Secciones
Referencias
Resumen
Servicios
Descargas
HTML
ePub
PDF
Buscar
Fuente


As geografias do poder e do medo nas fronteiras: análise sobre casos de estudantes brasileiros de medicina em áreas fronteiriças entre Brasil e Bolívia
The geographies of power and fear on the borders: an analysis of cases of Brazilian medical students in border areas between Brazil and Bolivia
Las geografías del poder y el miedo en las fronteras: un análisis de los casos de estudiantes de medicina brasileños en zonas fronterizas entre Brasil y Bolivia
Revista Presença Geográfica, vol. 11, núm. 3, 2024
Fundação Universidade Federal de Rondônia

Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 11, núm. 3, 2024

Recepção: 01 Março 2024

Aprovação: 07 Setembro 2024

Resumo: : O presente artigo busca analisar as relações e/ou acontecimentos geográficos que permeiam as fronteiras entre as cidades-gêmeas de Epitaciolândia e Brasiléia, no Acre, Brasil, e Cobija, capital do Departamento de Pando, Bolívia, no que concerne aos estudantes brasileiros que frequentam as universidades de medicina na Bolívia. Desse modo, a intenção de análise inclui-se pelos prismas da ciência geográfica, humanística e/ou cultural, uma vez que incide em relações de poder e de medo nesses trânsitos cotidianos que os estudantes brasileiros se inserem no espaço fronteiriço e das universidades de medicina da cidade de Cobija-BOL. A partir dessas acepções, dialogamos com filósofos e/ou teóricos como Michel Foucault (1926-1984), Claude Raffestin (1936-), Yi-Fu Tuan (1930-2022), entre outros, e, também, com alguns alunos e ex-alunos dessas universidades, através da metodologia de História Oral, além de pesquisas em jornais locais. Esses diálogos, entrevistas e pesquisas em fontes jornalísticas nos permitiram debruçar-se sobre esses acontecimentos e compreender, e alvitrar pelas pressões e dificuldades que os alunos brasileiros passam em outros países para realizarem o sonho de se formar em medicina desaguando em teias do poder e em paisagens do medo nas fronteiras entre Brasil e Bolívia, nosso recorte espacial.

Palavras-chave: Estudantes de medicina, Fronteiras, Poder, Paisagens do medo.

Abstract: This article seeks to analyze the relationships and/or geographic events that permeate the borders between the twin cities of Epitaciolândia and Brasiléia, in Acre, Brazil, and Cobija, capital of the Department of Pando, Bolivia, with regard to Brazilian students who attend medical universities in Bolivia. In this way, the intention of analysis is included by the primaries of geographic, humanistic and/or cultural science, since it focuses on relations of power and fear in these daily transits that Brazilian students are inserted in the border space and medical universities from the city of Cobija-BOL. Based on these meanings, we dialogue with philosophers and/or theorists such as Michel Foucault (1926-1984), Claude Raffestin (1936-), Yi-Fu Tuan (1930-2022), among others, and also with some students and former -students from these universities, using the Oral History methodology, in addition to research in local newspapers. These dialogues, interviews and research in journalistic sources allowed us to look into these events and understand, and highlight the pressures and difficulties that Brazilian students go through in other countries to realize their dream of graduating in medicine, falling into webs of power and landscapes of fear on the borders between Brazil and Bolivia, our spatial outline.

Keywords: Medical students, Borders, Power, Landscapes of fear.

Resumen: Este artículo busca analizar las relaciones y/o eventos geográficos que permean las fronteras entre las ciudades gemelas de Epitaciolândia y Brasiléia, en Acre, Brasil, y Cobija, capital del Departamento de Pando, Bolivia, con respecto a los estudiantes brasileños que asistir a universidades médicas en Bolivia. De esta manera, la intención de análisis está incluida en las primarias de las ciencias geográficas, humanísticas y/o culturales, ya que se centra en las relaciones de poder y miedo en estos tránsitos cotidianos que los estudiantes brasileños se insertan en el espacio fronterizo y las universidades médicas del ciudad de Cobija-BOL. A partir de estos significados dialogamos con filósofos y/o teóricos como Michel Foucault (1926-1984), Claude Raffestin (1936-), Yi-Fu Tuan (1930-2022), entre otros, y también con algunos estudiantes y ex -estudiantes de estas universidades, utilizando de la metodología de la Historia Oral, además de investigaciones en periódicos locales. Estos diálogos, entrevistas e investigaciones en fuentes periodísticas nos permitieron profundizar en estos acontecimientos y comprender y resaltar las presiones y dificultades que los estudiantes brasileños atraviesan en otros países para realizar su sueño de graduarse en medicina, cayendo en redes de poder y paisajes de miedo en las fronteras entre Brasil y Bolivia, nuestro contorno espacial.

Palabras clave: Estudiantes de medicina, Fronteras, Fuerza, Paisajes de miedo.

INTRODUÇÃO

A ciência geográfica é abrangente. Ela estuda o espaço e suas transformações. Dentre elas, as geografias resultantes do espaço vivido, ou seja, do espaço humano e de suas relações com o outro e com o ambiente; as práticas cotidianas através do ser-com-o-mundo e ser-com-o-outro (Cidreira, 2021).

São várias as abordagens as quais poderíamos nos debruçar, a geografia econômica, de gênero, do poder, do medo etc. Todavia, pelos acontecimentos e depoimentos colhidos dos alunos que fazem medicina na Bolívia na área de fronteira, entre Epitaciolândia e Brasiléia, por parte do estado do Acre, República do Brasil, e Cobija, capital do Departamento de Pando e da província de Nicolás Suárez, Bolívia, escolhemos e/ou nos inclinamos para uma geografia do poder, por entendemos que é mais propícia à apreciação nesse viés.

Sendo assim, iremos, no decorrer dessas tessituras, analisar alguns relatos de alunos brasileiros que fazem o curso de medicina na Bolívia, para demonstrar e compreender as diversas relações de poder no espaço fronteiriço, entre brasileiros e bolivianos, sobretudo, nas espacialidades das universidades que deságuam e/ou corroboram numa análise sob essa perspectiva geográfica.

Essas relações estão inventariadas, principalmente, nos encadeamentos dos micro-poderes que cercam espaços e atores.

As pessoas que deram depoimentos, alunos e ex-alunos das universidades de medicina de Cobija, não quiseram se identificar por medo de represálias, além disso, também não identificaremos[E1] em qual ou quais universidades aconteceram os episódios relatados, a não ser, algumas escassas ocorrências noticiadas pela imprensa acriana. A nossa intenção não é apontar quais são, mas denunciar alguns fatos que, na maioria das vezes, são silenciados ou não chegam ao conhecimento do governo, da imprensa e da própria instituição. Quanto à última, segundo os alunos, ela (universidade) tem conhecimento e coaduna com essas cobranças indevidas.

Antes de prosseguirmos, é de crucial relevância fazermos alguns levantamentos da conjuntura histórica e espacial das três cidades consideradas gêmeas, que constituem a região fronteiriça entre Brasil e Bolívia.

Breves conjunturas: tempo-espaciais

Brasil e Bolívia, historicamente, tiveram relações de hostilidade pelas demarcações de suas fronteiras. O primeiro acordo assinado pelos dois países foi o Tratado de Ayacucho, de 1867. Consoante ao decreto 4.280, de 28 de novembro de 1868, foi promulgado o pacto, também conhecido como “Tratado de Amizade, Limites, Navegação, Commercio e Extradição”, assinado em 27 de março de 1867, entre o Império brasileiro e a Bolívia[1].

Segundo Carneiro (2015), o tratado fez parte de uma série de acordos de ordem geopolítica e militar relacionados à demarcação territorial das regiões pertencentes ao atual Estado brasileiro. O referido acordo foi antecedido pelos Tratados de Madri, assinado em 1750, e de Santo Ildefonso, assinado em 1777.

Entre os anos de 1899 e 1903 as hostilidades culminaram num conflito armado mais conhecido como Revolução Acriana[2] ou A questão do Acre, ou, ainda, Guerra del Acre, entre bolivianos e brasileiros, que foi suspensa pelo Tratado de Petrópolis, assinado no dia 17 de novembro de 1903, o qual reconhecia as terras acrianas como brasileiras, mediante ao pagamento indenizatório (ou como chamam, compra), e a construção de uma ferrovia que possibilitasse acesso boliviano a portos comerciais, a Madeira-Mamoré.

Em agosto de 1977, os governos, brasileiro e boliviano, assinam e reafirmam o pacto de boa vizinhança através do Tratado de Amizade, cooperação e comércio entre a República Federativa do Brasil e a República da Bolívia. A política brasileira, à época do governo militar, visava assegurar as soberanias das fronteiras, suas defesas, com o lema “ocupar para não entregar”, fazendo inúmeras políticas de ocupações e/ou migrações para a Amazônia e pactos de cooperação entre os países fronteiriços.

Essas alianças políticas para um bom relacionamento entre as duas nações seguiram-se nas conjunturas tempo-espaciais, como à adesão à Bolívia, por parte do governo brasileiro, ao Mercado Comum do Sul - MERCOSUL, em dezembro de 2023, por exemplo, reforçado ainda mais os laços de amizade fronteiriço.

Após breve contextualização histórica, necessária à questão espacial da fronteira e das cidades que fazem parte dela, iremos discorrer sobre as cidades-gêmeas de Epitaciolândia e Brasiléia (municípios do estado do Acre, Brasil) e Cobija, capital do Departamento de Pando, Bolívia.

Brasiléia é um município situado na parte sul do estado do Acre, fundado em 1910, compondo a regional Alto Acre, ficando a 240 KM da capital Rio Branco. Segundo a estimativa populacional do Instituto Brasileiro de Geografia e Estática – IBGE, de 2021, a população de Brasiléia tem cerca de 27.123 habitantes[3], e faz fronteira com outra cidade acriana, Epitaciolândia, e a capital do Departamento de Pando, Cobija (conforme demonstra mapa 1).

Epitaciolândia também compõe a regional do Alto Acre, e a partir da divisão de Brasiléia, foi elevada à categoria de município, em 1992. Fica a cerca de 239 KM da capital Rio Branco, possuindo, segundo o IBGE 2021, uma população aproximada de 18.979 mil habitantes. Faz fronteira com Brasiléia e Cobija[4].

A cidade boliviana, Cobija, faz fronteira com os municípios de Epitaciolândia e Brasiléia, formando assim as chamadas cidades-gêmeas. É capital de Pando, província de Nicolás Suárez, a 600 km de La Paz, cidade sede do governo do país. Foi fundada em 1906, e possui uma população estimada de 78 mil pessoas[5].

Sabendo que essas três cidades são consideradas gêmeas, é salutar elucidarmos seu conceito. Acerca das cidades-gêmeas, no ano de 2014, o Ministério da Integração Nacional, por meio da Portaria n.º 125, de 21 de março do mesmo ano, estabeleceu como aqueles municípios cortados pela linha de fronteira, seca ou fluvial, articulada ou não por obra de infraestrutura, conurbada ou semi-conurbada com localidade de país vizinho que apresentem grande potencial de integração econômica, cultural e manifestações “condensadas” dos problemas característicos da fronteira (Brasil, 2005).

Para maior esclarecimento, seguimos com o mapa 1 ilustrando as fronteiras entre as três cidades, estabelecendo seus limites municipais e internacionais, sendo cortadas por “linha de fronteira, seca ou fluvial, articulada ou não por obra de infraestrutura”. Ora, as três cidades têm o rio Acre como linhas de limite e, além dele, possuem duas pontes que as ligam. A ponte Internacional, que congrega as cidades de Epitaciolândia e Cobija, cortada pelo igarapé Bahia, e a ponte Binacional Wilson Pinheiro, conectando o município de Brasiléia com a de Cobija.


MAPA 1
Conurbação entre as cidades-gêmeas de Brasiléia, Epitaciolândia e Cobija — arruamento básico
Fonte: elaborado por Leonardo Luiz S. da Silva e executado por Renato de Oliveira Marques, dezembro de 2015.

A seguir, corroborando com o mapa 1, que destaca os limites entre os dois países, seguem imagens das pontes que integram as duas nações vizinhas, assim como, também, o rio Acre, que corta e conecta Cobija e Brasiléia.

A figura 1 destaca a ponte Wilson Pinheiro que liga as cidades de Brasiléia e Cobija, rasgada pelo rio Acre. Ao lado esquerdo da margem temos as terras brasileiras e ao lado direito, as terras bolivianas.


FIGURA 1
Ponte Binacional Wilson Pinheiro ou Ponte da Amizade
Fonte: Por Grullab - Obra do próprio, s/d

Na figura 2, coadunando ao mapa 1, temos a ponte Internacional, no município de Epitaciolândia, e, ao fundo, a denominada “tranca” — posto de fiscalização boliviano da cidade de Cobija —, sendo essas duas, as ligações terrestres entre os Estados.


FIGURA 2
Ponte Internacional e a “Tranca”, ao fundo
Fonte: Wordpress.com., 2011

Demonstradas as fronteiras, limites e elos entre as duas nações e suas cidades, o que é crucial ao leitor para conhecimento sobre a região, seguiremos discorrendo, a título de esclarecimento, acerca das universidades e de como atraem estudantes brasileiros. Em Cobija, há três universidades, sendo uma pública e duas privadas.

A Universidad Amazónica de Pando — UAP é uma universidade pública da Bolívia, com sede na cidade amazônica de Cobija. Foi criada pelo Decreto Supremo n.º 20.511, de 21 de setembro de 1984. O estatuto foi aprovado em outubro de 1997 na VI Conferência Nacional das Universidades e em maio de 1999 pelo Congresso Nacional das Universidades. Iniciou as atividades acadêmicas em 3 de dezembro de 1993[6], conforme o site da universidade e o disposto no link do rodapé.

A segunda é a Universidad Técnica Privada Cosmos — UNITEPC, autorizada para Abertura e Funcionamento da Subsede Acadêmica na cidade de Cobija com a Resolução Ministerial n.º 640/2011 com as especialidades de: Medicina, Odontologia, Graduação em Enfermagem, Medicina Veterinária e Zootecnia, Engenharia Comercial, Engenharia de Sistemas e Direito[7].

E por fim, aberta em Cobija no ano de 2023, temos a Universidad Privada Domingo Sávio — UPDS, que faz parte, segundo sua história institucional, da Corporação Educacional Domingo Sávio, com 30 anos de experiência e presença no Sistema Educacional Nacional. Atualmente conta com mais de 22.000 estudantes em todo o país em nove localidades (Santa Cruz, Tarija, Potosí, Cochabamba, La Paz, Trinidad, Sucre, Oruro e Cobija), sendo a única universidade boliviana presente nos 9 departamentos do país e com maior crescimento e importância de toda a Bolívia[8].

Essas três universidades, por oferecerem vagas do curso que atualmente é um dos mais concorridos e objeto de desejo por parte dos brasileiros, medicina, atraem pessoas de todo o Brasil e dos países vizinhos, que se deslocam ao estado do Acre para realização desse sonho, devido à oferta e dos preços acessíveis. Segundo reportagem do jornal Estado de São Paulo, em 25 de setembro de 2019, cerca de 65 mil estudantes brasileiros estão estudando nas regiões fronteiriças[9].

Sendo assim, transitam e vivem o espaço fronteiriço diariamente, e são nessas vivências, nesses trânsitos, nessas geografias cotidianas que passam por situações graves de violência psicológica, assédios e cobranças indevidas, a partir das relações de poder que se estabelecem nesse espaço, principalmente, nas áreas universitárias.

Navegando pelas tessituras teóricas/metodológicas nas vivências fronteiriças

Nessas (geo)grafias fronteiriças dos estudantes de medicina, encontramos relações de poder que constituem o território. Dessa forma, a fronteira, ou melhor, sua faixa, torna-se uma consignação dessas tramas.

Assim sendo, Steiman (2002), nos revela que houve um consenso na literatura de que com as formações e/ou constituições do Estado Moderno, a fronteira necessitou ser delimitada e demarcada, tornando-se imprescindível, já que para se impor o Estado precisou, inicialmente, lançar as bases de sua soberania territorial. Essa visão, no entanto, parte já da concepção moderna de fronteira como limite dos estados nacionais.

Nessa acepção, é importante destacar dois conceitos sobre ela. Um é de faixa de fronteira, que conforme Machado (2005) é uma expressão "de jure", associada aos limites do território e ao poder do Estado. O segundo é zona de fronteira que aponta para um espaço de interação, uma paisagem específica, um “espaço social transitivo, composto por diferenças oriundas da presença do limite internacional e por fluxos e interações transfronteiriças cujas territorialidades mais evoluídas são as das cidades-gêmeas” (Machado et al., 2005, p. 95).

Observamos as esferas do poder agindo através do Estado, que regula, que delimita e age, porém, excede a ele. Há outros poderes sendo exercidos dentro do território, como assevera Foucault (1979), devemos captá-lo em outras extremidades além do jurídico, claro, fazendo analogia, também, aos poderes exercidos pelo saber.

É necessário trazer para esclarecimento que a etimologia da palavra poder, de acordo com Ferreirinha e Raitz (2010), vem do latim vulgar potere, substituído pelo latim clássico posse, que vem a ser a contração de potis esse, “ser capaz”; “autoridade”. Ele é, para Foucault (1979), uma força que permeia as relações sociais desde o início da sociedade humana.

Raffestin (1993) corrobora com essa concepção foucaultiana, uma vez que ele afirma que o poder circula em toda relação por atores advindos da população, seja o poderio do Estado ou o poder das relações micro, perpassando pelas relações econômicas, políticas, sociais, religiosas, pela linguagem etc. Nessa acepção, percebemos que, nesse território fronteiriço, ele circunda e está presente em todos os lugares.

Outras visões geográficas podem ser suscitadas para análise sob seus prismas, uma vez que esses exercícios de poder podem afetar e provocar medo, transtornos emocionais, enfim, topofobias às pessoas que vivenciaram e vivenciam cotidianamente essas relações autoritárias.

(Des) vivências cotidianas nos espaços de poder em Cobija

Através dessas tramas de poder tecidas nas inter-relações entre brasileiros e bolivianos no espaço fronteiriço, utilizaremos a metodologia da História Oral mediante entrevistas (diálogo a respeito da convivência dentro das universidades bolivianas), que são, de acordo com Alessandro Portelli,

uma troca entre dois sujeitos: literalmente uma visão mútua. Uma parte não pode realmente ver a outra a menos que a outra possa vê-lo ou vê-la em troca. Os dois sujeitos interatuando não podem agir juntos a menos que uma espécie de mutualidade seja estabelecida. O campo pesquisado, entretanto, tem objetivo escorado em igualdade como condição para uma comunicação menos distorcida e um conjunto de informes menos tendenciosos (Portelli, 2009, p. 3).

Ora, como é uma interação no campo da pesquisa, as entrevistas coletadas, representam discursos sobre um momento, um lugar, um período, trazendo pontos de vista, que nós como analistas, não trataremos como “verdades” absolutas sobre o acontecido, ou seja, tentamos retomar aquilo que o autor enfatiza “como condição para uma comunicação menos distorcida e um conjunto de informes menos tendenciosos”, conforme enunciado por Portelli.

As entrevistas foram realizadas e observadas pelas vivências nas fronteiras e convivências com muitos estudantes e ex-alunos de medicina das universidades bolivianas. Nenhum dos entrevistados autorizou revelar suas identidades por medo de represálias, principalmente, quando for o período de estágios nos postos de saúde de Cobija, pois muitos dos professores serão seus supervisores e podem persegui-los.

Os universitários relataram que essas tessituras (acontecimentos relatados) começam a acontecer ainda pelas ruas da cidade de Cobija, pois há, pelos menos dois depoimentos, relatando a cobrança de propina por parte dos policiais bolivianos nas ruas de Cobija. Dessa forma, os alunos foram abordados pela polícia e, para que seus automóveis não fossem apreendidos, tiveram que pagar propina ou “facilitar a paquera” dos policiais.

A senhora M. O., ex-aluna de medicina, e uma discente de uma das Universidades particulares relataram que tiveram que “jogar um charme” ou “facilitar” o assédio por parte desses policiais.

Vinha para casa quando fui abordada por dois policiais. Eles disseram que minha moto estava irregular e iriam levar presa. Percebi que um deles estava me olhando com segundas intenções, falando manso, então, comecei a facilitar, dar umas piscadas, fazendo charme. Ele então pediu meu número de telefone, pegando na minha mão e alisando, dei o número errado e parti. É, professor, a gente tem que ser esperta, senão, eles engole a gente[10].

O outro caso foi o do discente J.N, que ultrapassou sinal vermelho, por não saber que havia semáforo naquele local, foi parado e, para não rebocarem o seu carro, teve que desembolsar 200 bolivianos.

O estudante e morador da cidade de Epitaciolândia, J. S., nos falou que é comum na Bolívia a seguinte frase por parte dos policiais bolivianos: “No patrício, fique tranquilo, tudo tiene outra maneira. 200 bols usted estais liberados”[11]. J.S. prossegue dizendo que “o valor está relacionado ao tipo de carro ou moto. Se eles virem que teu carro ou moto vale muito, aí o valor é alto”[12].

Porém, é nas universidades que essas relações de poder são mais comuns e ficam nítidas, especialmente no fim do segundo semestre do ano, ou seja, no mês de dezembro.

Sendo assim, coadunando com Raffestin (1993), delimitamos essas localidades, porque delimitar “é, pois, isolar ou subtrair momentaneamente, ou ainda, manifestar um poder numa área precisa” (Raffestin, 1993, p. 153) a fim de captá-lo se exercendo no cotidiano dos estudantes brasileiros nessas áreas de exercícios do poder a partir das práticas sociais nos conjuntos de relações que ali acontecem, isto é, na(s) universidade(s).

Nesse período do ano, muitos professores reprovam os alunos propositalmente para cobrarem dinheiro para aprová-los. Segundo a estudante T.M., os doutores, muitas vezes, não mostram a prova, só dizem que os alunos estão reprovados. Porém, esse discurso prossegue com a mensagem,

Eles marcam um encontro com nós estudantes ou com algum representante, geralmente, em algum hospital que eles trabalham. Dizem que esse assunto não pode ser tratado pelo WhatsApp. Então, a gente se encontra e os doutores pedem, quase sempre, entorno de 2.000,00 (dois mil reais) e 2.500,00 (dois mil e quinhentos reais). Daí pagamos, quando temos como pagar, e nossa média aparece no sistema, acima de 85%.[13]

Ela segue, ao ser questionada do porquê de não denunciar esses professores.

Não adianta denunciar e não tem para quem denunciar. Se fizermos isso, no semestre que vem ou no outro eles serão novamente nossos professores e nos perseguirão. Além disso, a universidade sabe e finge não saber. Teve uma vez que eu não paguei o que a doutora cobrou. Fiquei na matéria. Daí tive que fazer a disciplina no período de férias. A universidade me cobrou 2 mil reais. Tive apenas uma aula on-line, fiz um trabalho e acabou nisso, passei.[14]

A estudante continua a dizer que a partir dessas práticas cotidianas passou a ter medo[15], ansiedade, tristeza em ter que frequentar as aulas, em ter que submeter-se aos desmandos dos doutores e da universidade.

A faculdade passou a cobrar as mensalidades com antecedência, mesmo que já tenha pagado a desse mês, eles já pedem a do mês que vem, caso contrário não podemos fazer as provas. Isso tudo nos deixa apreensivos, com medo, ansiedade. Só em pensar que terei que ir à aula, ir para aquele local já fico nervosa e com um sentimento ruim dentro de mim.[16]

T.M. nos mostra e/ou nos direciona para as relações de poder nas universidades bolivianas envolvendo os brasileiros que almejam o sonho de se tornarem médicos e percorrem milhares de quilômetros, saem do seio de suas famílias, amigos, do seu lugar de pertencimento, da sua região e enfrentam inúmeras barreiras como a violência psicológica, onde essas teias de poder vão se transformando em geografias e/ou paisagens do medo.

Por geografias do medo, coadunamos com o entendimento de Pinheiro e Pereira (s/d, p. 14), para quem “é espaço no qual, através do medo, (re)criamos nossa cotidianidade, estabelecendo a partir desta perspectiva a nossa relação com o espaço e com as pessoas que nos cercam”.

Corroborando a esses desencadeamentos do poder e da geografia do medo, há, também, casos em que as cobranças dos doutores vão além do dinheiro. Eles passam a assediar as estudantes. Fazem cobranças sexuais para que elas possam ser aprovadas. T.M., por exemplo, nos disse que presenciou um professor assediar uma amiga boliviana, chamando-a de “gostosa”, flertando com elas nas aulas etc.

Essa foi a única menção dos entrevistados quanto ao assédio sexual, e com uma estudante boliviana. Contudo, encontramos duas matérias sobre abuso sexual contra estudantes — inclusive, brasileiros — por parte de doutores (professores) da UAP.

Noticiados em sites de jornais eletrônicos, oaltoacre.com, no ano de 2013, sob o título, “Aluna brasileira denuncia violência sexual em universidade da Bolívia”[17], e no jornal agazetadoacre.com, no ano de 2012, sob o título, “Médico boliviano é denunciado por estupro de brasileiras em universidade de Cobija”[18], percebemos o panorama dessas tessituras de poder que deságuam em abusos, enfim, em geografias e/ou paisagens do medo através da violência psicológica, sexual, consequentemente, psíquica, como destacado anteriormente (veja figura 3).


FIGURA 3
Notícia sobre violência sexual em Cobija
Fonte: oaltoacre.com

Nessa acepção, percebemos aquilo que Foucault (1979, p. 17) nos endossou sobre o poder, mostrando-o em sua existência e ação, seu exercício “em determinada direção, com uns de um lado e outros de outro”, isto é, de uns para outros, não se sabendo ao certo quem o detém, mas, claramente, “quem não o possui”, no caso, os estudantes brasileiros no espaço fronteiriço. Dessa maneira, esses que não possuem o poder estão sendo direcionados a outros desencadeamentos que essas relações de poder provocam no ser e seu mundo circundante.

Yi-Fu Tuan, filósofo sino-americano, nos reafirma e aponta como esses contornos vão sendo delineados e/ou formados, graças, principalmente, à ação e à ameaça dos homens. Vejamos,

As pessoas são nossa maior fonte de segurança, mas também a causa mais comum de nosso medo. Elas podem ser indiferentes à nossa realidade, trair nossa confiança, ou procurar diligentemente nos fazer mal. São fantasmas, bruxas, assassinos, ladrões, assaltantes, estranhos e agourentos que assombram nossas paisagens, transformando o campo, as ruas das cidades, o pátio de recreio da escola planejados para o desenvolvimento das pessoas– em lugares amedrontadores (Tuan, 2005, p. 14).

As pessoas têm esse poder de nos dar acalanto, segurança, porém, simultaneamente, através da indiferença, do egoísmo, da ganância, ou por que não dizer, da condição humana, causam-nos medo, transformando a nossa cotidianidade, nosso trânsito tempo-espacial em lugares amedrontadores, paisagens do medo. Essa proposição, sobre o agir humano, mostra-se tão intensa que, páginas depois, o autor acrescenta, “mas, a maior ameaça, aquela que se destaca em uma cidade, são as outras pessoas” (Tuan, 2005, p. 16).

Portanto, a fronteira, as ruas, os trânsitos, as universidades de medicina, enfim, os espaços vão sendo recriados, des-re-configurados através das relações de poder entre as pessoas e, logo, das geografias do medo que delas se originam. Sendo assim, para muitos brasileiros que têm o sonho de serem médicos, essas relações fronteiriças, sobretudo, nas universidades bolivianas, se tornam horripilantes, experiências traumáticas, amedrontadoras e violentas que fazem e/ou recriam espaços desaguando em geografias e/ou paisagens do medo para eles (estudantes brasileiros).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As geografias nos rodeiam, assim como as relações de poder em todos os lugares. Aqui, evocamos os sonhos, a esperança de milhares de brasileiros em se tornarem médicos. Todavia, esses sonhos vão se transformando em pesadelos para muitos estudantes de medicina na região (trans)fronteiriça de Epitaciolândia, Brasiléia e Cobija, isto é, na fronteira entre Brasil e Bolívia.

As relações de poder vão envolvendo, em suas tessituras, os seres e lugares. Nessas tramas, evidenciamos os estudantes brasileiros de medicina, os doutores (professores), as universidades tensionando-se, transformando essas relações de poder em geografias e/ou paisagens do medo, haja vista que os estudantes passam a ser vilipendiados pelas universidades e professores. Sofrem violências diversas, físicas, psíquicas, sexuais, fazendo com que as paisagens fronteiriças tenham ou deem o tom de medo, amedrontamento etc.

Foi a partir dessas vivências cotidianas e seus relatos, que pudemos nos debruçar sobre esses acontecimentos, analisando-os sob o prisma dos estudos sobre o poder e geografias do medo.

Dessa forma, sabendo que essas tessituras não se esgotam aqui, mas, pelo contrário, nos abrem múltiplas possibilidades de análises pelo fio condutor das relações de poder entre os seres que vivenciam essa fronteira, as tensões entre brasileiros e bolivianos, a xenofobia etc., — temas que escolhemos não nos debruçar neste momento —, alvitramos por dar maior visibilidade e, simultaneamente, manifestar, denunciar e chamar a atenção dos órgãos competentes, dos governos brasileiros e bolivianos, a essas atrocidades cometidas contra estudantes brasileiros nas fronteiras do poder e do medo, a fim de preservar e cuidar de suas saúdes mentais e físicas; além de demonstrar como essas relações de poder desaguaram em geografias, paisagens e/ou fronteiras do medo, pelas experiências no seu tempo e espaço, em suas localidades e convivências com o outro, estudo importante e essencial à ciência geográfica.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAUMAN, Zygmunt. Medo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

BRASIL. Ministério da Integração Nacional. Proposta de reestruturação do Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira. Brasília: MIN, 2005.

CARNEIRO, Eduardo de Araújo. A fundação do Acre: uma história revisada da anexação. Rio Branco: EAC, 2015.

CIDREIRA, J. H. Discurso e resistência na Amazônia acreana (1971 – 1981). Rio Branco: EDUFAC, 2018.

DECRETO 4.280 DE 28 DE NOVEMBRO DE 1868. Disponível em: https://pt.m.wikisource.org/wiki/Decreto_4.280_de_28_de_Novembro_de_1868.

FERREIRINHA, Isabella M.N; RAITZ, Tânia Regina. As relações de poder em Michel Foucault: reflexões teóricas. Revista de Administração Pública. Rio de Janeiro, 2010. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rap/a/r3mTrDmrWdBYKZC8CnwDDtq/abstract/?lang=pt. Acesso: 25 de dezembro de 2023.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

IBGE. Diretoria de Pesquisas - DPE - Coordenação de População e Indicadores Sociais – COPIS, 2021.

MACHADO, Lia Osório et al. O desenvolvimento da faixa de fronteiras: uma proposta conceitual-metodológica. In.: MACHADO, Lia Osório. Território sem limites: estudos sobre fronteiras. Campo Grande–MS: UFMS, 2005.

PINHEIRO DE LIMA, Bruno Fernandes Magalhães; PEREIRA, Valnei. Geografias do medo: representações da violência urbana na vida cotidiana de Belo Horizonte. S/d. Disponível em: http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal11/Geografiasocioeconomica/Geografiacultural/25.pdf. Acesso em: 01 de janeiro de 2024.

PORTELLI, Alessandro. A morte de Luiggi Trastulli e outras histórias: formas e significados na História Oral. Hinco, tradução: Maria Therezinha Janine Ribeiro, 2009.

RAFFESTIN, Claude. Por uma Geografia do Poder. São Paulo: Ática, 1993.

SILVA, Leonardo Luiz Silveira. (2016). O papel das políticas territoriais especiais para a transformação das cidades de zona de fronteira: o caso das cidades gêmeas de Brasileia, Epitaciolândia e Cobija / The role of special territorial policy to the transformation of the border area cities: the case of the twin cities of Brasileia, Epitaciolândia and Cobija. Redes. 22. 74. 10.17058/redes.v22i1.8414. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/314247380_O_papel_das_politicas_territoriais_especiais_para_a_transformacao_das_cidades_de_zona_de_fronteira_o_caso_das_cidades_gemeas_de_Brasileia_Epitaciolandia_e_Cobija_The_role_of_special_territorial_policy. Acesso em: 24 de dezembro de 2023.

STEIMAN, Rebeca. A geografia das cidades de fronteira: um estudo de caso de Tabatinga (Brasil) e Letícia (Colômbia). 2002. 117 f. Dissertação (Mestrado) - Programa de Pós-Graduação em Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002. Disponível em: http://www.retis.igeo.ufrj.br/wp-content/uploads/2011/06/2002-geografia-das-cidades-de-fronteira-RST.pdf. Acesso em: 24 de dezembro de 2023.

TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo de percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina: Eduel, 2012.

TUAN, Yi-Fu. Paisagens do medo. São Paulo: UNESP, 2005.

Notas

[1] DECRETO 4.280 DE 28 DE NOVEMBRO DE 1868. In.: https://pt.m.wikisource.org/wiki/Decreto_4.280_de_28_de_Novembro_de_1868 . Acesso em: 21 de dezembro de 2023.
[2] A historiografia oficial preserva essa versão e nome para enaltecimento de heróis e da própria história do Estado. Contudo, não consideramos o termo “revolução” apropriado, pois não teve intenção e nem consistiu numa mudança da ordem social, política e econômica à população do Território em litígio (indígenas, migrantes do Norte do país etc.). O interesse pelo conflito armado era de cunho econômico pelo látex do atual Acre, tanto pelo governo brasileiro quanto pelo governo do Amazonas, seringalistas e grandes empresas.
[3] IBGE. Diretoria de Pesquisas - DPE - Coordenação de População e Indicadores Sociais – COPIS, 2021.
[4] Id., 2021.
[5] Disponível em: https://cobija.gob.bo/cbj/contacto/. Acesso em: 25 de dezembro de 2023.
[6] Disponível em: https://es.m.wikipedia.org/wiki/Universidad_Amaz%C3%B3nica_de_Pando. Acesso em 25 de dezembro de 2023.
[7] Disponível em: https://unitepc.edu.bo/pages/historia/. Acesso em 25 de dezembro de 2023.
[8] Disponível em: https://www.upds.edu.bo/historia/nacional/. Acesso em 25 de dezembro de 2023.
[9] Disponível em: https://www.estadao.com.br/infograficos/cidades,na-fronteira-pelo-diploma-medico,1028800. Acesso em: 25 de dezembro de 2023.
[10] Entrevista da senhora M.O, concedida no dia 21 de dezembro de 2023.
[11] Entrevista do estudante J. S., concedida no dia 23 de dezembro de 2023.
[12] Entrevista do estudante J. S., concedida no dia 23 de dezembro de 2023.
[13] Entrevista da estudante T. M., concedida no dia 22 de dezembro de 2023.
[14] Idem
[15] Para o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, “medo é o nome que damos a nossa incerteza: nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se c 'está -la estará além do nosso alcance” (Bauman, 2008, p. 8).
[16] Entrevista da estudante T. M., concedida no dia 22 de dezembro de 2023.
[17] Disponível em: https://oaltoacre.com/aluna-brasileira-denuncia-violencia-sexual-em-universidade-da-bolivia/. Acesso em: 03 de janeiro de 2024.
[18] Disponível em: https://agazetadoacre.com/2012/09/noticias/policia/medico-boliviano-e-denunciado-por-estupro-de-brasileiras-em-universidade-de-cobija/. Acesso em: 03 de janeiro de 2024.


Buscar:
Ir a la Página
IR
Modelo de publicação sem fins lucrativos para preservar a natureza acadêmica e aberta da comunicação científica
Visor de artigos científicos gerado a partir de XML JATS4R