técnico e manual. Assim, o argumento utilizado é o de que se a CLT não faz distinção quanto ao tipo de trabalho, a lei infraconstitucional14 também não pode fazê-la.

Os defensores da pejotização lícita alegam que a lei nº 11.196/05 trouxe a opção para o trabalhador de se transformar em pessoa jurídica, permitindo-lhe, assim, abdicar da condição de empre- gado. Aqui, prevalece o entendimento de que a lei estaria dis- ponibilizando aos agentes sociais envolvidos, conforme critérios de conveniência e oportunidade, a livre escolha da espécie de relação que irão pactuar. Assim, por livre iniciativa e vontade, o trabalhador pode optar pela condição de prestador de serviços (Pereira, 2013; Robortella, 2013).

Pereira (2013) sustenta que tal modalidade de contratação pode ser atrativa para trabalhadores com maior nível de qualificação, pois a tributação que recai sobre um trabalhador autônomo é maior do que sobre uma pessoa jurídica, normalmente inserida no SIMPLES15. Defende a necessidade de uma “proteção tempe- rada, mitigada ou relativizada” para esses trabalhadores, pois na medida em que a pejotização torna-se mais presente no mercado de trabalho brasileiro, o advento de uma lei específica deve estabelecer as hipóteses lícitas e os direitos trabalhistas que estarão disponíveis. Afirma que a insistência na sua proibição estimularia um aumento do trabalho informal e que uma regula- mentação favoreceria o aumento da oferta de trabalho regular e da arrecadação pública.

Por sua vez, Robortella (2013) defende que profissionais de ex trema especialização e conhecimento não devem ser submetidos à homogeneidade da legislação trabalhista, reduzidos à condição de empregado, pois, quando no livre exercício da autonomia da vontade voltam-se para o trabalho autônomo ou para a cons- tituição de empresas prestadoras de serviços. Assim, considera um avanço a Lei nº 11.196/05, entendendo como perfeitamente aceitável a diferença de tratamento jurídico e nível de proteção para formas distintas de inserção no mercado de trabalho. Ade- mais, defende que, ao liberar esta modalidade de contrato de prestação de serviços da tutela da CLT, ao mesmo tempo em que se promove razoável segurança jurídica, há uma valorização da vontade das partes como pressuposto para o desenvolvimento socioeconômico.

Resumindo, os defensores da pejotização lícita entendem-na como uma modalidade regular de contrato de prestação de ser- viços, no qual o que se faz presente é a figura do trabalhador au- tônomo. Argumentam que ela privilegia a autonomia da vontade das partes que vigora nos contratos civis e comerciais em de- trimento da regulação pública das relações de trabalho fundada no trabalho subordinado. Assim, ela se justificaria com base nos princípios da igualdade formal e da autonomia da vontade, am- bos reconhecidos pelo Direito Civil Brasileiro. O entendimento, então, é que se trata de uma relação civilista e não trabalhista.

Aqui, é preciso ressaltar que a Lei nº 11.196/05 é uma lei de cunho tributário e não trabalhista. Portanto, por ser esta instituída em regime de opção, cabe ao trabalhador optar pela forma de prestação do trabalho. Em caso de opção pelo regime da pessoa jurídica, usufruirá dos incentivos fiscais e previdenciários da referida lei, sendo, então, a relação contratual regida pelo regramento civil, sem a incidência de qualquer norma trabalhista. Em outras palavras, tratando-se de contrato de natureza civil, as cláusulas contratuais estarão em conformidade com legislação própria, conferindo total autonomia, liberdade e capacidade organizativa ao prestador de serviços e, deste modo, descaracterizando a relação de emprego. No âmbito específico do Direito do Trabalho a pejotização ainda não dispõe de viabilidade legal como forma de trabalho, não havendo, assim, a incidência de qualquer direito trabalhista. De certa forma, a ausência de lei trabalhista específica proporciona certo grau de liberdade ao empresariado para recorrer a tal prá- tica e utilizá-la conforme os seus interesses.

O confronto de entendimentos sobre a licitude da pejotização insere-se em um debate mais amplo, que diz respeito ao modelo de ordem socioeconômica almejada e aos valores que devem estruturá-la. A esse respeito, é preciso considerar os seguintes princípios consagrados pelo Art. 1º, inciso IV da CF/88: o do valor social do trabalho e o da livre iniciativa. De um lado, argu- menta-se em favor da dignidade do trabalhador e da valorização do trabalho humano como fundamentos do desenvolvimento econômico e social. Do outro, argumenta-se em favor da livre iniciativa como fundamento da produção e circulação de bens e serviços, isto é, como a base sobre a qual se produz riqueza e prosperidade econômica.

De um ponto de vista sociológico, pode-se dizer que esse debate diz respeito a uma disputa entre dois projetos distintos de orga nização socioeconômica consagrados na Constituição de 1988: um respaldado no segundo espírito do capitalismo, de inspira- ção socialdemocrata, que pretende a legitimação do capitalismo por intermédio da ampliação de direitos aos trabalhadores em condições de subordinação; e o outro respaldado no terceiro espírito do capitalismo, de inspiração neoliberal, no qual se entende que o capitalismo prescinde de justificação, pois com o colapso do socialismo real, a história teria evidenciado a maior eficiência do livre-mercado como forma de organização socioeconômica.

Em termos jurídicos, a ética do segundo espírito do capitalismo, enquanto regime de justificação moral, corresponde à valori- zação da relação de emprego. Nela, a adesão dos trabalhadores ocorre por meio da ascensão funcional, do aumento da remuneração e da ampliação dos espaços de poder no interior das empresas. Além disso, confere proteção ao estatuto do trabalha- dor assalariado através do Direito do Trabalho, assegurando no plano individual limites ao poder diretivo e à autonomia da von- tade do empregador, além da promessa de uma velhice assistida. Aqui, os instrumentos de sedução são coletivos e a adesão dos trabalhadores é suscitada pelo reconhecimento de um conjunto de direitos sociais que funciona como contrapartida social pela aceitação do trabalho subordinado.

Já a ética do terceiro espírito do capitalismo corresponde a uma ética econômica de valorização da individualidade, estimulando na esfera do trabalho contratos individuais nos moldes do trabalho autônomo. Nela é rechaçada a rigidez de horários e de estruturas organizacionais hierárquicas excessivamente burocratizadas inspiradas na fábrica fordista, paradigma empresa- rial característico do segundo espírito do capitalismo. Os ins- trumentos usados por esse novo espírito do capitalismo, a fim de promover a adesão do trabalhador ao modo de vida por ele proposto, estimulam o exercício da autonomia individual e da autorresponsabilização do indivíduo pela sua empregabilidade, demandando-lhe, assim, um engajamento contínuo na sua formação profissional. Ao mesmo tempo, procura desestimular pertencimentos coletivos duradouros e a longa permanência nas mesmas atividades laborais e, o que é mais fundamental, tenta esvaziar a seguridade social vinculada ao emprego formal como dotada de positividade para a realização das potencialida des individuais.

Esse novo modo de justificação moral promove novas formas de produção de riqueza, de divisão social do trabalho e de relações de poder entre capital e trabalho, propiciando formas inéditas de crescimento da produtividade do trabalho e de rentabilidade do capital. Ele atua no sentido de enfraquecer o poder de sedu- ção do discurso da seguridade social característico do segundo espírito do capitalismo. Para tal, tenta enfraquecer socialmente o sentido da relação de emprego ao promover possibilidades de acesso ao mercado de trabalho mediante contratos não circunscritos a forma subordinada celebrada pela CLT, ao mesmo tempo em que defende a flexibilização das relações de trabalho a fim de diminuir as contrapartidas jurídicas decorrentes do trabalho subordinado. Assim, atua na produção de novos processos de subjetivação no mundo do trabalho, nos quais, no nível discursivo, uma suposta maior autonomia diante do poder patronal apresentar-se-ia como um estímulo para a adesão dos trabalhadores.

Por trás do debate sobre a pejotização encontra-se uma disputa política entre qual modelo de sociedade deve prevalecer ou se estes podem coexistir: o protetivo ou o neoliberal. A relação de emprego, forma jurídica típica do segundo espírito do capitalis- mo, fomenta o projeto social protetivo procurando realizar as promessas coletivas de pleno emprego, ascensão funcional na empresa e vertical na vida social com condições estáveis garan tidas por políticas públicas que assegurem acesso à moradia, educação, saúde, aposentadoria. Por sua vez, a pejotização, es- tratagema jurídico inscrito no terceiro espírito do capitalismo, fundamenta-se nas promessas de ampliação da liberdade e da autonomia individuais via mercado e nos estímulos para que o indivíduo assuma a responsabilidade por sua empregabilidade e prescinda da tutela protetiva do Direito do Trabalho conferida pelo Estado.

A transformação do trabalhador empregado em prestador de serviços por meio de sua conversão em pessoa jurídica insere-se em uma estratégia política de construção de uma moldura jurídico-institucional que não apenas garanta, mas, sobretudo, fomente a ordem espontânea do mercado. Na perspectiva analítica neoliberal de Hayek (2013), os mercados não são sistemas racionalmente organizados por ações deliberadas individuais ou coletivas, mas, sim, uma ordem espontânea decorrente de um processo contínuo e dinâmico de interação entre milhões de indivíduos. Nesses termos, a economia é entendida como um jogo no qual as instituições jurídicas apenas promovem regras estáveis e não um plano previamente definido que direciona conscientemente os recursos da sociedade para alcançar deter- minados objetivos. Em outras palavras, diferentemente de uma ordem jurídica planificada, o Estado de direito (Rule of Law) te- ria por função apenas definir a moldura jurídico-institucional no interior da qual os indivíduos desenvolverão as suas atividades econômicas de acordo com seus planos pessoais.

É possível dizer que a busca pelo reconhecimento da licitude da pejotização é uma manobra jurídica de inspiração tipicamente hayekiana. Porém, quando se considera os elevados níveis de in- formalidade da economia e do emprego no Brasil, é difícil negar que a pejotização apresente-se não mais do que como um ardil jurídico do discurso do empresário de si mesmo que serve de justificação ideológica para a retirada de direitos trabalhistas que constituem a caracterização do vínculo empregatício e, por conseguinte, para a responsabilização do trabalhador pela sua condição de empregabilidade.

A posição da Justiça do Trabalho brasileira

Na Justiça do Trabalho, o entendimento prevalente tem sido o de que a utilização de empresa interposta individual visa mascarar a relação de emprego e fraudar a legislação tra- balhista, previdenciária e fiscal. Os tribunais trabalhistas têm demonstrado que a contratação de pessoa jurídica para prestação de serviços personalíssimos tem sido usada para substituir o contrato de emprego a fim de descaracterizar o vínculo empregatício. Para tal, recorre-se à utilização de um contrato de prestação de serviços de natureza civil. Aqui, é preciso esclarecer que a prestação de serviços por pessoa jurídica em si não gera o vínculo, não podendo então ser aplicada a legislação trabalhista quando estiver em acordo com dispositivos legais. O problema ocorre quando fica caracterizada faticamente a figura do empregado prestando serviços por meio de pessoa jurídica. A esse respeito, Mannrich indica que “não se discute o fato de pessoa jurídica prestar serviços e, sim, quando a relação de emprego é escamoteada” (2006, p. 84).

Por tal razão, quando detectada a facticidade da empresa in- dividual, constituída de forma regular, constata-se a presença da livre iniciativa na constituição da pessoa jurídica, não existindo qualquer espécie de obrigação imposta para um terceiro contratante e com a total assunção dos riscos econômicos para o criador da empresa. Em sendo assim, a Justiça do Trabalho reconhece o trabalhador por trás da pessoa jurídica como um verdadeiro prestador de serviços, isto é, como um verdadeiro trabalhador autônomo que age com liberdade e autonomia. Assim, o que não se reconhece é a licitude da pejotização como modalidade de contratação, mas, sim, da prestação de servi ço mediante empresa regularmente constituída para tal fim, entendendo-se que neste caso se faz presente a figura do trabalhador autônomo.

Para a Justiça do Trabalho, a constituição de pessoa jurídica pelo trabalhador não afasta a caracterização da relação de em- prego quando atendidos os requisitos do art. 3º, da CLT: prestação de serviço por pessoa física, de maneira não eventual, com pessoalidade, onerosidade e subordinação. De acordo com a concepção clássica do Direito do Trabalho, não compete ao empregado ou ao empregador optar pela legislação própria das pessoas jurídicas ou pela legislação trabalhista, porque esta última incide naturalmente. Em havendo a existência cumulativa dos cinco requisitos fático-jurídicos, declara-se a relação de emprego.

No Direito do Trabalho brasileiro, o reconhecimento do vínculo empregatício independe da sua formalização, o contrato de trabalho pode ser expresso ou tácito, não dependendo de registro em livro ou em carteira de trabalho, bastando apenas sua execução. Daí falar-se em contrato realidade, o qual se con- figura independente da vontade das partes. Por força do princípio da primazia da realidade, a ideia que as partes fazem das circunstâncias e até mesmo a intenção que as animou não são elementos que determinam a natureza jurídica da relação estabelecida. Mesmo que as partes recusem as posições de empregado e empregador, comprovados os requisitos legais da relação de emprego, estarão vinculadas por um contrato de trabalho. Para os tribunais trabalhistas o que importa é a natureza do serviço prestado, isto é, como este é prestado, se de forma subordinada ou se de forma autônoma. Assim, não é a atividade em si que determina a natureza da relação, mas como ela é exercida.

Nos processos judiciais analisados, quando o trabalho aparenta va ser prestado por pessoa física, com pessoalidade, não eventualidade e onerosidade, aparecia, então, a controvérsia jurídica sobre a subordinação. Assim, quando esta se fazia comprovada, mesmo que o trabalhador se apresentasse como pessoa jurídica, o entendimento era o de que se tratava de uma verdadeira relação de emprego. Neste sentido, com base no art. 9º da CLT, os tribunais trabalhistas têm declarado a nulidade da relação e determinado o reconhecimento e o registro do contrato de em- prego por parte do contratante. A posição prevalente tem sido a de que a pejotização é fraudulenta, posto que entendida como uma estratégia empresarial que visa converter a pessoa física do trabalhador em pessoa jurídica a fim de fraudar legislação trabalhista, previdenciária e fiscal. Portanto, reconhecem-na como relação de trabalho ilícita, que se manifesta por meio de um contrato de trabalho transmudado em contrato civil com o objetivo de mascarar o que faticamente constitui-se como relação de emprego.

A Justiça do Trabalho não nega a existência da prestação de ser- viços por pessoa jurídica, mesmo porque a legislação brasileira prevê essa possibilidade16. O que nela se entende é que a possibilidade prevista no art. 129, da Lei nº 11.196/05, apenas criou um regramento específico para prestação de serviços intelectuais por meio de pessoa jurídica, não sendo em si inovadora. O interesse da Justiça do Trabalho em julgar tais casos ocorre apenas quando há suspeita de que envolvam relação de emprego. As jurisprudências, inclusive, rechaçam o autônomo que re- clama sem ser empregado, pois a pessoa que trabalha e sempre trabalhou como verdadeiro autônomo para uma empresa, quan- do passados vários anos, ao reclamar sua condição de emprega- do, sem sê-lo, acaba ferindo o art. 422 do Código Civil de 2002 que dispõe: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como na sua execução, os princípios de probidade e boa fé”.

O que a Justiça do Trabalho tem ressaltado em seus julgados não é o desejo de evitar a transformação de pessoa física em pessoa jurídica, pois há a compreensão de que empresários desempenham papel fundamental na dinamização da economia de uma sociedade. Todavia, o que se defende é que a figura do empre- sário deve ser efetivamente a do detentor do verdadeiro fim de uma empresa, qual seja: administrar uma sociedade empresa- rial. Neste sentido, o que se tenta evitar é que se legitime juri- dicamente uma estratégia empresarial que tem por finalidade mascarar a relação de emprego. As empresas devem ser criadas porque representam possibilidades de desenvolvimento para a sociedade, porém não à custa de direitos trabalhistas, isto é, me- diante tentativa de fraude à legislação trabalhista.

Todos os juízes entrevistados entendem a pejotização como uma tentativa de findar a relação patrão e empregado mediante a conversão desta em uma relação entre empresas. Da mesma forma, entendem que, ao se tomar o trabalho humano, sem revesti-lo das garantias inerentes à relação de emprego, o resultado, ao lado de uma notável redução de custos para o contratante, é a precarização de direitos trabalhistas. Também destacaram que alguns setores acabam utilizando-se com mais frequência de tal prática, como por exemplo, os ligados à informática, à indústria de entretenimento, às áreas de comunicação e à área médica. Mas, salientaram que essa vem se espraiando para os mais di- versos ramos de atividade, atingido tanto os trabalhadores mais qualificados quanto os menos qualificados. Ademais, ressalta- ram que a qualificação e a condição financeira do trabalhador, embora sejam fatores que possam reduzir sua vulnerabilidade jurídica, não afastam a hipossuficiência, pois pode subsistir a ne- cessidade de inserir-se no mercado de trabalho, compelindo-o a anuir aos “contratos de adesão” oferecidos pelo empregador. O que a realidade dos fatos tem demonstrado é que o trabalhador ‘pejota’ não desfruta da autonomia e das vantagens de um trabalhador autônomo.

Em linhas gerais, os juízes apontaram que a existência de rela- ção fraudulenta fica caracterizada nas situações em que: a) toda a documentação de abertura da empresa a ser contratada fica por conta da empresa contratante; b) a empresa contratada não detém sede própria, instalando-se na sede da contratante; c) a contabilidade da empresa contratada é feita pela contratante; d) o empregado foi demitido e em seguida recontratado como pes- soa jurídica; e) o prestador de serviços não pode ser substituído por outra pessoa; f) a pessoa não possui nenhuma experiência empresarial e desconhece as responsabilidades e os riscos do empreendimento; g) inexiste autossuficiência financeira da em- presa contratada, como também de meios próprios para pres- tar os serviços; h) os valores pagos pela empresa contratante são próximos ao salário de outros empregados. Porém, também apontaram que a inexistência de fraude fica caracterizada nas situações em que: a) a empresa do contratado já estava constituída antes de prestar os serviços para o contratante; b) após o rompimento do contrato, o então contratado continua pres- tando serviços para outras empresas por intermédio de sua em- presa; c) o prestador de serviços pode ser substituído por outro profissional.

Os tribunais trabalhistas, ao reconhecerem a relação de empre- go nos casos de pejotização, reafirmam a condição de hipossufi- ciência do trabalhador, assumindo uma posição de que o princí- pio do valor social do trabalho deve prevalecer sobre o princípio da livre iniciativa. Neste sentido, ao confirmarem a proteção tra- balhista como um meio de acesso à dignidade humana, reconhe- cem no trabalho bem mais do que um meio de acesso à renda e ao consumo. Deste modo, no Brasil, a Justiça do Trabalho tem atuado como uma espécie de guardiã do segundo espírito do ca- pitalismo, pois prevalece o entendimento de que a pejotização objetiva revitalizar ideais liberais do século XIX como princípios ordenadores das relações de trabalho, entre os quais: a liberda- de individual e a autonomia da vontade.

Considerações finais

Em termos sociológicos, a pejotização está em estreita conso- nância com o modo de justificação moral do terceiro espírito do capitalismo, pois aparece como uma expressão da autonomia do trabalhador diante do poder patronal e de um estímulo ao desenvolvimento de um espírito empreendedor. Neste sentido, ao mesmo tempo em que ela é norteada pelo discurso do empresário de si mesmo, ela também confere materialidade a este.

A estratégia que tenta lhe dar suporte legal procura descaracterizar o status jurídico de empregado subordinado e, por con- seguinte, demonstrar sua conversão a empresário de si mesmo. Todavia, não se pode negar que, em sendo assim, a empresa con- tratante libera-se das responsabilidades ligadas ao exercício da atividade laboral, pois transfere para o pejotizado os compro- missos com a gestão do trabalho e com os custos da seguridade social, como por exemplo: adaptação aos horários, aquisição e manutenção de planos de assistência médica e odontológica, aposentadoria complementar, gestão de seu capital humano ao longo da vida e de sua condição de empregabilidade.

A despeito das alegações de que a pejotização se trata apenas de uma forma de dinamizar as relações de trabalho e de promover uma maior autonomia do trabalhador, não se pode negar que na prática haja efeitos precarizantes. E aqui, dizemos isso, por en- tendermos não ser possível desconsiderar que no caso da cons- trução do moderno mercado de trabalho brasileiro, a regulação pública das relações de trabalho nunca se efetivou plenamente. Dito de outro modo, a emergência de modalidades de contratos de trabalho mais flexíveis, entre as quais a pejotização, tende a assumir contornos precarizantes.

No mais, a realidade demonstra que as partes até podem ser livres no momento da pactuação do contrato de trabalho, mas isto não significa que gozem de igualdade no estabelecimento dos seus termos, salvo casos pontuais, usualmente estamos lidando com relações assimétricas de poder. Por isto, desconsiderar disposições legais protetivas que minimamente equilibrem a correlação de forças entre as partes tende não apenas a fortalecer o arbítrio do contratante, como também a reforçar uma situação de vulnerabilidade do trabalhador enquanto sujeito de direitos. Assim, o que se depreende disso é que a pejotização apresenta-se mais como ardil jurídico para mascarar a relação de emprego do que como instrumento de efetivação da autonomia individual do trabalhador.

Referências

Barbosa, Attila Magno e Silva. O empreendedor de si mesmo e a flexibilização no mundo do trabalho. Revista Sociologia e Política, v. 19, n. 38, pp. 121-140, 2011.

Notas

1 Decisões finais ou sentenças que, quando atribuídas por uma instância superior, valem como um modelo para resolver casos ou situações análogas.
2 A expressão assalariamento sem registro utilizada por Cacciamali diz respeito à mão de obra assalariada contratada de maneira ilegal no mercado de trabalho, isto é, contra- tada sem a proteção da legislação trabalhista e previdenciária.
3 Ver dados relacionados ao número de carteiras de trabalhos emitidas entre 1940-1976 em Cardoso (2010).
4 Isto é: substituição de empregados regulares devido ao afastamento por motivo de férias; licença-maternidade; e em ocorrências relacionadas à necessidade de aumento de produção ou de serviços em períodos excepcionais.
5 Com a publicação da portaria do Ministério do Trabalho e do Emprego de nº 789 no Diário Oficial da União em 3 de junho de 2014 estendeu-se o prazo de contratação de trabalhador temporário para até nove meses.
6 Art. 12 - Ficam assegurados ao trabalhador temporário os seguintes direitos: a) re muneração equivalente à percebida pelos empregados de mesma categoria da empresa tomadora, calculados à base horária, garantida, em qualquer hipótese, a percepção do salário mínimo regional; b) jornada de oito horas, remuneradas as horas extraordinárias não excedentes de duas, com acréscimo de 20%; c) férias proporcionais; d) repouso se- manal remunerado; e) adicional noturno; f) indenização por dispensa sem justa causa ou término normal do contrato, correspondente a 1/12 (um doze avos) do pagamento recebido; g) seguro contra acidente do trabalho; h) proteção previdenciária nos termos do disposto na Lei Orgânica da Previdência Social.
7 Entenda-se aqui o ajuste estrutural da economia baseado na liberalização dos merca- dos e do sistema financeiro, na fixação dos preços pelo mercado, na “estabilidade ma- croeconômica” e nas privatizações.
8 Vide: Lei nº 8.949/94, que autorizou as empresas públicas e privadas a contratarem cooperativas profissionais ou de prestação de serviços sem vínculo empregatício; porta- ria 02/96 da Secretária de Relações do Trabalho que alterou o item 6, da Portaria 66/74, ampliando a possibilidade de prorrogação do trabalho temporário de 45 dias para três meses; Lei nº 9.601/98, que ampliou o uso dessa modalidade de contratação, autori- zando-a via contrato por prazo determinado sem vinculação a fatos de índole transitó- ria; e Medida Provisória nº 1952-18/99, que alterou a CLT para dispor sobre o trabalho em tempo parcial, a suspensão do contrato de trabalho e o programa de qualificação profissional, ampliando as possibilidades de utilização do trabalho de estagiário.
9 É o processo no qual parte do trabalho, antes executada por um empregado da em- presa, é transferida ou externalizada para execução pelo consumidor final do bem ou serviço, porém de forma não remunerada, contribuindo assim para o aumento da pro- dutividade e da rentabilidade empresarial.
10 Como por exemplo: da contribuição de 20% para o INSS sobre a folha; da contribui- ção para o Sistema “S” sobre o prestador de serviços; da alíquota de 8% referente ao FGTS; do aviso-prévio proporcional ao tempo de serviço; da indenização de 40% sobre o total dos valores depositados em caso de rescisão contratual; e da não efetuação de reajuste salarial na data base, afinal não há pagamento de salário.
11 O trabalhador comum paga os seguintes encargos e impostos: a) contribuição ao Ins tituto Nacional de Seguro Social (INSS), que varia de 8% a 11%; b) Imposto de Renda (IR), sendo que os descontos dependem da faixa salarial do trabalhador; c) contribui- ção sindical; e d) caso necessite, vale-transporte, descontado da alíquota de 6% do seu salário base, arcando o empregador com a diferença. Já o trabalhador pessoa jurídica arca apenas com a contribuição ao INSS e com IR. Em se tratando de pessoa jurídica le- galizada como Microempreendedor Individual (MEI) enquadra-se no Simples Nacional, ficando isenta de tributos federais como IR, PIS, COFINS, IPI e CSLL e podendo pagar o INSS com base em uma alíquota reduzida de 5%.
12 Institui o regime especial de tributação para a plataforma de exportação de serviços de tecnologia da informação – REPES, o regime Especial de aquisição de bens de capital para empresas exportadoras – RECAP e o programa de inclusão digital; e dispõe sobre incentivos fiscais para a inovação tecnológica.
13 Refere-se a qualquer tipo de lei que não esteja incluída na Constituição e que de acor- do com a noção de ordenamento jurídico esteja disposta em um nível inferior a esta.
14 O Simples Nacional é um regime compartilhado de arrecadação, cobrança e fiscaliza- ção de tributos aplicável às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, previsto na Lei Complementar nº 123/06.
15 A locação de serviços estava prevista no Código Civil de 1916 e hoje se encontra pre- vista no Código Civil de 2002, de acordo com as disposições dos artigos 593 a 609 do Título VI - Das Várias Espécies de Contrato.
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
HMTL gerado a partir de XML JATS4R