EXTENDED ABSTRACT

“Where are the women?” (Enloe, 2014, p.1). This is one of the main questions raised when analyzing the place and role of women in international politics. Thus, if we analyze the international security and peace scenario, we realize that the presence of women is historical. However, as a result of the social structure that privileges the figure and representation of the male, the presence of women has ended up being made invisible (Moura, 2005).

In this way, thinking about women and where they are located means analyzing the stereotypical discourses that surround their image; it means bearing in mind that the false dichotomies created and reproduced socially are still present, since they seek to disqualify the role and representation of women (Possas e Reis, 2009; Enloe, 2014).

It is anchored in these assumptions, and in an attempt to find explanations for this, that feminist theorists seek to understand the meaning of international politics from a curiosity about gender, since “gender makes the world go round” (Enloe, 2014, p.1), as well as altering the structure of social relations and highlighting central issues such as the relations of power and hierarchy that surround gender relations and marginalize women (Moura, 2005; Possas e Reis, 2009; Enloe, 2014).

Based on the above, the aim of this paper is to clarify the relationship between women and peace, with the aim of locating and analyzing the role of women in the peace scenario and in peacebuilding processes. To this end, the research question that guides the development of the research is: “Does the presence of women change the way peace processes are conducted?”.

That said, this study is based on qualitative, exploratory and descriptive research (Sampieri, Collado e Lucio, 2013), as well as being feminist-informed research, i.e. research that must take into account the “theoretical, methodological and empirical reflections of a diverse body of feminist theories and feminist research” (Ackerly e True, 2011, p. 228); as well as guiding research so that it follows paths that locate women and their different experiences (Enloe, 2014).

As can be seen in the larger field of International Relations, feminist ideas were also left marginalized in Peace Studies (PSS), since it was not evident what the theorists were researching (Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Confortini, 2010; Reardon e Snauwaert, 2015), given that “[. ...] considered feminist research as a special case, rather than a contribution to the main body of peace theory” (Boulding, 1992, p. 56).

In the peace research of feminist theorists, women are the basis of the research, and the questions are asked of them and their experiences, trying to locate them in order to highlight their roles in both war and peace. Researchers therefore theorize what they experience and perceive on a daily basis, thus creating a connection between activism and academia (Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Ariño, 2010; Confortini, 2010, 2012; Enloe, 2014;Björkdahl e Selimovic, 2021; Eschle, 2021).

However, it is important to emphasize that there is a multiplicity of discourse behind feminism for peace, since it is not a homogeneous movement (Magallón, 2001; Moura, 2005; Roque e Santos, 2019; Wibben, 2021). Therefore, it is necessary to highlight the different perceptions and voices of the groups that make up this feminism, given that “militant activists in the field of peace are, however, marked by heterogeneity and sometimes contradictions” (Roque e Santos, 2019, p.440).

Beyond the theoretical and academic perspective of feminists for peace, it is important to think through the prism of women's activism, militancy and practical action towards peace, in other words, the feminist and women's movement as a social movement, in which the EPP incorporates practice, theory, actions and ideas (Burguieres, 1990; Confortini, 2010; Roque e Santos, 2019; Eschle, 2021; Wibben, 2021).

From this, it is clear that it is necessary to analyze the practical, local and grassroots actions of women in the quest to develop actions that generate real transformations, which are characterized in peacebuilding.

Women seek peace because they are concerned about the real, day-to-day situation in the community, such as food security and basic humanitarian conditions, for example, as well as a direct fear for survival in the midst of direct violence. They act in such a way as to create an environment in which it is possible to build a local culture of peace (Mckay e Mazurana, 2001; Pacheco, 2018).

In this way, it is important to think about the peacebuilding process through a feminist lens, given that it is diverse and multiple, since it takes in different experiences, perspectives and realities in its conduction (Schirch e Sewak, 2005a, 2005b; Mckay e Mazurana, 2001).

The peacebuilding process, based on the bottom-up model and the idea of local ownership (Lederach, 1998, 2012; Ramsbotham, Woodhouse e Miall, 2005; Donais, 2009;Ball, 2019), is marked by the practice of dialog as an important tool for transforming conflicts (Lederach, 2012), since “dialog is a fundamental way of promoting constructive change at all levels” (Lederach, 2012, p.34-35).

Thus, based on what has been presented, it can be pointed out that the process of sustainable peace comes from the grassroots (Lederach, 1998; Ramsbotham et al, 2005); in addition, peace, both in its negative and positive spectrum, can be considered to be: freedom; social and racial justice and equality; women's equal rights, emancipation and political voice; human and socio-economic development; equal responsibilities; access to education; food sovereignty and respect for the environment; decolonization; freedom from oppression; human rights; caring for and valuing life; non-violence; and tolerance (Schott, 1985; Burguieres, 1990;Boulding, 1992; Pureza e Moura, 2004; Schirch e Sewak, 2005a,2005b; Confortini, 2010; Lederach, 2012; Tickner, 2018).

1. INTRODUÇÃO

“Where are the women?^[1]” (Enloe, 2014, p.1). Esse é um dos principais questionamentos levantados quando se pretende analisar sobre o lugar e o papel das mulheres na política internacional. Assim, se analisarmos o cenário da segurança internacional, a partir das guerras e dos conflitos armados, e da paz, por meio dos movimentos de ativismo e da construção da paz, percebemos que é histórica a presença feminina. Mas, em decorrência da estrutura social que privilegia a figura e representação do masculino, a presença das mulheres acabou sendo invisibilizada (Moura, 2005).

Das diferentes narrativas que compõem o cenário da segurança e da paz, uma delas é a da ausência feminina. Com base nesse entendimento, torna-se essencial evidenciar as mulheres e as suas experiências ao longo dos diferentes processos históricos das relações internacionais (Possas e Reis, 2009).

Desse modo, pensar sobre a mulher, e onde elas estão localizadas, é colocar em pauta a análise sobre os discursos estereotipados que circundam a sua imagem; é ter em mente que as falsas dicotomias^[2] criadas e reproduzidas socialmente ainda estão presentes, uma vez que elas buscam desqualificar o papel e a representação do feminino (Possas e Reis, 2009; Enloe, 2014).

É ancorado em tais pressupostos, e na tentativa de achar explicações para isso, que as teóricas feministas buscam compreender o sentido da política internacional a partir de uma curiosidade em gênero, uma vez que o “gênero faz o mundo girar”^[3] (Enloe, 2014, p.1), bem como altera a estrutura das relações sociais e coloca em destaque questões centrais como as relações de poder e hierarquia que estão em volta das relações de gênero e que marginalizam as mulheres (Moura, 2005; Possas e Reis, 2009; Enloe, 2014).

Com isso, no âmbito das Relações Internacionais, a intensificação do debate feminista ocorreu no campo dos Estudos de Segurança Internacional (ESI) e nos Estudos para a Paz (EPP), uma vez que elas ressaltaram a necessidade de se debater sobre as políticas militaristas, as questões como a segurança e a violência, do impacto das guerras sobre a população civil, além das práticas da construção da paz (Moura, 2005; Buzan e Hansen, 2012).

Todavia, as diversas experiências das mulheres nos processos formais e informais de consolidação da paz e na assinatura dos acordos de paz continuam reduzidas, e às vezes ausentes. Entretanto, essa ausência é prejudicial, uma vez que as decisões tomadas nas mesas de negociação têm impacto na sociedade, logo, a participação marginalizada das mulheres nesses processos é danoso, dado que os seus interesses são negligenciados e deixados de lado (Magallón, 2001, 2004; Ariño, 2006, 2010; Hendricks, 2020).

2. ASPECTOS METODOLÓGICOS

Partindo-se das ideias apresentadas na introdução, o presente trabalho tem como objetivo geral tornar clara a relação da mulher com a paz, tendo como finalidade localizar e analisar a atuação das mulheres no cenário da paz e nos processos de construção da paz. Para isso, a pergunta de pesquisa que guia o desenvolvimento da pesquisa é: “a presença de mulheres muda a forma de condução dos processos de paz?”.

Posto isso, o presente trabalho tem como base a pesquisa qualitativa, de caráter exploratório e descritivo (Sampieri et al, 2013), além de ser uma pesquisa feminist-informed, ou seja, é uma pesquisa que deve levar em conta as “reflexões teóricas, metodológicas e empíricas de um corpo diverso de teorias feministas e pesquisa feminista” (Ackerly e True, 2011, p.228); além de orientar a pesquisa de modo que ela siga caminhos que localizem as mulheres e as suas diferentes experiências (Enloe, 2014).

No que diz respeito ao aporte para a coleta de dados, este será feito com base em pesquisa bibliográfica e documental, uma vez que terá como aporte a literatura teórica e empírica sobre o tema, desenvolvida por autoras e teóricas especialistas da área.

3. O MOVIMENTO FEMINISTA PELA PAZ: TEORIA E PRÁTICA

3.1. Implicações Teóricas

Assim como é visto na grande área das Relações Internacionais, nos Estudos para a Paz (EPP) as ideias feministas também foram deixadas em lugares marginalizados, uma vez que não se evidenciava aquilo que as teóricas estavam pesquisando (Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Confortini, 2010; Reardon e Snauwaert, 2015), dado que se “[...] considerou a pesquisa feminista como um caso especial, ao invés de uma contribuição para o corpo principal da teoria da paz”^[4] (Boulding, 1992, p.56).

Contudo, a perspectiva feminista é importante para a pesquisa de paz, dado que ela faz contribuições significativas que podem gerar mudanças ao colocar novos aspectos e diferentes formas de enxergar as distintas questões da paz. Desse modo, o feminismo proporcionou um impacto no nível conceitual da pesquisa para a paz, além de fazer uma análise da relação de poder e dos silenciamentos (Brock-Utne, 1989; Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Björkdahl e Selimovic, 2021; Wibben, 2021).

As feministas também analisaram a temática da paz, da guerra, da violência, da segurança e do poder para além das perspectivas tradicionais, adaptando as suas análises para evidenciar o papel das mulheres e dos demais grupos marginalizados nos movimentos para a paz (Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Pureza e Moura, 2004; Confortini, 2010; Enloe, 2012).

Assim, na investigação para a paz das teóricas feministas, as mulheres estão na base da pesquisa, sendo os questionamentos feitos a partir delas e das suas experiências, tentando localizá-las para evidenciar quais os seus papéis, tanto na guerra quanto na paz. Logo, as pesquisadoras teorizam aquilo que elas vivenciam e percebem no dia a dia, fazendo assim, com que exista uma conexão entre o ativismo e a academia^[5] (Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Ariño, 2010; Confortini, 2010, 2012; Enloe, 2014; Björkdahl e Selimovic, 2021; Eschle, 2021).

Desse modo, é importante ressaltar que existe uma multiplicidade de discurso por trás do feminismo para a paz, uma vez que ele não é um movimento homogêneo (Magallón, 2001; Moura, 2005; Roque e Santos, 2019; Wibben, 2021). Sendo assim, é preciso evidenciar as diferentes percepções e vozes dos grupos que compõem esse feminismo, dado que “as ativistas militantes no campo da paz são, contudo, marcadas pela heterogeneidade e, por vezes, contradições” (Roque e Santos, 2019, p.440).

Algumas áreas são consideradas como centrais no escopo do que as teóricas pesquisam, sendo elas: a relação da mulher com a paz e a guerra; a educação para a paz; o desenvolvimento de estruturas sociais alternativas e sociedades mais pacíficas; o ecofeminismo; a relação entre o desenvolvimento humano e o socioeconômico; o estudo das violências e o seu continuum, entre outras^[6] (Burguieres, 1990; Boulding, 1992).

De acordo com Mary K. Burguieres (1990), a pesquisa feminista para a paz é marcada por três diferentes abordagens que analisam a relação da mulher com a paz e a guerra, sendo elas: 1 - a corrente essencialista que coloca a mulher como mãe; 2 - a visão liberal que iguala as mulheres aos homens; e, por fim, 3 - a perspectiva feminista que se opõe ao militarismo.

O movimento feminista pacifista/essencialista aceita os estereótipos masculinos e femininos, perpetuando uma visão essencialista tanto das mulheres quanto dos homens (Burguieres, 1990; Moura, 2005; Roque e Santos, 2019).

A associação de imagens e estereótipos das mulheres e dos homens não é algo recente, uma vez que, em geral, se associou a imagem da mulher com a sua função de mãe, e a do homem com a de guerreiro e, “com base nessas imagens tradicionais, as mulheres começaram a desenvolver uma abordagem feminista para a paz”^[7] (Burguieres, 1990, p.3).

O movimento ativista pacifista do início do século XX passou a empregar os estereótipos que eram usados contra as mulheres, para lhes negar direitos, para ganhar mais apoiadores, dado que a política deveria ter qualidades mais pacíficas. Ou seja, transformou “atributos estereotipados das mulheres em qualidades positivas relacionadas ao avanço da paz global”^[8] (Burguieres, 1990, p.4).

O feminismo liberal, por sua vez, possui uma visão negativa dos discursos que colocam as mulheres como sendo “o sexo estimulante, pacífico e não violento”^[9] (Burguieres, 1990, p.5). Logo, as teóricas rejeitam o estereótipo feminino, mas acabam aceitando o masculino, uma vez que recusam a posição pacífica das mulheres, mas localizam e aceitam a posição masculina na violência, buscando ainda inserir as mulheres nesse meio (Burguieres, 1990; Moura, 2005; Roque e Santos, 2019).

As feministas argumentam que era necessário abrir a política para as mulheres, uma vez que “a igualdade de acesso das mulheres às estruturas políticas também pode significar mais paz” (Confortini, 2010, p.05). Assim, elas rejeitavam os discursos que limitavam as mulheres a partir da lógica do determinismo biológico, justificando essas barreiras como fruto das percepções sociais. Sendo contrárias às falas de que as mulheres eram mais pacíficas, elas buscavam atuar em pé de igualdade com os homens nos meios militares (Burguieres, 1990).

Com isso, o menosprezo pelos estereótipos femininos era acompanhado pela aceitação dos masculinos, dado que buscavam se igualar aos termos masculinos, sendo esses representados pelos atributos da violência. Assim, “as feministas ‘questionam o monopólio masculino da violência, mas não questionam o uso da violência em si’”^[10] (Carroll, 1987, p.11, apud Burguieres, 1990, p.5). Deste modo, as feministas buscavam o acesso igualitário das mulheres nas posições de combate nas Forças Armadas, bem como incentivavam o uso de técnicas de violência para a autodefesa, a valorização da figura da mulher guerreira e a participação feminina nos movimentos revolucionários (Burguieres, 1990).

Contudo, elas advogavam a favor de um Estado que não perpetuasse o mito do protetor/protegido, e no qual todos deveriam assumir uma posição de defensor, uma vez que as mulheres também deveriam ser participantes ativas nos conflitos armados. Assim, esses argumentos acabavam possuindo conexão com os princípios da paz (Burguieres, 1990).

Por fim, o feminismo anti militarista é uma quebra radical do que é apresentado nas abordagens anteriores, dado que as feministas rejeitam ambos os estereótipos. A história mostra que tanto as mulheres quanto os homens podem agir de modo violento e não violento, assim, não se pode defender que as mulheres são naturalmente pacíficas e os homens naturalmente violentos, dado que não existe uma regra para isso, e todos os gêneros podem ser pacíficos, violentos ou ambos mutuamente (Schott, 1985; Burguieres, 1990; Moura, 2005; Roque e Santos, 2019). Desse modo, “o comportamento das mulheres na história não permite fazer afirmações de cunho essencialista [...]. Isso também acontece com os homens”^[11] (Magallón, 2004, p.1); e esses discursos essencialistas são frutos do patriarcado que difunde o militarismo e as práticas sexistas nas sociedades (Burguieres, 1990).

Assim, é perceptível que o meio militar perpetua uma visão estereotipada das masculinidades e feminilidades e isso acaba contribuindo para a formação de mitos e de fantasias que erotizam a imagem tanto dos militares homens quanto das mulheres, sendo, portanto, prejudicial, porque perpetua uma linguagem sexista nas ações militares (Burguieres, 1990).

A crítica deste grupo às feministas liberais, é pelo fato de que a busca por se tornar igual aos termos masculinos é danosa porque acaba intensificando a subordinação e as relações de gênero, assim como ajudam a perpetuar o sistema de guerra^[12], o patriarcalismo e o militarismo (Burguieres, 1990). Desse modo, o feminismo deveria atuar como uma antítese ao militarismo e as práticas sexistas, além de ser uma força nos processos de desmilitarização, já que esse processo poderia ter implicações positivas nas práticas sociais que levariam a sociedades mais igualitárias (Reardon e Snauwaert, 2015).

Para as feministas anti militares, tanto os homens quanto as mulheres são responsáveis pela construção de estruturas mais pacíficas, não podendo, portanto, esse feito ser responsabilidade de apenas um dos grupos. Assim como o patriarcado é a base do sistema de guerra e da violência, a paz deve ser resultado do comportamento e do comprometimento de todos na negação das estruturas de gênero (Burguieres, 1990).

Contudo, a partir do que foi visto, é necessário pontuar que é histórica a associação da mulher com a paz, contudo, a associação estereotipada pode ser problemática, uma vez que pode acabar prejudicando o trabalho das pesquisadoras feministas (Burguieres, 1990; Tickner, 2018; Roque e Santos, 2019). A consequência dessa ligação estereotipada é a ausência do envolvimento teórico de feministas das RI com as questões pontuais sobre a paz e o gênero, o que se torna irônico, uma vez que esse distanciamento acaba perpetuando uma desvalorização de ambas as esferas (Confortini, 2012).

Muitas pesquisadoras feministas, tanto na área da paz quanto da segurança, deixaram de pesquisar, por exemplo, sobre o ativismo das mulheres contra as bases nucleares para não serem tratadas de forma essencialista, dado que existe a suposição de que o ativismo feminista replica uma ligação biologicamente determinista entre a mulher e a paz. Assim, por ser algo dado como problemático, elas também não querem ser vistas como reproduzindo os papéis de gênero que elas tanto lutam contra (Eschle, 2021).

Entretanto, “as subjetividades de gênero assumiram diferentes formas em diferentes campos”^[13] (Eschle, 2021, p.252), assim, possibilitaram a coexistência de tanto feministas que advogam a favor de uma visão essencialista e naturalizada das mulheres, quanto outras que negam essa conexão (Moura, 2005).

3.2. A relação prática da mulher com a paz

Assim, para além da perspectiva teórica e acadêmica das feministas para a paz, é importante pensar no prisma do ativismo, da militância e da ação prática das mulheres para com a paz, ou seja, do movimento feminista e de mulheres enquanto um movimento social, no qual os EPP incorporam a prática, a teoria, as ações e as ideias (Burguieres, 1990; Confortini, 2010; Roque e Santos, 2019; Eschle, 2021; Wibben, 2021).

É importante destacar a ação das mulheres nos movimentos para paz enquanto sujeitos coletivos, dado que é notória a participação delas nos movimentos que atuam em busca ou a favor da paz, logo, elas são ativistas pela paz (Moura e Santos, 2008; Confortini, 2010, 2012; Mingol, 2015; Roque e Santos, 2019).

Assim como é visto ao longo dos estudos sobre segurança e paz, o rosto da violência armada é caracterizado pela representação do masculino, fazendo com que esse grupo seja a maioria entre os que matam e os que morrem. Assim como coloca Tatiana Moura e Rita Santos (2008, p. 26), quem sobrevive ao contexto de violência armada tende a “fazer frente à violência, desenvolvendo mecanismos e estratégias para recuperar a normalidade e re-estabelecer a paz e segurança. E o rosto de quem sobrevive é, frequentemente, feminino”. Assim, pode-se considerar que as mulheres se posicionem de forma contrária às práticas violentas e de violência legitimada pelos Estados, bem como são contrárias às opressões de gênero, de raça, de classe (Pureza e Moura, 2004; Moura, 2005; Ariño, 2010; Confortini, 2010; Roque e Santos, 2019). Desse modo, o movimento para a paz atua como uma oposição aos diferentes tipos de violência presentes na sociedade (Pureza e Moura, 2004; Ariño, 2010; Confortini, 2010).

A partir disso, percebe-se que é necessário fazer uma análise da atuação prática, local e de base (grassroots) das mulheres na busca por desenvolver ações que gerem transformações reais, sendo elas caracterizadas na construção da paz (peacebuilding)^[14].

Contudo, “por que as mulheres deveriam se envolver na construção da paz?”^[15] (Schirch e Sewak, 2005a, p.6). Apresentando trabalho de base e ideias inovadoras, as mulheres buscam uma construção de paz verdadeira. Elas usam das suas experiências para a construção de uma paz sustentável que deve acontecer de baixo para cima (bottom-up). Assim, o que acontece com as mulheres têm impacto nesse processo (Magallón, 2001; Confortini, 2010; Pacheco, 2018), dado que “a construção da paz de base feminina é frequentemente pessoal, interpessoal, criativa e política”^[16] (Mckay e Mazurana, 2001, p.6).

Assim, as mulheres buscam a paz porque elas estão preocupadas com a situação real e diária da comunidade, como a segurança alimentar e as condições humanitárias básicas, por exemplo, além de ocorrer um temor direto pela sobrevivência em meio ao cenário de violência direta. Com isso, elas atuam de modo que seja possível criar um ambiente no qual seja possível a construção de uma cultura de paz local (Mckay e Mazurana, 2001; Pacheco, 2018).

Desse modo, as ações das mulheres acabam sendo vistas como mais confiáveis para a sociedade do que as iniciativas políticas e externas ao seu país. É importante o papel das mulheres na resolução não violenta do conflito, uma vez que elas compartilham valores de empatia, baseado na coexistência e na cooperação, além de atuarem a partir de trabalhos práticos e de usarem da sororidade, do apoio e da confiança mútua entre as mulheres para a construção de uma paz local, ou seja, elas acabam formando redes horizontais que agem em prol da paz local (Magallón, 2001, 2004; Mckay e Mazurana, 2001; Schirch e Sewak, 2005b; Ariño, 2010; Gizelis, 2011; Pacheco, 2018).

Assim, é importante levar em consideração as mulheres e as suas experiências nos processos de paz, uma vez que incluir esses fatores pode levar a mudanças significativas no futuro, visto que as mulheres acabam dando um enfoque mais inclusivo na tentativa de negociação da paz, ou seja, elas acabam abordando questões sociais e econômicas. Com isso, a proposta de paz tende a se tornar sustentável e duradoura, bem como passa a ser considerada uma garantia de qualidade e sucesso na implementação dos acordos (Ariño, 2006; Carvalho, Portella-Junior, Ribeiro, 2017). Assim, “quando as mulheres podem contribuir, as chances de que os acordos levem a uma maior equidade e uma sociedade mais inclusiva são muito maiores”^[17] (Ariño, 2006, p.13).

Homens e mulheres têm experiências diferentes e cada um dos grupos deve ser representado no processo de consolidação da paz. Existem diferentes realidades em um contexto de pós-conflito, e todas essas devem ser contempladas nos processos e nos acordos de paz. Por isso, é importante que ocorra uma identificação dos grupos vulneráveis e dos marginalizados para que ocorra uma garantia de direito para todos (Carvalho et al, 2017).

Desse modo, é importante pensar o processo de peacebuilding a partir de uma lente feminista, dado que ele é diverso e múltiplo, uma vez que acolhe diferentes experiências, perspectivas e realidades na suas condução (Schirch e Sewak, 2005a, 2005b; Mckay e Mazurana, 2001).

O processo de construção de paz, a partir do modelo bottom-up e da ideia do local ownership (Lederach, 1998, 2012; Ramsbotham et al, 2005; Donais, 2009; Ball, 2019), é marcado pela prática do diálogo como uma ferramenta importante para a transformação dos conflitos (Lederach, 2012), uma vez que “o diálogo é um modo fundamental de promover mudanças construtivas em todos os níveis” (Lederach, 2012, p. 34-35).

Em relação a essa prática, as mulheres além de terem experiência nesse ponto, elas atuam a partir dessa técnica (Schirch e Sewak, 2005a, 2005b; Ariño, 2010). “[...] As iniciativas de diálogo das mulheres são frequentemente o único canal de comunicação entre comunidades / nações hostis”^[18] (Schirch e Sewak, 2005b, p. 99), sendo, portanto, uma ajuda no processo de humanização do outro (Schirch e Sewak, 2005b).

Contudo, mesmo as mulheres possuindo um papel importante na prática da reconciliação e no trabalho de base, frequentemente elas não são reconhecidas, ou são postas em lugares marginalizados (Mckay e Mazurana, 2001). Além do mais, essas experiências não podem ser naturalizadas e nem vistas de forma essencialista, posto que quando essa ação se torna naturalizada ela acaba perdendo o valor. Assim, “quando o trabalho de paz das mulheres é naturalizado, aumenta o risco de perpetuação das desigualdades”^[19] (Ariño, 2010, p. 28).

Com isso, é importante ressaltar que existem obstáculos que impedem e dificultam o acesso e reconhecimento das mulheres nos trabalhos de paz, uma vez que é perpetuada a ligação estereotipada delas com a paz, no qual, se perpetua que essa atuação só pode acontecer no âmbito doméstico e nos trabalhos familiares, além de ocorrer a identificação da mulher apenas como vítima. Assim, é difícil o reconhecimento e a aceitação do trabalho das mulheres como agente ativo que opera a paz no público e nas comunidades, e que desenvolvem atividades com caráter social e político (Mesa, 2012; Ariño, 2016).

Todavia, é evidente a capacidade das mulheres de exercerem atividades em favor da paz. Um exemplo disso são as mulheres que ao longo da história receberam o Prêmio Nobel da Paz, por atuarem em causas no campo social e político, sendo elas: Bertha von Suttner (1905), Jane Addams (1931), Emily Greene Balch (1946), Betty Williams e Mairead Corrigan (1976), Madre Teresa de Calcutá (1979), Alva Myrdal (1982), Aung San Suu Kyi (1991), Rigoberta Menchú (1992), Jody Williams (1997), Shirin Ebadi (2003), Wangari Maathai (2004), Ellen Johnson Sirleaf, Leymah Gbowee e Tawakel Karman (2011), Malala Yousafzai (2014) e Wided Bouchamaoui (2015) (Mesa, 2012;Jade, 2017; Caron, Graupe e Reckziegel, 2020).

Além das mulheres que conseguiram construir uma paz de forma indireta nas sociedades, sendo elas situadas em: Bougainville, Chipre, Colômbia, Irlanda do Norte, Israel e Palestina, Libéria, País Basco, Quênia, Região dos Balcãs (Kosovo e Sérvia), Somália e Sudão do Sul; além de exemplos no Nepal, Serra Leoa, Guatemala, Uganda, Ruanda, Burundi e República Democrática do Congo (Magallón, 2001, 2004; Schirch e Sewak, 2005b; Comins, 2007; Lederach, 2007;Ariño, 2010, 2016; Wilches, 2010; Angom, 2018; Pacheco, 2018).

Essas mulheres acabam procurando pontos em comum pelos quais devem lutar e buscar a consolidação da paz, assim, elas acabam deixando as diferenças de lado e formam organizações para lutar em prol de um bem comum, haja vista que elas conseguem se entender por sofrerem dos mesmos crimes e violências do cotidiano. Ou seja, elas reconhecem o outro como interlocutor e agente de transformação, no qual acaba existindo a construção de vínculos e um processo de identificação entre elas. Assim, como já citado, as mulheres acabam aplicando a sua experiência pessoal na busca pela transformação do conflito, além de atuarem com base na solidariedade por seus pares (Ariño, 2006, 2010; Carvalho et al, 2017).

É percebido que "em todas as sociedades afetadas por conflitos armados, as mulheres são a força motriz por trás de uma infinidade de mediações diárias e iniciativas de construção da paz, especialmente em sociedades profundamente divididas"^[20](Ariño, 2006, p.12). Essas ações estão inseridas no que Roger Mac Ginty (2014) classifica como everyday peace, ou seja, é um processo de construção da paz que ocorre de baixo para cima e que conta com ações práticas e diárias em prol da paz. O everyday peace atua como um importante bloco de construção da formação da paz, logo, “[...] refere-se às práticas rotinizadas usadas por indivíduos e coletivos enquanto navegam em seu caminho pela vida em uma sociedade profundamente dividida que pode [...] estar sujeita à violência direta episódica além da violência crônica ou estrutural”^[21] (Mac Ginty, 2014, p.549).

Sendo assim, "as experiências das mulheres ampliam o âmbito da própria construção da paz, uma vez que seu ativismo aborda as dimensões psicossocial, relacional e espiritual, bem como as dimensões política e econômica da transformação de conflitos”^[22] (El-Bushra, 2007, p.138).

Com isso, é importante pensar na integração dos princípios da igualdade de gênero nos processos de paz (Ariño, 2016; Hendricks, 2020), além de ocorrer um processo de feminização da paz, mas esse sendo entendido como a incorporação de “práticas e atitudes femininas pacíficas tradicionais em toda a sociedade, permitindo que as mulheres participem na construção ativa da paz, e, por outro, compreender que a paz estrutural só é possível se houver paz de gênero”^[23] (Jorge e Pérez, 2004, p.88).

A constante busca pela transformação do conflito também proporciona e leva a comunidade para um meio onde seja possível alcançar a cultura de paz, dado que o conflito deve ser transformado e não evitado, uma vez que ele é diferente da violência (Ariño, 2010).

Posto isso, a partir do que foi apresentado ao longo do presente tópico, pode-se pontuar que o processo da paz sustentável vem da base (Lederach, 1998; Ramsbotham et al, 2005); além de que a paz, tanto no seu espectro negativo quanto positivo, pode ser considerado como sendo: liberdade; justiça e igualdade social e racial; direitos iguais, emancipação e voz política das mulheres; desenvolvimento humano e socioeconômico; responsabilidades iguais; acesso à educação; soberania alimentar e respeito ao meio ambiente; descolonização; liberdade da opressão; direitos humanos; cuidado e valorização da vida; a não violência; e a tolerância (Schott, 1985; Burguieres, 1990; Boulding, 1992; Pureza e Moura, 2004; Schirch e Sewak, 2005a,2005b; Confortini, 2010; Lederach, 2012; Tickner, 2018).

Sendo assim, o movimento para e pela paz, levantado pelas mulheres e feministas, pode ser esquematizado a partir das suas lutas contrárias e a favor de determinadas pautas, como pode ser visto no Quadro 1:

Quadro 1
Lutas contra e a favor do movimento de mulheres e feministas para e pela paz

Elaboração própria com base nos textos: Magallón, 2001, 2004; Confortini, 2010; Tickner, 2018; Eschle, 2021; Wibben, 2021.

Luta contra	A favor
O racismo, colonialismo e imperialismo	Do reconhecimento das nações e dos diferentes grupos étnicos
A corrida armamentista, a proliferação nuclear e as ações violentas	De soluções não-militares para a resolução dos conflitos
As ações violentas dos Estados e as Ditaduras	Da emancipação política dos grupos marginalizados
A marginalização da mulher e de outros grupos oprimidos	Da liberdade sexual sem as opressões do sistema patriarcal
A pobreza e a insegurança alimentar	Da preservação do meio ambiente e da soberania alimentar

4. CONCLUSÃO

A partir do que foi apresentado e visto ao longo do presente trabalho, percebe-se que o movimento feminista pela paz evidencia diferentes questões e apresenta diferentes discursos.

Assim como nas RI e nos ESI, as feministas inseridas no campo dos Estudos para a Paz foram negligenciadas na formulação da agenda de pesquisa. Contudo, elas apresentaram mudanças significativas nas percepções de questões centrais para a área (Reardon e Snauwaert, 2015).

A relação entre o feminismo e a paz também acaba sendo complexa, uma vez que existe uma linha tênue entre a reprodução ou não dos discursos essencialistas, e é por isso que o tema da paz acaba sendo um estudo e uma área delicada, na qual muitas feministas acabam deixando de lado (Eschle, 2021).

Sendo assim, existem implicações na reprodução dos mitos e dos discursos enviesados sobre a mulher e a paz. Pela associação com viés negativo e estereotipado entre a mulher e a paz, muitas teóricas feministas das Relações Internacionais acabaram deixando de lado a pesquisa que envolvesse essa temática. Contudo, como já evidenciado ao longo do texto, esse movimento também é prejudicial, uma vez que deixa de lado um assunto importante de ser analisado e debatido. É importante que as mulheres feministas estejam pensando e teorizando sobre as questões da paz e os seus desdobramentos, como, por exemplo, a questão da violência e suas implicações na vida das mulheres.

Não se pode negar o histórico ativismo feminino nos movimentos para a paz, e nem as ações cotidianas desenvolvidas pelas mulheres na busca por uma transformação do conflito e uma construção de paz local. Com isso, é preciso que a teoria se valha do que é visto na prática, e que as ações do dia a dia das mulheres sejam analisadas sem que isso seja enquadrado como algo negativo ou essencialista, ou que deva ser menosprezado, silenciado ou esquecido.

Dessa maneira, mesmo o discurso essencialista estando presente nos movimentos de mulheres, é importante romper com ele e com os estereótipos que a representação das mulheres e da paz carregam, uma vez que eles são frutos do sistema patriarcal, e que podem ser legitimados pelas teorias mainstream das Relações Internacionais (Moura, 2005; Confortini, 2012).

Um outro ponto que também foi ressaltado foi a presença das mulheres nos processos de construção de paz na sociedade civil, por meio de ações informais, e a sua ausência nas mesas de negociações (Ariño, 2006, 2016). Percebe-se que essas lacunas e desafios na atuação feminina são fruto de estereótipos que consolidam a imagem da mulher como vítima e indefesa. E assim como destacado no capítulo anterior, da mesma forma que é importante pensar a mulher enquanto agente ativo durante os conflitos, as mulheres também devem ser pensadas como agentes ativas em atividades em favor da paz e nos processos de reconstrução da paz em sociedades afetadas pelo conflito armado. Desse modo, não se pode ter um pensamento generalizado e essencialista em relação às mulheres (Carvalho, Portella-Junior, Ribeiro, 2017).

Contudo, a partir do que foi apresentando, também é possível localizar as mulheres nos processos informais de paz, ou seja, naqueles que fazem parte do peacebuilding from below, e das iniciativas locais, de base (grassroots) e de baixo para cima (bottom-up). As mulheres executam atividades que são consideradas mais confiáveis para a sociedade, visto que elas rompem as barreiras dos estigmas sociais e criam e mantêm redes horizontais de diálogos entre as comunidades divididas. Assim, elas praticam atos de imaginação moral, uma vez que introduzem meios não convencionais e não esperados para se chegar a acordos e à paz na região.

Desse modo, tem-se que a construção da paz a partir das mulheres é inclusiva, transformativa e diversa, de modo que seja possível alcançar uma cultura de paz, que seja baseada na igualdade entre os gêneros. Ou seja, as mulheres buscam consolidar a paz positiva na sociedade, por meio de princípios que legitimem a justiça social; a igualdade de oportunidades e direitos civis, políticos, econômicos e humanitários; além da valorização da vida, da tolerância e da não-violência.

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Notas

Autor notes

Informação adicional

Nota de artículo: Trabalho desenvolvido para apresentação do V ENCONTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS PARA A PAZ (V EBEP): “Problematizando a Paz a partir da América Latina”, realizado na UNILA/ Foz do Iguaçu, entre os dias 19 a 21 de setembro de 2023; com base no desenvolvimento do capítulo 03 da Dissertação “Mulher, Paz e Segurança: Uma análise dos Processos de Paz a partir (da perspectiva) das mulheres” da presente autora.

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Cómo citar / citation: Rocha de Medeiros-Dantas, S. (2025). O movimento feminista pela paz: uma análise da atuação prática das mulheres nos processos de construção da paz. Estudios de la Paz y el Conflicto, Revista Latinoamericana, Volumen 6, Número 11, 38-53. https://doi.org/10.5377/rlpc.v6i11.18719