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Arte de partejar: aprendizados e ensinamentos de mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé – RO

Arte de la comadrona: aprendizaje y enseñanza de las comadronas de las comunidades restantes de quilombos del Vale de Guaporé – RO

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Universidade Federal de Rondônia - UNIR, Brasil

Arte de partejar: aprendizados e ensinamentos de mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé – RO

Revista Presença Geográfica, vol. 06, núm. Esp.01, 2019

Fundação Universidade Federal de Rondônia

Resumo: Esta pesquisa apresenta resultados de uma investigação feita com mulheres de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé – RO. O objetivo foi analisar as experiências das mulheres parteiras afro-guaporenses a partir dos anos 1940, época em que a medicina oficial ainda não havia alcançado a região. O estudo foi realizado por intermédio de entrevistas e conversas formais e informais com mulheres nascidas e criadas na região guaporense, com idade entre 74 e 82 anos de idade, por meio do qual foi possível estabelecer diálogos com bases nas teorias de Michelle Perrot (2017), Schumaher & Brazil (2007), Gilberto Freyre (2006) e Maria Odaléa Bruggemann (2001). Acerca da compreensão da história regional, os estudos de Flávio Gomes (2015) e Marco Teixeira & Dante Fonseca (2001). Por meio de narrativas orais de vida de mulheres remanescentes de quilombos identificamos as práticas e os cuidados das mulheres parteiras, que, na arte de partejar apararam e salvaram vidas, além de cuidar das mulheres parturientes e dos recém-nascidos no período de resguardo, bem como, seus conhecimentos ancestrais em ervas medicinais usadas no trabalho de partejar, que, nesse contexto, se tornam relevantes para a preservação das práticas culturais das mulheres de comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Guaporé. Desta forma, espera-se contribuir para o reconhecimento e a valorização da memória das mulheres parteiras remanescentes de quilombos, visto que as mulheres negras, camada social mais invisível da sociedade, contribuíram/contribuem de forma relevante não só nas suas comunidades remanescentes de quilombos, como também em outras localidades da região do Vale do Guaporé – comunidades indígenas, bolivianas e ribeirinhas – contudo, suas práticas foram silenciadas pela história.

Palavras-chave: Mulheres negras, Parteiras, Vale do Guaporé.

Resumen: Esta investigación presenta resultados de una investigación hecha con mujeres de comunidades remanentes de quilombos del Valle del Guaporé - RO. El objetivo fue analizar las experiencias de las mujeres parteras afro-guaporenses a partir de los años 1940, época en que la medicina oficial aún no había alcanzado la región. El estudio fue realizado por intermedio de entrevistas y conversaciones formales e informales con mujeres nacidas y criadas en la región guaporense, con edad entre 74 y 82 años de edad, por medio del cual fue posible establecer diálogos con bases en las teorías de Michelle Perrot (2017) , Schumaher & Brazil (2007), Gilberto Freyre (2006) y Maria Odaléa Bruggemann (2001). Sobre la comprensión de la historia regional, los estudios de Flávio Gomes (2015) y Marco Teixeira & Dante Fonseca (2001). Por medio de narrativas orales de vida de mujeres remanentes de quilombos identificamos las prácticas y los cuidados de las mujeres parteras, que, en el arte de partejar recortaron y salvaron vidas, además de cuidar a las mujeres parturientas y de los recién nacidos en el período de resguardo, bien como sus conocimientos ancestrales en las hierbas medicinales usadas en el trabajo de parte, que en ese contexto se tornan relevantes para la preservación de las práct icas culturales de las mujeres de comunidades remanentes de quilombos en el Valle del Guaporé. De esta forma, se espera contribuir al reconocimiento y la valorización de la memoria de las mujeres parteras remanentes de quilombos, ya que las mujeres negras, capa social más invisible de la sociedad, contribuyeron de forma relevante no sólo en sus comunidades remanentes de quilombos, como también en otras localidades de la región del Valle del Guaporé - comunidades indígenas, bolivianas y ribereñas - sin embargo, sus prácticas fueron silenciadas por la historia.

Palabras clave: Mujeres negras, Parteras, Valle del Guaporé.

INTRODUÇÃO E JUSTIFICATIVA

O presente trabalho objetivou analisar as experiências das mulheres parteiras nascidas e criadas em comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé – RO a partir dos anos 1940, época em que a medicina oficial ainda não havia alcançado a região fronteiriça. As mulheres parteiras, na arte de partejar, apararam e salvaram vidas, e cuidaram das mulheres parturientes e das crianças recém nascidas no período de resguardo em localidades remotas e de difícil acesso, bem como, compartilharam seus aprendizados ancestrais com as famílias guaporenses, visto que as parteiras possuíam um leque de conhecimentos em plantas e ervas medicinais usadas na atividade de partejar para auxiliar as parturientes no trabalho de parto domiciliar, que, nesse contexto, se tornam relevantes para a preservação das práticas culturais das mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé. O tema desta pesquisa foi escolhido a partir de uma inquietação pessoal enquanto mulher negra, pesquisadora, oriunda de comunidade remanescente de quilombos do Vale do Guaporé, cuja temática ainda é pouco vista e registrada na historiografia regional.

De comunidade em comunidade, moradia em moradia, e até mesmo de seringal em seringal, as mulheres parteiras auxiliaram as parturientes com suas práticas culturais envoltas por atenção e assistencialismo humanizado no trabalho de parto e durante o período de resguardo. As parteiras carregavam consigo as ervas e os utensílios usados na arte de partejar, e assim, estavam sempre prontas para auxiliar as parturientes em qualquer lugar em que estavam ou eram convocadas para a arte de partejar. Uma ação solidária, que as mulheres parteiras, pacientemente, compartilhavam desse momento íntimo com as parturientes, sem intervenções cirúrgicas e/ou medicamentos farmacêuticos.

No caso deste estudo, propomo-nos refletir sobre as experiências das mulheres guaporenses a partir de recortes de narrativas orais de vida de mulheres parteiras que nasceram, viveram e auxiliaram as mulheres parturientes em comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé, a partir dos anos 1940. Acredita-se que proceder registros sobre a forma como as mulheres parteiras movimentaram-se, social e culturalmente, nas comunidades remanescentes quilombolas da região, é uma forma de contribuição com a garantia de respeito e valorização da memória das mulheres parteiras do Vale do Guaporé, visto que o apagamento nas pesquisas acadêmicas, contribuem para a perpetuação de desvalorização de ensinamentos e experiências das mulheres parteiras.

REVISÃO DE LITERATURA

O processo de nascimento é, historicamente, uma atividade natural e fisiológica, exclusiva, ao universo das mulheres, realizados, até o final do século XIX, no interior das residências das mulheres parturientes, de diferentes classes sociais. Analisa SCHUMAHER & BRAZIL (2007, p. 177) que o trabalho de partejar, assim como o de benzer, é resultado da junção entre diversas culturas, pois as parteiras eram “[...] portadoras de dons e conhecimentos que exigiam destreza com segredos da natureza e da fé, foram permanentemente requisitadas por pessoas de diferentes classes”. E são escassos os registros oficiais sobre a vida dessas mulheres ao longo da história da medicina oficial, contudo, de modo geral, as contribuições dos grupos negros desbaratados na época do Brasil Colônia foram relevantes para a formação da cultura brasileira, que com saberes, cores, técnicas para agricultura e minas, além da culinária, segundo FREYRE (2006, p. 390): “[...] enriqueceu-se e refinou-se com a contribuição africana”.

As parteiras eram mulheres, geralmente, viúvas ou casadas, que adquiriam experiência no dia a dia a partir do contato com trabalhos de parto na medida em que auxiliavam as parteiras mais experientes. Ou seja, para um trabalho de parto, as parteiras levavam consigo uma pessoa de sua confiança, uma mulher, e assim, as ajudantes das parteiras aprendiam com elas, na prática, os conhecimentos e aprendizados tradicionais das mulheres parteiras. E assim, substituíam, em dado momento, as parteiras mais idosas e reproduziam as experiências adquiridas às próximas mulheres parturientes.

No trabalho de parturiar, os homens não compartilhavam da intimidade vinculada à figura feminina, assim como, os primeiros cuidados e a educação familiar das crianças, eram considerados um trabalho de responsabilidade, destinado apenas às mulheres. Nessa perspectiva, PERROT (2017, p. 74) corrobora: “[...] inicialmente, ato próprio à mulher, praticado em casa, por uma matrona ou uma parteira, entre mulheres, excluindo os homens, quase sempre mantidos fora do acontecimento e do ambiente”.

As parteiras, também chamadas por aparadoras, eram mulheres que possuíam a confiança das mulheres parturientes e de todos os moradores das comunidades. Havia mulheres parteiras que apenas partejavam, e quando rezavam era somente durante o trabalho de partejar, assim como havia outras mulheres parteiras que desenvolviam as funções de parteiras, benzedeiras ou curandeiras em diferentes ocasiões. Elas eram pessoas reconhecidas e valorizadas por todas as pessoas e lugares por onde passavam devido suas práticas em cuidar das mulheres gestantes e no seu período de resguardo, assim como dos moradores enfermos, destacando-se socialmente. As parteiras possuíam, de maneira geral, pouca ou nenhuma escolaridade, baixa renda e não recebiam remuneração adequada (quando recebiam) pela realização de seu trabalho, mas para elas a arte de partejar não era um trabalho e sim um sacerdócio (BRUGGEMANN, 2001, p. 23-30).

A partir do século XX, a medicina oficial considerou o parto um evento patológico, em que se faz, na maioria das vezes, a intervenção de medicamentos e cirurgias, visto que: “[...] o parto medicinizou-se, masculinizou-se, hospitalizou-se” (PERROT, 2017, p. 74) contribuindo para a não continuidade dos sentimentos de solidariedade e intimidade vivenciados entre mulheres parturientes e mulheres parteiras, que em épocas passadas eram (as gestantes) acompanhadas, no trabalho de parto, por outras mulheres da sua família, o que diminuía o medo e a ansiedade.

Séculos mais tarde, mais precisamente a partir do trabalho de catequização, a arte de partejar e de benzer, realizados pelas mulheres que socorriam pessoas de diferentes classes sociais, foram considerados bruxaria pela religião dominante, assim, suas práticas e ações foram soterradas pela história. Entretanto, ressalta SCHUMAHER & BRAZIL (2007, p. 177) que “[...] nas casas- grandes, foram elas, na condição de cativas – mucamas, amas-de-leite ou “mães-pretas” –, as primeiras responsáveis, ao lado das índias, pelos cuidados com a manutenção da saúde e pelo combate às doenças da família brasileira”.

AUTORAS CENTRAIS E METODOLOGIA

Neste estudo, as mulheres parteiras não são retratadas como objetos de estudo, mas sim como autoras centrais e produtoras de práticas culturais que refizeram suas ações e experiências em organizações diversas com os outros contingentes populacionais existentes na região do Vale do Guaporé. Nessa perspectiva, as colaboradoras deste estudo são mulheres, negras, nascidas e criadas na região guaporense, com faixa etária entre 74 e 82 anos de idade.

O corpus relativo às contribuições das mulheres parteiras, assim como, na manutenção da vida sociocultural dos moradores das comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Guaporé provém da memória individual e coletiva dos guaporenses mais idosos, que segundo a análise de PORTELLI (2010, p. 210) a história oral é: “uma narração dialógica que tem o passado como assunto e que brota do encontro de um sujeito”, por meio do qual foi possível reconstruir as vivências guardadas nos fios da memória dos grupos que participaram de forma direta e indireta dessas “lembranças desse passado de vida comum” (HALBWACHS, 2003, p. 40).

A pesquisa, bibliográfica e de campo, do tipo qualitativa, foi desenvolvida no período de fevereiro a junho de 2019 com o quantitativo de seis mulheres (quatro mulheres que desenvolveram o trabalho de partejar e duas mulheres que tiveram partos assistidos por mulheres parteiras no Vale do Guaporé) que após a decadência do extrativismo na região e a negligência do Estado, procuraram localidades mais produtivas na perspectiva de melhores oportunidades de vida e trabalho, nesse caso, o município de Guajará-Mirim (RO), o segundo município mais antigo do Estado de Rondônia fundado em 1929, inicialmente constituído por “[...]apenas de alguns seringais, sem nenhuma povoação que chamasse atenção [...]. Dentre os seringais locais destacavam-se o Rodrigo Alves, Santa Cruz e o Renascença” (TEIXEIRA & FONSECA, 2001, p. 144). Mais tarde, Guajará-Mirim, composto por pessoas das mais diversas nacionalidades, como gregos, indígenas, bolivianos, turcos, japoneses, grupos de negros de diferentes origens, americanos e franceses, já possuía comércios e órgãos públicos que “servia” a população existente.

As análises dos dados foram feitas a partir de recortes de narrativas de vida das mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Guaporé. Corrobora BOSI (1994, p. 38) em sua análise ao dizer: “[...] nesta pesquisa fomos ao mesmo tempo sujeito e objeto. Sujeito enquanto indagávamos, procurávamos saber. Objeto quando ouvíamos, registrávamos, sendo como que um instrumento de receber e transmitir a memória de alguém [...]”. Acerca do levantamento do corpus da pesquisa, constituído por entrevistas e conversas formais e informais, duraram em média quarenta minutos (realizados em áudio e vídeo) seguindo um roteiro com base em um questionário com objetivos traçados e questões abertas para a investigação. Os registros foram realizados com o consentimento das colaboradoras respeitando a disponibilidade de cada uma, sendo apresentado o Termo de Consentimento e Esclarecimento (TCE), cujo fora lido e explicado pela pesquisadora e, após a concordância da depoente o documento foi assinado em duas vias.

Nessa direção, a metodologia de análise adotada neste estudo se ampara em Laurence Bardin (2009) e suas produções sobre análise de conteúdo, cujo método se identifica na descrição e interpretação dos dados abarcados durante o trabalho de campo. Assim sendo, o estudo foi norteado pelos seguintes questionamentos: Quais as experiências desenvolvidas pelas mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos no Vale do Guaporé (RO) a partir dos anos 1940? De que maneira é possível garantir o reconhecimento e a valorização de suas produções ancestrais?

Em dias atuais, localizam-se nove comunidades remanescentes de quilombos no Estado de Rondônia embora em outras épocas esse número tenha sido bem maior (GOMES, 2015). Quase todas localizadas no Vale do Guaporé, com exceção da Comunidade Jesus, situada num afluente, o Rio São Miguel. As outras comunidades são assim denominadas: Real Forte Príncipe da Beira, Santa Fé, Pedras Negras, Santo Antônio, Rolim de Moura, Tarumã, Laranjeiras e Santa Cruz.

Segundo historiadores, as comunidades do Estado foram formadas por grupos escravizados na região de Vila Bela da Santíssima Trindade (MT), edificações e minas auríferas no Vale do Guaporé, que após o esgotamento das áreas produtivas foram abandonados pela elite colonizadora (primeiras décadas do século XIX), que, deixaram para trás, a mercê da própria sorte, os negros desbaratados, cujos apossaram-se dos espaços do Vale do Guaporé e afluentes redefinindo-se a si mesmos, organizando-se em comunidades compartilhando uns com os outros suas culturais.

É importante ressaltar que os moradores das comunidades remanescentes de quilombos do Estado, embora suas terras já tenham sido reconhecidas como pertencentes de comunidades remanescentes de quilombos pela Fundação Cultural Palmares (FCP), aqueles que resistem nas suas comunidades estão em aguardo da demarcação e titulação das terras ocupadas, ancestralmente, por seus antepassados. Processos que correm de maneira lenta na bancada jurídica, visto que existem interesses contrários aos dos remanescentes de quilombos. Nessa perspectiva, LEITE (2010, p. 35) analisa: “o direito “quilombola” que a Constituição visa alcançar é o direito sobre o lugar, o direito não exclusivamente à terra ou às condições de produção, mas sobretudo o seu reconhecimento na ordem jurídica que é, antes de tudo, uma política de direitos humanos.” Falta maiores incentivos e políticas públicas às populações remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé, principalmente para os jovens que migram para localidades próximas na procura por melhores oportunidades. Também, os mais idosos que deixam suas terras devido o atendimento na saúde ser precário e irregular. Assim, as comunidades vivenciam o abandono e o despovoamento de seus moradores que não encontraram outras alternativas. Alguns dos moradores remanescentes, de forma impensada, vendem suas terras para fazendeiros e latifundiários que os convencem com ofertas de preços atrativos para em seguida transformarem as terras em pastos para gados.

DISCUSSÃO E RESULTADOS

As mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé foram personagens importantes na região numa época em que médicos oficiais ainda não haviam marcado presença, e que tiveram suas ações reconhecidas pelas famílias guaporenses na arte de partejar e no período de resguardo, chamado por “cuidar do resguardo”. Analisa SCHUMAHER & BRAZIL (2007, p. 179) que as parteiras: “[...] embora gozem de certo prestígio, sua vida rotineira em nada se difere das outras mulheres da comunidade, a não ser pelo fato de estarem sempre prontas a atender os pedidos de socorro físico ou espiritual”.

O trabalho de partejar era “encomendado” à parteira de maneira prévia pela gestante, quando possível. Em grande parte das comunidades remanescentes do Vale do Guaporé havia uma parteira e, elas eram procuradas, aproximadamente a partir do sexto ou sétimo mês de gestação. Contudo, há relatos de nascimentos de crianças em seringais e barrancos realizados por estas mulheres habilidosas visto que estavam sempre disponíves para auxiliar as parturientes no trabalho assistencialista.

A partir desse contato da gestante com a parteira, a parteira passava a realizar visitas domiciliares àquela parturiente para monitorar sua saúde e a saúde do bebê em formação, respondendo os anseios da gestante apenas observando o formato da sua barriga. Também, a parteira advertia a parturiente sobre a dieta exclusiva e os cuidados durante o “cuidar do resguardo”, conforme rememora a deponte: “enquanto não acabava o resguardo nós não comia coisa remosa, num podia andar no sol quente. Era dentro de casa resguardado. As parteiras eram mais coisa [habilidosa] do que o médico hoje, porque as parteiras não cortavam ninguém; esperava a hora” (Sra. Ana, 72 anos).

Assim sendo, os ensinamentos das parteiras às parturientes envolvia ritos, costumes e simpatias que garantiam um bom parto natural e a saúde da nova mãe e de sua criança recém nascida. Práticas culturais repassadas de geração a geração que germinavam somente no nascimento.

O trabalho de parto e os primeiros cuidados com as parturientes e os bebês recém nascidos

Quando a mulher entrava no trabalho de parto, a parteira era convocada por um dos familiares. No trabalho de partejar, as parteiras levavam consigo (sempre que possível) uma ajudante de sua extrema confiança, geralmente, uma mulher mais jovem para auxiliá-la na atividade. Para estimular o útero na expulsão do bebê, a parteira servia chás e realizava massagens na barriga da gestante com óleo medicinais específicos para aquele momento. Dentre os chás mais conhecidos, cita-se o chá de chicória, chá de arruda e chá de nó de São Francisco: “[...] eles [parteiras] fazia para molhar o pano [massagens], botar em cima da barriga e fazia o chá pra gente beber. Era remédio caseiro que elas davam pra gente. A gente ficava na cama só bebendo aquilo” (Sra. Amélia, 82 anos).

Com base no relato anterior, podemos observar que a parteira fazia massagens e compressas de panos embebidos em ervas medicinais. “Acomodava” a barriga, caso o bebê não estivesse em posição adequada para o parto natural, conforme rememora a colaboradora: “[...] a criança vira de todo lado. Ela vira de cabeça para baixo quando vai nascer, porque a parteira fica alí acomodando até virar. Ela [parteira] sabia quando estava sentado [bebê]. O médico se estiver sentado ele corta [procedimento cirúrgico], porque num vai nascer” (Sra. Ana, 72 anos).

Caso já estivesse na hora do nascimento, e, ainda assim, o útero da gestante não tivesse dilatado suficiente para a passagem do bebê, a parteira rezava para Nossa Senhora do Bom Parto, e continuava oferecendo chás e fazendo massagens na barriga da parturiente. Mesmo com esses esforços, se a parturiente continuasse com o tamanho inadequado para o nascimento do bebê a parteira realizava um minúsculo corte feito com uma pedrinha de sal pontiaguda, embora esses casos tenham sido raros, visto que as parteiras sabiam o momento certo para o nascimento das crianças e o aguardavam com paciência: “[...] quando já estava para ter elas diziam que estava perto. Ah, num é pra agorinha ainda, vai esperar. Era assim. Quando nascia cortava o umbigo primeiro e depois dava banho com água morninho com álcool” (Sra. Olandina, 76 anos).

Após o nascimento, a parteira tratava de cuidar do umbigo do bebê. O corte do umbigo era feito de maneira habilidosa por ela que em posse de uma tesoura afiada esterelizada em álcool, cortava o cordão umbilical. Em seguida, a criança recém nascida era levada para tomar seu primeiro banho, cujo era preparado com água morna e algumas gotinhas de álcool. Feito isso, as parteiras usavam uma mistura pastosa preparada com sal torrado, óleo de mamona e folhas de tabaco, em seguida, passavam essa mistura em cima do ferimento causado pelo corte do cordão, revestindo-o com um pano limpo chamado por “umbigueira”. Um umbigo bem cuidado, caía em três ou quatro dias.

A parturiente também recebiam cuidado das parteira na limpeza de seu corpo, logo após o parto. Era preparado à ela um banho específico para o momento, chamado por “banho de assento”, feito com água morna e plantas medicinais. Em seguida, era oferecido outros chás para o pós parto a fim de limpar o útero, conforme rememora a depoente: “[...] o chá de serragem quem faz é a parteira. Depois que ganhava neném bebia o chá de serragem. E curava mesmo, porque as vezes ainda tinha sangue coalhado e saía tudinho, ficava limpo” (Sra. Amélia, 82 anos). O chá de serragem era feito com pedaços de barro quente extraídos do fogão de lenha misturados com sal e água morna. Outros chás, também, eram feitos para a limpeza do útero como o chá de quina quina e folhas de sene.

O resguardo parturiente e suas restrições

O resguardo era seguido de maneira rigorosa pela parturiente, que já havia recebidos instruções da parteira. Esse período variava de acordo com o gênero da criança: “[...] quarenta dias para mulher e quarenta e um para homens. Antigamente, as mulheres cumpria o resguardo bem. Hoje, ganha nenêm e já voa até de bicicleta no sol quente de outubro. Não comia qualquer comida” (Sra. Amélia, 82 anos).

A dieta da parturiente era exclusiva no cuidar do resguardo, e devia ser seguida à risca por ela, pois garantia sua saúde e a produção do leite materno. E caso a parturiente não conseguisse produzir leite para amamentar seu bebê, a parteira fazia-lhe simpatias: “[...] esquentava água e penteava com um pente. No instante o leite desce tudinho” (Sra. Albina, 82 anos).

As mulheres alimentavam-se apenas com milho e caldos de galinhas cozidas nos primeiros dias após o parto. Nos dias seguintes, a parturiente ia introduzindo, devagar, outros alimentos: “[...] piranha [espécie de peixe] era só aquela cabeçuda, aquela vermelha num podia. Isso depois de oito, quinze dias. Tambaqui era depois de vinte dias. Não comia qualquer coisa, era só galinha” (Sra. Ana, 72 anos).

O resguardo parturiente era o único período em que as mulheres parturientes tinham repouso de suas atividades cotidianas, visto que estavam sempre atarefadas tanto nos trabalhos considerados domésticos quanto nas atividades realizadas por elas no meio da mata amazônica. E muitas vezes, as mulheres carregavam consigo suas crianças pequenas envoltas no corpo por pedaços de pano.

Nos primeiros dias de resguardo, as parturientes obedeciam os ensinamentos das mais experientes. Essa fase envolvia muitos cuidados e recomendações, vejamos:

[...] ficavam oito dias sem poder sair do quarto. Você [parturiente] tem que estar o tempo todo com um pano amarrado na cabeça; não podia assear com água fria e nem com água pura, porque tinha que ter um cozimento de folha de algodão branco ou roxo. Elas preferiam o algodão roxo. O banho de lavar a cabeça era só depois de oito dias. Até oito dias, você só asseava no quarto, não saía para fora. A parteira te acompanhava até o oito dia. Depois do oitavo dia já era por sua conta. Além de te cuidar, ainda cuidava da criança que tirava o umbigo. Que aqui agora não pode nada. Lá [comunidades guaporenses] eles [parteiras] torravam tabaco, tirava o rapé e misturava com sal e azeite de mamona. O umbigo de quatro dias não passava. Caía e não inflamava. Hoje, dizem que dá infecção. Mas, muita gente que eu conheci está vivo até hoje. Meu pai viveu 101 anos e foi curado com rapé de sal e tabaco. E eu nunca ouvi falar que morresse de infecção por causa disso (Sra. Leopoldina, 70 anos).

Com base no depoimento anterior, podemos analisar que as parteiras repassavam instruções tradicionais às parturientes. Após o nascimento, as parteiras realizavam visitas diárias nos primeiros oito dias. Nesse trabalho assistencialista, elas preparavam banhos de cozimentos, cujos deviam ser feitos no interior dos quartos dentro das moradias. Assim como, o preparo das refeições exclusivas das parturientes com os alimentos que já estavam estocados na cozinha (fubá de milho e galinhas) dias antes do parto.

No trabalho pós partejar, as parteiras ficavam responsáveis para cuidar dos outros filhos menores da parturiente, auxiliando nas atividades domésticas daquela família. Passados os oito primeiros dias após o nascimento das crianças, as parteiras, orientavam as novas mães acerca dos próximos cuidados que ela devia ter com o seu bebê recém nascido: “[...] minha avó vinha todo dia na minha casa, todo dia. Aí depois, a pessoa já tomava de conta, porque já sabia o que podia e o que não podia. Elas [parteiras] falavam. Se você teimava [descumpria], elas brigavam” (Sra. Ana, 72 anos). A parteira realizava suas atividades de partejar de maneira concomitante, visto que também tinha que dar conta dos seus afazeres pessoais, contando com a colaboração da nova mãe nos cuidados que deviam seguir no período de resguardo.

CONCLUSÕES

Este estudo evidenciou-nos parte da rica cultura das experiências e práticas das mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé. Técnicas repassadas de geração a geração que por muitas décadas socorreram as mulheres parturientes da região. Assim sendo, a pesquisa aponta para a significância das mulheres parteiras na arte de partejar e nos cuidados pós resguardo com as parturientes e as crianças recém nascidas, anos de 1940. As parteiras eram mulheres habilidosas, experientes, detentoras de práticas ancestrais que apararam e salvaram vidas; rezavam para inquietações diversas que afetavam o silêncio da saúde que acometiam as crianças, cujas enfermidades recebiam nomes peculiares: mau olhado, quebrante e moleira funda.

O trabalho de partejar e os primeiros cuidados no cuidar do resguardo eram garantidos com base na experiência e solidariedade das parteiras que acompanhavam todo o trabalho de parto com paciência sem intervenções cirúrgicas e/ou aplicações de medicamentos farmacêuticos, auxiliando de maneira humanizada a condição das mulheres no trabalho de parto.

As mulheres parteiras foram companheiras e amigas das famílias. Laços que mais tarde firmavam-se em parentesco, visto que se tornavam “madrinhas de umbigo” das crianças que apararam nos nascimentos. Além de contribuírem na manutenção das famílias, as parteiras auxiliavam na reprodução das plantas, visto que, cultivavam ervas medicinais no próprio quintal ou ainda sabiam encontra-las ou reconhecer essas plantas no interior da mata amazônica.

Desta forma, este estudo alerta-nos para mais pesquisas acadêmicas acerca dessa temática, visto que tanto as mulheres afro-brasileiras quanto suas produções na sociedade brasileira foram soterradas e silenciadas pela história. Contudo, suas práticas e habilidades ancestrais permanecem vivas na memória das famílias guaporenses auxiliadas pelas mulheres parteiras de comunidades remanescentes de quilombos do Vale do Guaporé, fronteira Brasil/Bolívia.

REFERÊNCIAS

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