Resumo: A partir de pesquisa realizada em município do extremo oeste do es- tado de São Paulo e convertido em complexo penitenciário foi possível analisar especificidades do sistema prisional paulista diante do fenô- meno do turismo penitenciário. O objetivo do artigo é analisar sob a luz da Sociologia Econômica efeitos do encarceramento em massa a partir do recorte de mercado. O método consistiu em pesquisa etnográfica acompanhada de entrevistas em profundidade. Concluímos que o flu- xo das visitantes, identificadas pela categoria nativa mulher de preso, reconverte não só o comércio local, como já observado por outras pes- quisas, como igualmente seus significados, conforme observa Zelizer. Se os presos se situam num lugar à parte, a política de interiorização dos presídios e sua respectiva dinâmica de mercado inserem suas fa- mílias em circuitos de reprodução das desigualdades.
Palavras-chave: Prisões, Turismo penitenciário, Estado, Mercado, Consumo.
Abstract: Based on a research carried out in a municipality located in the extreme west of the state of São Paulo and converted into a prison complex, it was possible to analyze certain specificities of the São Paulo prison system through what was configured locally as penitentiary tourism. The aim of the article is to analyze, in the light of Economic Sociol- ogy, the effects of mass incarceration from the market perspective. The method consisted of ethnographic research accompanied by in-depth interviews. We conclude that the flow of visitors, identified by the na- tive category prisoner’s women, reconverts not only the local market place as already observed by other researches but also their meanings, as Zelizer notes. If the prisoners are located in a separate place, the policy of dispersion of prisons into the state and their respective mar- ket dynamics insert their families into a reproducing inequality circuit.
Keywords: Prison, Penitentiary tourism, State, Market, Consumption.
Resumen: Sobre la base de una investigación realizada en un pequeño pueblo ubicado en el extremo oeste del estado de São Paulo y convertido en un complejo carcelario, se hizo posible analizar ciertas especificidades del dispositivo carcelario de la provincia de São Paulo a través de lo que se configuró como turismo carcelario. El objetivo del artículo es analizar, a la luz de la Sociología Económica, los efectos del encarcela- miento masivo desde la perspectiva del mercado. El método consistió en investigación etnográfica acompañada de entrevistas en profundi- dad. Concluimos que el flujo de visitantes, identificado por la categoría mujer de un detenido, convierte no solo el comercio local, como ya lo Thamires Luz Chikadze; Marcia da Silva Mazon observaron otras investigaciones, sino también sus significados, como señaló Zelizer. Si los detenidos son desplazados hacia un sitio aparta- do, dicha política que lleva a las cárceles tan lejos en conjunto con sus respectivas dinámicas de mercado conduce sus familiares en circuitos de reproducción de las desigualdades.
Palabras clave: Prisión, Turismo carcelario, Estado, Mercado, Consumo.
Artigos
Turismo Penitenciário e Arranjos Institucionais de Mercado
Recepção: 28 Abril 2020
Aprovação: 17 Junho 2020
A dinâmica de interiorização penitenciária modifica a paisagem paulista como parte da nova onda punitiva de caráter neolibe- ral que possui como alvo a população mais pobre (Wacquant, 2003). Entretanto, pesquisas recentes questionam a existência de um bloco neoliberal de caráter universal elucidando certas especificidades da punição ao estilo brasileiro, como: 1. a escas- sez material imposta pelo Estado dentro das prisões como for- ma produtiva de práticas específicas configurando um dispositi- vo carcerário paulista (Godoi, 2017); 2. a prisão enquanto parte de um amplo mecanismo de gestão de populações e territórios (Godoi, 2017; Mallart, 2019; Lago, 2019) e 3. o princípio cons- trutivo das práticas de dentro e fora da prisão pautado pela sus- tentação familiar (Silvestre, 2011; Ferraz de Lima, 2013; Godoi, 2017; Padovani, 2019; Lago, 2019).
É nessa sustentação familiar que incide o foco do presente artigo. Como observa Telles (2015, p. 16), apesar do problema da pobreza não ser resolvido, ao contrário, a concentração de renda se intensifica, o campo discursivo adquiriu outra nuance: através da “[...] mercantilização de espaços, lugares, vidas e forma de vidas, no seu entrecruzamento com formas de controle e a lógica militarizada de gestão de espaços e territórios urbanos” surgem novos regimes de gestão da pobreza e o seu lugar. Como parte do recente dispositivo carcerário paulista surge o turismo penitenciário1 numa cidade do interior, onde canaviais coexistem com prisões, formando um contexto híbrido rural/urbano.
França e de Ossandon (2012) so- bre o mercado de seguros de saúde no Chile, o discurso produzi- do por agentes (formados na escola de Chicago) que ocuparam o Estado nos respectivos países sustentam resoluções de proble- mas da esfera pública através de premissas do âmbito privado2. Ossandon (2012) desvela um discurso em que um problema de saúde pública poderia ser resolvido com a criação de um merca- do de seguros de saúde. De forma semelhante ao que se observa na justificativa de espacialização das prisões. Godoi et al. (2019) afirmam que a busca por territórios para o encarceramento pas- sa por fatores de ordem econômica. A narrativa de autoridades governamentais hierarquiza essas questões como mais relevan- tes que possíveis motivações penalógicas.
Mesmo que a distância constitua parte estruturante da própria história da prisão, atualmente sua instalação em municípios do interior do estado de São Paulo deixou de perseguir os objetivos constitutivos de um modelo de ressocialização – que ausentaria os detentos dos vícios urbanos – para a reprodução das instituições de “segurança máxima”, tornando o rural uma extensão do urbano (Godoi et al., 2019). Porém, prisão implica trânsito (Mallart, 2019) e a distância não inibiu a circulação de pessoas e objetos, ao contrário, ampliou.
Do ponto de vista das relações de mercado, a interiorização das prisões que se constitui através da narrativa do turismo penitenciário configura o terreno dos possíveis daqueles municípios que receberam as instituições. A justificativa é econômica, conforme discurso de dois agentes políticos locais entrevistados:
Os aspectos positivos das penitenciárias, te falei da questão da receita que houve essa mudança de coeficiente [se referindo ao Índice de Participação dos Municípios que muda com o aumento da população, contabilizando a carcerária], outro aspecto positivo é o turismo penitenciário; as visitas [se refere as e aos visitantes] que compram no comércio local, isso tem um impacto na questão das vendas, houve a necessidade de se construir pousadas, hoje a gente já tem até um hotel, pequeno, mas já tem. (Entrevista em profundidade com o atual prefeito de Lavínia realizada dia 12 de fev. de 2018 – grifo das autoras).
A vinda dessas famílias dos detentos nos finais de semana é o que gerou a melhoria na economia do município. Só pra você ter uma ideia: Lavínia antes dos presídios tinha um táxi e hoje temos mais de 30, e cada um deles sobrevive no final de semana tirando seu ganha pão. A economia mudou muito porque as famílias trazem dinheiro. (Entrevista em profundidade com ex-prefeito de Lavínia realizada dia 23 de jan. de 2018).
Conforme observam Bourdieu (2000; 2005), Zelizer (2011; 1985[1994]; 1978[1992]), Fourcade e Healy (2017), o mercado não se constitui como livre jogo de forças abstratas entre oferta e demanda, é antes resultado de um arranjo social amplo o qual envolve agentes, instituições em processos político-culturais complexos e passíveis de contestação. Esses processos consti- tuem uma hierarquia moral a qual legitima a valoração e pre- cificação de bens e pessoas (Brandalise e Leite, 2019; Mazon e Moura, 2017).
Zelizer (2009; 2011) pondera que as visões correntes sobre os mercados se acomodam em oposições: de um lado, destaca-se as relações de força ou mercado ilimitado como na perspectiva marxista a qual privilegia as transações mercantis enquanto impulso expansionista destruidor de laços afetivos. De outro lado, a literatura antropológica enxerga o mercado exclusivamente como relações de sentido; haveria um conjunto de constrangi- mentos estruturais que limitaria a autonomia do mercado. A autora opta pelo caminho do meio ou o que ela nomeia de “mercados múltiplos”: diferentes mercados são pensados como espaços de troca e interação entre fatores culturais e materiais em processos de ressignificação, sendo continuamente atualizados, tanto nas dimensões dos objetos quanto do significado social do próprio dinheiro.
Zelizer (1978 [1992]), ao abordar o mercado de seguros de vida, aponta como novas valorações da vida e da morte, introduzi- das pelo discurso das companhias de seguro e respaldadas pela Igreja, transformam preceitos morais, alterando o significado do dinheiro que assume o papel purificador: assegurar a família em caso de morte, responsável por seu arrimo. Relações econômi- cas e íntimas não podem, portanto, ser apreendidas desde mo- delos binários, aqueles que insistem em tratar por separado o sagrado do profano.
Somando esforços às reflexões dessas pesquisas que vieram para ressignificar o campo de estudo em prisões (Godoi, 2017; Mallart, 2019; Lago, 2019), propomos o aporte da Sociologia Econômica para pensar relações de mercado enquanto uma construção material e simbólica. Interessou-nos explorar o qua- dro de relações assimétricas no qual se constroem significados que colocam em circulação produtos e serviços no complexo pri- sional. Quais os significados negociados e qual a lógica de preci- ficação adotada nesses mercados?
O artigo foi dividido em três seções. Na primeira abordamos o município estudado, o contexto do debate atual sobre espacialização do parque penitenciário e reflexões da Sociologia Econômica que podem somar a estas pesquisas. Na segunda apresentamos dados da etnografia e das entrevistas as quais apresentam a rotina das visitantes e as justificativas que acomodam os significados para prisões nas cidades do interior. Por fim, na terceira e última seção analisamos as especificidades de precificação do mercado em torno das prisões. Essas mulheres estão situadas num lugar à parte mesmo atuando como principais consumidoras de um comércio destinado a atendê-las.
Lavínia é um município localizado no extremo oeste do estado de São Paulo. Propomos que aqui ele possa ser tomado como “paradigma empírico” (Elias e Scotson, 2000) do processo de interiorização penitenciária3. Nesse município existiam três penitenciárias masculinas de regime fechado até a finalização desta pesquisa (fevereiro de 2019) e uma quarta unidade seria inaugurada em outubro do mesmo ano4. Desta forma, a população carcerária dobrou o número de habitantes locais, garantindo o fluxo de mulheres e familiares visitantes que convida os mora- dores a se organizarem material e simbolicamente em torno do que por eles foi nomeado de turismo penitenciário.
Esse contexto expressa três características fundamentais das discussões sobre prisões: o crescimento quantitativo da população carcerária e do número de prisões por via do encarceramento em massa (Wacquant, 2003; Davis, 2018); espacialização das prisões pelo território (Godoi et al. 2019), e o “fluxo em cadeia” como parte estruturante e produtiva do próprio dispositivo carcerário (Godoi, 2017; Padovani, 2010; Lago, 2019). Importante considerar que o Brasil é um dos países que mais encarceram no mundo, atrás apenas dos EUA e da China em números absolutos de presos, sendo que os estados de São Paulo e Rio de Janeiro concentram 40% da população presa do País (Godoi et al., 2019, p. 592).
Godoi et al. (2019) analisaram os padrões de espacialização da prisão nos estados de São Paulo e Rio de Janeiro: o parque penitenciário paulista se caracteriza pela dispersão pelo interior enquanto o carioca se concentra em único bairro da capital. No estado de São Paulo a pulverização das unidades prisionais pelo território organiza a diversificação de instituições quando próximas da área metropolitana, reservando as prisões de regime fechado aos menores municípios do interior paulista, também reconhecido como o fundão, “[...] território privilegiado para o cumprimento das penas” (Godoi et al., 2019, p. 596).
Investigações anteriores que se debruçaram sobre o fenômeno da instalação de prisões em cidades do interior paulista identificam mudanças territoriais, culturais, políticas, sociais e afetivas que as acompanham (Silvestre, 2011; Sabaini, 2012; Ferraz de Lima, 2013; Zomighani, 2013; Godoi, 2017; Godoi et al., 2019; Lago, 2019). Estas pesquisas indicam o escândalo do Massacre do Carandiru ocorrido em 1992 e sua completa desativação em 2002 como a gênese do processo de interiorização penitenciária5.
As justificativas que acompanharam a interiorização do plexo carcerário se fundamentaram, num primeiro momento, na humanização das condições de superlotação e insalubridade das prisões brasileiras (Zomighani, 2013; Marques, 2018). No entanto, no momento recente, os modos de espacialização do sistema penitenciário concretizam em escala local “[...] os efeitos de processos transnacionais, que promovem a massificação do encarceramento e caracterizam a atual “governamentalidade neoliberal”: declínio do ideal socializador, populismo penal, políticas de tolerância zero entre outros” (Godoi et al., 2019 p. 606-607). As novas unidades penitenciárias anunciam com eloquência inovações tecnológicas e altos investimentos conforme discurso midiático no momento da inauguração do novo Centro de Detenção Provisória (CDP) de Lavínia, em outubro de 2019:
São Paulo é o estado que vai inaugurar o maior número de presídios neste ano. Até 31 de dezembro, serão 12 novos presídios e mais de 6,5 mil vagas oferecidas ao sistema prisional, com qualidade e segurança. O melhor sistema prisional é o de São Paulo. Você não tem notícias de revoltas e conflitos. Os agentes prisionais são bem preparados”, disse Doria. (Governo de São Paulo, 2019).
Padovani (2019, p. 8), ao relatar sua experiência de campo quan- do visitava a penitenciária feminina da capital paulista (resquí- cio da estação de metrô Carandiru), chamou atenção para o movimento dos ônibus que saem deste emblemático local em direção às penitenciárias do interior do estado: “filas com de- zenas de mulheres e crianças levando sacolas, caixas e bolsas com comida, roupas e dinheiro [...]”. Além da estação Carandiru, o metrô da Barra Funda igualmente é um ponto de saída das ex- cursões particulares com destino às cidades interioranas e suas respectivas prisões (Luz, 2019): daí parte a maioria das mulhe- res que encontramos na cidade de Lavínia durante a pesquisa.
A condição jurídica imposta às visitantes (horários, dias da semana, principalmente sábados e domingos, roupa apropriada, sacola transparente entre outras) organiza a estrutura da oferta encontrada em Lavínia. O Estado, portanto, ao regular contribui de forma decisiva para o surgimento de um mercado prisional. Em Bourdieu (2005) o Estado é um dos estados da gênese dos mercados ao construir a demanda através da produção de disposições individuais e disponibilizar recursos necessários (leis, regulamentações, empréstimos) para o estabelecimento de posições que definem a própria estrutura do campo econômico.
Embora o turismo penitenciário se apresente como perspectiva de mercado e assim seja abordado pelos moradores entrevistados em Lavínia, ele encerra um paradoxo: coloca em relação atores econômicos em condições legais diferentes e fere o princípio do laissez faire; livre encontro de atores no mercado. Os presos es- tão em sua condição legal, isolados da sociedade, e o seu desloca- mento para as prisões distantes da cidade de origem obriga seus familiares a se deslocarem para este contato. Embora nomeado como modalidade de turismo – pessoas que acessam uma cidade ou região e lá consomem bens e serviços – não o fazem por livre decisão, antes, por ser esta a única alternativa de contato com maridos, namorados, filhos ou pais. Conforme Foucault (2014, p. 14) “a punição vai-se tornando, pois, a parte mais velada do processo penal [...]”. Trabalhar sobre os efeitos do encarceramento de um ponto de vista externo da prisão invoca um aperfeiçoamento contínuo das possibilidades etnográficas e revela um processo penal em circuito: a punição que ressoa na família dos presos.
A pesquisa seguiu os caminhos de outros investigadores obser- vando como a prisão se encontra também fora dela, articulando circuitos específicos de pessoas e bens materiais (Godoi, 2017; Padovani, 2019; Lago, 2019). A prisão existe enquanto rede de relações que ultrapassam seus muros e se difundem por amplos territórios e segmentos da população; perspectiva que renuncia a noção das instituições totais enquanto territórios de completo distanciamento.
O município de Itirapina-SP só apareceu na vida da pesquisado- ra Silvestre (2011) e do pesquisador Sabaini (2012) diante de uma primária relação subjetiva, ambos foram moradores antes que pesquisadores. A metodologia justamente nos guia a esta discussão central referente à prática do ofício de sociólogo, a “objetivação do sujeito objetivante”.
De maneira semelhante, o acesso privilegiado que nos serviu du- rante a exploração etnográfica em uma pousada em Lavínia foi o fato de que a mãe da primeira autora seja sua proprietária. A pousada, para a qual demos o nome fictício de Pousada Sabiá, recebe apenas mulheres as quais visitam seus maridos, filhos, pais, namorados nas prisões de Lavínia e da cidade vizinha, Mi- randópolis. Como filha da proprietária de uma pousada que con- quistou sua clientela através de um tratamento considerado res- peitoso por mulheres que carregam o estigma devido ao vínculo com um detento, foi possível uma imersão no que Favret-Saada (2005) nomeou de “etnografia por afetação”.
Quando o assunto é a extensão da punição aos familiares dos detentos impõe-se um recorte de gênero. Megan Comfort (2007) em sua obra Doing time together demonstrou como esposas e namoradas cumprem pena ao lado de seus familiares, as mulheres não abandonam, mudam sua rotina de vida para estar com os companheiros e nesta prática interferem múltiplos aspectos da construção de gênero6.
Como complemento da experiência etnográfica, durante o mesmo período, de dezembro de 2017 a fevereiro de 2018, realizamos dez entrevistas em profundidade com moradores do município de Lavínia que se dividem em dois grupos: os estabelecidos por questão geracional dos estabelecidos pela oportunidade comercial; todos sem nenhum tipo de vínculo familiar com detentos.
Entre moradores entrevistados que nasceram em Lavínia estão os que ocupam posições de maior prestígio social, como os dois agentes políticos locais, uma trabalhadora da parte administra- tiva de uma das prisões do município e a assistente social da Prefeitura Municipal, além de duas trabalhadoras do Conselho Tutelar. Dos comerciantes – outros quatro entrevistados – um deles também era morador “antigo” da cidade de Lavínia e pro- prietário de uma pousada, assim como taxista. Os outros três comerciantes se mudaram para o município em busca de uma oportunidade comercial.
Um segundo trabalho de campo foi realizado em dezembro de 2018 sob o estímulo de Goidanich (2012). A pesquisa desta autora é uma etnografia de acompanhamento de mulheres ao supermercado no momento de realização das compras para a família. No campo dessa pesquisa acompanhamos três visitan- tes, então hospedadas na Pousada Sabiá, durante suas compras nos dois supermercados existentes na cidade. Notamos como elas “constroem-se como sujeitos em suas relações com as lojas” principalmente com as outras mulheres de presos que encon- tram e os poucos moradores que visualmente interagem com elas. Durante as compras percebemos como o foco é o familiar detido, porém, elas permitem-se “presentes” (Muller, 2002), em particular, produtos de estética e nos poucos momentos de ócio, a parada em uma sorveteria ou uma cerveja no bar.
Bourdieu (2005) em sua crítica ao agente racional individual e intercambiável da ortodoxia econômica afirma que decisões de compra e participação no mercado não são tomadas por agentes isolados, envolvendo grupos, famílias ou empresas os quais fun- cionam como subcampos. Daí a escolha da casa enquanto objeto empírico, tratando-se de um bem carregado de valores arraiga- do na reprodução da riqueza (propriedade) familiar.
Elias e Scotson (2000) no estudo de Winston Parva apontam como grupos da mesma condição material geraram novos me- canismos simbólicos de distinção associados à antiguidade, o tempo de residência, o caráter daquilo que é antigo; atribuin- do características de sua minoria “pior” aos novos integrantes, os outsiders. Este fenômeno refletia de forma positiva no grupo dominante intensificando as qualidades dos então estabelecidos (antigos), uma relação assimétrica alimentada pelo ato de difa- mar o outro através das fofocas pejorativas7.
No caso de Lavínia existe um marcador simbólico das relações que ali se estabelecem, sendo este, a prisão. Pensar em configuração no sentido atribuído por Elias e Scotson (2000) significa encontrar o efeito desta demarcação simbólica na constituição das interdependências funcionais, e para isto a troca mercantil é um bom ponto de partida para observar as relações entre demandantes e ofertantes em condições assimétricas que explicitamos a seguir.
Godoi (2017, p. 190) questiona o mito do “custo do preso” apresentando dados da Defensoria Pública do estado de São Paulo os quais atestam a insuficiência de recursos para a manutenção das prisões. O Estado ao instaurar a escassez material dentro das prisões acaba produzindo o que esse autor denominou de “Sistema de Abastecimento”: a presença da família numa dinâmica de manutenção material das penitenciárias paulistas, o que repercute num “[...] particular regime de práticas que, por sua vez, vai possibilitar ao sistema prisional continuar funcionando, mesmo que de um modo muito distinto daquele normatizado nos códigos”.
Padovani (2019) e Lago (2019) observam o estigma atribuído às relações interpessoais e fronteiriças com a prisão. Tomando como referência Zelizer (1978; 2009), as relações entre mora- dores e consumidores familiares dos presos, que não aquelas re- lativas à troca mercantil, poderiam ser fonte de poluição destas relações, como veremos nas próximas seções.
O mercado aparece como único espaço de contato e de interco- nhecimento permitido entre mulheres de presos e moradores da cidade. As visitantes, identificadas como mulher de preso8, che- gam ao município de Lavínia entre as quintas-feiras e domingos de madrugada. A sua chegada modifica totalmente a rotina da cidade. As visitas aos detentos são permitidas aos sábados e aos domingos, ao contrário das prisões mais próximas da área me- tropolitana de São Paulo, onde os familiares só podem visitar nos domingos (Padovani, 2019). Esse tempo estendido aumenta a janela de mercado onde os produtos podem ser consumidos e as pousadas ocupadas.
Lavínia atende visitantes do município vizinho, Mirandópolis, localizado a seis quilômetros de Lavínia. O município conta com duas penitenciárias e um Anexo de Regime Semiaberto (ARSA), somando 5.028 presos.9 É reconhecido pelos comerciantes locais de Lavínia o alto poder aquisitivo das visitantes das prisões situadas no município vizinho, por reunir personagens da alta cúpula do PCC, conforme demonstrou Feltran (2018, p. 37).
Para atrair as visitantes de Mirandópolis o comércio laviniense estende seu horário de funcionamento por mais duas horas. Enquanto em Mirandópolis os supermercados fecham às 18 horas, em Lavínia estão abertos até 20 horas nas sextas-feiras e sábados, configurando noites de circulação agitada durante os finais de semana de uma pacata cidade do interior paulista10.
A partir de quinta-feira, Lavínia se transforma em uma cidade turística: prateleiras de supermercados renovam-se, muitos ca- minhões carregados de produtos são observados; os carros de táxis deixam as garagens de suas residências; os locais de hospe- dagem – pousadas, hotéis e casas particulares – estão em pleno funcionamento; os policiais igualmente permanecem nas ruas e vigiam de maneira mais rigorosa.
O espaço externo à prisão igualmente impõe fronteiras abstratas e regidas pelo temor. Cada veículo particular que chega à cidade sem que seja “reconhecido” pelos policiais é abordado e revistado. As pesquisas de Silvestre (2011) e Sabaini (2012) igual- mente constatam a mudança da paisagem mediante a circulação do transporte oficial da polícia e da Secretaria da Administração Penitenciária em Itirapina-SP durante os dias de visitas.
As transações monetárias que relacionam moradores, comer- ciantes e as visitantes têm os seus significados negociados. Conforme expresso nos fragmentos retirados das entrevistas com comerciantes locais: “não importa de onde vem o dinhei- ro delas(...)”; “como em todo lado, tem todo tipo de gente(...)”; “elas pagam direitinho”, ou ainda “se elas fazem algo de errado é problema da polícia(...)”. Estas falas apontam certo temor em relação a estas consumidoras como também indicam a negocia- ção de fronteiras de que fala Zelizer (2011; 2009; 1978 [1992]): uma coisa é a troca mercantil na cidade, outra são os possíveis crimes que devem ser separados dos atos de troca. Ao mesmo tempo expressam a desconfiança da fonte ilícita do dinheiro dessas mulheres e a especificidade da forma como comerciantes moldam as formas de convivência com suas clientes.
Nas transações monetárias vale ressaltar a inflação dos preços nos supermercados da cidade. Lavínia, como em qualquer outra cidade turística, os preços são remarcados com a chegada das visitantes.
A gente não tem um comércio de qualidade. Lamentavelmente, supermercados que nós temos aqui deixa muito a desejar. E o preço aqui é muito alto! O que acontece aqui em Lavínia é que os mercados, os bares, eles tomam como referência (...) e quem consome aqui é família de detentos. Poxa, uma cerveja custa sete reais sabe. Carne, a carne em Lavínia é a carne mais cara que tem, seja a do supermercado, seja a do açougue. Enquanto em Mirandópolis você compra um contrafilé a 23 reais aqui é 27. 70% dos moradores de Lavínia compram em Araçatuba ou compram em Mirandópolis. (Entrevista em profundidade com ex-prefeito de Lavínia realizada dia 23 de jan. de 2018).
Lavínia é uma cidade cara e como relata um de seus ex-prefeitos, os moradores de longa data preferem realizar suas compras em outras cidades:
Se você perceber o comércio da cidade de segunda a quinta tem um ou outro da cidade. Chegou sexta-feira é tudo pessoal de fora e eles não querem nem saber de preço, e compram e levam. Na porta mesmo do presídio tem três trailers que já tira a sobrevivência dali, trabalhando dois dias por semana. (Entrevista em profundidade com ex-prefeito de Lavínia realizada dia 23 de jan. de 2018)11.
Para o ex-prefeito de Lavínia é surpreendente que pessoas possam sobreviver trabalhando apenas dois dias da semana. Uma diferença entre moradores e visitantes contempla igualmente o aspecto do gosto. Silvestre (2011, p. 18) destacou o estilo de consumo enquanto princípio de distinção em Itirapina-SP: conforme dados da pesquisa observa que os moradores acreditam poder distinguir as visitas pelas suas roupas diferentes e extra- vagantes, das quais os moradores da cidade não fariam uso. De outro lado declaram identificar um padrão nos produtos com- prados pelas visitas: “alimentação industrializada, como refrigerantes, doces, biscoitos, e produtos de higiene pessoal”.
Esses produtos diferenciados, capazes de distinguir as visitantes dos consumidores moradores, também mudam conforme as restrições da prisão, principalmente com a introdução dos scanners os alimentos passam a ser fonte de constrangimento, assim são revistados e fiscalizados pelos agentes penitenciários. Quando identificam itens ilícitos proíbem a entrada do alimento como forma de castigo (Padovani, 2019).
Em Lavínia são os itens preferenciais de consumo das visitantes os mais inflacionados quando os comparamos com cupons fiscais de visitantes que trazem alimentos – e outros itens do jumbo – da cidade do Guarujá-SP, cidade turística por excelência ao se localizar no litoral paulista.
Uma hóspede da Pousada Sabiá, que viaja de Guarujá a Lavínia com sua família, a cada 15 dias e em carro particular, nos trouxe o cupom fiscal da compra de seu jumbo realizada em sua cidade de residência, considerada, por ela, mais barata, ou econômica12. A compra foi realizada em dezembro de 2018 em plena época das festividades e férias de fim de ano.
Além da inflação dos preços as visitantes devem pagar suas compras à vista, o que não é exigido de outros moradores de Lavínia. Entre elas o jargão que se afirma de maneira irônica e se difunde pelas ruas da cidade é “sou mulher de preso sim, mas tô pagandu”13. Uma das estratégias de manipulação do estigma é afirmar e ostentar a posse de dinheiro, única forma de paga- mento aceita em Lavínia (dinheiro ou débito no cartão); elas pagam cientes de que pagam um valor superior e são exploradas – porém se sentem respeitadas por poder realizar o pagamento.
O fluxo das visitantes é variável: algumas mulheres chegam às quintas-feiras no período da tarde e estabelecem uma rotina mais tranquila na cidade, conforme expressão usada por elas: apreciam fazer tudo “com calma”, reservando um tempo para o lazer, o ócio nos bares e restaurantes da cidade. Elas não se restringem à aquisição de alimentos nos supermercados e preparação de itens para a visita; igualmente presente está a preocupação estética: frequentam o salão de beleza para cuidar dos cabelos e unhas. A missão: agradar o marido ou o namorado. Uma das lojas da cidade de Lavínia se especializou na venda de lingerie, roupa íntima sem costura e sem algum tipo de metal para que possam passar sem problemas nos escâneres corporais das prisões14.
As mulheres de presos são, portanto, aquelas que pagam preços altos por produtos no comércio de Lavínia e ao mesmo tempo vítimas de uma violência simbólica que desqualifica suas vontades de consumir em momentos de ócio. Estes momentos prolongariam sua exposição em espaços públicos da cidade, assim como prestação de serviços fora dos horários estabelecidos são inexistentes ou negados como veremos adiante.
Reportagem publicada no jornal O Estado de S. Paulo, na seção Economia e Negócios, intitula-se “‘Jumbo delivery’ faz entregas em 150 cadeias e penitenciárias de São Paulo”. O assunto é um empresário do ramo das confecções:
“Do jeito que o negócio está crescendo, em breve o jumbo passará a ser a atividade principal da nossa empresa, que hoje emprega 120 pessoas na área de confecção”, diz o empresário, que prefere não falar em valores de faturamento por motivo de cautela. “Esse mercado é meio complicado”, desculpa-se. (Scholz, 2014 – Jornal O Estado de S. Paulo).
Nesse mesmo jornal outra notícia, desta vez na seção de Moda e Beleza, tem como manchete “Empreendedora lança marca de roupas para detentos e mulheres de presos”. A reportagem traz a trajetória de uma mulher que após passar cinco anos visitando o marido criou a empresa “Liberta”, responsável pelo design de roupas apropriadas para realizar a visita15.
A semelhança entre as duas reportagens, além do tema do mercado em torno das prisões, está na concepção otimista da figura do empreendedor – pessoas capazes de transformar a pior das realidades em oportunidade de desenvolvimento econômico. Esse otimismo dissimula, pela roupagem do mercado, a tragédia dos detentos. Como afirma Teles (2015) transformar a pobreza em oportunidade. Na primeira notícia o repórter anuncia a empreitada da empresa de ‘jumbo delivery’ como uma iniciativa de auxílio aos familiares com dificuldade em enviar remessas às prisões cada vez mais distantes do local de residência. Na segunda reportagem a empreendedora da marca de roupas Liberta menciona o caráter justo de sua empreitada ao responder à pergunta: Qual é o preço médio das peças? “Elas custam mais ou menos cinquenta reais. Mas quero chegar a valores mais acessíveis, para todo mundo poder comprar. Não quero só ganhar dinheiro com a Liberta, quero facilitar a vida das pessoas”.
Apesar do lucro se estabelecer como interesse, quais negociações de significados são necessárias para um mercado pautado pela lógica prisional?
A maneira como as visitantes são recebidas em Lavínia organiza a rotina de um mercado com características particulares. Situamo-nos numa problemática apropriada ao enquadramento da Sociologia Econômica: empreendedores que encontram nas prisões possibilidades de mercado.
As visitantes se transformam em consumidoras potencial do comércio local de Lavínia, como podemos observar na entrevista que mantivemos com Glória (nome fictício) – proprietária de uma padaria:
O sonho do meu marido era ter uma padaria, nós nem sabia das penitenciárias e das visita mas com o tempo a gente foi aprendendo o que podia entrar na prisão: o pudim; o bolo certo; o pão de hambúrguer; daí a gente foi melhorando e já faz nove anos que estamos aqui em Lavínia trabalhando com esse tipo de turismo. (Entrevista com Glória, 21 de fev. 2018 – grifo das autoras).
Nessa passagem o termo “as visita” no lugar de as visitantes – frequentemente mobilizado em Lavínia – somente interessa o ato e não as pessoas que fazem a visita; demarca um tratamento genérico e impessoal a estas mulheres.
Na mesma entrevista com Glória recebemos uma queixa de que “os moradores de Lavínia nos dizem que desmerecemos eles porque só fazemos produtos para ‘as visita’” (Glória, 21 de fev. 2018). O comércio local da cidade acabou se especializando na demanda dos produtos permitidos na prisão, diante da dimen- são de Lavínia enquanto complexo penitenciário.
Sabaini (2012, p. 55) já havia destacado a divisão entre mora- dores e visitantes, como estabelecidos e outsiders– no sentido de evitar a poluição das relações – na rotina de consumo em Itirapina-SP:
Não somente os agentes penitenciários, como a maioria dos moradores da cidade sabem dos horários em que as mulheres de preso frequentam o estabelecimento, evitando, desta maneira, fazer suas compras no mesmo horário, advertindo amigos e conhecidos a fazerem o mesmo.
No turismo penitenciário é possível observar como a chegada das prisões reverteu oportunidades de emprego que haviam sido perdidas. Como demonstra José em entrevista: “hoje meu filho trabalha comigo na pousada, minha esposa também, ele não estaria aqui se não fosse a pousada” (José, nome fictício, 18 de fev. 2018).
Lavínia conta com 13 pousadas e um hotel. A diferença estabelecida entre as pousadas igualmente configura especificidades do turismo penitenciário: a maioria das pousadas aceita apenas mulheres como hóspedes enquanto poucas admitem também homens.
Na pousada mais antiga da cidade – uma das que aceita hóspedes homens além do hotel – é possível encontrar todos os motoristas das excursões oriundas de São Paulo, assim como os próprios ônibus estacionados ao redor do estabelecimento. Uma das regulamentações da Prefeitura Municipal de Lavínia foi proibir a circulação dos ônibus particulares na cidade e é por isto que existem tantos carros de táxis, os dois donos de pousadas que entrevistamos igualmente dispunham do serviço de táxi. Cada ida ou volta da prisão custa em média oito reais, as viagens mais visadas são até as prisões de Mirandópolis – o município vizinho que custam aproximadamente 30 reais.
Nenhuma das pousadas mencionadas acima é de propriedade dos familiares dos detentos; todas são de moradores do muni- cípio de Lavínia ou empreendedores de outras localidades que vieram apostar no turismo penitenciário.
O Hotel Esplendor (nome fictício) – inaugurado em 2017 – é re- conhecido como alto investimento na cidade. Sua proprietária empregou recursos da venda de uma fazenda, herança familiar no estado de Mato Grosso do Sul. Ela vendeu sua propriedade para investir no turismo penitenciário de Lavínia. O edifício do hotel é uma das maiores construções da cidade, com térreo e dois andares. Ainda, disponibiliza quartos com ar-condicionado.
Outra especificidade do turismo de Lavínia é a locação do uso da cozinha: as mulheres preparam refeições que serão levadas para os presos no horário de visita. As visitantes pagam por hora que utilizam a cozinha, também pelo uso do forno ou de outros eletrodomésticos. Todas as pousadas cobram, inclusive, para guardar itens no refrigerador, variando de R$ 1,50 a R$ 2,00 reais por item.
Aquelas visitantes que chegam na quinta-feira, em geral, preparam as refeições que serão levadas aos presídios durante a sexta-feira, dia de maior tranquilidade na cozinha da pousada. Os refrigeradores de uma pousada em Lavínia, no final da noite de uma sexta-feira, ficam repletos de potes recheados com comida e refrigerantes de dois litros com uma etiqueta identificando a proprietária pelo nome. Aqui um item do turismo penitenciário diverso do turismo convencional: o fato dessas mulheres optarem por cozinhar para seus maridos. Elas viajam, trazem coisas, compram outras coisas e cozinham no sentido de dar aos maridos a sensação de estarem no lar: o refrigerante está gelado e a comida é fresca como se comessem em suas próprias casas, e o esforço é enorme para conseguir que tudo chegue perfeito na prisão, e para isto precisam acordar cedo para apressarem sua entrada16.
Em retorno ao campo, dezembro de 2018, encontramos uma nova movimentação no setor da hotelaria em Lavínia. A primeira delas, fisicamente visível, é a construção de um novo hotel. O investimen- to vem de dois sócios da cidade de Araçatuba-SP, distante 70 quilô- metros de Lavínia. O hotel promete oferecer, além da hospedagem, serviços de alimentação e outras lojas a fim de disponibilizar itens de utilidade para as visitantes. O serviço de alimentação funcionará durante a madrugada – horário de chegada de muitas excursões e período em que as visitantes não encontram onde comer na cidade.
Outra novidade, segundo declaração dos moradores de Lavínia, foi o aumento exaustivo das casas clandestinas. Algumas mulheres que acompanham a pena de seus maridos decidiram se mudar para a cidade depois que casas populares foram entregues em 201817.
Nessas casas afastadas do centro da cidade elas colocaram camas de tipo beliche para oferecer hospedagem às demais visitantes por um preço inferior ao das pousadas. Ao princípio, elas estariam participando da concorrência do livre mercado como outro interessado qualquer.
Porém, os proprietários de pousadas organizaram um abaixo assinado e dirigiram-se ao prefeito do município, exigindo providências. Exemplificaram o caso de um outro prefeito do município de Avanhandava-SP. Este prefeito quando soube da existência de uma casa clandestina acionou sua relação com o diretor do presídio que enviara o marido da mulher que colocou a casa, de bonde (ir de bonde significa ser transferido às pressas a outra penitenciária). Este fenômeno coloca em evidência a forma em que essas mulheres são aceitas como agentes econômicos na condição de consumidoras, mas o papel de produtoras no mercado está interditado ou, nos termos de Zelizer (2011; 1978), profana as relações ou polui o mercado.
A decisão do atual prefeito foi exigir aos proprietários das pousadas que regulamentassem suas condições legais referentes ao alvará com a prefeitura, para que então pudesse tomar alguma medida oficial em relação às denominadas casas clandestinas. Constatamos que apenas sete pousadas de Lavínia estavam regularizadas com o alvará da Prefeitura Municipal. Havia ainda uma pousada que não havia pago sua conta de água durante um período de 15 anos.
Os proprietários de pousadas alegam em seu favor que casas clandestinas podem se transformar em ponto para a comercialização de drogas18. Vemos aqui mais um aspecto da configuração estabelecidos/outsiders: os estabelecidos acusam e atacam através de julgamento difamador os (ou as) outsiders.
A maior parte das visitantes hospedadas na pousada etnogra- fada sequer realizam visitas nas penitenciárias de Lavínia. Elas se dirigem às duas penitenciárias do município vizinho, Miran- dópolis-SP. As penitenciárias de Mirandópolis, conhecidas res- pectivamente como MIRA 1 e MIRA 2, são famosas no município de Lavínia por albergar presos com penas mais longas. Estes detentos são reconhecidos pela posse de maior capital econô- mico (devido às suas relações com o PCC), como já menciona- do. Assim, suas visitantes são disputadas e preferidas19. Seria de grande interesse analisar a rede de transferência monetária que constitui as visitantes como consumidoras, tão bem como a hierarquia que existe entre elas em termos monetários e os vínculos com o PCC; fica o tema como pista de pesquisas futuras.
Nessa organização, os grupos do aplicativo WhatsApp20 são fundamentais para a difusão de informação e de propaganda dos possíveis serviços e produtos disponíveis na cidade, tão bem como para evitar o contato físico. Em Lavínia é possível observar o efeito da prisão sobre o estabelecimento de uma ordem econômica e produtiva. Os comerciantes da cidade, assim como os demais moradores, dependem da organização das visitantes para calcular seus investimentos de um lado e, de outro, calcular os horários que saem às ruas evitando encontros com familiares de preso. Abordamos a seguir a rotina das pousadas.
4.2. A rotina de pousada – hospedar-se e cozinhar para o companheiro, um lar inventado
Na Pousada Sabiá um refrigerador de sorveteria fica dentro de um quarto ao lado da cozinha, onde a proprietária da pousada descansa. Esse cômodo permanece trancado (o temor é de rou- bos) quando a proprietária está ausente. Em algumas ocasiões a proprietária da pousada precisou ressarcir itens que desapa- receram de seu refrigerador. A desconfiança é parte integrante desse mercado e perpassa as discussões referentes ao significa- do de mulher de preso mesmo que roubos também aconteçam em outros hotéis e em outros cenários.
Durante as madrugadas de sábado e domingo é preparado o café da manhã da pousada: pão francês, leite, achocolatado, café, bolo e suco. O café da manhã é servido das 4h às 7h. As mulheres acordam cedo para dar início aos preparativos da vi- sita às prisões. A funcionária da Pousada Sabiá é responsável por retirar todos os itens do refrigerador, os distribui em cima de uma grande mesa e vigia para que seja recolhido pessoal- mente por sua proprietária. Ela confere com cada uma das mu- lheres o nome identificado no rótulo do objeto a ser entregue. Essa funcionária recebe a quantia de 900 reais por mês como salário. Há também um momento de desperdício: itens de alimentação que sobram no domingo. Muito do que foi comprado pelas visitantes não é utilizado no preparo da comida e o motivo principal é o pequeno tamanho dos vasilhames permitido nas prisões e que quase sempre é insuficiente para tudo o que elas desejavam levar ao presídio. Os projetos são maiores do que as possibilidades da realidade. Itens alimentícios como ex- trato de tomate, maionese, refrigerantes, milhos e ervilhas em conserva; presunto e queijo; ao serem abertos e não utilizados por inteiro acabam deixados na geladeira da pousada. Outros itens como pacotes de arroz ou de macarrão pela metade; litros de óleo quase cheios; comidas de preparo rápido e congeladas como lasanha ou canelone, latas de cerveja. Tudo vai parar na geladeira da casa da proprietária da Pousada Sabiá que brinca “nem preciso fazer compra no mercado” (Coralina, 21 de fev. 2018).
A racionalidade econômica que caracteriza a aquisição de alimentos e bebidas, por parte das visitantes, é a noção de fartura, fenômeno que se manifesta no jargão popular em frases como “é melhor sobrar do que faltar”; “tadinho do preso com aquilo que come lá dentro”; “miséria atrai mais miséria”.
A rotina das hóspedes inclui passeios e acompanhar novelas pela televisão. É na sexta-feira que elas vão fazer suas compras nos supermercados da cidade e de retorno à pousada, cheias de sacolas, fazem uso da cozinha. Elas preparam muita carne e por isto a maioria delas faz uso do forno (lembrando que devem pa- gar preços diferenciados para uso de forno e fogão). Os pratos mais comuns: maionese; vinagrete; lasanha; macarrão a bolo- nhesa; mandioca frita e lanches. Nesse momento a música soa alto na cozinha; o funk embala as mais jovens e o pagode agrada aquelas de mais idade.
Na sexta-feira pela noite chegam muitas visitantes e a pousada fica mais agitada; aquelas da quinta-feira já desocuparam a cozi- nha dando espaço para as recém-chegadas. Na cozinha da Pou- sada Sabiá existem quatro fogões de seis bocas, os quais serão compartilhados por no máximo duas visitantes por vez. O único homem que entra frequentemente na pousada é o entregador de gás.
Depois de cozinhar, é hora de relaxar, muitas se acomodam na varanda da pousada e abrem uma cerveja com a sensação de “dever cumprido”.
No sábado as visitantes despertam na madrugada para cuidar dos preparativos femininos ao som do secador de cabelo e dos chuveiros funcionando. Em seguida, organizam os seus recipien- tes com alimentos, o refrigerante gelado e tudo vai para a bolsa de jumbo; elas aguardam então os ônibus da excursão na porta da pousada. Um grande movimento de pessoas em Lavínia acon- tece na madrugada, enquanto os demais moradores do municí- pio ainda dormem. Outra característica do turismo penitenciário que favorece o isolamento dessas mulheres em relação aos de- mais habitantes da cidade.
No domingo quando todas as visitantes estão dentro dos presí- dios Coralina (nome fictício da proprietária da Pousada Sabiá) retorna a casa e calcula os rendimentos da semana. Em média ela recebe a quantia de 2800 reais a cada fim de semana. Nesse final de semana o movimento de sua pousada tinha sido muito bom porque correspondia ao Natal dos presos, celebração que ocorre na semana anterior ao calendário oficial e que permite a entrada de mais itens de alimentação nas sacolas de jumbo. Ao final de cada mês Coralina recebe de seu trabalho no turismo penitenciário o valor aproximado de 8 mil reais.
O que exploramos no artigo foi a circulação das visitantes em rotinas organizadas como consumidoras, com horários específicos capazes de engendrar igualmente a organização do grupo ofertante: moradores sem vínculo familiar com penitenciárias do município de Lavínia. Os moradores locais que trabalham informalmente sabem o momento ideal de acessar os corredores das pousadas vendendo seus produtos; os pedidos são entregues a qualquer hora do dia, incluindo a madrugada, antes que as visitantes deixem a prisão. Após o horário das visitas as ruas de Lavínia estão movimentadas e ao mesmo tempo segregadas: o comércio é permitido, porém, evita-se qualquer outro tipo de contato físico com essas pessoas, o contato é considerado como poluição das relações pelos moradores de Lavínia.
O intuito do artigo foi mobilizar conceitos da Sociologia Econô- mica para refletir a respeito das relações de mercado situadas fora da prisão embora atravessadas por ela. A proposta é agre- gar reflexões sobre a objetivação do encarceramento em massa como forma de pensar a pobreza e seus lugares de gestão (Tel- les, 2015).
A condição das mulheres consumidoras em Lavínia (esposas, mães, filhas e namoradas de presos) é tolerada como passageira, a iniciativa delas na cidade de montar as próprias pousadas se apresenta – aos moradores – como elemento poluidor e ameaça- dor, daí um movimento em protesto contra estas pousadas, mes- mo que as suas próprias sejam irregulares. Existe um interesse velado de que essas mulheres prossigam configurando catego- rias transitórias de populações em fluxo.
O mercado em torno das prisões marca as mulheres e famílias dos presos como população perigosa, a constituição destes mer- cados alcança familiares de presos com atribuições morais que circunscrevem o interior das muralhas, violência simbólica que ressoa para além do preso. Entretanto, ao mesmo tempo que acarreta desconfiança e medo, também gera formas de paga- mentos imediatas e em dinheiro que “vem de fora”. Relação con- traditória que gera o mercado, ao mesmo tempo em que nega outros espaços de convívio.
O risco da presença delas é precificado através do aumento de preço das mercadorias nos dias da semana que estas mulheres frequentam a cidade e com a imposição do pagamento à vista. As visitantes desejam reproduzir a esfera do lar e desta maneira utilizam o espaço das cozinhas das pousadas no preparo de refeições que serão levadas no momento da visita. Reproduzir um lar, igualmente, se torna um item precificado: elas pagam um preço extra pelo uso da cozinha (forno e fogão são itens precificados separadamente) das pousadas. Reproduzir um lar também significa repensar a categoria turismo, que deveria significar a livre escolha de se ausentar da própria casa em busca de novas experiências.
Voltando às reflexões de Telles (2015), o fenômeno gerador de recursos para o desenvolvimento regional se realiza às custas de famílias e mulheres pobres – a pobreza transformada em mercado que mesmo com parcos recursos devem se deslocar até Lavínia, onde se transformam em consumidoras disputadas entre pousadas, supermercados e informais. Conforme análise de Zelizer (1978) sobre o mercado de seguros de vida, aqui igual- mente o discurso do turismo penitenciário justificado como alternativa de desenvolvimento econômico dissimula o processo de encarceramento em massa ao purificar o dinheiro que vem dele: é pelo bem dessas cidades que as prisões são acolhidas.
Para Bourdieu (2005) as estratégias econômicas estão integra- das em um sistema complexo de reprodução, que no caso do turismo penitenciário poderia significar empobrecimento dos lares, dinheiro dispensado para mais um cuidado que no caso é o familiar detido. Indo contra as premissas economicistas, o mercado em torno das prisões demonstra como o uso instrumental das desigualdades opera em sentido de “imprimir distinções morais” (Zelizer, 2009).
Certamente pensar nas relações de mercado atravessadas pelo atual fenômeno do encarceramento em massa requer um aprofundamento em perspectivas raciais e de gênero, o que fica como pista para pesquisas futuras.
Esta pesquisa pretendeu ampliar o campo de análise, porém, não aborda todas as dimensões dos mercados em torno das prisões. Mais pesquisas comparando os diferentes formatos de mercados nas cidades e a dinâmica particular do Rio de Janeiro, onde a espacialização é diversa, são bem-vindas.