Artigos
A formação judiciária na União Europeia e os solicitadores
A formação judiciária na União Europeia e os solicitadores
RDUno: Revista do Programa de Pós- Graduação em Direito da Unochapecó, vol. 2, núm. 3, 2019
Universidade Comunitária da Região de Chapecó
Recepção: 28/09/19
Aprovação: 31/10/19
Resumo: A criação de um espaço judiciário europeu, dada a diversidade de sistemas jurídicos e judiciários dos respetivos Estados-Membros reclama uma formação judiciária adequada para os profissionais forenses. A formação judiciária dos solicitadores é indispensável à salvaguarda da aplicação correta e uniforme do direito a União Europeia e, dessa forma, funciona como uma garantia da proteção dos direitos dos particulares.
Palavras-chave: Solicitador, Formação judiciária, União Europeia, direito da União Europeia.
Abstract: The creation of a European judicial area, given the diversity of legal and judicial systems of the respective member states, calls for a proper judicial training to legal professionals. Judicial training to solicitors is essential to safeguard the correct and uniform enforcement of European Union law and also acts as a guarantee of protection of individual rights.
Keywords: Solicitor, Judicial Training, European Union, European law.
Introdução
A criação de uma cultura judiciária europeia comum a todos os Estados-Membros pressupõe que todos os profissionais de justiça, como é o caso dos solicitadores, possam participar de uma formação adequada de direito da União Europeia[3].
As universidades, como instituições académicas, têm reconhecidamente um papel ativo neste objetivo, mas será suficiente?
Pois que, para a criação de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça é necessário desenvolver a formação judiciária de uma forma contínua, isto é, após a frequência nas universidades, durante o exercício das profissões forenses.
A questão que preside este trabalho centra-se numa “preocupação” sobre a necessidade de formação a nível de direito da União, apesar de existir um discurso europeu de incentivo e inclusão. Contudo, na verdade, a perceção nacional, não é exatamente a mesma.
Ora, a aplicação incorreta de normas de direito da União Europeia coloca em causa a aplicação uniforme desse direito e, em consequência, os direitos dos cidadãos europeus.
No que nos ocupa hoje, ao solicitador, como profissional forense, para além das suas normas nacionais, é “exigido”, pela própria estrutura descentralizada da União Europeia um bom conhecimento de legislação, doutrina e jurisprudência comunitárias.
1. A formação judiciária na perspetiva da União Europeia
Considera a Comissão que o “impacto da legislação da UE no dia-a-dia dos cidadãos e das empresas da UE é de tal modo importante que qualquer profissional do direito nacional - desde os advogados e oficiais de justiça até aos juízes e procuradores - deve ter também sólidos conhecimentos do direito da UE e poder interpretá-lo e aplicá-lo eficazmente, paralelamente ao direito nacional. Num sistema jurídico descentralizado como o da União, os juízes nacionais devem muitas vezes tornar-se «juízes de direito da União» para poderem assumir as suas responsabilidades. A formação dos profissionais do direito da UE é, por conseguinte, de primordial importância para garantir a correta aplicação do direito da UE, instaurar um clima de confiança mútua nos sistemas judiciais e permitir a cooperação e a confiança entre profissionais além-fronteiras.”[4]
Assim, a União Europeia fornece até apoio financeiro para a formação judiciária que reconhece como um desafio fundamental na criação do espaço judiciário europeu, embora deixe a organização dessa formação sobretudo na responsabilidade dos Estados-Membros a quem cabe integrar plenamente a dimensão europeia[5]. Os sistemas jurídicos e judiciários dos Estados-Membros apresentam uma grande diversidade e para a criação de uma cultura judiciária europeia comum é essencial que todos os profissionais de justiça: juízes, procuradores, funcionários, agentes de justiça, advogados e solicitadores possam participar de uma formação adequada no domínio do direito europeu[6]. As universidades, como instituições académicas, têm, reconhecidamente, um papel ativo neste objetivo[7].
O Tratado de Funcionamento da União Europeia (TFUE) associou a criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça e a salvaguarda dos direitos fundamentais e a ordem jurídica da União Europeia e respetivos Estados-Membros[8]. Por regulamento[9] estabeleceu-se um quadro geral comunitário de atividades para facilitar a cooperação judiciária em matéria civil. As atividades comunitárias neste domínio englobam ações de apoio à organização incentivando e promovendo a cooperação judiciária em matéria civil[10], bem como ações de apoio a projetos específicos[11].
Para a criação do espaço de liberdade, segurança e justiça, torna-se necessário desenvolver em permanência a formação judiciária[12], como instrumento auxiliar, em particular para melhorar os conhecimentos dos profissionais sobre os instrumentos jurídicos da União Europeia, com compreensão mútua dos sistemas jurídicos dos Estados-Membros e formação em matéria de línguas[13].
Embora seja tarefa dos Estados-Membros integrarem plenamente a dimensão europeia nas suas atividades nacionais, admitiu-se desenvolver um nível mais integrado de formação, concebido e aplicado a nível europeu. Criam-se formas de proporcionar a todos os juízes[14], procuradores, funcionários e agentes de justiça um conhecimento suficiente dos instrumentos de cooperação judiciária europeia para que recorram plenamente ao direito primário e derivado da União Europeia, bem como conheçam a legislação e os sistemas jurídicos dos outros Estados-Membros[15].
Pretende-se que todos os profissionais de justiça contribuam para um espaço de justiça comum. Os advogados e solicitadores não são excluídos, mas pretende-se que sejam as respetivas ordens profissionais a desenvolver as ações de formação adequada, sem que as instituições europeias e estaduais exerçam diretamente essa tarefa.
Nesse sentido, desde, pelo menos, 2006, a União Europeia tem demonstrado a sua preocupação crescente quanto à formação judiciária. Pelo que, nesse ano, Comissão Europeia apresentou ao Parlamento e ao Conselho uma Comunicação sobre a formação judiciária na União Europeia[16].
Pouco depois, foi adotada uma Resolução do Conselho e dos Representantes dos Governos dos Estados-Membros reunidos no Conselho relativa à formação dos juízes, procuradores e funcionários ao serviço da administração da justiça na União Europeia[17].
E em seguida, o Parlamento Europeu publicou um estudo sobre o reforço da formação judiciária na União Europeia[18].
A entrada em vigor do Tratado de Lisboa, em dezembro de 2009[19], proporcionou uma base jurídica para as atividades relacionadas com a formação judiciária europeia. Os artigos 81.º e 82.º do TFUE[20] prevêem «o apoio à formação dos magistrados e dos funcionários e agentes de justiça» como uma das medidas necessárias para reforçar a cooperação judiciária em matéria civil, comercial e penal.
Foi, também, em dezembro de 2009, que o Conselho com o Programa de Estocolmo[21] veio, entre outros importantes reptos na dimensão da cooperação judiciária, dar grande destaque à questão da formação judiciária europeia para todos os profissionais do direito.
No âmbito do Plano de Ação do Programa de Estocolmo e do Relatório de 2010[22] sobre a cidadania da União, a Comissão definiu a formação judiciária europeia como uma prioridade. Também o Parlamento Europeu tem sublinhado reiteradamente que uma formação judiciária adequada constitui um contributo significativo para a melhoria do funcionamento do mercado interno, tornando mais fácil para os cidadãos o exercício dos seus direitos.
As principais recomendações do relatório do Professor Mario Monti intitulado Uma nova estratégia para o Mercado Único[23], incluem a intensificação da formação dos juízes e profissionais da justiça em direito da União Europeia.
No final de 2010, a Comissão lançou uma consulta das partes interessadas, incluindo os Estados-Membros, os membros do Fórum da Justiça e as redes e estruturas europeias de formação e os seus membros, no sentido de recolher informações e, em 2011, a Comissão Europeia aprovou a Comunicação Confiança numa justiça à escala da UE - uma nova dimensão para a formação judiciária europeia[24].
Também o Conselho da Justiça e dos Assuntos Internos, nas suas conclusões, de 27 e 28 de outubro de 2011, sobre formação judiciária europeia, incentivou a partilha anual de informações com a Comissão sobre a formação disponível em direito da União Europeia e o número de profissionais formados, tendo convidado a Comissão a analisar a possibilidade de apresentar um relatório anual sobre a formação judiciária europeia.
Ainda, em 2012, o Parlamento Europeu propôs o lançamento de um projeto-piloto sobre a formação judiciária europeia, com vista a contribuir para: identificar as melhores práticas na formação de juízes, procuradores e profissionais da justiça sobre as tradições e os sistemas jurídicos nacionais, assim como sobre o direito da União; identificar as formas mais eficazes de ministrar formação sobre o direito da UE e os sistemas jurídicos nacionais a juízes, procuradores e profissionais da justiça a nível local, bem como promover o diálogo e a coordenação entre juízes e procuradores da União Europeia; incentivar os organismos de formação judiciária da União Europeia a partilharem ideias sobre as melhores práticas e a divulgá-las na UE; e melhorar a cooperação entre a Rede Europeia de Formação Judiciária (REFJ) e as instituições nacionais de formação judiciária. Tal envolverá organismos de formação, tais como a Academia de Direito Europeu[25], e as organizações profissionais a nível europeu como a Rede Europeia dos Conselhos de Justiça[26], a Rede de Presidentes dos Supremos Tribunais[27], a Associação dos Conselhos de Estado e dos Supremos Tribunais Administrativos[28] e a Rede dos Procuradores-Gerais dos Supremos Tribunais de Justiça da UE[29].
Neste âmbito, a título de exemplo, em abril de 2013, que a Comissão Europeia organizou uma conferência para promover a formação judiciária europeia[30].
A então Vice-Presidente Viviane Reding proferiu um discurso na sessão de trabalho do Parlamento Europeu sobre a formação jurídica: um instrumento essencial para a excelência judiciária europeia[31], onde defendeu que o impacto da legislação europeia sobre a vida quotidiana dos cidadãos, dos consumidores europeus, dos trabalhadores, das empresas e sobre as estruturas políticas e jurídicas nacionais é profunda. Apontando, também, três razões para demonstrar que a formação dos profissionais da justiça em direito da União Europeia é essencial. Em primeiro lugar, a formação jurídica e judicial de direito da União Europeia garante a confiança mútua entre aqueles cujo trabalho é aplicar a legislação comunitária. Em segundo lugar, a formação jurídica e judiciária torna mais fácil a cooperação transfronteiriça. E em terceiro lugar, proporciona maior segurança e certeza jurídicas em toda a União Europeia, para os cidadãos e as empresas.
Lançado o desafio para uma breve abordagem sobre o tema do estatuto e da formação dos solicitadores[32], cumpre-nos salientar a importância do conhecimento do direito comunitário, pois que, como se referiu anteriormente, cada vez mais, o direito da União está presente, porque se aplica no dia-a-dia dos cidadãos e das empresas da União Europeia, e é necessário que qualquer profissional de direito nacional, como o caso dos solicitadores, tenham sólidos conhecimentos do mesmo.
2. Fontes de direito da União: breve síntese
O direito da União Europeia é um direito novo, com menos de 70 anos[33], como podemos analisar através das suas fontes, designadamente pelos dos Tratados que criaram as Comunidades Europeias, resultando, assim, uma nova ordem jurídica com uma finalidade própria e independente da dos Estados-Membros, mas com que esta se relaciona, numa dupla origem convencional e unilateral[34].
Assim sendo, antes de avançarmos para a análise do Estatuto e Formação dos Solicitadores, tendo em conta a importância do direito da União Europeia no quotidiano destes profissionais judiciais, de seguida, iremos resumidamente aflorar as fontes do referido direito.
Importa saber como e onde nasce o direito objetivo[35] (direito como sistema organizado de princípios e normas que se destinam aos membros de uma comunidade, visando a realização das suas finalidades comuns), como se forma e se revela aos particulares. Surge a expressão fontes de direito – sugestiva, que nos dá desde logo a ideia de lugares onde nasce ou se forma o direito objetivo.
Mas a expressão não é usada pelos autores sempre num mesmo sentido[36]. É uma expressão que traduz diversos significados. Assim temos, os mais usuais: fontes de direito em sentido sociológico, causal ou genético; fontes de direito em sentido material ou instrumental; fontes de direito em sentido político ou orgânico; e, o que mais nos importa, fontes de direito em sentido técnico-jurídico, formal ou de juridicidade, como os modos de formação e revelação do direito objetivo, saber de que modo se constitui e se manifesta o direito positivamente vigente numa determinada comunidade histórica, ou seja, de que modo o direito se objetiva aí como direito, fundamental e tradicionalmente reduzidos em cada sociedade onde teremos que analisar a importância de cada uma delas[37]: lei, costume, jurisprudência e doutrina.
A ordem jurídica a que as organizações internacionais estão sujeitas é constituída pelas regras do direito internacional comum ou geral aplicáveis, pelas regras de direito internacional particular estabelecidas no respetivo pacto constitutivo e que constituem o seu direito originário, primário ou fundamental e ainda pelas disposições dos atos unilaterais adotados no seio dessa organização internacional pelos órgãos competentes, que constituem o seu direito derivado ou secundário uma vez que, criado na conformidade e segundo os procedimentos prescritos no ato fundador, dele derivam[38].
2.1.1. Fontes Escritas
a) Direito originário da União Europeia
O direito originário da União Europeia ou primário é, segundo um critério de fonte formal, o direito criado pelos Estados-Membros através de tratados internacionais, constituído pelas normas que criaram as Comunidades Europeias e a União Europeia, conferindo-lhes as suas atribuições e regulando a sua organização e funcionamento internos, bem como as alterações a estes tratados. Trata-se do direito que criou e moldou a atual União Europeia, expresso nas normas de diversos tratados internacionais[39].
Portanto, o direito originário ou primário da União Europeia tende a seguir um critério formal, como o direito criado pelos Estados-Membros através de tratados internacionais, constituído pelas normas que criaram a União Europeia, conferindo-lhe as suas atribuições e regulando a sua organização e funcionamento internos, bem como aquelas normas que vêm modificando e completando o sentido dos tratados originários.
Assim, aqui se incluem: os tratados que instituíram as Comunidades e a União Europeia[40]; os tratados de revisão[41]; os tratados de adesão[42]; outros tratados que alteraram disposições originárias[43] e atos de valor idêntico.
b) Direito derivado da União Europeia
Por sua vez, o direito derivado ou secundário na União Europeia é o direito que resulta dos tratados institutivos, baseia-se nos tratados e implica uma série de procedimentos aí previstos. É constituído pelos atos adotados pelos órgãos União Europeia, no desempenho das competências que os tratados lhes conferem, podendo assumir as formas típicas previstas no artigo 288.º do TFUE[44].
2.1.2. Classificação das fontes de direito da União: obrigatórias ou não obrigatórias
a) Fontes obrigatórias
As fontes de direito da União são classificadas como obrigatórias ou não obrigatórias. Como fontes obrigatórias de direito comunitário existem os regulamentos (são atos diretamente aplicáveis e obrigatórios em todos os Estados-Membros sem que seja necessária qualquer legislação de aplicação. Podem resultar do Conselho[45], da Comissão[46], do Conselho, do Parlamento Europeu[47], muitas vezes nos termos do processo legislativo ordinário do artigo 294.º do TFUE, e ainda do Banco Central Europeu[48])[49]; diretivas[50] (vinculam os Estados-Membros quanto aos objetivos a alcançar num determinado prazo, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios a utilizar. Têm de ser transpostas para o direito interno de cada país de acordo com os seus procedimentos específicos. Podem resultar do Conselho, da Comissão ou ainda do Conselho e do Parlamento Europeu, também nos termos do processo legislativo ordinário. No caso português, deve ser transpostas através de ato legislativo: lei, decreto-lei ou decreto legislativo regional, nos termos do artigo 112.º, n.º 8, da CRP); decisões[51] (são vinculativas na sua integralidade para os seus destinatários, não requerem legislação de transposição nacional; pode ter destinatários certos e pode ser dirigida a um ou a todos os Estados-Membros, bem como a empresas e pessoas singulares)[52].
b) Fontes não obrigatórias
Quanto às fontes não obrigatórias de direito comunitário, existem as recomendações e os pareceres, não são atos vinculativos[53], apenas, constituem um convite aos seus destinatários (podem ser outra instituição, os Estados-Membros e até particulares), para que adotem determinada regra de conduta, com um significado político e psicológico, na medida em que poderão produzir efeitos indiretos, de acordo com o previsto no artigo 288.º, § 5.º, do TFUE.
As recomendações aconselham a adoção de determinado comportamento relativamente a certas matérias concretas. Trata-se de um instrumento de ação indireta com o fim de harmonizar as legislações. Apenas, se distingue da diretiva pela ausência de obrigatoriedade. Podem ser emitidas pelo Conselho[54] ou pela Comissão[55], mas é possível encontrar exemplos de recomendações de outras instituições[56].
Os pareceres traduzem a opinião de uma instituição comunitária sobre qualquer matéria concreta[57]. Também aqui é possível encontrar pareceres oriundos das diversas instituições[58].
2.1.3. Atos sui generis ou atos atípicos
Para além do supra referido, existem também os atos sui generis ou atos atípicos[59] que são atos adotados pelas instituições comunitárias uns previstos por artigos dos tratados e outros ainda que não previstos expressamente pelos tratados (atípicos porque não previstos no artigo 288.º do TFUE[60]), antes nascem da prática comunitária[61]. Estes atos não estão, por regra[62], sujeitos ao controlo do Tribunal de Justiça da União Europeia e podem, em certos casos, ultrapassar as competências dos tratados. Podem ser: regulamentos internos[63] ou financeiros[64], previstos em certas disposições dos Tratados[65]; atos preparatórios inseridos no processo comunitário de decisão[66] como propostas[67] ou projetos e mesmo algumas diretivas; decisões de variada origem e características[68]; comunicações[69]; conclusões; programas de ação ou linhas orientadoras[70]; recomendações[71]; códigos de conduta[72]; livros verdes[73]; livros brancos[74]; relatórios[75]; instruções[76]; acordos interinstitucionais[77]; posições comuns[78]; cartas administrativas de arquivamento de processos (comfort letters)[79].
Acrescem ainda numerosos documentos tornados públicos ou sujeitos a registo por cada uma das instituições[80] sob o título Actos aprovados ao abrigo dos Tratados CE/Euratom cuja publicação não é obrigatória no Jornal Oficial da União Europeia: documentos COM[81] da Comissão, documentos SEC, a publicação de orçamentos[82], informações[83] sob o título Informações oriundas das instituições e dos órgãos da União Europeia. Ainda, procedimentos administrativos como convite de uma instituição[84] sob o título Avisos.
2.1.4. Direito complementar dos Tratados
Constituem direito complementar dos Tratados as convenções concluídas pelos Estados-Membros em execução do anterior artigo 293.º do TCE[85], tais como: convenções não previstas pelos Tratados e celebradas entre os Estados-Membros e as decisões dos representantes dos Estados-Membros reunidos no seio do Conselho (são textos adotados nas reuniões do Conselho mas com o valor de conferência diplomática. Os representantes dos Estados-Membros despem a sua veste comunitária para se transformarem em simples representantes nacionais, aproveitando o apoio burocrático do Conselho e decidindo matérias que não são da competência do mesmo, mas interessam à integração europeia[86]).
2.1.5. Fontes Externas
Por fim, quanto às fontes externas, está em causa o relacionamento entre os tratados e os demais compromissos internacionais assumidos pelos Estados-Membros[87], assim como a capacidade para a União Europeia concluir acordos internacionais[88].
Podem consistir em: acordos concluídos pela União Europeia com terceiros Estados ou organizações internacionais (na medida em que foi conferida personalidade jurídica internacional à União Europeia no artigo 47.º do TUE, pelas alterações do Tratado de Lisboa[89], o que lhe permite agir autonomamente, em seu próprio nome, quer na ordem interna, quer na ordem internacional[90]. E o artigo 3.º, n,º 2, do TFUE refere a competência exclusiva da União Europeia para celebrar acordos internacionais quando: tal celebração esteja prevista num ato legislativo da União; seja necessária para lhe dar a possibilidade de exercer a sua competência interna; ou seja suscetível de afetar regras comuns ou de alterar o alcance das mesmas.
No caso da UE, os acordos internacionais vinculam diretamente a União e as suas instituições, sem necessidade de transposição legislativa interna (artigo 216.º, n.º 2, do TFUE). Os acordos internacionais são fonte direta de direito da União e, portanto, fonte direta de obrigações (e de direitos) internacionais[91]. De resto, da mesma forma, elas vinculam também os Estado-Membros, sem necessidade de ratificação interna ou de transposição legislativa interna, visto que incumbe aos Estados-Membros aplicar em geral o direito da União na sua ordem interna (artigo 291.º, n.º 1, do TFUE))[92].
Tratados concluídos pelos Estados-Membros com terceiros Estados ou organizações internacionais (de acordo com o artigo 207.º, n.º 5, e 218.º do TFUE) e tratados concluídos pelos Estados-Membros entre si (nomeadamente, tratados internacionais celebrados entre todos ou alguns dos Estados-Membros da União Europeia, mas à margem dos Tratados constitutivos[93]).
2.1.6. Fontes não escritas
Por fim, importa referir que o direito da União Europeia, também decorre de fontes não escritas[94], nomeadamente dos princípios gerais comuns aos direitos dos Estados-Membros, dos princípios gerais de direito comuns às nações civilizadas, dos princípios gerais de direito internacional ou dos princípios gerais de direito da União Europeia.
Menção mais detalhada merece a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia. A jurisprudência comunitária[95] surge no quadro das fontes de direito da União Europeia com um papel de relevo, não tanto pela sua obrigatoriedade, mas pelo papel preponderante que assume na construção da integração comunitária. A evolução comunitária tem-se alcançado através da cooperação dos Estados-Membros na aplicação do direito comunitário e a jurisprudência comunitária tem permitido a concretização desse direito, não só pela sua função jurisdicional própria, mas acima de tudo como fonte de uniformização desse direito. Aliás, o meio próprio para a resolução de dúvidas na interpretação do direito comunitário reside exatamente na competência exclusiva do Tribunal de Justiça para o interpretar, quando os órgãos jurisdicionais nacionais[96], na sua tarefa de aplicação ordinária do direito comunitário, se deparam com dificuldades. Assim, surge o chamado reenvio prejudicial[97], uma ação da competência exclusiva do Tribunal de Justiça da União Europeia prevista no artigo 267.º do TFUE. A jurisprudência inclui os numerosos acórdãos[98] dos tribunais comunitários que resultam de três instâncias (veja-se o artigo 19.º do TUE): Tribunal de Justiça da União Europeia (nova denominação com o Tratado de Lisboa, era denominado Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias no TCE)[99], Tribunal Geral (nova denominação com o Tratado de Lisboa, artigo 2.º, A. 2), alínea n), para o antes Tribunal de Primeira Instância das Comunidades Europeias no TCE)[100] e aquele que foi o Tribunal da Função Pública da União Europeia, único tribunal especializado entre 2005 e 2016[101]. Desde os Tratados institutivos (1951 e 1957) que o direito da União Europeia utiliza conceitos próprios e adaptáveis a uma multiplicidade de conteúdos, porque se trata de um direito aplicável a um número crescente de Estados-Membros. Conceitos, pela sua própria natureza e intenção, incompletos ou, pelo menos, abertos a um conteúdo a construir. É nessa construção que o Tribunal de Justiça da União Europeia, bem como o Tribunal Geral desde 1988 têm representado um papel inestimável de preenchimento e explicitação dos conceitos. Num tempo ainda recente, e já findo, uma outra jurisdição contribuiu também para o acervo, o Tribunal da Função Pública da União Europeia[102]. O Tribunal de Justiça tem privilegiado, na sua interpretação, o método sistemático e teleológico, isto é, tendo em conta as finalidades dos Tratados e o efeito útil das diretivas e, assim, com a sua jurisprudência, tem criado muitos princípios hoje referenciados como fundamentais na ordem jurídica comunitária e muitos já hoje consagrados nos Tratados. Também, em especial, desempenha um papel de relevo na interpretação das liberdades de circulação, formas básicas de funcionamento do já conseguido mercado interno, ao interpretar restritivamente as disposições que restringem as liberdades comunitárias e extensivamente as que as ampliam.
Podemos ainda mencionar o costume. Porém, a doutrina não é unânime ao considerar o costume como fonte de direito da União Europeia[103].
3. O solicitador na União Europeia
3.1. O estatuto de solicitador
Uma específica profissão jurídica surge mencionada na história de Portugal desde 1174 com o nome "vozeiro", figura que era indistinta nas funções de Solicitador e Advogado. Surge depois em 1241 com a denominação de "procuradores". Em 1446, na menor idade de D. Afonso V e sob a regência do infante D. Pedro, foram publicadas as Ordenações Afonsinas, primeiro corpo de leis organizado e, aí, a distinção das funções. Em 1468, já identificado o cargo de solicitador[104].
O solicitador é hoje uma profissão jurídica reconhecida pela União Europeia, se bem que não exista com esse nome e funções em todos os países membros. Trata-se, por norma, de um profissional liberal que exerce a sua atividade tendo em conta os limites impostos pelo seu estatuto legal.
Em Portugal[105], reconhece-a o Estatuto da Ordem dos Solicitadores e dos Agentes de Execução, pela Lei n.º 154/2015, de 14 de setembro [106] e outras disposições legais pontuais, a propósito de atribuições específicas.
A nível europeu, a atividade de solicitadoria é regulada pela Carta Deontológica dos Postulantes Europeus[107], curiosamente aprovada em congresso levado a cabo por solicitadores portugueses, procuradores espanhóis e os huissiers franceses, em Cádis, Espanha, em novembro de 2000, e ratificada, à época, pela Assembleia Geral da Câmara dos Solicitadores portuguesa em 13 de outubro de 2001.
A referida Carta tem como objetivo geral reforçar a relevância das profissões forenses como garante da proteção dos direitos humanos[108].
Para além do documento supra referido, os solicitadores são também representados a nível europeu pela Union Internationale des Huissiers de Justice (UIHJ)[109], com o objetivo de representação em organizações internacionais e que, também, pretende promover a colaboração entre organismos profissionais nacionais. Estabelece que o solicitador “trabalha em prol da melhoria do direito processual nacional e dos tratados internacionais e envida esforços para promover ideias, projetos e iniciativas que contribuam para a evolução desta profissão e a elevação do estatuto dos seus membros”.
As principais funções de um solicitador[110] consistem, então, no exercício do mandato forense (mandato judicial conferido para ser exercido em qualquer tribunal, incluindo os tribunais ou comissões arbitrais e os julgados de paz); a consulta jurídica (atividade de aconselhamento jurídico que consiste na interpretação e aplicação de normas jurídicas mediante solicitação de terceiro); a elaboração de contratos e a prática dos atos preparatórios tendentes à constituição, ação ou extinção de negócios jurídicos, designadamente os praticados junto de conservatórias e cartórios notariais; a negociação tendente à cobrança de créditos e o exercício do mandato no âmbito de reclamação ou impugnação de atos administrativos ou tributários.
Os solicitadores exercem a consulta jurídica e o mandato forense dentro dos limites impostos pelo seu estatuto e pela legislação processual, podendo representar as partes sempre que não seja obrigatória a constituição de advogado, como é o caso do Código de Processo Civil português, artigos 42.º e 52.º[111].
Para aceder e exercer a profissão é necessário que o interessado cumpra com determinados requisitos e que se inscreva na Ordem dos Solicitadores.
A Ordem dos Solicitadores é representativa dos mesmos. Compete-lhe, nomeadamente, exercer o poder disciplinar sobre os seus membros e emitir parecer sobre projetos de diplomas legislativos relacionados com as suas atribuições.
3.2. A formação do solicitador
Um solicitador no exercício das suas funções pode, dado momento, ser confrontado com normas de direito União Europeia. Perante esta realidade, questiona-se até que ponto existe formação e um bom conhecimento das normas de direito da União?
A formação do solicitador é indispensável à salvaguarda da proteção dos direitos dos cidadãos, isto é, como profissional forense, tem como objetivo acautelar os interesses dos seus clientes.
Uma das áreas mais importantes, no que toca à formação, mas muitas vezes, esquecida é a do direito comunitário e, isto porque, desde logo, porque os tribunais nacionais funcionam como tribunais comuns de aplicação de direito da União, na medida em que este, por vezes, é dotado de efeito direto[112] em muitas das suas normas e atento o princípio da tutela jurisdicional efetiva[113]. Por conseguinte, a correta aplicação do direito comunitário depende muito dos sistemas judiciários nacionais, pelo que o seu conhecimento, pelos diversos operadores judiciários, como os solicitadores, é essencial para a correta aplicação da legislação da União Europeia[114]. Sendo assim, necessário, uma formação judiciária contínua.
Num momento em que se prefigura, como desafio fundamental na União Europeia, a concretização de um espaço judiciário europeu, dada a diversidade de sistemas jurídicos e judiciários no território europeu, criação essa que, como deflui do sobredito, reclama sobretudo formação judiciária[115] adequada, deixa-se, porém, a cada Estado-Membro a organização dessa formação, na grande parte dos casos.
O reconhecimento deste pilar fundamental na construção do espaço comum europeu consubstanciou-se, além do mais, na emissão de regulamento comunitário já mencionado[116] e no qual se estabeleceu um quadro geral comunitário de atividades para facilitar a cooperação judiciária em matéria civil, bem como se têm dado passos gigantescos em matéria de criação de um espaço comum de liberdade, segurança e justiça.
Posto isto, o que concluir perante a realidade nacional?
Existe um discurso europeu de inclusão e incentivo à formação dos profissionais forenses, contudo não é, exatamente, a mesma perceção a nível nacional. Pelo que, será ainda necessário conciliar as duas visões, necessitando de trabalho político e social para se harmonizarem.
Conclusão
As questões abordadas no presente estudo, permitem apontar algumas ideias a ter em conta, na necessária reflexão sobre o futuro do direito da União Europeia, tendo em conta a insuficiência de formação judiciária aos profissionais judiciais nessa área.
Conforme foi referido anteriormente, o impacto da legislação da União Europeia no dia-a-dia dos cidadãos e das empresas é já de tal forma frequente e importante, que é necessário para qualquer profissional de direito nacional deter, conhecimentos dessa área, de forma a poder interpretá-la e aplica-la eficazmente.
Aliás, cada vez mais se assiste a uma crescente europeização de diversos ramos de direito, pelo que, para além dos conhecimentos básicos do direito da União Europeia, é já aconselhável ler o Jornal Oficial da União Europeia, conhecer legislação, jurisprudência e doutrina da União.
Conclui-se, assim, que ao Solicitador, como profissional forense reconhecido pela União Europeia, para além dos conhecimentos de direito nacional, cada vez mais serão necessários sólidos conhecimentos do direito da União Europeia.
Referências
ABREU, Joana Covelo de. “Tribunais nacionais e tutela jurisdicional efetiva: da cooperação à integração judiciária no Contencioso da União Europeia”. Tese de doutoramento, Universidade do Minho, 2015. Em http://repositorium.sdum.uminho.pt/handle/1822/38880, consulta em 21/03/2019, e Editora Almedina, 2019. ISBN: 9789724078151
ALVES, Dora Resende. Cronologia da Construção Europeia Comunitária. Universidade Portucalense, 2019, apontamentos policopiados.
ALVES, Dora Resende. “O direito do consumidor através da aplicação do direito da União Europeia. Atas do I Congresso Internacional de Direito do Consumidor Os desafios do mercado digital para os contratos de consumo. Universidade Portucalense, Porto, em 19 de janeiro de 2018 (em fase de publicação)
ALVES, Dora Resende e AGUIAR, Ana Raquel. “A diversidade linguística na União Europeia” in María de la Paz Pando Ballesteros, Pedro Garrido Rodríguez, Alicia Muñoz Ramírez (Eds.): El cincuentenario de los Pactos Internacionales de Derechos Humanos de la ONU. Homenaje a la Profesora Mª. Esther Martínez Quinteiro. Salamanca: Ediciones Universidad de Salamanca, 2018, pp. 233-246. URI: http://hdl.handle.net/11328/2486
ALVES, Dora Resende e CLARO, Helder Elias. “Perspectiva sobre a formação judiciária na União Europeia”, Revista Julgar Online (http://julgar.pt/). Junho de 2016, pp. 1 a 22.
ALVES, Dora Resende. “O desempenho do extinto Tribunal da Função Pública da União Europeia e a defesa dos direitos”, Cadernos de Dereito Actual, N.º 4. Santiago de Compostela, Espanha, 2016, pp. 185-194. ISSN 2340-860X. Em http://www.cadernosdedereitoactual.es/ojs/index.php/cadernos/article/view/113
ALVES, Dora Resende e BENTO, Márcia Costa. “A noção de jurisdição para efeitos de interpelação de recurso prejudicial: a questão dos tribunais arbitrais”, Revista Jurídica Portucalense, nº 17, tomo I, 2015, pp. 89-118. ISSN 0874-2839. URI: http://hdl.handle.net/11328/1115
ALVES, Dora Resende. “Notas sobre o Tratado de Lisboa de 13 de Dezembro de 2007”. Revista Jurídica. Nº 13: (2008). Universidade Portucalense, pp. 27 a 40. ISNN 0874-2839.
BORCHARDT, Klaus-Dieter. ABC do Direito Comunitário. Comissão Europeia. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2017. ISBN 978-92-79-63649-3 doi:10.2775/68838. Em http://publications.europa.eu/resource/cellar/5d4f8cde-de25-11e7-a506-01aa75ed71a1.0015.01/DOC_1
CAMPOS, João Mota de; CAMPOS, João Luiz; PEREIRA, António Pinto. Manual de Direito Europeu – O sistema institucional a ordem jurídica e o ordenamento económico da União Europeia. Coimbra: Coimbra- Editora. 7.ª ed., 2014. ISBN 978-972-32-2209-8.
CAMPOS, João Mota de (coordenação). Organizações Internacionais. Coimbra: Wolters Kluwer | Coimbra Editora. 4.ª ed., 2010.
DERO-BUGNY, Delphine. “Le livre vert” de la Commission européenne in Revue trimestrielle de droit européen. 41, n.º 1, janv.-mars 2005. Paris: Dalloz. ISBN 0035-4317.
ENES, Graça. “O Parecer 2/13 do Tribunal de Justiça: Primado do Direito v. Primado dos Direitos”, in IX Encontro de Professores de Direito Público, Ana Gouveia Martins, Anabela Leão, Benedita Mac Crorie, Patrícia Fragoso Martins (org), Universidade Católica Editora, Lisboa, 2017A, pp. 68-116.
GONÇALVES, Maria João. Sumários de Introdução ao Direito e Noções Fundamentais. Universidade Portucalense,1999, apontamentos policopiados.
GORJÃO-HENRIQUES, Miguel. Direito da União – História, Direito, Cidadania, Mercado Interno e Concorrência. Coimbra: Livraria Almedina. 9.ª ed., 2019. ISBN 978-972-40-7658-4. (citada a 8.ª edição de 2017)
GORJÃO-HENRIQUES, Miguel. Tratado de Lisboa. 7.º ed. Coimbra: Livraria Almedina, reimpressão 2018. ISBN 978-972-40-6835-0.
JUSTO, A. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra Editora, 2001. ISBN 972-32-1210-2.
MARRANA, Rui Miguel. “O acesso à informação no quadro do funcionamento da União Europeia” in Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas. Instituto Superior de Contabilidade e Administração do Porto, n.º 21, 2012. ISSN 1646-1029.
MARTINS, Ana Maria Guerra. Manual de Direito da União Europeia. 2.ª ed. Coimbra: Almedina Editora, 2017. ISBN 978-972-40-69-29-6.
MOREIRA, Vital. “A “cláusula de direitos humanos” nos acordos internacionais da União Europeia” in Para Jorge Leite. II Volume. Coimbra Editora, 2014, p. 418. ISBN 978-972-32-2260-9.
PORTO, Manuel Lopes e ANASTÁCIO, Gonçalo (coordenação). Tratado de Lisboa - anotado e comentado. Almedina, 2012. ISBN 978-972-40-4613-6.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relatório Anual 2018 Panorama do ano. Luxemburgo: Serviço das Publicações da União Europeia, 2019. ISBN 978-92-829-2987-2. Em https://curia.europa.eu/jcms/upload/docs/application/pdf/2019-06/20190650_ra_pan_pt_2019-06-06_09-48-22_369.pdf consulta em 23.09.2019.
Notas