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O significado e o processo de regeneração do património edificado Japonês
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Instituto Nacional de Antropología e Historia, México
ISSN: 2594-0813
ISSN-e: 2395-9479
Periodicidade: Bianual
núm. 6, 2018
Resumo: O património edificado é resultado de um processo humanizante, consciente e desenvolvido ao longo do tempo. A partir do momento em que adquire valor ele é embebido de significado. E, é esta condição significante que lhe permite ser eterno através da história, mitos ou ritos. O presente estudo, neste contexto específico, tem como objectivo compreender a importância do significado do património no processo de regeneração de edifícios singulares, apoiado em questões presentes na intervenção patrimonial Japonesa. Metodologicamente, é desenvolvida uma análise crítica e morfológica de vários exemplos no Japão, de modo particular o Santuário Meiji e a Estação de Tóquio, para identificação dos processos de recriação do património edificado e cultural. Como hipótese afirma-se assim que o património edificado é um produto resultante de um processo criativo de invenção. Ou seja, é uma identidade criada pelo homem que resulta de um processo construtivo, sedimentado e nunca estagnado.
Palavras-chave: Morfologia, morfogénese, património construído, significância..
O significado e o processo de regeneração do património edificado Japonês
A sedimentação[1] do património e a (in)consciência
No processo de encontrar na materialidade do tempo o sentido da perfeição, ou da purificação, o Homem define a sua própria personalidade. É um processo de individuação identitária e cultural.
E, mediante a identificação e análise de todas as camadas sedimentares do tempo, o individuo tem a capacidade de influenciar a fase seguinte do processo continuo de regeneração do património edificado. A regeneração é assim um processo de projecção de um elemento para outro, “transferência” (Jung, 1964: 12) de sentido, juízo de valor ou ideia.
A “transferência” resulta simultaneamente de acontecimentos análogos entre o passado e o presente, e a criação de mitos, fábulas, sonhos, visões ou sistemas delirantes individuais. Todavia, o processo é sempre fruto de fenómenos somáticos, conscientes e inconscientes.
Independentemente das fontes de definição, o processo é uma variação mutável determinada pela personalidade dos actores. A consciência colectiva é muitas vezes definida no carácter simbólico, conteúdos individuais e símbolos colectivos que definem ou ajudam a compreender a sua dimensão cultural e social.
O Homem utiliza os símbolos como uma expressão ou manifesto linguístico do que deseja transmitir (Jung, 2000: 20). Trata-se de um processo simbolológico, consciente, inconsciente ou de forma espontânea, de representação de conceitos através de imagens.
Estes símbolos são a expressão activa do Homem na afirmação da sua cultura no tempo e, em parte, do objectivo em atingir o divino ou o transcendente. O Homem tem a capacidade de extrapolar o sentido dos “velhos valores” de criar, e não apenas inventar, novos paradigmas (Henderson, 2000: 152).
Para Gustav Jung o pensamento inconsciente é resultado de uma percepção consciente de acontecimentos reais. A relação entre o sonho e o significado com a realidade é a acção sublime que conduz a mente a uma “subsequente realização do que devem ter acontecido” (Jung, 2000:23). Esta percepção da (ir)realidade é fundamentada por elementos incorporados de forma permanente na memória do Homem, muitas vezes desejos evidentes, mas que não deixam de ser uma fantasia “ilusória”.
No processo de desenho, mesmo que o actuante não tenha a percepção ou memória imediata de um evento passado, o inconsciente irá influencia-lo na concretização de uma ideia similar a outra, inexistente ou existente. Embora, a aplicação consciente dos conceitos cópia e réplica também se possa aplicar.
Escreve Aniela Jaffé, que o objecto, cópia, réplica ou invenção criativa, “é uma forma de ‘simpatia’, baseada na ‘veracidade’” (Jaffé, 2000: 235) que procura substituir o original ou antecipa um evento. A substituição advém da interacção do actor com a (sua) imagem. No entanto, Ascensión Hernández Martínez defende que as cópias ou réplicas nunca poderão reconstruir a história do original por serem incapazes de transmitir os acontecimentos do seu passado evolutivo, “falseando a complexidade e verdade histórica da mesma” (Hernández Martínez, 2007: 63). Veja-se por exemplo a turística “Little Edo”, na cidade Japonesa de Kawagoe. Esta rua foi construída no século XX à imagem das tipologias edificadas do período de Edo, “como uma tradição criada no espelho da modernidade” (Gluck,1992: 263).
O que se reproduz são as memórias e não a história. O imaginário do passado é manipulado e aceite como um facto adquirido no presente. A memória de Edo é a narrativa de uma simbologia criada para descodificar a história e reinventar o conceito de uma nova identidade, uma moderna identidade japonesa.
O património construído, enquanto símbolo cultural criado, recriado, por vezes inventado, é o resultado deliberado e consciente da produção do Homem. No processo de transferência do objecto no tempo são reutilizados valores comuns, uniformizados ou globalizantes, ou experiências próprias adquiridas anteriormente.
A autenticidade do objecto construído pode ser afectada pela memória de um evento passado, mas também resultar de um pensamento criativo inteiramente novo. O valor de autêntico não deve ser considerado exclusivamente por um momento concreto, mas como resultado da acumulação de múltiplas vivências. A autenticidade é uma intenção, uma expressão cultural e não uma forma específica.
Para Yukio Nishimura, o conceito de autenticidade é uma ideia que muda no tempo, muda rapidamente com a sociedade. O dilema entre a preservação e a adequação qualitativa do tempo é um problema contemporâneo e reflecte os problemas actuais em definir uma ideia de autêntico num contexto social e cultural tão diverso como o japonês (Nishimura, 1994: 175-183).
No Japão, o património edificado e cultural é um elemento vivo, uma imagem mnemónica do passado activa e funcional para a sociedade. O espaço corresponde a um propósito onde o valor de autêntico reside na forma e significado inicial e não no tempo sequente. A alteração é aceite como forma de perpetuar o significado que sustenta o valor social e cultural. A forma e a materialidade são apenas receptáculos desse propósito.
O homem transforma os objectos ou formas em símbolos, atribui-lhes conscientemente importância. E, é deste modo que confere ao objecto continuidade, significância e emoção.
A materialidade e o simbolismo
A paisagem “natural” e urbana, património cultural e edificado, são revestidos de significado e simbolismo, vicissitudes de um passado concreto que importam destacar no processo de valorização identitária da sociedade de hoje, particularmente no contexto interventivo japonês.
A transferência, o processo de regeneração do objecto, é baseada num ideal de original que, seja por restituição ou reciclagem da paisagem tradicional ou dos seus edifícios singulares, procura valorizar um momento específico acima de qualquer outro. A eleição do momento é uma atitude muito semelhante aos processos utilizados na Europa, a que Portugal e Espanha não são excepção, sobretudo na primeira metade do século XX.
No entanto, para Junichiro Tanizaki, o que separa o Ocidente e o Japão é o método de actuação. No Ocidente a transferência é um processo sedimentar continuo, “caminho natural” de acontecimentos seculares contíguos que permitiram a construção de uma única entidade. No Japão é consequência da introdução tardia e “bifurcada” de novos acontecimentos. “Mas, fosse ela qual fosse, a direcção que havíamos tomado eram sem dúvida a que convinha à nossa própria natureza” (Tanizaki, 2008: 23). O processo de actuação tende para a valorização do significado a par da expressão utilitária que o objecto tem no seu ambiente.
Na intervenção patrimonial Japonês, contrariamente ao contexto preservacionista ocidental, o significado e a utilidade do património construído sobrepõem-se à forma. A forma surge apenas como um veículo para atingir um êxtase dentro de si mesmo e não uma condição física particular, embora hajam excepções.
As excepções são aquelas que implicam a musealização do património construído em vez da sua continuidade “viva”. Veja-se, por exemplo, o Jardim Sankeien, em Yokohama, ou o conceito de belo implícito na experiência do conceito wabi-sabi.
O Sankeien é um jardim de “estilo japonês” construído em 1906 com autoria de Tomitaro Hara. A paisagem foi desenhada no intuito de construir um jardim “tradicional”, composto por diversos exemplos da arte e do património japonês edificado. Entre outros exemplos podem ser vitos pagodes, habitações e casas de chá, deslocados na sua maioria de Kyoto e Kamakura. Durante a Segunda guerra mundial o jardim e os edifícios foram danificados, tendo sido reconstruídos na sua condição primordial entre 1953 e 1958.
A outra excepção é o fascínio pela beleza do objecto “imperfeito, impermanente e incompleto” (Koren, 2008: 7). O wabi-sabi é um conceito japonês que pretende definir o belo a partir da expressão do tempo num objecto ou edifício antigo, de uma folha de outono caída a uma porta de madeira envelhecida. A beleza está implícita no seu significado e na experiência vivida entre si e o homem, no qual o objecto faz parte de um ciclo de vida. É criado, vive e morre sem ser refeito ou transformado por um gesto humano intencional.
Este princípio sensorial, espiritual e metafísico tente de algum modo para o sentido do eterno na cultura budista e dilui-se na renovação e purificação da forma nos santuários Xintoístas, como se verá no ponto seguinte.
O ciclo e o eterno
Compreender a arquitectura tradicional japonesa é também reconhecer a influência da religião no quotidiano social, particularmente a Xintoísta e Budista. A riqueza da paisagem, edificado e espaço público de cariz tradicional, é resultado da adequação cultural de conceitos ao tempo e à vida social. Nos quais, o significado é eterno e a arquitectura parte de um ciclo.
Na cultura Xintoísta, o Homem, tal como a natureza, faz parte de um ciclo de renovação e purificação constante. No processo de renovação o desenho primordial, de algum modo tido como original, é perpetuado. Veja-se o exemplo do mediático processo de renovação cíclica do Santuário de Ise de 20 em 20 anos (Figura 1).
Contudo, o objecto antigo – edifício, ponte ou pórtico – não desaparece por completo. Ele pode ser desmontado e reutilizado noutro contexto por partes ou mesmo remontado no seu todo. Este é um método relativamente recente e inventado no período Meiji, segunda metade do século XX (Breen, 2013: 3). No período Tokugawa, governo de influência shogun e daimyo, os santuários não eram desmontados, perdiam o uso mas permaneciam edificados até ruírem.
O processo de trasladar um objecto de um lugar para outro pode ser realizado de acordo com dois métodos: por deslocação decomposta impondo a desassemblagem do artefacto e posterior remontagem, produzindo uma cópia do que foi. Ou, por deslocação composta num movimento integral sem recurso a desmontagens ou demolições. Como exemplos, podem ser referidos o primeiro Torii do Santuário de Hikawa no distrito de Saitama e o Templo Yutenji em Tóquio (Figura 2). O primeiro foi trasladado em 1976 do Santuário de Meiji e o segundo intervencionado em 2015 com recurso a técnicas tradicionais: o edifício é elevado e assente em cima de uma prancha de madeira sobre cilindros de aço, movendo-se ao longo de uma viga metálica.
A crença no eterno para lá da vida define o processo de restauro dos templos budistas. O edifício na sua forma inicial deverá, por isso, ser eterno. Vejam-se como exemplos o Templo Horyuji em Nara e o Templo Rinnoji em Nikko, com mais de mil anos de existência.
No entanto, o efeito patológico do tempo sobre a madeira impõe a renovação de partes no seu processo de restauro. O processo implica a desmontagem integral dos edifícios (Figura 3), a substituição de partes danificadas e a sua nova assemblagem. Através do processo de reparação das suas partes estes complexos religiosos são preservados continuamente[2].
Por curiosidade, Takahiro Kito argumenta que é impossível fazer uma cópia exacta de um edifício de madeira, porque os materiais e os carpinteiros são diferentes daqueles presentes na sua construção inicial. Exemplifica dizendo que o Santuário de Ise está longe de ser uma cópia perfeita do seu original, não o sendo na sua totalidade, mas o suficiente para compreender que há sempre a adição de pequenas alterações no tempo (Kito, 2004).
Segundo Shigeni Inaga, o processo de renovação e reciclagem dos símbolos e edifícios singulares não é reconhecido como um valor histórico patrimonial. O Santuário de Ise é um monumento sem monumentalidade, inteiramente constituído no tempo por uma sucessão de cópias, uma réplica de si mesmo (Inaga, 2012:114), um “falso histórico” (Hernández Martínez, 2007: 61).
O processo de restituição é, por isso, ainda antes da reconstrução do edifício, espaço ou qualquer outra estrutura física, a (re)construção de um símbolo identitário. É uma forma criativa da sociedade descobrir, muitas vezes restituir, os símbolos construídos de um passado recente, enquanto espaço visível no campo da memória imaginativa. A mitologia que envolve o espírito da religião parece ser, de algum modo, moldável de acordo com a imaginação da sociedade, através da reflexão de símbolos e rituais tradicionais (Tange, 1965:18).
Dois casos particulares
Para melhor exemplificar o tema em discussão são introduzidos dois exemplos casuísticos de restituição de um símbolo construído no Japão: o Santuário Meiji e a Estação de Tóquio. O seu estudo tem como objectivo abordar temas como a invenção de um símbolo, a diversidade da paisagem urbana e o valor autêntico no processo de restituição do “original”.
Uma leitura transversal e morfológica do seu espaço no tempo permite, de algum modo, compreender como se transformou e adaptou o tecido urbano e o edifício a um novo contexto social e arquitectónico, reconhecendo-lhes os elementos e as partes persistentes ou transformadas no tempo.
Invenção e restituição do Santuário Meiji
O Santuário Meiji [Meiji Jingu | 明治神宮][3], em Tóquio, está classificado como bem cultural e exemplifica um processo criativo de invenção e restituição de um símbolo identitário no Japão. O processo foi apoiado num novo método, forma e organização espacial, recusando a restituição por cópia ou réplica do seu estado anterior.
O Santuário, na sua condição inicial, foi desenhado por Chuta Ito num estilo nagare-zukuri e edificado entre 1912-1920. Este estilo foi considerado como o “genuíno sabor japonês” (Imazumi, 2013: 34) e representativo do espírito do período Meiji (1868-1912). A sua autenticidade residia na harmonia do desenho, entre as formas arquitectónicas nativas e budistas, a cerimónia e a estrutura, que caracteriza a arquitectura ancestral de influência chinesa.
Simbolicamente, é representativo da instrumentalização da religião para, através do património construído, induzir valores de lealdade, patriotismo e moralidade como crenças espirituais nacionais. A adoração da memória do Imperador Meiji e da sua mulher, a Imperatriz Shoken, como uma religião foi inventada de acordo com as premissas da natureza e rituais xintoístas. O Imperador é celebrado como uma divindade (Imaizumi, 2014).
A envolvente vegetal do santuário foi projectada por Seiroku Honda com o objectivo de criar uma “floresta eterna”, que se recria e renova em si mesma. A floresta assume, assim, um valor simbólico que pretende perpetuar na sua natureza o espírito do Imperador.
A edificação do santuário na periferia da cidade permitiu criar uma nova centralidade, o distrito de Harajuku, com uma identidade espacial e cultural própria (Figura 4). A relação deste com o seu contexto urbano faz-se sobretudo através da Omotesando. Este acesso primordial foi construído a partir da divisão de parcelas rurais, com usos agrícolas e campos florestais, evoluindo de um aglomerado disperso e de pequena dimensão para um conjunto densificado, de grandes edifícios alinhados nas vias principais.
O período da Segunda Guerra Mundial corresponde a uma profunda discussão acerca do conceito de religião xintoísta. A ideia era valorizar o espírito do xintoísmo como uma “religião antiga”, ligada à cultura, história e identidade do Japão, e não como uma “propaganda” nacional do estado (Imazumi, 2013: 206). Por consequência, este novo ideal iria influenciar o processo de reconstrução do Santuário entre 1952 e 1958.
Parcialmente destruído por um bombardeamento das forças militares aliadas em 1945, o novo Santuário foi reedificado de acordo como o desenho do arquitecto Takashi Sunami. O objectivo era restituir um símbolo, não por replicação de uma forma passada, mas para o adaptar a novas espacialidades e formas arquitectónicas (Figuras 5e 6). Ou seja, a sua reedificação não foi apenas a reconstrução da forma física, mas também a transformação do seu conceito, potenciando o espaço na sua plenitude espiritual e integrante da sociedade japonesa.
Com a ocupação pós-guerra dos terrenos contíguos ao santuário foi demonstrada uma clara intenção dos aliados em sobrepor novos conceitos ideológicos ao simbolismo nacional e cultural japonês (Waley, 1984: 430). Refira-se, por exemplo, a construção do quartel militar americano a Sul do Santuário.
Em 1964, com a organização dos Jogos Olímpicos de Tóquio, o Japão pretendeu ilustrar a força da sociedade nipónica no processo de crescimento e reconstrução da sua nacionalidade. Nesse processo, o antigo quartel militar foi adaptado à Vila dos Atletas e construídos os novos estádios desenhados pelo arquitecto Kenzo Tange. Após o evento desportivo a vila olímpica foi demolida para a construção do actual parque público, o Yoyogi Koen.
Assim, neste caso particular, compreende-se que o significado do Santuário enquanto símbolo nacional é resultado de uma manifestação cultural criada, recriada ou mesmo inventa. Mesmo sem forçar a réplica ou a cópia, o significado foi aprimorado na sua essência cultural enquanto espaço espiritual e religioso, bem como adaptado a uma nova realidade material e, sobretudo, social. A intenção da tradição Meiji é, na verdade, um processo de reconstrução da sua própria tradição.
Estação de Tóquio e a restituição de um ideal passado
A Estação de Tóquio, enquadrada no bairro de Marunouchi, é um elemento urbano de carácter símbolo que partilha com o Palácio Imperial a definição de um centro urbano importante na organização da cidade, na composição do tecido envolvente e no contexto patrimonial construído (Figura 7).
O período Meiji contribuiu para a definição de uma nova cultura japonesa, um senso de arquitectura que se tornou referência na transformação do espaço urbano. Contudo, foi obtida a partir da transcrição de um estilo ocidental, uma reprodução que no caso da estação se tornou um símbolo identitário.
A sua construção em 1914 esteve a cargo do arquitecto Kingo Tatsuno e é popularmente conhecido como a Red Brick Station Building (Waley, 1984: 34). Este estilo britânico comporta em si características eclécticas muito idênticas à estação de Amesterdão (1889), à antiga sede da Scotland Yard (1906) em Londres, à Shenyang Station (1910) na China e à posterior Seoul Station (1925) na Coreia do Sul. Não se tratando de cópias exactas é possível identificar a replicação de pequenas partes entre si.
Em Maio de 1945, durante a Segunda Guerra Mundial, o edifício foi parcialmente danificado por um ataque aéreo destruindo, entre outras partes, a cobertura abobadada e o 3º andar em toda a sua extensão. O projecto de reconstrução esteve a cargo de Hajime Takayama e tinha como objectivo a sua recuperação funcional. Este propósito, aliado aos problemas orçamentais (Nakata, 2012: 3), impôs a supressão do piso danificado e o desenho de uma nova cobertura trapezoidal.
Apesar do processo classificativo patrimonial de 2003 ter reconhecido a importância cultural da sua forma pós-guerra, o processo de reconstrução de 2012 suprimiu parte do tempo sedimentado para perpetuar a sua imagem inicial (Figuras 8 a 10).
A reconstrução foi integrada no “Plano de Preservação e Restauro do Edifício da Estação de Marunouchi”, com autoria de Yukio Tahara. O plano tinha um fundamento bivalente, propondo simultaneamente a restituição de um símbolo da cidade devolvendo-lhe o seu estado “original” e a preservação da materialidade existente como marco de um tempo (Tahara, 2008: 1). Ou seja, no mesmo processo interventivo foram aplicados critérios de preservação da forma pósguerra como testemunho da história do edifício, bem como exaltada a sua importância na afirmação identitária e cultural de um tempo particular e promissor no Japão.
Igualmente, na sua percepção da veracidade e do valor de autêntico, as partes adicionadas no tempo, consideradas “não-originais” ou cuja originalidade “não seja clara” e que prejudiquem a imagem global do projecto foram removidas (Tahara, 2013: 1210).
A estação representa o ideal de um tempo passado que se pretende como parte integrante da identidade cultural e política da sociedade japonesa na actualidade. O edifício foi restituído para exaltar o que se considerou notável na sua história, embora sempre como um elemento funcional.
Este monumento representa a afirmação paralela de um significado histórico com a restituição e perpetuação de um símbolo contemporâneo. É a criação de uma paisagem urbana “repleta de simbolismo inovador e de vanguarda. (...) A estação torna-se uma cidade” (Suzuki, 2012: 179).
O significado e a expressão criativa do tempo
Assim, neste contexto específico, pode afirmar-se que o significado do património construído é uma expressão criada pelo Homem ao longo do tempo. É uma manifestação que varia consoante a sua percepção de um tempo vivido e, consequentemente, da sua própria transformação. Ou seja, (in)conscientemente o ser actuante utiliza e reutiliza no processo criativo uma ideia ou ideal seu do passado, valores comuns ou experiências próprias adquiridas anteriormente que pretendem exaltar momentos da sua cultura acima de outros.
Em suma, o património cultural edificado Japonês é simultaneamente um símbolo vivo e uma representação do passado num tempo tecnológico e em rápida transformação. Através da (re) criação da herança do passado, o Japão preserva o que acredita ser um ideal da sua cultura, utilizando os monumentos como cápsulas simbólicas do tempo prontas a serem revividas. Essas cápsulas do património cultural, arquitectónico e urbano, não são cristalizadas no tempo, mas sim, estruturas renovadas que exaltam a pureza da forma e do seu significado “original”.
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Notas