Artigos
Revisitando a história da língua nacional para compreensão da formação da língua padrão e das relações de poder e dominação
Revisiting the history of the national language to understand standard language formation and power relations and domination
Revista Presença Geográfica
Fundação Universidade Federal de Rondônia, Brasil
ISSN-e: 2446-6646
Periodicidade: Frecuencia continua
vol. 06, núm. Esp.01, 2019
Recepção: 30 Agosto 2019
Aprovação: 01 Setembro 2019
Resumo: O presente trabalho tem por objetivo levantar discussões sobre como a língua oficial se constituiu no Brasil e vem sendo imposta em detrimento de outras línguas e das variações por classe social, região geográfica e de demais elementos diferenciadores. O debate se dá a partir do questionamento feito por Bortoni-Ricardo (2014, p. 69): “ Como se constitui uma variedade padronizada, detentora de prestígio, e como ela se coloca no repertório de uma comunidade, em relação às demais variedades de pouco ou nenhum prestígio?”. É sabido que embora a sociolinguística venha tentando eliminar preconceitos ao postular que todas as línguas e variedades são igualmente complexas, reconhecendo a heterogeneidade e o caráter multifacetado como propriedade inerente a todo sistema linguístico e a competência linguística dos falantes como atributo que os leva a selecionar formas alternativas disponíveis n o sistema; na escola o ensino da Língua Portuguesa ainda tem se pautado em uma tradição pedagógica que estabelece apenas uma variante como padrão a ser obedecido. Estas situações a nosso ver colaboram para reafirmação do poder de uma classe econômica sobre a outra. Após revisão bibliográfica embasada em Antunes (2007; 2009), Bortoni-Ricardo (2014a; 2014b), Faraco (2009), Calvet (2002), Gnerre (1985), utilizou-se como metodologia a Análise de Discurso de linha pecheutiana, chegando-se a conclusão de que existe uma imposição social de uma língua considerada melhor comparativamente em relação às demais. Havendo assim uma necessidade de repensar as práticas sociais em relação às línguas adotadas pelos diversos falantes em solo nacional.
Palavras-chave: Língua nacional, Português Padrão, Dominação Linguística.
Abstract: The present scientific study has as objective to raise discussions about how the official language was constituted in Brazil and has been imposed to the detriment of other languages and the variations by social class, geographic region and other differentiating elements. The debate is based on the question asked by Bortoni-Ricardo (2014: 69): " How is a standardized, prestigious variety created, and how is it imposed in the repertoire of a community, in relation to other varieties of little or no prestige?". It is well known that although sociolinguistics attempts to eliminate prejudices by postulating that all languages and varieties are equally complex, recognizing the heterogeneity and multifaceted character as inherent property of every linguistic system and the linguistic competence of the speakers as an attribute that leads them to select forms alternatives available in the system; in school the teaching of the Portuguese Language has still been based on a pedagogical tradition that establishes only a variant as a standard to be obeyed. These situations in our view collaborate to reaffirm the power of one economic class over another. After a literature review based on Antunes (2007, 2009), Bortoni-Ricardo (2014a, 2014b), Faraco (2009), Calvet (2002) and Gnerre (1985), this study was based on the methodology of Discourse Analysis of pecheutian line, reaching the conclusion that there is a social imposition of a language considered better compared to the others. There is thus a need to rethink social practices in relation to the languages adopted by the various speakers on national soil.
Keywords: National language, Portuguese Standard, Linguistic Domination.
1 INTRODUÇÃO
Conquanto a Sociolinguística e a Sociologia da Linguagem venham prestando uma contribuição inegável ao estimular a adoção de políticas de ensino orientadas para as relações entre linguagem e sociedade, as práticas linguísticas, seja na sociedade, na escola ou em diversos espaços sociais, continuam elegendo ou enfatizando apenas uma variante. Esse prestígio provém de valores de natureza histórico-ideológica, presentes em diversos momentos da história do país. Formas históricas e antiquadas de conceber a língua que trouxeram e ainda trazem diversas consequências para a sociedade e, em especial, para a sala de aula, onde há valorização da tradição escrita em detrimento da tradição oral e com vistas apenas voltadas para uma escrita engessada pelas normas da Língua Padrão.
No âmbito da linguagem, defendemos que a compreensão da realidade com suas contradições e complexidades é tarefa importante a ser realizada pela escola, visto que ao lado de conhecer a estrutura, funcionamento e função da língua está a grandeza da conscientização de que esta não é apenas instrumento de comunicação, mas de poder e de constituição das identidades individuais e coletivas.
De Acordo com Irandé Antunes (2007, p. 35), os fatos linguísticos sempre estiveram misturados à história dos povos, a seus esforços de expansão e dominação territorial e política, as suas lutas pela hegemonia cultural, a seus intentos proselitistas, as suas necessidades retóricas; enfim, as línguas foram recebendo tratamentos diversos, conforme as também diversas condições sociais e políticas dos grupos, que as tinham como marca de sua identidade.
Gnerre (1985) pondera que na história das línguas europeias o passo fundamental na afirmação de uma variedade sobre as outras foi sua associação à escrita, dentro de restritos ambientes de poder. Assim, considerando a história do Português, no século XII, a língua literária, chamada galego-portuguesa, era a expressão, no plano linguístico, do prestígio político e cultural de Santiago de Compostela, porém, conforme o polo do poder mudou (hoje a Galícia pertence à Espanha), mudou também a incidência regional da variedade-padrão em Portugal, que já foi Coimbra e, hoje, é Lisboa. Ao longo da história é notório o fato de que os governos (poderes instituídos) de alguma forma regulam a padronização e, portanto, não se pode estudar o processo sem analisar as disputas sociais correlatas ao tema, como indicam os autores que visitamos por meio do nosso estudo.
Em Marcuschi (2005, p.17), por exemplo, encontramos que a escrita se tornou essencial (valorada) na vida do ser humano “não por virtudes que lhes são imanentes, mas pela forma como se impôs e a violência com que penetrou nas sociedades modernas e impregnou as culturas de um modo geral”. Violência que foi fruto da colonização de diversos povos e que no caso brasileiro fez com que hoje a língua oficial seja a do país que nos colonizou. O autor também aponta para o perigo de atribuição de propriedades mágicas a modalidade escrita em relação ao desenvolvimento cognitivo quando há apenas o incremento de conhecimentos de um dado formato.
Neste presente artigo, se adota a metodologia qualitativa, envolvendo revisão bibliográfica, na qual levamos em consideração que a língua pode ser sistema e instrumento de comunicação e, sobretudo, produto de um trabalho social, em que o valor positivo/negativo de classificação das línguas também é reflexo da disputa entre classes existentes desde o início das sociedades. Assim, buscamos responder com outros autores ao questionamento de Bortoni-Ricardo (2014, p. 69): “Como se constitui uma variedade padronizada, detentora de prestígio, e como ela se coloca no repertório de uma comunidade, em relação às demais variedades de pouco ou nenhum prestígio?”. Deste ponto, ou lócus de enunciação, por meio da Análise de Discurso de linha francesa adotada nos ensinamentos de Orlandi (2011) buscamos compreender o funcionamento e a dominação a partir da linguagem na sociedade brasileira, em consenso também com o que nos fala Santos (2003, p. 30)“deve-se suspeitar de uma epistemologia que recusa a reflexão sobre as condições sociais de produção e de distribuição do conhecimento científico. A ciência não pode ser vista como uma prática parasi”. Sabemos hoje que a evolução da forma de se encarar a ciência tornou- se palpável a partir do momento em que a ciência tornou-se, também ela, objeto de estudo, por meio da intervenção de diferentes disciplinas.
2 LÍNGUA PADRÃO
A fim de correlacionar o atual discurso de prestígio social por adoção de uma dada linguagem, assim como das escolas brasileiras de aceitabilidade exclusiva da língua padrão, é necessário rever fatos históricos de formação nacional, tendo em vista que os representantes letrados da sociedade brasileira viverem desde o século XIX uma situação de "esquizofrenia linguística", segundo Carlos Alberto Faraco (2009, p. 107), quando a cultura do erro ganhou o debate público em posicionamentos sobre as relações sociais e o ensino do português. O subjugamento cultural em relação ao colonizador trouxe como resultado, na época, a aproximação do português brasileiro ao padrão lusitano do Romantismo no pós-independência do Brasil colônia. Entre outras defesas aos fatos ocorridos neste cenário estava a de que em Portugal residiam os "verdadeiros" proprietários da língua, os fundadores de uma língua pura. Paradigma esse que estava atrelado ao desejo de europeização da terra tupiniquim por meio da propalada "higienização da raça" e/ou "embranquecimento da população".
O grupo "contrário" à europeização era composto por nacionalistas, que defendiam o abrasileiramento da língua. Em todo caso, ambos os grupos (favoráveis à nacionalização ou à europeização) tinham muitas ressalvas ao "português popular do Brasil". "O que revelava um entendimento claro do processo padronizador, que se realiza exatamente selecionando e privilegiando e, ao mesmo tempo, excluindo formas" (FARACO, 2008, p. 115).
Para melhor compreender a padronização/normatização da língua é ainda necessário voltar mais um pouco no tempo. Na Grécia, do período Clássico ao Helenístico, a diversidade linguística foi um dos motivadores para o início dos estudos gramaticais, com vistas à preservação da língua, especialmente a partir do século 300 a.C, em Alexandria. Entre as necessidades práticas da época para reforçar a necessidade destes estudos a respeito da gramática da língua grega estavam a habilidade de fala nos espaços públicos visando disputas políticas e jurídicas.
Podemos dizer que o estudo gramatical é bastante antigo. Os babilônios, por exemplo, já se dedicavam a esse tipo de estudo por volta do ano 2000 a.C. Os hindus desenvolveram uma forte tradição gramatical por volta do século IV a.C. No mesmo período, os chineses estavamtambém iniciando suas reflexões gramaticais. (FARACO, 2008, p. 130).
A primeira gramática conhecida é atribuída a Dionísio de Trácio (séc. II a.C.). É preciso ainda se fazer a ressalva de que somos herdeiros de seus conhecimentos sobre este tema:
O estudo criterioso dos textos levou os eruditos alexandrinos a descrever e comentar a língua que ali encontravam: aspectos de métrica, ortografia e pronúncia; a distribuição das palavras por classes (nomes, adjetivos, pronomes, verbos, advérbios, conjunções etc.); a estrutura sintática da oração simples (sujeito, predicado, complementos e adjuntos) e dos períodos (coordenação e subordinação); o uso das figuras de linguagem e assim por diante. (FARACO, 2008, p. 133).
O império romano ao dominar a Grécia e, consequentemente, tomar Alexandria, encontrou campo fértil para abastecer intelectualmente a sua elite e homens letrados, que chegaram a adotar o grego como língua valorizada. Dos conhecimentos linguísticos acumulados pelos gregos é que se vão estruturar as gramáticas do latim e o trabalho dos gramáticos em fixar padrões da língua, com olhar desde aquela época muito mais voltado para os escritores clássicos antigos.
Assim como há a dominação, o que se verifica ao longo da história é que os governos/poderes instituídos de alguma forma regulam a padronização e, portanto, não se pode estudar o processo sem analisar as disputas sociais correlatas ao tema. "Em países da Europa ocidental, pode-se facilmente traçar a linha histórica que culminou com a emergência de uma variedade - ou dialeto - de prestígio, de natureza suprarregional, a partir da constituição de um governo unificado após a Idade Média" (BORTONI-RICARDO, 2014, p. 69-70). O mesmo ocorreu com a língua padrão na França e Espanha, por exemplo.
E assim como todo processo social, haverá uma disputa de classes subentendida:
Quando a língua padrão é associada à classe social, torna-se símbolo de status. As classes sociais que detêm prestígio e poder têm amplo acesso a ela, as classes inferiores na pirâmide social aspiram ao domínio dessa norma padronizada, que vão aprender na escola. (BORTONI-RICARDO, 2014, p. 71).
Nos países latinos, com a língua materna se afastando do conhecimento advindo dos espaços públicos de fala e a escrita ficando restrita aos mosteiros, o resultado crescente foi o que Farraco denomina de "normativismo" e de "gramatiquice", com finalidade apenas de tornar a visão sobre um modelo de língua invariável, homogênea e inflexível, verificado por meio da norma "curta". Ficando registrado na história o poder dos grupos que ao dominar outros tomam territórios, subjugando povos, impondo-lhes costumes, línguas e novas culturas.
No Brasil, a língua oficial é o português48, e não oficialmente resistem [apesar do massacre contra esses povos, desde o ano 1500] 180 línguas indígenas e outras 30 relacionadas a descendentes de imigrantes, além da Libras (Língua Brasileira de Sinais). Resultado de tudo o que vivemos, deixamos de ter as mais de mil línguas aqui faladas no século XVI.
Será somente a partir dos estudos de Wiliam Labov, na década de 1960, que os estudos linguísticos passaram a ser vistos a partir do prisma da variação, uma vez que a heterogeneidade é constitutiva das concepções linguísticas mais atuais, ocorre em todas as línguas humanas, sendo que todos os dias as línguas sofrem modificações e evoluem (sincrônica e diacronicamente). Por ser considerada “viva” e inserida em uma comunidade social e a partir de um fato social, a língua passaria a ser estudada além de si e não mais por si mesma. É dessa crítica que nasce a Sociolinguística (CALVET, 2002), de uma visão crítica ao estruturalismo de Ferdinand de Saussure e da separação dos estudos linguísticos da parte que lhe é social: a língua da fala (langue- parole). As variações linguísticas são de natureza geográfica, social, cultural, por idade, entre outras.
À escola cabe, portanto, o ensino competente da língua portuguesa. Isso não entra em discussão, é ponto convergente. Apenas o debate deve avançar para que essa competência não estar condicionada restritivamente à língua padrão da forma (im)posta como o vem sendo até o momento, sem superação de problemas sociais graves como o são os índices de evasão escolar ou mesmo o não acesso à escola por número significativo de brasileiros. Os meios e formas de ensino que não desabonam o conhecimento/língua que os alunos trazem de casa [e até mesmo nós professores e familiares] fazem parte de nossa literatura científica, precisando ser popularizada junto a docentes e comunidade escolar.
O desvendar dos problemas mais profundos escondidos no ensino dos “erros” de português ou sobre o funcionamento da linguagem. Conforme Irandé Antunes (2009) o que se propõe não é fim das gramáticas ou de seu uso no ensino. Mesmo porque este é um termo que abarca não só a tão propalada gramática tradicional:
Nada mais simplista e sem fundamento do que a ideia de que “já não é para ensinar gramática”. O que está em questão, na proposta de ens ino mais relevante, é a perspectiva a partir da qual se veja o funcionamento interativo da língua, quer na dimensão de seu vocabulário, quer na dimensão de sua gramática, quer, ainda, nas regularidades de construção e organização de seus diferentes tipos e gêneros textuais. (ANTUNES, 2009, p. 175).
É dado por publicações diversas os meios de trabalho em sala de aula para letramento com competências mais significativas, por exemplo, com objetivo de realizar “análise linguística, comparando as diferentes ocorrências de nossa língua em diferentes contextos de uso, buscando contribuir para o fortalecimento da função leitora e escritora dos alunos” (BORTONI-RICARDO, 2014b, p. 21).
E no âmbito social, a propagação do debate sobre as consequências do funcionamento da linguagem enquanto campo em disputa, assim como também produtora de preconceitos, é que se pode diminuir a discriminação e a má compreensão de determinados fenômenos linguísticos.
3 ANÁLISE DE DISCURSO
A intersecção entre os estudos que tratam sobre as variações linguísticas e a Análise de Discurso traz ao debate parâmetros profícuos para o estudo. Uma vez que há ideologia presente no confronto de classes que tornam uma língua com condições de superioridade social frente às demais. Para Orlandi (2011), que abordou a aproximação futura entre Análise de Discurso e Sociolinguística em sua obra, o processo discursivo coloca em relação as condições de produção de dado discurso, sob determinadas marcas formais (que podem ser de estilo, tipológicas ou outras) delimitadas por formações discursivas e ideológicas. É o que buscaremos, metodologicamente, descrever essa constituição da língua dividida em prestigiada X estigmatizada socialmente por determinadas comunidades linguísticas.
A Análise do Discurso (AD) é uma área de estudo perpassada por diferentes disciplinas, que correlacionam o inconsciente, o ideológico-cultural, a linguística e o materialismo histórico. Ao tratar essa aproximação entre AD e Sociolinguística, a analista de discurso traz também uma aproximação entre o social e o caráter histórico da língua, tida como um produto histórico-social, desta forma trata que a convenção, segundo Orlandi (2011, p. 100), “se caracteriza pelo seu conteúdo social e pela sua historicidade. É nesse sentido que entendemos que a linguagem é convencional”.
Por meio do reconhecimento do confronto ideológico, uma vez que a AD busca a compreensão dos discursos em suas diferentes formações discursivas e condições das práticas sociais, daí trabalhar com a noção de funcionamento. “O conceito básico para a AD é o de condições de produção. Essas condições de produção caracterizamo discurso, o constituem como tal são objeto de análise” (ORLANDI, 2011, p. 110). Nesta constituição histórica, a autora compõe o grupo de estudos em torno da História das Ideias Linguísticas49. Um dos pontos de estudo são os instrumentos linguísticos (dicionários e gramáticas, por exemplo) atuando dentro de políticas de língua e, como tal, não sendo elementos neutros de ideologias, mas trazendo em seu bojo discursos.
A direção do grupo na Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) “História das ideias linguísticas no Brasil: a constituição de um saber metalinguístico e a construção da língua nacional”, vinculada às teorias da Análise de Discurso, em colaboração com o teórico francês Auroux (2009) correlacionou ao país a instrumentalização de uma língua brasileira, a partir da gramatização brasileira, que é “uma língua diferente do português, porque, entre outras coisas, ele é objeto de uma endo-gramatização, logo de uma instrumentação específica” (AUROX, 2009, p. 126), portanto, de uma língua descolonizada. Verifica-se assim que o discurso brasileiro, nacionalizado a partir também de seus instrumentos linguísticos, passa em determinado percurso a ser diferente do encontrando em Portugal. Como consequência da formação de uma unidade nacional e de uma língua nacional, os pesquisadores encontrarão uma nação se estabelecendo, tal qual seus primeiros instrumentos linguísticos nacionais, lançamento dos primeiros dicionários e gramáticas escritos por brasileiros.
Aurox (2009) trabalha conceitos e o fato de uma gramatização enquanto uma revolução tecno-línguística, comparável a revoluções Agrária no período Neolítico e Industrial mais próximo de nossos tempos. Esse fenômeno de tal envergadura para a efetivação posterior na área de ciências da linguagem, representadas pelas gramáticas e pelos dicionários, passou a ser fundamental para as sociedades ocidentais notadamente a partir do Renascimento, quando já detinham a tradição gramatical greco-latina e quando se lançaram a expandir territórios e poder de dominação. Aurox (2009, p. 120) traz essa sistematização de gramáticas e dicionários: “a escrever gramáticas e dicionários para seus próprios vernáculos (endo-gramatização), assim como para as línguas que suas viagens os faziam descobrir através do mundo (exo-gramatização)”.
Nesta luta por conquista e dominação, o uso de língua oficial passa a ser obrigatória na relação Estado-cidadão. E ainda com o advento da escrita e mais aceleradamente com a criação da imprensa, ou mecanização da escrita, haverá dimensões em nada comparáveis às sociedades orais, ao que o autor denominou conveniente chamar de linguicídio voluntário ou não o que sucederia a essas comunidades linguísticas (AUROX, 2009, p. 71). As tecnologias das línguas passam a ser usadas para exercício do poder, como instrumento de colonização e de subordinação ao Estado.
É neste funcionamento da língua, sob essas condições de produção, que se constitui o discurso em relação à língua oficializada no Brasil, imposta e já com uma história de poder dos colonizadores. Permanecendo a linguagem um espaço não-neutro, todavia de embate e conflito, uma vez ser vista pela AD em sua exterioridade e seu processo histórico-social.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Partindo-se do questionamento de como se constitui uma variedade padronizada, detentora de prestígio, e como ela se coloca no repertório de uma comunidade, em relação às demais variedades de pouco ou nenhum prestígio, chegamos às considerações de que na sociedade em geral, assim como também no ensino tradicional de língua portuguesa, elegem-se o correto e o incorreto como critério único no tratamento da variação, o que longe de ter qualquer respaldo em fenômenos intrinsecamente linguísticos, encontra justificativa em determinações de natureza social, conforme retomadas neste estudo as condições de produção que conduziram o Brasil à designação de uma língua una, oficial, a ser seguida por toda a nação.
O modelo escolar é uma extensão do processo de socialização iniciado pelos pais e pelo meio social em geral. Sendo assim, as camadas marginalizadas nadam contra a maré, por estarem mais apartadas da norma padrão e da norma culta, essas que são socialmente prestigiadas. A modalidade de cultura que a escola desenvolve afina-se mais com a das classes dominantes e isso cria um problema com proporções maiores ainda quando tal modalidade se impõe no ensino como referencial exclusivo à que outras formas de experiência cultural acabam por submeter-se. Desprezando, destarte, o caráter heterogêneo e multifacetado como propriedade inerente a todo sistema linguístico.
Para além dessa sequela há que se pensar na historicidade da língua, desvelar que as riquezas e pluralidades linguísticas do Brasil estão também atravessadas por uma disputa por dominação e poder que vem se construindo desde a colonização do território por povos originários da Europa Ocidental. Nessa relação política e de constituição de uma nação, há materialidade que reflete na própria língua ou nos usos que são feitos dela. Ela constitui sujeitos. Por isso a necessidade de se estudar o tema, especialmente, compreendendo a língua enquanto detentora de diferentes instrumentos linguísticos não-neutros.
Se há uma materialidade na própria língua e se a ideologia se manifesta pelo discurso que tenta se mostrar transparente, estuda-lo é uma maneira de subverter o status quo. A imposição atua não só em detrimento de outras línguas e no intento de rebaixar/ridicularizar as variações diafásicas, diatópicas e diastráticas, mas de manter o prestígio a uma só camada social, que também irá luta por deter o poder econômico, político e cultural. A imposição social de uma língua considerada melhor comparativamente em relação às demais requer, destarte, a necessidade de repensar as práticas sociais em relação às línguas adotadas pelos diversos falantes em solo nacional.
REFERÊNCIAS
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ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
AUROUX, Sylvain. A revolução tecnológica da gramatização. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Manual de Sociolinguística. São Paulo: Contexto, 2014a.
BORTONI-RICARDO, Stella Maris; SOUSA, Rosineide Magalhães de; FREITAS, Vera Aparecida de Lucas; MACHADO, Veruska Ribeiro. Por que a escola não ensina gramática assim? São Paulo: Parábola Editorial, 2014b.
CALVET, Louis-Jean. Sociolinguística: uma introdução crítica. São Paulo: Parábola Editorial, 2002.
FARACO, Carlos Alberto. Norma Culta Brasileira: desatando alguns nós . 2 ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2009.
GNERRE, Maurizio. Linguagem, escrita e poder. São Paulo: Martins Fontes, 1985.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. (2005). Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 6.ed. São Paulo: Cortez,. p. 15-43.
ORLANDI, Eni Puccinelli. A linguagem e seu funcionamento: as formas do discurso. 6. ed. Campinas: Pontes Editores, 2011.
SANTOS, Boaventura de Souza. Introdução a uma Ciência Pós Moderna. 4. ed. Rio de Janeiro: Graal, 2003.